Durante muito tempo, o vate Zuca Sardan se tornou
uma figura tão enigmática que alguns desconfiavam
de que ele era um pseudônimo ou heterônimo do também poeta Francisco Alvim. Na
verdade, Chico sempre teve a carteirinha número 1 do fã clube de Zuca, que,
desde os anos 1950, fazia os seus livrinhos mimeografados, contendo fábulas
hilariantes, irreverentes e anárquicas. Chico repassou os pasquins poéticos de
Zuca aos integrantes da chamada geração da Poesia Marginal, que, imediatamente, o
identificaram como um precursor. Zuca está lançando Ximerix (CosacNaify),
livro que mantém a estética de fanzine, mas com um toque de requinte gráfico.
É difícil imaginar que o
autor de todas essas diatribes e diabruras seja o diplomata de carreira Carlos
Felipe Saldanha. Felipe é filho do arquiteto e pintor Firmino Saldanha,
parceiro de Oscar Niemeyer e Lucio Costa nos primeiros esboços da arquitetura moderna
no Brasil. Na poesia brasileira não lhe restou outro caminho senão o de ser
original. Assimilou Oswald de Andrade, Lewis Carrol e Alfred Jarry para fazer
uma poesia patafísica, surreal, dadaísta e delirante. A patafísica, inventada pelo
francês Alfred Jarry, é a ciência das soluções imaginárias.
Na passagem dos 80 anos,
Zuca não se tornou um poeta grave. Pelo contrário: o avanço da idade lhe
acirrou o humor e o ânimo anárquico, como se pode ver nesta entrevista,
transformada em ato poético e surrealista.
SF | Existe uma versão de que Zuca Sardan é um dos
heterônimos de Francisco Alvim. O senhor confirma ou desmente?
ZS | Eu sou
suspeito pra desmentir tão grave questão. Caberia ao Chico confirmar. Se ele
insistir em ser um novo Fernando Pessoa, em versão luso-tropical, sofrerá
imediata ordem de prisão inquisitorial do Cardeal Sacamuelas. Aconselharei o
Chico a, diplomaticamente, convidar o Cardeal pruma ceia e no meio da conversa
revelar que ele não é o sulfuroso Doutor Sardan, de quem, aliás, desaprova
alguns palavrões e muita molecagem irresponsável inserida em seus poemas. Cá
pra nós, é possível que sussurre o Cardeal: “Cheira a comunismo”. Oportunidade pro
Chico observar á meia-voz: “Ora, jamais Lênin aceitou entrar no Circo Pery, e
Stalin usou um folheto do Zuca pr'acender o cachimbo. Trotzky, mais tolerante
com artistas decadentes, revelou, com uma risota pra Frida Kahlo, que esse
caráter pretensamente subversivo do Zuca é mera camuflagem de sua irredenta
admiração pelas musculosas campônias soviéticas.”
SF | Em que momento você imaginou que poderia ser poeta?
Como nasceu o poeta?
ZS | O
poeta nasceu por Decreto Divino em 1955, num súbito lampejo que quase me
fulminou, quando eu bebericava uma cerveja sentado numa mesa do Bar
Vermelhinho. Vários boêmios acudiram pensando que eu houvesse de estalo
morrido. Mas vaso marajoara, mesmo falsificado, não quebra assim tão fácil… Eu
andava então mortalmente deprimido por minha coleção de fracassos nas minhas
carreiras de pintor e desenhista. Costumava pegar telas descartadas por meu pai,
consagrado pintor, revirá-las de cabeça pra baixo, e reciclá-las, transformando
naturezas mortas cubistas em belas sereias de peitões colossais, cantando
manhosamente reclinadas sobre rochedos ao crepúsculo… Até o dia em que meu pai,
aconselhado por minha mãe, decidiu não mais me fornecer telas descartadas, que
estavam sendo utilizadas pra estimular minha preguiça imemorial.
SF | O senhor vem fazendo uma trilha à margem da margem
da literatura brasileira. Como é que se deu a sua formação de poeta? Ser
marginal foi uma opção estética ou um destino?
ZS | Sou
marginal por força do destino. Meu mental é totêmico. Preciso disfarçar… Melhor
pensarem que sou desligadão, do que propriamente louco. Mas, se eu pensar que
sou louco, estarei certo de que louco não sou. Porque o verdadeiro louco não sabe
que é louco, acha-se normal e considera que os outros sim, é que são os
verdadeiros loucos. Ultimamente, a Posteridade já vem querendo me resgatar, mas
eu lhe disse: “Sossega; Teteca, aguenta, deixa-me ainda gozar um pouco de meu doce
Farniente”… Cosí c'é la vita… A Glória, loira doidivana, de cachos doirados, me
esnoba…. Mas a Posteridade, severa morena, de garboso bundão, insistente, segue
me telefonando.
Me telefonando…
SF | O que lhe impactou, provocou e abriu perspectivas
para o seu trabalho de poeta? Oswald de Andrade? Alfred Jarry? Alice no País
das Maravilhas? A Geração de 1945? Como se situou em relação às vertentes da
poesia brasileira moderna?
ZS | Alfred
Jarry é o genial Grão-Mestre da Patafísica, a quintaessência do humor oculto…
Que pouco tem a a ver com o humor explícito folgazão de que o fim último é
fazer rir a elite e o povão, com graças, ora mais finas… Ora grossas. O humor
oculto tem alguns partidários involuntários que desconhecem suas próprias virtudes
transcendentais. Ou, às vezes, fingem não saber. São gênios desconhecidos deles
próprios, ou então artistas primitivos, tal o duaneiro Henri Rousseau, e outros
vários no mundo inteiro e, especialmente no Brasil, onde foram bem estudados
por Lélia Coelho Frota. Mas há artistas não selvagens que cultivam esse humor
que eu prefiro chamar totêmico porque seus ancestrais ideológicos são os
artistas pré-históricos que criaram capolavoros nas cafundas tenebrosas das cavernas.
A razão de suas obras não era estética, mas pairava na intercessão do mágico
com o racional, e tiveram seus sucessores na alquimia e astrologia; de que as
percepções psíquicas foram enfatizadas na psicologia por Gustav Jung: e nas
artes, pela patafísica, pelo futurismo, pelo dadaísmo e pelo surrealismo.
SF | E Oswald de Andrade e Lewis Carrol?
ZS | Oswald
nos trouxe da Europa, no início da década de 1920, as ideias revolucionárias do
futurismo e Dada, de fundamental importância pra formação do modernismo
brasileiro. Lewis Carroll é um mestre absoluto do humor. Amável, mas com
secreta profundidade no mundo do outro lado do espelho. Alice e seus fabulosos contra-partes
em delirantes diálogos e algumas recitações de poesias paródico-cômicas de que
evola inexplicável melancolia. A esses três gênios, preciso acrescentar, na
minha galeria de mestres formadores, Salvador Dalí, De Chirico, Marx Ernst, e
os gênios familiares, Barão de Itararé, meu pai Firmino Saldanha, prima Ione
Saldanha, e meus fraternais amigos Wesley Duke Lee e Chico Alvim.
SF | A sua linguagem se assemelha ao despojamento e à
irreverência da chamada geração da Poesia Marginal. Existem diferenças entre a
sua linguagem e a deles?
ZS | Eu
preparava folhetos de poesia em mimeógrafo desde 1952, fora dos circuitos de
editoras e livrarias… E distribuía, em remessa postal. No início dos anos 1970,
surgiu a máquina xerox de fotocópia na loja da esquina, o que permitiu que a produção
de minha Gráfica Gralha obtivesse uma extraordinária melhora técnica na sua
produção, aumentando aceleradamente seu círculo de leitores, do Camelódromo da
Rua Senhor dos Passos até Tóquio. Assim, nos anos 1970, graças ao Chico Alvim,
fui descoberto pelos poetas marginais, que utilizavam o mimeógrafo, a xerox, e distribuíam
seus folhetos, pessoalmente, aos leitores. Fui assim, automaticamente, incluído
no movimento, o que se confirmou com minha inclusão na famosa antologia de
Heloísa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje, em 1976. Realmente,
minha linguagem de despojamento e irreverência é a mesma utilizada pelos demais
poetas marginais. A diferença é que, contrariamente à vertente intimista,
marcante nas obras dos poetas do movimento, a poesia do Zuca sempre seguiu
extremamente impessoal, substituindo-se o “eu” por personagens recorrentes,
propiciados pelas contradições existentes na minha cuca dividida, numa dialogação
teatralizada.
SF | Qual a distância entre a piada e o humor, a partir
de sua experiência na poesia?
ZS | A
piada busca utilizar o cômico pra propiciar a boa gargalhada no circo. Propõe-se
como um bom relaxante propício a nos fazer esquecer por uns momentos os cavacos
do ofício, e as eternas aporrinhações do cotidiano. Além de benéficos efeitos
pro fígado, o cômico, quando mais refinado, pode atingir grande valor
artístico. O cômico italiano Totó é um belo exemplo de um cômico sublime. Já o
humor tende a uma meditação mais profunda sobre os enigmas e mistérios do mundo,
como a morte, o amor, a arte, e outros temas insolúveis e obsessivos, com que
se debatem os poetas, e, também, os filósofos.
SF | O Conde Lotrak, o Capitão Busto, o Anjo Turbolev, o
Cardeal Sacamuelas, os cataplasmas scaravelhos e os morcegos esparadrapos. A
sua poesia parece ser palco de uma permanente e furiosa metamorfose de seres e
palavras-seres. De onde vem esse teatro frenético?
ZS | O
teatro frenético do Zuca provém de uma percepção instintiva do processo de
espiralação expansiva do cosmos que vem se acelerando e provocando uma
transformação de vertiginosa rapidez de nosso mundo atual, tanto no meio
ambiente quanto na humanidade de que o progresso técnico-científico não pode
mais ser acompanhado nem controlado por ninguém.
Não há tempo sequer pra
se pensar no que está acontecendo, porque quando acabarmos de pensar sobre tal
coisa, tal coisa já se transformou completamente e sumiu. Isso é um problema para
cultura, que está acostumada a se formar sobre um conjunto de dados. Se estes
dados rapidamente se transformam ou desaparecem, substituídos por novos dados,
onde vamos assentar nossos conhecimentos ? Estamos sentados num barril rolante,
cheio talvez de pólvora, num mundo em permanente e furiosa metamorfose, que se reflete
na minha poesia… Com a aceleração, as sucessivas etapas do tempo tendem a se
confundir num Presente Contínuo, o Plistoceno, Roma de Nero, Napoleáo, a
Segunda Grande Guerra vão sendo comprimidos juntos, de modo que o Conde Lotrak,
o Capitão Busto, a Deusa Ishtar, o Anjo Turbolev convivem no mesmo palco de
circo.
SF | Afinal de contas, o senhor é desenhista, poeta,
trapezista ou diretor de circo?
ZS | Acho
que eu não saberia exatamente responder… Em todo o caso, a mim me parece que o
desenhista é trapezista, e o poeta é diretor de circo. Dada a fulminante
velocidade de transformação do mundo contemporâneo, uma única voz não pode mais
dar conta do recado. O poeta tem de se multiplicar em vários personagens e
criar um circo de que ele é um diretor que tem de lidar com uma trupe sumamente
rebelde e imprevista, seus atores-personagens são capazes de mudar o enredo a
qualquer momento, sem darem maiores explicações. O circo da vida não faz outra
coisa. E entra assim o enredo e a narrativa na poesia. Mas a prosa tem uma narrativa
explícita e direcionada, ao passo que a narrativa poética é implícita e, por
vezes, caótica. Mais chegada ao circo, com sua orquestra aprontando música de
fundo, às vezes, com o apoio do órgão de Baco. A rainha toca pratos, e o Rei
assovia …
SF | A era da comunicação virtual é hostil ou pode
favorecer à poesia?
ZS | A era
da comunicação virtual é decididamente a favor da poesia. A própria linguagem
geral da correspondência eletrônica tende, pela sua radical abreviação
sintática e velocidade de respostas, a uma escrita poética.
Enquanto a prosa se
derrama em circunlóquios, a poesia, utilizando qualidades de sonoridade da
palavra, e espacialidade do texto impresso, tende à brevidade, o que a
viabiliza ampla difusão pela web, numa folha virtual, ou também, com fácil
inclusão num texto mínimo de correspondência. Coisa impossível de se fazer com um
romance, com suas centenas de páginas. A poesia ganha assim, com destinações
imprevistas, intermináveis ciclos de difusão.
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