Uma bela definição acerca de Tom Waits vem de David
Shoulberg, ao dizer que ouvi-lo é "como caminhar por uma cidade
fantasma", onde "tudo é rangedor e arrepiado", ao mesmo tempo em
que tomado por "uma estranha sensação de paz". Nascido em 1949, Waits
acumulou algumas estranhezas que naturalmente se chocam com a linearidade de
uma arte adocicada e precária como tem sido, em grande parte, a que nos é
contemporânea. Da voz arenosa à inverossímil conjunção de instrumentos
musicais, passando pelas personae insólitas de seus versos e a
ambição teatral da concepção estética, tudo foi lhe dando um certo
distanciamento em relação aos contemporâneos, a ponto de facilmente se esquecer
o depurado compositor de canções que ele é.
Não se pode dizer que seu universo de canções limita-se a baladas e
rock, vez por outra recolhendo simpatias por tangos, blues e rumbas. E não se
pode dizê-lo pelo fato de que tal delimitação não mais interessa, algo menor
ante o somatório de identificações que sua arte propicia. Basta atentar para o
que ele próprio considera como favoritos, onde inclui o tenor irlandês John
McCormick, o compositor argentino Astor Piazolla e cantoras como Edith Piaf,
Yma Sumac e Dinah Washington. Somem-se as predileções por beatniks como
Kerouac, Ginsberg e Gregory Corso, diversidade à qual não se limita.
Também não se restringe a uma operação insólita de recolhimento de
instrumentos e arranjos inusitados, temperados pela colocação roufenha da voz.
Visto assim, dá a impressão de que estão ali para uma dissidência natural, como
pessoas fotografadas em um ponto de ônibus. Ao contrário, o que é aparente
distorção caminha para um destino comum, idêntico àquele encontro de situações
díspares recortado pelo Surrealismo, o sentido de revolta defendido por Breton
e a ruptura que sugerira Magritte como um caminho para a liberdade. A consonância
de todos esses artifícios resulta em uma eficácia lírica,
recorrendo a um termo de José Pierre sobre Hans Arp.
Quanto aos versos, é interessante uma fala do próprio Tom Waits, ao
dizer que "sempre quis viver dentro de canções e delas nunca voltar".
É o que tem feito: vivido dentro das canções que lhe são favoritas, compondo
outras tantas, desdobrando-as. Reproduzindo histórias que são fontes de uma
existência, recriando cenas e falas que definem uma vida. Estão nas letras de The heart of
Saturday night (1974), Nighthawks at the diner (1975),Blue
valentine (1978). Em outra
oportunidade, diria: "comecei escrevendo as conversas das pessoas ao meu
redor". Não à toa a crítica situou seu Frank's wild years (1987)
como uma "saga sonhadora de destino e ressurreição".
Eis alguns pontos que permitem entender a sensação teatral e o espírito
indomável geralmente aludidos quando se fala em Tom Waits. Embora sua
discografia já se encontre disponível no Brasil, é quando raro cultuado como
uma figura estranha. Não há dúvida de que sua chegada até nós
se deu através do ator que também é, bastando lembrar sua atuação destacada em
filmes como Ironweed e Brincando nos campos do senhor (ambos
de Hector Babenco) e Drácula de Bram Stocker(Francis Ford Copolla).
Além disto, há uma incursão teatral, ao escrever letras e canções para
trabalhos como Frank's wild years (1986), The black
rider (1990) e Alice (1992), as duas últimas sob a
direção de Bob Wilson.
Em disco, Tom Waits estava ausente há alguns anos. Ressurge com Mule
variations (1999). O título indica a teimosia latente no caráter de
todo grande artista. Em A little rain, de Bone machine (1992),
encontramos os versos: "a mula do homem de gelo está / lá fora do bar /
onde um homem com dedos perdidos / toca uma estranha guitarra / e o anão alemão
/ dança com o filho do açougueiro / e uma chuva miúda nunca feriu
ninguém". Quem está de volta? Teimamos todos, personagens de uma mesma
tragicomédia. As variações da mula estão por toda a parte: uma quase rumba
em Get behind the mule, a balada dilacerante em House where
nobody lives, a batida tradicional em Cold water.
Uma conversa de Waits com Gil Kaufman, este indagando como aquele
mantém-se lúcido em sua relação com o mundo: "a maioria de nós é cética
sobre certas coisas ou está esperando para ser convencida de outras".
Segundo Waits, as canções são apenas recipientes para o que se é, para como se
sente. "Algumas canções você canta uma vez e nunca mais voltará a
fazê-lo". E há outras que você carrega consigo por toda a vida, repetindo-as,
tentando entender. E outras se encontram tão entranhadas em si, que não há
explicação para que se repitam tanto. Serão essas as variações da mula, as
canções entranhadas em Tom Waits e que se repetem para onde ele se volte.
Waits insiste com a insistência de toda grande arte. Que Mule
variations seja uma insistência depurada, não há dúvida. Que ali
estejam somadas suas melhores leituras da canção, igualmente. Basta ouvir Picture
in a frame, em uma de suas formações características: baixo, piano e sax
(alto e barítono), cujas imagens poéticas são delicadas e abrangentes como um
haicai, sem sê-lo. Há ainda uma gaita mesclada a um canto de galo, igualmente
persistentes, em uma canção que ironiza o que fizeram com Jesus (Chocolate
Jesus). E um violino destroçando as pequenas almas em torno de Georgia
Lee. Preciosidades melódicas, percepção singular da função de cada
instrumento, a trama cênica da voz. É o que temos.
Um poeta sob a chuva. Uma pequena chuva. Toda a sua vida filmada por uma
garoa. Os personagens correndo sob a chuva. Atropelados pela chuva. Mesmo ali
ele pensa nas demais estações. Estão todos indo de um ponto a outro, para algo
ou nada. A chuva repercute todas as estações. O que compõe são hinos, são
maneiras das pessoas se reconhecerem ouvindo coisas tão alheias e ao mesmo
tempo tão íntimas. O que busca um artista é tocar a si mesmo. Somente aí toca a
humanidade. O público não é senão o eco natural de um grande artista. Uma
perversão comercial (desfalque existencial) inverteu todo um princípio. Diante
dela Tom Waits não passa de um estranho, uma voz rasgada, irritante, que acaba
de lançar mais um de seus discos insuportáveis.
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Agulha
Revista de Cultura
# 01. Agosto de 2000. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil),
artista convidado desta edição especial de ARC.
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Organização a cargo de
Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado |
Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa
Fonseca
Imagens © Acervo Resto
do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de
Cultura, assim estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO
SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação
editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal
Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de
língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial
apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez
sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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Belíssima matéria sobre Tom Waits um de meus preferidos cantores e compositores, Rain Dogs - Dentro de um relógio quebrado, derramando o vinho com os cães da chuva
ResponderExcluirTáxi, preferimos ir andando, tumultando uma entrada com os cães da chuva
Pois sou um cão da chuva, também.