sábado, 30 de abril de 2016

FLORIANO MARTINS | Tom Waits: o otimismo de um cínico



Uma bela definição acerca de Tom Waits vem de David Shoulberg, ao dizer que ouvi-lo é "como caminhar por uma cidade fantasma", onde "tudo é rangedor e arrepiado", ao mesmo tempo em que tomado por "uma estranha sensação de paz". Nascido em 1949, Waits acumulou algumas estranhezas que naturalmente se chocam com a linearidade de uma arte adocicada e precária como tem sido, em grande parte, a que nos é contemporânea. Da voz arenosa à inverossímil conjunção de instrumentos musicais, passando pelas personae insólitas de seus versos e a ambição teatral da concepção estética, tudo foi lhe dando um certo distanciamento em relação aos contemporâneos, a ponto de facilmente se esquecer o depurado compositor de canções que ele é.
Não se pode dizer que seu universo de canções limita-se a baladas e rock, vez por outra recolhendo simpatias por tangos, blues e rumbas. E não se pode dizê-lo pelo fato de que tal delimitação não mais interessa, algo menor ante o somatório de identificações que sua arte propicia. Basta atentar para o que ele próprio considera como favoritos, onde inclui o tenor irlandês John McCormick, o compositor argentino Astor Piazolla e cantoras como Edith Piaf, Yma Sumac e Dinah Washington. Somem-se as predileções por beatniks como Kerouac, Ginsberg e Gregory Corso, diversidade à qual não se limita.
Também não se restringe a uma operação insólita de recolhimento de instrumentos e arranjos inusitados, temperados pela colocação roufenha da voz. Visto assim, dá a impressão de que estão ali para uma dissidência natural, como pessoas fotografadas em um ponto de ônibus. Ao contrário, o que é aparente distorção caminha para um destino comum, idêntico àquele encontro de situações díspares recortado pelo Surrealismo, o sentido de revolta defendido por Breton e a ruptura que sugerira Magritte como um caminho para a liberdade. A consonância de todos esses artifícios resulta em uma eficácia lírica, recorrendo a um termo de José Pierre sobre Hans Arp.
Quanto aos versos, é interessante uma fala do próprio Tom Waits, ao dizer que "sempre quis viver dentro de canções e delas nunca voltar". É o que tem feito: vivido dentro das canções que lhe são favoritas, compondo outras tantas, desdobrando-as. Reproduzindo histórias que são fontes de uma existência, recriando cenas e falas que definem uma vida. Estão nas letras de The heart of Saturday night (1974), Nighthawks at the diner (1975),Blue valentine (1978). Em outra oportunidade, diria: "comecei escrevendo as conversas das pessoas ao meu redor". Não à toa a crítica situou seu Frank's wild years (1987) como uma "saga sonhadora de destino e ressurreição".
Eis alguns pontos que permitem entender a sensação teatral e o espírito indomável geralmente aludidos quando se fala em Tom Waits. Embora sua discografia já se encontre disponível no Brasil, é quando raro cultuado como uma figura estranha. Não há dúvida de que sua chegada até nós se deu através do ator que também é, bastando lembrar sua atuação destacada em filmes como Ironweed e Brincando nos campos do senhor (ambos de Hector Babenco) e Drácula de Bram Stocker(Francis Ford Copolla). Além disto, há uma incursão teatral, ao escrever letras e canções para trabalhos como Frank's wild years (1986), The black rider (1990) e Alice (1992), as duas últimas sob a direção de Bob Wilson.
Em disco, Tom Waits estava ausente há alguns anos. Ressurge com Mule variations (1999). O título indica a teimosia latente no caráter de todo grande artista. Em A little rain, de Bone machine (1992), encontramos os versos: "a mula do homem de gelo está / lá fora do bar / onde um homem com dedos perdidos / toca uma estranha guitarra / e o anão alemão / dança com o filho do açougueiro / e uma chuva miúda nunca feriu ninguém". Quem está de volta? Teimamos todos, personagens de uma mesma tragicomédia. As variações da mula estão por toda a parte: uma quase rumba em Get behind the mule, a balada dilacerante em House where nobody lives, a batida tradicional em Cold water.
Uma conversa de Waits com Gil Kaufman, este indagando como aquele mantém-se lúcido em sua relação com o mundo: "a maioria de nós é cética sobre certas coisas ou está esperando para ser convencida de outras". Segundo Waits, as canções são apenas recipientes para o que se é, para como se sente. "Algumas canções você canta uma vez e nunca mais voltará a fazê-lo". E há outras que você carrega consigo por toda a vida, repetindo-as, tentando entender. E outras se encontram tão entranhadas em si, que não há explicação para que se repitam tanto. Serão essas as variações da mula, as canções entranhadas em Tom Waits e que se repetem para onde ele se volte.




 Ao compor para cinema ou teatro, ao ser ele próprio ator e poeta, não faz senão compartilhar todas as vivências que lhe são conjuntivas e disjuntivas, um desfrutar a experiência humana em sua vertigem original, sem dicotomias, sem preconceitos. Basta pensar em Black market baby, uma canção que resume toda a poética de Waits. Há ali uma batida de maracatu mesclada a um arrastado de disco de um DJ, e versos como "não há oração como desejo / nem amnésia no beijo dela / ela é um cisne e uma pistola / e o seguirá pois você gosta disso" interrompidos por uma guitarra dilacerante como há muito não se escuta. Poucas notas, cruciais.
Waits insiste com a insistência de toda grande arte. Que Mule variations seja uma insistência depurada, não há dúvida. Que ali estejam somadas suas melhores leituras da canção, igualmente. Basta ouvir Picture in a frame, em uma de suas formações características: baixo, piano e sax (alto e barítono), cujas imagens poéticas são delicadas e abrangentes como um haicai, sem sê-lo. Há ainda uma gaita mesclada a um canto de galo, igualmente persistentes, em uma canção que ironiza o que fizeram com Jesus (Chocolate Jesus). E um violino destroçando as pequenas almas em torno de Georgia Lee. Preciosidades melódicas, percepção singular da função de cada instrumento, a trama cênica da voz. É o que temos.
Um poeta sob a chuva. Uma pequena chuva. Toda a sua vida filmada por uma garoa. Os personagens correndo sob a chuva. Atropelados pela chuva. Mesmo ali ele pensa nas demais estações. Estão todos indo de um ponto a outro, para algo ou nada. A chuva repercute todas as estações. O que compõe são hinos, são maneiras das pessoas se reconhecerem ouvindo coisas tão alheias e ao mesmo tempo tão íntimas. O que busca um artista é tocar a si mesmo. Somente aí toca a humanidade. O público não é senão o eco natural de um grande artista. Uma perversão comercial (desfalque existencial) inverteu todo um princípio. Diante dela Tom Waits não passa de um estranho, uma voz rasgada, irritante, que acaba de lançar mais um de seus discos insuportáveis.

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Agulha Revista de Cultura # 01. Agosto de 2000. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil), artista convidado desta edição especial de ARC.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa Fonseca
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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Um comentário:

  1. Belíssima matéria sobre Tom Waits um de meus preferidos cantores e compositores, Rain Dogs - Dentro de um relógio quebrado, derramando o vinho com os cães da chuva
    Táxi, preferimos ir andando, tumultando uma entrada com os cães da chuva
    Pois sou um cão da chuva, também.

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