Meio-dia em pleno inverno paulista. Vou a São Paulo
quase que especialmente para encontrar-me com o crítico de arte Jacob
Klintowitz. Ali nos veríamos pela primeira vez, pessoalmente, após uma intensa
correspondência que já nos definira o grau de afinidade, uma dessas fortes
amizades que nascem já vigorosas e milenares como que por encanto. Jacob havia
convidado o artista plástico Sérgio Lucena para almoçar conosco. Aquele
primeiro abraço já trazia consigo toda a certeza de um valioso encontro. Do
almoço saímos para seu atelier e a tarde estendeu-se infinito adentro entre
cervejas pretas, charutos e aprazíveis conversas que mesclavam três afinadas
visões de mundo, uma serenidade de alcance que tocava a intimidade de obras de
nomes aparentemente díspares, unidos pela intensidade: artistas e músicos,
sobretudo, de nosso país e de vários outros lugares e épocas. Ao início da
noite os dois foram me deixar no hotel onde eu estava hospedado. Voltei para
Fortaleza com uma dupla sensação de haver passado uma das tardes mais
verdejantes de minha vida. Naturalmente este diálogo ali iniciado se desdobrou
e seguiu viagem por muitos caminhos. Uma de suas afluências foi o convite que
fiz ao Sérgio Lucena para integrar a galeria da Agulha Revista de Cultura como
artista convidado, em uma edição em que se reproduz quase 60 obras suas. A
pintura deste artista, nascido em 1963, está possuída por uma condição
iluminadora: a de saber, como tão bem percebeu Jacob Klintowitz, trazer o
primordial para o convívio do tempo presente. Mais ainda, desentranhá-lo aqui
mesmo, sem limitá-lo a uma referência ancestral. E a lição mais bonita que se
pode constatar é que o desentranha de si mesmo. Esta é sua forma visceral de
contato com o mundo. O primordial como síntese da humanidade que habita seu
íntimo. Não importa que o encontre na paisagem ou na figura. Que se enraíze por
sua biografia ou expresse um vislumbre ou prenúncio de algo. Há toda uma
evocação de tempos que se mesclam em nome de uma evidência: a percepção de que
nada nos é estranho ou distante se indagamos de maneira certa como nos
encontramos dentro do mundo. É o caminho que me parece apontar a pintura de
Sérgio Lucena: a indagação perene acerca de nossa atuação no universo. Seus
animais, que são como deuses com um apetite enorme de conhecimento, mergulham
na paisagem intensa que evoca visões e antevisões, e ali não se demoram um
instante que seja sem nos chamar. Porque não há mundo possível longe da
intensidade, da cumplicidade, da completude.
FM Estava aqui pensando naquele navio cor de
chumbo que em 1995 surge em teu horizonte estético trazendo a bordo as figuras
que por algum momento haviam desaparecido dentro da paisagem de uma nova fase
de tua pintura. É uma imagem muito bonita e que me faz pensar sobre a conexão
entre a realidade e a criação, mundo exterior e mundo interior. Como se
descortina em ti essa conexão entre dois mundos? São, de fato, dois mundos?
SL São sim dois mundos, porém complementares e
indissociáveis. O que me faz pensar que os dois sejam em verdade um. Vejo a
questão da conexão entre os dois mundos de forma particular. O elo é um
terceiro elemento, me parece. Esta concepção em tríade sugere, ao fim, uma
realidade complexa, o real com o qual lidamos na experiência
cotidiana. Para mim, logo no inicio, foram estas as questões essenciais. Hoje
sinto que a coisa é ainda mais complexa, sinto que há algo presente sobre o
qual nada ou quase eu posso falar. Trata-se de um dado imponderável, algo que
atua à revelia de minha consciência manipuladora, mas que efetivamente
consubstancia, para mim, a realidade de significado. O que me parece mais
próximo ao que eu estou tentando expressar é a concepção da ideia da Graça.
A pintura cumpre em mim esta função, elemento comunicante entre o dentro
e o fora e além. Deste além fala a pintura só, em silêncio.
FM Graça compreendida não somente no sentido de
dádiva, mas também de Beleza e Vontade, suponho. De outra forma, a reduziríamos
apenas a um conceito teológico, que não interessa à Arte em isolado. Com esta
tríade temos constituído o Mistério da Criação e sua indissociável relação com
a realidade. Aplicando isto à tua pintura, adentramos assim o Maravilhoso,
muito mais do que o Fantástico. Estás de acordo?
SL Absolutamente de acordo. A Graça a que me
refiro diz respeito ao advento do imponderável e isto, embora espontâneo, só se
dá sob determinadas condições. Minha experiência não se reporta a qualquer
conceito teológico, embora veja certas analogias com a experiência dos
místicos, o que afirmo é que, para mim, isto que se passa ao fazer pintura é a
essência do que entendo por espiritual. Adorei a expressão “Maravilhoso” que
usastes. O conceito do fantástico sempre me pareceu reducionista.
FM Há um depoimento teu em que
suspeitas que "todas as nuanças da natureza humana podem ser trazidas
à tona sob a lona de um circo ou palco de um teatro". Isto me parece
definir que pensas na criação artística como representação.
SL À época desta declaração eu era ainda muito
jovem, mas no essencial posso concordar com a ideia da criação como representação.
Entretanto, tenho hoje uma concepção diferente daquilo que se busca
representar. Quando vi Morandi ante meus olhos pela primeira vez, algo dentro
de mim cristalizou-se. Levei anos para elaborar isto. (Vale salientar que já o
vira inúmeras vezes antes em reproduções, o que mostra o poder da pintura em
sua realidade material.) Na época, qual um bárbaro ignorante, achava que a
pintura de natureza-morta era algo menor, meu olhar alcançava apenas a
superfície, enxergava só o assunto representado. Um copo, uma garrafa, um prato
com frutas, enfim, um tema prosaico demais para minha expectativa de artista
determinado a mudar o mundo. Morandi me tirou das trevas. Foi quando finalmente
acordei para a questão da pintura como linguagem e não como representação. Aqui
pareço contradizer o que falei de inicio, mas não, a linguagem existe para
formalizar algo. Esta é a questão com que me deparo desde então.
A linguagem como meio da criação artística, que produz o ainda não
conceituado, o novo, aquilo que quando elaborado apresenta uma nova instância,
um novo patamar de consciência para o artista.
Para mim isto corresponde a uma atitude histórica da espécie, desde os
primórdios, que busca alcançar a representação do inconcebível, a fim de nos
apoderarmos dele. Esta é a nossa vã pretensão, a qual é fadada ao fracasso.
Parece-me ser esta a tensão essencial da condição humana, aquilo que nos
impulsiona.
FM Esta tua ideia do fracasso acaso não traz
consigo uma sensação de impotência? Isto me faz ironicamente pensar que não se
deve dar crédito à consciência na criação.
SL Não há consciência na criação. A consciência
ocorre a posteriori e não a priori. Este é um dado
fundamental para mim. Uma nova consciência é possível a partir da realidade do
objeto criado. O artista só dispõe da consciência do até então, este é o seu
limite e também seu trampolim para o porvir.
FM Diria que o artista ao criar luta ao mesmo
tempo contra a ordem e o acaso?
SL A ordem é o que foi estabelecido. Marcel
Duchamp estabeleceu um novo paradigma. Hoje as questões levantadas por Duchamp
estão estabelecidas e ocupam o espaço da ordem anterior. Daí que surge assim a
nova academia, que é o que temos novamente como orientação conceitual
totalitária. O artista quando luta contra a ordem, e vence, consegue apenas
isto: gerar uma nova ordem. Eu vejo que este caminho não leva a outra coisa
senão à repetição, à permanência na roda de Samsara. Pela mesma razão acho
bobagem o artista lutar contra o acaso, não é uma atitude artística, ao
contrario, é uma atitude puramente racional, e consequentemente menor, além de
ser uma postura capaz de derivar para políticas de dominação e coisas do
gênero. Eu não acredito no acaso, nem na arte nem na vida. Gosto de ver naquilo
a que chamam de acaso mensagens do que em mim ainda não É,
mas quer Ser. Se não as compreendo, aguardo. Esta é a relação tenho
com a vida e com a pintura.
FM O que busca expressar a pintura através de
Sérgio Lucena?
SL Não sei, e lhe digo isso com toda franqueza.
FM Eu sempre prefiro comentar a respeito de
identificações que propriamente evocar o lugar-comum das influências. Não sei
como convives com isto, mas gostaria também de saber quais os teus
interlocutores alheio às dimensões de tempo e espaço. Mencionaste Morandi. Quem
mais e por quais motivos?
SL São muitos e muitos o foram por determinado
período, deixando em dado momento o posto de referência maior para outros,
entretanto nunca saindo do panteão de divindades que cultuo. Vou citar alguns
por ordem histórica na minha vida, a partir dos cinco anos, quando vi pela
primeira vez uma reprodução de pintura. Os flamengos de uma maneira geral com
ênfase, no primeiro momento, em Pieter Brueghel o velho e Hieronymus Bosch. Os
expressionistas alemães, com ênfase em Otto Dix e Max Beckmann. O estranhamento
deles em relação ao mundo em volta, creio, era o que os tornava próximos a mim.
Este estranhamento aliado a uma referência espiritual, mais do que estética, em
Van Gogh, e estética, mais do que espiritual, em Gauguin. O bom Manet que me
mandou de volta aos clássicos, Velásquez, El Greco, Rubens, Ticiano, Tintoretto
e o meu amado deus Rembrandt. Hoje encontro boas referências em pintores como
Bacon – graças a Velásquez –, Gerhard Richter – graças aos flamengos –, e o escultor
Anish Kapoor – graças a todos juntos.
FM Desde que momento e em que circunstância o
menino Sérgio Lucena identifica como arte sua necessidade de anotação e/ou
decifração simbólica do mundo?
SL Isso se deu muito cedo mesmo em minha vida,
bem antes até de eu entender que, primeiro o desenho e depois a pintura,
cumpriam esta função em mim. Foi algo instintivo, uma maneira natural de buscar
uma realidade possível, uma realidade que fizesse sentido para mim. Não era
isto o que eu percebia no mundo ao redor, portanto… Quando ainda bem criança
sentia que o desenho era o meu mundo real e o sonho, já desde então, era o chão
desta realidade. Quando me deitava para dormir, dizia para mim mesmo: agora
vamos para a outra vida. Por anos tentei assistir a passagem, mas nisto
nunca fui bem sucedido.
Hoje, assim como quando criança, considero como minha realidade o amor e
a minha pintura. A arte e o Amor, as únicas coisas realmente sólidas, concretas
e factíveis. O mais, para mim, é pura fantasia.
FM E não conflitantes entre si, assim espero, ou
seja, as duas forças são uma a extensão da outra. Porém como ambas convivem com
as ardilezas morais do cotidiano e seu plano de restrições bem palpáveis, o que
em teu caso inclui também o ambíguo mercado das artes?
SL É sim, uma só força. Quanto ao mercado das
artes, minha experiência permite que eu tenha uma noção da coisa. Trabalhei
muito tempo da minha vida com comércio, estive atrás de um balcão o bastante
para saber o que é mercado. Não é o que vejo no Brasil quando o assunto é arte.
Tudo é ainda embrionário, uma possibilidade que efetivamente ainda não se
concretizou. Acontecerá um dia, é certo, mas ainda estamos engatinhando. Isto
certamente é uma dificuldade de grande impacto e que causa imenso prejuízo à
produção artística no Brasil. Entretanto, isto não está dissociado da forma
como no país são tratadas as demais questões essenciais, educação, saúde,
estrutura, a logística enfim, não há ainda claro um projeto para o país, tudo
se dá na base do improviso. Esta é a nossa realidade cultural e política.
FM Recorto palavras tuas: “revelar através da
luz era a minha obsessão”, que me parecem bem atuais, considerando um plano
espiritual acentuado que encontramos hoje em tua pintura. Esta exposição mais
recente, por exemplo, com notável bestiário dialogando com uma paisagem que
toca o sublime. Alcançaste o entendimento da luz na pintura? O que este
conhecimento te revela?
SL Tu sabes, eu me sinto hoje como se tudo
essencialmente ainda estivesse por ser feito, este momento que é o maior e o
mais importante de toda a minha carreira, me diz que estou apenas no começo. É
difícil falar deste sentimento paradoxal, é tão contraditório, entretanto, é
assim mesmo e nunca foi diferente. Percebo que muito foi cristalizado, houve
uma sedimentação de aspectos essenciais que me deram o chão que nunca antes
sentira sob os meus pés, e é justo este leito rochoso que me traz de novo a
vontade louca de saltar no abismo, como todas às vezes antes: “desta vez para
sempre”.
FM Quero retornar à ideia de fracasso para
concluir com uma provocação: costumas estabelecer o que é essencial e acessório
em tuas obsessões? Quando realmente importa saber se na relação entre triunfo e
fracasso por vezes os papéis não estão trocados?
SL Nada acessório convive com o que me obceca.
Discernir sobre isto não é um problema para mim, mas é para aqueles próximos, e
daí passa a ser um problema meu, pois eu os amo. O fato é que se for para
escolher, fico com o que é essencial para mim. O único triunfo que vislumbro
consiste em alcançar minha expressão de louvor à vida, meu testemunho do
mistério. Abdicar deste propósito, em nome do que quer que seja, é o fracasso.
Não tenho duvida que a minha loucura protegeu-me até aqui, agora que estou
velho e que minhas forças diminuem, tenho na prece minha força e refúgio. Minha
pintura é a minha oração.
FM Esquecemos algo?
SL Sim, eu gostaria de falar sobre o
interlocutor e seu papel para o artista.
FM Uma importância posterior, da mesma ordem da
consciência?
SL A importância é determinante. Não cabe aqui
qualquer escala de valor em importância, pois o artista sequer existiria sem o
interlocutor. Ele é o espelho, aquele que diz ao artista o que ele é a partir
do que ele traz. O interlocutor é uma entidade que ao longo da vida do artista
migra, a partir da natureza, as pedras, a água, o ar, as plantas, os animais,
as pessoas, uma pessoa; que venha a representar a soma de toda consciência
adquirida até então, e seja capaz de catalisar no artista a forma possível de
atender à nova demanda de significados que se apresenta à época. A relação é
naturalmente amorosa, implica em confiança e vontade férrea de romper com o
limite, avançar em campo desconhecido, não é possível sem confiar no outro. O
artista traz, o interlocutor reconhece e dimensiona o que foi trazido, o
artista reconhece assim a si mesmo, adquire fôlego e mergulha outra vez. A
ambos cabe o mesmo desafio: encarar o novo com consciência critica, mas também,
sem pré-conceito.
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Agulha
Revista de Cultura
# 61. Janeiro de 2008. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil),
artista convidado desta edição especial de ARC.
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Organização a cargo de
Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado |
Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa
Fonseca
Imagens © Acervo Resto
do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de
Cultura, assim estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO
SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação
editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal
Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de
língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial
apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez
sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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