O ficcionista Per Johns (1936), filho de migrantes dinamarqueses,
tem conquistado com admirável eficácia uma ponte entre o duplo mundo que habita
sua condição de bilíngue. Seus livros, publicados tanto no Brasil quanto na Dinamarca,
refletem tal condição, ao mesmo tempo em que dimensionam uma voz poética vigorosa.
Per Johns é autor de romances como A revolução de Deus (1977), As aves
de Cassandra (1991) e Navegante de opereta (1998). Tem sido também um
incansável tradutor de escritores dinamarqueses.
FM - Estimando tua condição de filho de imigrantes – esse ser ambíguo
e privilegiado, ao mesmo tempo estrangeiro e nativo –, pode-se ligá-la à condição
essencial do poeta, vivência a partir de um duplo exílio, em que a realidade será
sempre observada sob dois enfoques: o dentro e o fora de cada evidência. Querer
viver simultaneamente nos dois mundos, o factual e o onírico, esta seria a obsessão
central de Per Johns?
PJ - É uma síntese adequada do sentido profundo de minha trilogia, uma duplicidade
radical, de raiz. E chamar de obsessão esse duplo exílio não me parece fora de propósito.
Ele se esgalha em múltiplos aspectos. Acoplada à duplicidade ou inerente a ela existe
a estranheza de uma vida que se afasta de si mesma, que se observa e se manipula
de fora para dentro. Nesse sentido, o mundo onírico é mais verdadeiro do que o factual,
porque se reporta a raízes que o mundo factual – vale dizer, construído – perdeu
de vista. A cisão dos personagens não é só dos personagens; é de nossa cultura coletiva.
O que distingue os personagens ficcionais das pessoas reais é a consciência
da cisão. O risco de ser chamado de louco.
FM - Umas curiosidades soltas: a verossimilhança é aspecto levado em conta?
A intensidade se contrapõe à densidade? Há abordagens de maior ou menor significado?
Quais os truques para se deslocar a fonte da confidência? Calma. A pergunta é outra.
Até que ponto a dissecação de um texto pela crítica correspondente à inquietude
criativa?
PJ - A dissecação de um texto corresponde à vivissecção de um o organismo.
Passa-se a compreender como funciona o mecanismo, suas partes interligadas, mas
mata-se o significado. Sacrifica-se a vida, que é um dentro inextrincável.
Em outras palavras, a vida é sempre particular e inapreensível. Nesse sentido,
para ater-me a um exemplo que me é caro, eu perguntaria: são verossímeis as aves
de arribação? Explicam-se?
FM - Defende Milan Kundera que um romancista deve sistematicamente
dessistematizar seu pensamento, dar um pontapé na barricada que ele mesmo ergueu
em torno de suas ideias. O que pensas a respeito?
PJ - Um dos personagens nodais de Navegante de opereta, o professor
Frater Taciturnus, é uma encarnação clara desse pensamento de Kundera. Ele está
sempre dando pontapés nas barricadas que o defendem de si mesmo, pondo-se solto
no ar, sem chão, fadado a recomeçar sempre. Como Sísifo. O narrador define o que
ele quer dizer, assim: "Em suma, joga-se fora a escada com que se subiu pergunta
acima". Tenho muitas afinidades com Kundera. Tangenciamo-nos. A propósito,
fui um dos primeiros a mencioná-lo no Brasil, em artigo para o jornal O Globo,
em 05/11/78.
FM - Ao conversarmos sobre uma menção a Stefan Zweig, em entrevista que
fiz ao poeta Donizete Galvão, me disseste: o pior da guerra é que seus horrores
são por assim dizer higienizados com a traição das palavras, justamente a ferramenta
de trabalho de quem precisa se concentrar na poesia. Vivemos em uma sociedade
em que as palavras são traídas constantemente. Ao serem esvaziadas de sentido, perdem
por completo qualquer valor. Curiosamente esse esvaziamento de sentido é compactuado
por algumas tendências estéticas – quer pensemos na poesia pura ou no Concretismo.Como
restaurá-las?
PJ - Acredito que só seja possível com a restauração de um hábito que se
vem perdendo, o da leitura. Mas não dinâmica ou quando o ler é meramente
acessório. Ler, no sentido em que uso o termo, implica a redescoberta da multiplicidade
de cada palavra, não meramente etimológica, mas existencial. Um reviver as palavras.
Ocorre-me sempre como exemplo desta revivescência necessária – que é lenta, e antes
se conquista do que se apreende – o nome dos lugares de um país como a Dinamarca.
São os mesmos de priscas eras. Não foram modificados: estão na raiz da língua. Cada
nome de lugar – até certo ponto incompreensível para um usuário do idioma atual
– tem uma riqueza semântica que restaura o significado do ato de ler, vale dizer,
é um mergulho em estratos, por assim dizer, paradoxalmente, indizíveis. Entendo
que cada pessoa tem o seu próprio e intransferível horizonte de leitura. Mas como
restaurá-lo, não saberia responder.
FM - Algo intrigante: Beckett buscava o que ele próprio chamava de desintegração
completa, ou seja, nenhum eu, nenhum ter, nenhum ser. Já o João Cabral
optou por uma poesia onde o eu não falasse diretamente, mas sim através das
coisas. Quaisquer que sejam as técnicas empregadas, não acreditas que toda criação
seja autobiográfica? Tais técnicas aparentemente insólitas não te parecem apenas
variações de uma afirmação humanista, que surgem exatamente a contrapelo de uma
banalização do ser humano?
PJ - Transferiria o que disse da leitura para a vida. Ao contrário de ter
uma vida que é de todos, urge que as pessoas tenham uma vida que é sua. É claro
que isso só é possível no nível onírico e não factual. Por trás das identidades
factuais que o cotidiano impõe é preciso que cada um descubra seus veios oníricos
diferenciados, e viva-os, aquém e além de todas as necessidades práticas. Abre-se
aí uma riqueza de perspectivas que é o contrário da banalização e do tédio de estar-se
a todo instante à procura de uma qualquer coisa exterior, desprezando o manancial
de si mesmo. Pelos mesmos motivos, deve-se entender qualquer criação autêntica como
necessariamente autobiográfica. A objetividade é fruto de uma escolha.
FM - Não escondo minha predileção, diante de tua obra, por Navegante
de opereta (1998), por encontrar ali o melhor retorno à ficção, no sentido de
uma unidade entre lírica e narrativa. Trata-se, portanto, de escrever não governado
pelos ditames de um gênero literário, mas sim pela fascinação que lhe desperta sua
visão de mundo através da escrita?
PJ - Acredito que toda minha obra se assenta em um tripé: a narrativa, a
poesia e o ensaio. Estão misturados, não podem ser separados. Os três estão sempre
juntos, embora haja predominância de um ou outro dependendo das circunstâncias.
Por sua própria natureza e por sua posição dentro da trilogia, o Navegante de
opereta é mais reflexivo e panorâmico. A característica do personagem dúplice
radica em uma unificação que, nem bem se impõe, e já se estilhaça de novo em múltiplas
imagens, onde se alternam veios ensaísticos, poéticos e ficcionais, mas o fio da
meada da urdidura é a baba de aranha, como vem expresso na pequena quadra que sintetiza
o personagem: De minha baba/Vou tecendo os fios/Da teia dura e diáfana/Que em
mim me emaranha.
FM - A viagem interior rejeita toda cartografia prévia. Não se realiza
na racionalização, mas antes na identificação. O curso seguido por uma persona
dupla, na verdade uma conjunção entre protagonista e antagonista, no decorrer
desta tua trilogia, não é senão uma afirmação da essencialidade da personalidade.
Recorrendo a uma imagem tua, até que ponto a conquista de uma voz própria é filha
de um fracasso luminoso?
PJ - A viagem interior é a única possível, no sentido de obedecer não só
ao factual mas ao onírico. De um certo modo, a viagem interior que se dá do lado
de fora na viagem que se locomove, corresponde àquela procura jamais saciada da
paisagem própria e intransferível a que se referia Rilke, uma espécie de correlativo
objetivo. Mas temos de contentar-nos com aproximações, rastros, vestígios. O quanto
basta para manter viva e verdadeira a irrealidade do onírico diante da falsa realidade
do factual. Em suma, uma procura que se mostra verdadeira mercê dos vestígios que
semeia. E assim entenda-se que o fracasso é luminoso por ser ao mesmo tempo
um fracasso no âmbito factual e um sucesso no âmbito onírico. Vem a ser a conquista
da única voz possível, mas que corre um risco permanente de se perder em um balbucio.
FM - Observo com curiosidade a inclusão de um desenho de Paul Valéry na
capa de teu Navegante de opereta, livro que traz em sua coda uma epígrafe
de Clarice Lispector. Novamente a paixão pela contradição? René Magritte refere-se
à precisão de Valéry lamentando que seja destituída de paixão. Ao contrário, a paixão
de Lispector não raro carece de precisão.
PJ - A história de minhas capas é curiosa. As de Cemitérios marinhos às
vezes são festivos e Navegante de opereta estão interligadas pelo contraditório
elo de Paul Valéry, no primeiro caso mercê de uma foto que eu mesmo fiz em Sète,
no magnífico cemitério marinho em que foi sepultado o poeta. E no segundo, graças
a um desenho do próprio Valéry, em que retrata Zenon de costas para o mar e a vida.
Mas não é uma ligação acidental. Tanto em Cemitérios marinhos às vezes são festivos
como em Navegante de opereta insere-se como elemento absolutamente central
o poema Le cimetière marin, que é provavelmente único na obra de Valéry,
por ser não só autobiográfico como de certo modo passional. Ou por outra, por ser
contra Valéry. Simbolicamente é como se o próprio Valéry, talvez involuntariamente,
estivesse a ilustrar no desenho a veemência quase passional de um dos últimos versos
do poema: Le vent se lève!… Il faut tenter de vivre! E assim, na visão do
protagonista do Navegante de opereta, ensaiasse uma espécie de mea culpa.
Toda a trilogia é um embate entre precisão e paixão, justificativa
suficiente para a epígrafe aparentemente contraditória de Clarice Lispector, na
coda.
FM - Recorto uma colocação tua: Acredito que só há possibilidade de
organicidade na fragmentação. Refiro-me então ao Kundera uma vez mais: os trechos
fracos de uma obra e sua essencialidade. Se pensamos em suspense, paixão, terror,
imaginamos alguém apreensivo, embevecido, assustado. Mas nenhum romance é inteiramente
isto ou aquilo. Seus trechos menores não viriam exatamente de uma falha de
interpretação, incluindo aí o equívoco da catalogação genérica?
PJ - Para entender que fragmentação significa mais do que uma coleção de
fragmentos, repetiria o que antes já disse. A ideia de que o romance abriga um universo
em que entram o ensaio, o poema e a narrativa propriamente dita. Um espelho da vida.
Nesse sentido, o fluxo de consciência, no Ulisses, de Joyce, é antes
um agrupamento de estilhaços do que uma narrativa, espécie de instantaneísmo
tradicional. E pois, se é que entendi a pergunta corretamente, não existem trechos
menores e maiores. Existe um todo indestrutível, mas, se possível,
vivo.
FM - Em grande parte a rejeição do Surrealismo a Jean Cocteau deu-se a
partir do preconceito de Breton em relação à homossexualidade. E havia um caráter
judicioso incontestável na palavra de Breton. Quando Cocteau diz que sem resistência
não se pode fazer nada é o mesmo raciocínio de João Cabral ao defender a necessidade
da rima por se tratar de um obstáculo. Lembrei-me de Cocteau por uma afirmação dele
de que a arte é um sacerdócio terrível. Concordas?
PJ - Parece-me que a arte tem, de fato, algo do sacerdócio, no sentido de
sua tentativa de chegar ao fundo do poço do humano. Ad astra per aspera. Chafurdo no desagradável
ou naquilo que não é mencionado, para chegar à compreensão do agradável, do belo,
do ordenado, ou, que nome se queira dar, ao desejável. É um obstáculo a ser superado,
sem dúvida. E parece-me que é o que distingue a arte feita de sangue e entranhas
da arte de ouropéis. Em um caso, o espectador ou leitor se esforça para participar,
e é sempre desagradável esforçar-se, e no outro, flana sem surpresas sobre um mar
de obviedades.
FM - Em entrevista concedida ao Ivan Junqueira, mencionas que alguns grandes
escritores brasileiros são mais cultuados do que propriamente cultivados.
Concordo contigo acerca da enorme vitalidade de nossa literatura. Está claro
que somos nosso próprio e único problema. Em parte há o fato de que esta literatura
deixou de ser vista de forma interligada. Contudo, a raiz dessa anulação
de perspectiva me parece ser a instalação do que chamas de colônias privilegiadas.
Na prosa, esta ação entre amigos fez com que fosse diluída a importância da obra
de autores como Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Aníbal Machado, Campos de Carvalho.
Já no verso, raramente percebemos a grandeza da obra de Emílio Moura, Dante Milano
ou Dora Ferreira da Silva. Quais os focos dessas colônias?
PJ - Provavelmente não é um fenômeno só brasileiro. É humano, somos gregários
por natureza e, um pouco, avestruzes. Juntar-se em colônias de donos da verdade
é sempre mais confortador do que aventurar-se na incerta batalha da dúvida. Uma
terra de ninguém. A tese certa de hoje desafia a nenhuma tese de sempre. Perceber
o quanto há de demoníaco na chamada realidade e na sucessão de verdades, cronológicas
e locais, é um convite ao desespero. E ao mesmo tempo, paradoxalmente, a única possibilidade
de redenção. Ilustra-o de forma paradigmática uma obra-prima de todos os tempos:
Medo e tremor, de Soeren Kierkegaard. É impossível sair de sua leitura como
se era antes. Recomendo-a a todos aqueles que querem começar por salvar-se a si
mesmos antes de salvar o próximo.
*****
Agulha Revista
de Cultura
# 01. Agosto de 2000. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil), artista
convidado desta edição especial de ARC.
*****
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Sérgio
Lucena
Agradecimentos a Isa Fonseca
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
Visite a nossa loja
Nenhum comentário:
Postar um comentário