sábado, 30 de abril de 2016

FLORIANO MARTINS | Um encontro com Per Johns


O ficcionista Per Johns (1936), filho de migrantes dinamarqueses, tem conquistado com admirável eficácia uma ponte entre o duplo mundo que habita sua condição de bilíngue. Seus livros, publicados tanto no Brasil quanto na Dinamarca, refletem tal condição, ao mesmo tempo em que dimensionam uma voz poética vigorosa. Per Johns é autor de romances como A revolução de Deus (1977), As aves de Cassandra (1991) e Navegante de opereta (1998). Tem sido também um incansável tradutor de escritores dinamarqueses.

FM - Estimando tua condição de filho de imigrantes – esse ser ambíguo e privilegiado, ao mesmo tempo estrangeiro e nativo –, pode-se ligá-la à condição essencial do poeta, vivência a partir de um duplo exílio, em que a realidade será sempre observada sob dois enfoques: o dentro e o fora de cada evidência. Querer viver simultaneamente nos dois mundos, o factual e o onírico, esta seria a obsessão central de Per Johns?

PJ - É uma síntese adequada do sentido profundo de minha trilogia, uma duplicidade radical, de raiz. E chamar de obsessão esse duplo exílio não me parece fora de propósito. Ele se esgalha em múltiplos aspectos. Acoplada à duplicidade ou inerente a ela existe a estranheza de uma vida que se afasta de si mesma, que se observa e se manipula de fora para dentro. Nesse sentido, o mundo onírico é mais verdadeiro do que o factual, porque se reporta a raízes que o mundo factual – vale dizer, construído – perdeu de vista. A cisão dos personagens não é só dos personagens; é de nossa cultura coletiva. O que distingue os personagens ficcionais das pessoas reais é a consciência da cisão. O risco de ser chamado de louco.

FM - Umas curiosidades soltas: a verossimilhança é aspecto levado em conta? A intensidade se contrapõe à densidade? Há abordagens de maior ou menor significado? Quais os truques para se deslocar a fonte da confidência? Calma. A pergunta é outra. Até que ponto a dissecação de um texto pela crítica correspondente à inquietude criativa?

PJ - A dissecação de um texto corresponde à vivissecção de um o organismo. Passa-se a compreender como funciona o mecanismo, suas partes interligadas, mas mata-se o significado. Sacrifica-se a vida, que é um dentro inextrincável. Em outras palavras, a vida é sempre particular e inapreensível. Nesse sentido, para ater-me a um exemplo que me é caro, eu perguntaria: são verossímeis as aves de arribação? Explicam-se?

FM - Defende Milan Kundera que um romancista deve sistematicamente dessistematizar seu pensamento, dar um pontapé na barricada que ele mesmo ergueu em torno de suas ideias. O que pensas a respeito?

PJ - Um dos personagens nodais de Navegante de opereta, o professor Frater Taciturnus, é uma encarnação clara desse pensamento de Kundera. Ele está sempre dando pontapés nas barricadas que o defendem de si mesmo, pondo-se solto no ar, sem chão, fadado a recomeçar sempre. Como Sísifo. O narrador define o que ele quer dizer, assim: "Em suma, joga-se fora a escada com que se subiu pergunta acima". Tenho muitas afinidades com Kundera. Tangenciamo-nos. A propósito, fui um dos primeiros a mencioná-lo no Brasil, em artigo para o jornal O Globo, em 05/11/78.

FM - Ao conversarmos sobre uma menção a Stefan Zweig, em entrevista que fiz ao poeta Donizete Galvão, me disseste: o pior da guerra é que seus horrores são por assim dizer higienizados com a traição das palavras, justamente a ferramenta de trabalho de quem precisa se concentrar na poesia. Vivemos em uma sociedade em que as palavras são traídas constantemente. Ao serem esvaziadas de sentido, perdem por completo qualquer valor. Curiosamente esse esvaziamento de sentido é compactuado por algumas tendências estéticas – quer pensemos na poesia pura ou no Concretismo.Como restaurá-las?

PJ - Acredito que só seja possível com a restauração de um hábito que se vem perdendo, o da leitura. Mas não dinâmica ou quando o ler é meramente acessório. Ler, no sentido em que uso o termo, implica a redescoberta da multiplicidade de cada palavra, não meramente etimológica, mas existencial. Um reviver as palavras. Ocorre-me sempre como exemplo desta revivescência necessária – que é lenta, e antes se conquista do que se apreende – o nome dos lugares de um país como a Dinamarca. São os mesmos de priscas eras. Não foram modificados: estão na raiz da língua. Cada nome de lugar – até certo ponto incompreensível para um usuário do idioma atual – tem uma riqueza semântica que restaura o significado do ato de ler, vale dizer, é um mergulho em estratos, por assim dizer, paradoxalmente, indizíveis. Entendo que cada pessoa tem o seu próprio e intransferível horizonte de leitura. Mas como restaurá-lo, não saberia responder.

FM - Algo intrigante: Beckett buscava o que ele próprio chamava de desintegração completa, ou seja, nenhum eu, nenhum ter, nenhum ser. Já o João Cabral optou por uma poesia onde o eu não falasse diretamente, mas sim através das coisas. Quaisquer que sejam as técnicas empregadas, não acreditas que toda criação seja autobiográfica? Tais técnicas aparentemente insólitas não te parecem apenas variações de uma afirmação humanista, que surgem exatamente a contrapelo de uma banalização do ser humano?

PJ - Transferiria o que disse da leitura para a vida. Ao contrário de ter uma vida que é de todos, urge que as pessoas tenham uma vida que é sua. É claro que isso só é possível no nível onírico e não factual. Por trás das identidades factuais que o cotidiano impõe é preciso que cada um descubra seus veios oníricos diferenciados, e viva-os, aquém e além de todas as necessidades práticas. Abre-se aí uma riqueza de perspectivas que é o contrário da banalização e do tédio de estar-se a todo instante à procura de uma qualquer coisa exterior, desprezando o manancial de si mesmo. Pelos mesmos motivos, deve-se entender qualquer criação autêntica como necessariamente autobiográfica. A objetividade é fruto de uma escolha.

FM - Não escondo minha predileção, diante de tua obra, por Navegante de opereta (1998), por encontrar ali o melhor retorno à ficção, no sentido de uma unidade entre lírica e narrativa. Trata-se, portanto, de escrever não governado pelos ditames de um gênero literário, mas sim pela fascinação que lhe desperta sua visão de mundo através da escrita?

PJ - Acredito que toda minha obra se assenta em um tripé: a narrativa, a poesia e o ensaio. Estão misturados, não podem ser separados. Os três estão sempre juntos, embora haja predominância de um ou outro dependendo das circunstâncias. Por sua própria natureza e por sua posição dentro da trilogia, o Navegante de opereta é mais reflexivo e panorâmico. A característica do personagem dúplice radica em uma unificação que, nem bem se impõe, e já se estilhaça de novo em múltiplas imagens, onde se alternam veios ensaísticos, poéticos e ficcionais, mas o fio da meada da urdidura é a baba de aranha, como vem expresso na pequena quadra que sintetiza o personagem: De minha baba/Vou tecendo os fios/Da teia dura e diáfana/Que em mim me emaranha.

FM - A viagem interior rejeita toda cartografia prévia. Não se realiza na racionalização, mas antes na identificação. O curso seguido por uma persona dupla, na verdade uma conjunção entre protagonista e antagonista, no decorrer desta tua trilogia, não é senão uma afirmação da essencialidade da personalidade. Recorrendo a uma imagem tua, até que ponto a conquista de uma voz própria é filha de um fracasso luminoso?

PJ - A viagem interior é a única possível, no sentido de obedecer não só ao factual mas ao onírico. De um certo modo, a viagem interior que se dá do lado de fora na viagem que se locomove, corresponde àquela procura jamais saciada da paisagem própria e intransferível a que se referia Rilke, uma espécie de correlativo objetivo. Mas temos de contentar-nos com aproximações, rastros, vestígios. O quanto basta para manter viva e verdadeira a irrealidade do onírico diante da falsa realidade do factual. Em suma, uma procura que se mostra verdadeira mercê dos vestígios que semeia. E assim entenda-se que o fracasso é luminoso por ser ao mesmo tempo um fracasso no âmbito factual e um sucesso no âmbito onírico. Vem a ser a conquista da única voz possível, mas que corre um risco permanente de se perder em um balbucio.
 
FM - Observo com curiosidade a inclusão de um desenho de Paul Valéry na capa de teu Navegante de opereta, livro que traz em sua coda uma epígrafe de Clarice Lispector. Novamente a paixão pela contradição? René Magritte refere-se à precisão de Valéry lamentando que seja destituída de paixão. Ao contrário, a paixão de Lispector não raro carece de precisão.

PJ - A história de minhas capas é curiosa. As de Cemitérios marinhos às vezes são festivos e Navegante de opereta estão interligadas pelo contraditório elo de Paul Valéry, no primeiro caso mercê de uma foto que eu mesmo fiz em Sète, no magnífico cemitério marinho em que foi sepultado o poeta. E no segundo, graças a um desenho do próprio Valéry, em que retrata Zenon de costas para o mar e a vida. Mas não é uma ligação acidental. Tanto em Cemitérios marinhos às vezes são festivos como em Navegante de opereta insere-se como elemento absolutamente central o poema Le cimetière marin, que é provavelmente único na obra de Valéry, por ser não só autobiográfico como de certo modo passional. Ou por outra, por ser contra Valéry. Simbolicamente é como se o próprio Valéry, talvez involuntariamente, estivesse a ilustrar no desenho a veemência quase passional de um dos últimos versos do poema: Le vent se lève!… Il faut tenter de vivre! E assim, na visão do protagonista do Navegante de opereta, ensaiasse uma espécie de mea culpa. Toda a trilogia é um embate entre precisão e paixão, justificativa suficiente para a epígrafe aparentemente contraditória de Clarice Lispector, na coda.

FM - Recorto uma colocação tua: Acredito que só há possibilidade de organicidade na fragmentação. Refiro-me então ao Kundera uma vez mais: os trechos fracos de uma obra e sua essencialidade. Se pensamos em suspense, paixão, terror, imaginamos alguém apreensivo, embevecido, assustado. Mas nenhum romance é inteiramente isto ou aquilo. Seus trechos menores não viriam exatamente de uma falha de interpretação, incluindo aí o equívoco da catalogação genérica?

PJ - Para entender que fragmentação significa mais do que uma coleção de fragmentos, repetiria o que antes já disse. A ideia de que o romance abriga um universo em que entram o ensaio, o poema e a narrativa propriamente dita. Um espelho da vida. Nesse sentido, o fluxo de consciência, no Ulisses, de Joyce, é antes um agrupamento de estilhaços do que uma narrativa, espécie de instantaneísmo tradicional. E pois, se é que entendi a pergunta corretamente, não existem trechos menores e maiores. Existe um todo indestrutível, mas, se possível, vivo.

FM - Em grande parte a rejeição do Surrealismo a Jean Cocteau deu-se a partir do preconceito de Breton em relação à homossexualidade. E havia um caráter judicioso incontestável na palavra de Breton. Quando Cocteau diz que sem resistência não se pode fazer nada é o mesmo raciocínio de João Cabral ao defender a necessidade da rima por se tratar de um obstáculo. Lembrei-me de Cocteau por uma afirmação dele de que a arte é um sacerdócio terrível. Concordas?

PJ - Parece-me que a arte tem, de fato, algo do sacerdócio, no sentido de sua tentativa de chegar ao fundo do poço do humano. Ad astra per aspera. Chafurdo no desagradável ou naquilo que não é mencionado, para chegar à compreensão do agradável, do belo, do ordenado, ou, que nome se queira dar, ao desejável. É um obstáculo a ser superado, sem dúvida. E parece-me que é o que distingue a arte feita de sangue e entranhas da arte de ouropéis. Em um caso, o espectador ou leitor se esforça para participar, e é sempre desagradável esforçar-se, e no outro, flana sem surpresas sobre um mar de obviedades.

FM - Em entrevista concedida ao Ivan Junqueira, mencionas que alguns grandes escritores brasileiros são mais cultuados do que propriamente cultivados. Concordo contigo acerca da enorme vitalidade de nossa literatura. Está claro que somos nosso próprio e único problema. Em parte há o fato de que esta literatura deixou de ser vista de forma interligada. Contudo, a raiz dessa anulação de perspectiva me parece ser a instalação do que chamas de colônias privilegiadas. Na prosa, esta ação entre amigos fez com que fosse diluída a importância da obra de autores como Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Aníbal Machado, Campos de Carvalho. Já no verso, raramente percebemos a grandeza da obra de Emílio Moura, Dante Milano ou Dora Ferreira da Silva. Quais os focos dessas colônias?

PJ - Provavelmente não é um fenômeno só brasileiro. É humano, somos gregários por natureza e, um pouco, avestruzes. Juntar-se em colônias de donos da verdade é sempre mais confortador do que aventurar-se na incerta batalha da dúvida. Uma terra de ninguém. A tese certa de hoje desafia a nenhuma tese de sempre. Perceber o quanto há de demoníaco na chamada realidade e na sucessão de verdades, cronológicas e locais, é um convite ao desespero. E ao mesmo tempo, paradoxalmente, a única possibilidade de redenção. Ilustra-o de forma paradigmática uma obra-prima de todos os tempos: Medo e tremor, de Soeren Kierkegaard. É impossível sair de sua leitura como se era antes. Recomendo-a a todos aqueles que querem começar por salvar-se a si mesmos antes de salvar o próximo.



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Agulha Revista de Cultura # 01. Agosto de 2000. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil), artista convidado desta edição especial de ARC.

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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa Fonseca
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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