Quando Jack Kerouac morreu a 21 de outubro de 1969, aos 47 anos de idade,
em Saint Petersburg, Flórida, famoso, porém isolado, decadente, pesadamente alcoólatra,
deixou 19 dólares em sua conta bancária. Havia publicado alguns textos de circunstância
como Satory in Paris, que saiu na Playboy, para fazer caixa. Dilapidara,
é certo, o que ganhara, por beber de modo desenfreado e por mudar-se a toda hora
– ele e sua mãe Gabrielle, amemére, em seu último ano de vida acompanhados
por sua terceira esposa, Stella Sampas, movidos por uma difusa inquietação, não
conseguiam residir por muito tempo no mesmo lugar.
Em maio de 2001, passadas pouco mais de três décadas da morte de Kerouac,
o rolo com a primeira versão de On the Road – aquela escrita em três semanas,
em abril de 1951 – seria arrematado em leilão por nada menos que dois milhões e
quatrocentos e vinte mil dólares. Bateu o recorde do valor de originais literários.
Mereceu cada dólar desse valor. Esse rolo original de On the Road acabaria
sendo publicado em 2007, pela Viking Press, assim comemorando os 50 anos do lançamento
da sua versão final pela mesma editora.
On the Road na versão editada – aquela finalmente publicada em
1957, aqui traduzida como On the Road: Pé na Estrada (L&PM Pocket, 2008,
tradução de Eduardo Bueno reedição, com mudanças, do que foi publicado pela Brasiliense
em 1984 na tradução de Bueno e Antonio Bivar) – exerceria uma influência única.
No prefácio dessa edição brasileira, Bueno comenta esse impacto:
Bob Dylan fugiu de casa depois de ler On the Road. Chrissie Hynde,
dos Pretenders, e Hector Babenco, de Pixote, também. Jim Morrison fundou
The Doors. No alvorecer dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a tornar-se cantor,
fundindo rap e poesia beat. Jakob Dylan, filho de Bob, deixou-se fotografar
ao lado da tumba de Jack em Lowell, Massachusets, como o próprio pai o fizera, vinte
anos antes. Em 1992, Francis Coppola (o produtor), Gus van Sant (o diretor) e Johnny
Depp (o ator) envolveram-se numa filmagem nunca concretizada do livro – e, apesar
da diferença de idade, os três compartilharam o mesmo fervor reverencial pela obra.
Aliás, esse projeto de filmagem de On the Road por Coppola vai se
transformando em novela infindável ou saga inconclusa. Pelas notícias mais recentes,
a direção agora ficaria a cargo de Walter Salles. Acredito que, apesar da paixão
e empenho de Coppola, o filme nunca será realizado. Pelo seguinte: é muito; as centenas
de páginas de On the Road, narrando os cinco ciclos de viagens de Jack Kerouac,
Neal Cassady e amigos pelos Estados Unidos e México, se viessem a ser filmadas como
merecem, com atenção ao detalhe, incorporando o estilo de Kerouac, são cinematograficamente
inviáveis. Iriam requerer a dimensão dos filmes-epopeia, divididos em episódios,
a exemplo do que os japoneses fizeram no momento de maior prosperidade de sua indústria
cinematográfica, por volta de 1960. A forma para dar conta da transposição de On
the Road para o meio audiovisual seria antes aquela das novelas e séries de
TV: só assim caberia, sem trair o original. O criador de Apocalipse Now devia
pensar nisso: afinal, hoje as mídias convergem no DVD.
Bueno ainda trata, no prefácio aqui citado, de repercussões propriamente
literárias e artísticas de On the Road:
[...] toda uma legião de escritores, artistas, cineastas, dramaturgos e músicos
– a geração que se multiplicou em muitas – seria profundamente influenciada pelo
estilo e pelas visões de Jack Kerouac. Difícil imaginar a obra de Sam Shepard, de
Bob Dylan, de Charles Bukowski, de Jim Morrison, de Lou Reed, de Tom Wolfe, de Bret
Easton Ellis, de Joni Mitchell, de Wim Wenders, de Hunter Thompson, de Neal Young,
de Jim Jarmush, de Jack MacInerney, de Beck, de Bobo, de Tom Waits, de Gus Van Sant,
de Bob Wilson sem On the Road. Todos eles pagaram tributo à fraqueza fluídica
e generosa do católico louco e místico que viu a luz nos trilhos e trilhas da América.
On the Road, inspirou autores, é certo; mas, principalmente, projetou-se
na vida, na sociedade, contribuindo para mudanças de valores, de comportamentos.
O que estava sendo oferecido, naquele leilão de 2001, não era apenas um original
de obra, porém a matriz de um mito. Mais que qualquer outra obra literária, contribuiu
para realizar a profecia de uma revolução de jovens de mochila às costas tal como
proclamada em outra das narrativas de Kerouac, The Dharma Bums, Os Vagabundos
Iluminados (tradução de Ana Ban, L&PM Pocket, 2007), em uma fala atribuída
ao poeta Gary Snyder (Japhy Rider no livro):
Pense na maravilhosa revolução mundial que vai acontecer quando o Oriente
finalmente encontrar o Ocidente, e são caras como nós que podem dar início a essa
coisa. Pense nos milhões de sujeitos espalhados pelo mundo com mochilas nas costas,
percorrendo o interior e pedindo carona e mostrando o mundo como ele é de verdade
para todas as pessoas. [...] eu quero que meus vagabundos do Darma carreguem a primavera
no coração.
Tais consequências, é claro, suscitaram controvérsia. Existe bastante crítica
literária de qualidade tratando de On the Road, do restante da obra de Kerouac
e da geração beat. Biografias, debruçando-se sobre a gênese e o processo de criação
de On the Road, Os Subterrâneos, Doctor Sax, etc, preenchem
uma extensa prateleira de estante. Mas, se no Brasil On the Road circulou
proporcionalmente mais que em outros países ibero-americanos e em Portugal, como
o atestam as reedições, ainda assim não recebeu a atenção equivalente da crítica.
O que se vê são as ocasionais manifestações desfavoráveis, negando, em tom depreciativo,
o valor literário dessa narrativa, em especial, e da produção beat, em geral. Trata-se,
para usar o termo bem chão, direto, de caretice, moralismo requentado, formalismo
exacerbado, defesa da distinção acadêmica entre literatura e vida. Incapacidade
ou recusa de perceber o quanto Kerouac, com toda a extensa lista de defeitos que
lhe podem ser atribuídos, com todas as passagens em que é epígono de si mesmo, piegas,
fácil, ao mesmo tempo é um autor absolutamente original. E isso, não só pelas viagens
e aventuras, mas pelo estilo e relação com a língua; especificamente, com o inglês
norte-americano.
É o paradoxo Kerouac: sua primeira língua foi o joual, um dialeto
kanuk; conversava em francês dialetal com sua mãe, que nunca dominou plenamente
o inglês – há um espirituoso testemunho de como eram as conversas de Kerouac com
memére Gabrielle por sua segunda esposa, Joan Haverty, na excelente coletânea
Women of the Beat Generation organizado por Brenda Knight (Conary Press,
Berkeley, 1996). Foi aprender inglês na escola, a partir dos cinco anos de idade.
Chegou a declarar que, escrevendo em inglês, pensava em francês. Isso se reflete
em sua escrita: estrangeiro em seu país, operava com a língua inglesa toda, com
uma amplidão vocabular espantosa. E desenvolveu uma sensibilidade especial para
o som, para a prosódia. Daí resultou sua poesia, as séries dos blues, e tantas
passagens simplesmente intraduzíveis, como Old Angel Midnight, além da obra
máxima, o postumamente publicado Visions of Cody.
Esse descompasso entre as duas esferas, aquela da circulação e influência
da obra, e sua recepção crítica e jornalística, é um dos motivos do presente artigo,
chamando a atenção para o lançamento de On the Road: o manuscrito original.
Trata-se da edição daquele rolo, o que foi leiloado em 2001 e publicado em 2007,
preparada por Howard Cunnell, agora lançado no Brasil pela L&PM (tradução de
Eduardo Bueno e Lucia Brito). Um bloco só de texto, 256 páginas (as últimas seis,
que haviam sido mastigadas por um cachorro, reconstituídas) sem parágrafos, sem
divisão em partes e capítulos. Tal como Kerouac o havia concebido.
Edição cuidada. Vem com quatro estudos introdutórios, ocupando suas cem primeiras
páginas. Apoio crítico com informações relevantes, que pode contribuir para compensar
a desatenção da crítica. Algo para estudioso nenhum de teoria literária reclamar:
há crítica genética (em Rápido desta vez: Jack Kerouac e a escritura de On the
Road, de Howard Cunnell); leitura política e sócio-cultural (em Reescrevendo
a América: a nação de “monstros subterrâneos de Kerouac, de Penny Vlagopoulos);
filosofia (Em direção ao coração das coisas: Neal Cassady e a busca pelo autêntico,
de George Moutaridis); pós-estruturalismo (A linha reta só o levará à morte:
O manuscrito original e a teoria literária contemporânea, de Joshua Kupetz).
Howard Cunnell narra a odisséia da publicação, o que aconteceu entre abril
de 1951 e setembro de 1957, quando finalmente On the Road saiu. Uma história
de recusas, agravadas pela confusão que o próprio Kerouac provocou, ao enviar a
editores, alternadamente, originais de On the Road e de sua seqüência, o
ainda muito menos palatávelVisions of Cody, que acabaria vindo à luz apenas
em 1972, postumamente. A publicação de On the Road tornou-se possível pelo
empenho do importante crítico Malcolm Cowley, também difusor da lost generation,
pelo impacto do lançamento de Howl and other poems de Allen Ginsberg pela
City Lights de Ferlinghetti (aqui, Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg,
L&PM Pocket, tradução minha, reedição em 2005) e, principalmente, pelo fato
da beat já estar na mídia, ter-se tornado assunto, desde os artigos de John Clellon
Holmes, o autor de Go, a publicação de Jazz of the Beat Generation
do próprio Kerouac, e a histórica leitura de poesia da Six Gallery de San Francisco
em outubro de 1955 (com Ginsberg, Michael McClure, Philip Lamantia, Philip Whalen
e Gary Snyder).
Principal motivo dessa demora na publicação de On the Road: o medo.
A preocupação de editores com processos, com a censura dos tempos de guerra fria
– tempos em que Henry Miller e D. H. Lawrence, entre outros, circulavam clandestinamente,
proibidos de serem publicados nos Estados Unidos. Censura que acabaria derrotada
com a vitória de Ginsberg e da City Lights no processo por obscenidade movido contra
Howl and other Poems, em 1956.
O mais importante: nesse ensaio introdutório, Cunnell relata a gênese de
On the Road e comenta seus prototextos, os escritos que, cronologicamente,
precederam ou acompanharam as viagens. A idéia de criar On the Road, alternadamente
também batizado de The Beat Generation, vinha desde o término de The Town
and the City (Cidade pequena, cidade grande, tradução de Edmundo Barreiros,
L&PM, 2008) em 1948 (o livro sairia em 1950), e a percepção, por
Kerouac, de que precisava empreender uma ruptura e um salto qualitativo, pois sua
relação com a narrativa convencional se havia esgotado. Não deve, portanto, ser
entendido apenas como crônica de viagens e aventuras. Kerouac relatou suas viagens
em companhia de Neal Cassady, é certo – mas a recíproca também é verdadeira: viajou
para realizar um projeto literário; afeiçoou-se por Cassady, aventureiro sexualmente
sem limites e delinquente juvenil por ver nele um personagem, e mais, uma fonte,
uma matriz de estilo, com sua fala torrencial e improvisação verbal.
Além disso, como observa um de seus biógrafos, Yves Buin (em Kerouac,
L&PM Pocket, 2007), entre a saída da universidade em 1942 e seu ingresso na
Marinha, Kerouac já havia circulado pelos Estados Unidos, tentando chegar ao Sul
de carona para refazer trajetos de Thomas Wolfe, um de seus narradores prediletos.
Portanto, On the Road é uma tentativa de síntese, transformação de realidades
pertencentes a duas esferas distintas, as viagens já feitas e aventuras já vividas,
e os textos já escritos, em uma coisa só. Nada menos que a superação da dicotomia
entre o mundo dos símbolos e aquele das coisas, o mundo “real”.
Como já observei em outras ocasiões (inclusive em ensaios sobre Ginsberg),
a perspectiva de Kerouac e seus pares não era aristotélica, aquela da literatura
como mimese, réplica do real; antes, era mitopoética. Onde o escritor realista supõe
a distinção entre dois mundos, o da realidade e aquele da literatura que a descreveria,
e o escritor formalista não vê interesse em examinar relações entre o mundo autônomo
dos signos e a vida, o escritor visionário confunde os dois planos. Os beats são
um exemplo de crença extrema na literatura, atribuindo-lhe valor mágico, como modelo
de vida e fonte de acontecimentos, e não só de textos.
Conforme é bem exposto em outro dos ensaios de On the Road: o manuscrito
original, de Joshua Kupetz, desde o começo Kerouac quis escrever uma epopéia:
um espaço metafórico que lhe era inacessível por meio da prosa convencional;
algo além da narrativa realista. Mitografia, a expressão utilizada em Jack’s
Book (Gifford, Barry, e Lee, Lawrence, Jack’s Book: An Oral Biography,
Penguin, 1979) para caracterizar On the Road: os parceiros de salões de
bilhar de Neal adquirem as qualidades dos companheiros do herói em uma antiga épica,
afirmam. E não só parceiros de bilhar, mas vagabundos nas estradas e vagões de trem,
e desconhecidos jazzistas negros, todos videntes, conhecedores de algum mistério,
transmissores de mensagens cifradas. On the Road é obra épica, e o próprio
Kerouac a designava como epopéia. É interessante: o estudo da mitologia nos mostra
que heróis são destruídos pelos deuses, têm morte prematura, pela hybris,
por ultrapassarem limites (e não só na mitologia grega clássica, porém de Gilgamesh
a Siegfrid); semelhante destino pode ser associado ao final prematuro de Kerouac,
o herói da beat, e de Cassady, o herói de Kerouac (morto pouco antes, em 1968).
Kerouac viajou para realizar o que escrevia e o que havia lido: viagens intra
e intertextuais. Pegou a estrada para reverter o tempo e retornar às origens, tentando
refazer, entre outros, os registros da impossível recuperação do passado de Proust
(autor de cabeceira, dele e de Cassady) e de outro prosador-viajante, Thomas Wolfe;
a poesia de longo curso de Whitman, poeta itinerante; a prosa de Dostoiévski, com
sua religiosidade, sua mística do submundo e, principalmente, sua escrita paroxística;
e do francês Louis-Ferdinand Céline, o autor de Voyage au bout de la nuit
(algo como ‘viagem ao fim da noite’ ou ‘ao fundo da noite’), que vejo como a matriz
ou influência mais forte em On the Road, principalmente após a leitura de
sua primeira versão; isso, pelo modo como Céline rompeu com o beletrismo francês
ao fazer prosa oral e introduzir a língua falada em sua narrativa.
As comparações com Dostoiévski e Céline são esclarecedoras, não só pelo que
Kerouac partilha com esses autores, mas pelas diferenças. Com relação a Céline,
e nisso diferindo de seu exacerbado niilismo, a religiosidade, a ideia-chave da
‘busca espiritual’ através das viagens e
aventuras. Com relação a ambos, Dostoiévski e Céline, a alegria de viver:
incursões pelo lado B da realidade vão dar em momentos epifânicos; sombras se dissolvem
em animadas festas beat por dias seguidos e nas noitadas em caves de jazz, com jam-sessions
até as nove da manhã seguinte.
Além disso, Kerouac tem humor, se comparado a Dostoiévski e Céline, autores
amargos, raivosos, sombrios em tempo integral (especialmente Céline). Passagens
memoráveis nas duas versões de On the Road provocam riso: as cândidas descrições
da irresponsabilidade extrema da dupla, Jack e Neal ou Sal e Dean, com sua disposição
infantil para encarar tudo o que viesse pela frente, sem noção de limites, submetendo
caroneiros perplexos a experiências arrepiantes, reduzindo um cadilaque novo em
folha a um destroço no acelerado percurso desde Denver até Chicago. A excitação,
as exibições de vitalidade, neutralizando os anátemas por seu desregramento e os
momentos de exaustão e desalento, chegadas ao fundo do poço. Euforia e tristeza
alternando-se nas viagens ambivalentes, série de entradas no paraíso e descidas
ao inferno, como aquela, final, no México: o maravilhoso mundo arcaico povoado por
índios, suas portas se abrindo com a ajuda de possantes charutos de maconha, para,
logo em seguida, chegando à Cidade do México, Kerouac, doente, ser largado lá por
Cassady, sem mais nem menos. Viagens erráticas, assim como o foi a vida do próprio
Kerouac, conforme observaram seus críticos e biógrafos. Para Penny Vlagopoulos,
em outro dos ensaios que acompanham esta nova edição, Kerouac permite que você
se afeiçoe à idéia de se perder.
Há mais diferenças importantes de Kerouac, com relação a Dostoiévski e Céline.
Uma delas, o deslumbramento diante das paisagens norte-americanas, da vastidão das
planícies, dos elevados paredões de montanhas, dos caudalosos rios borbulhantes
que atravessa. O mundo em Kerouac; mais especificamente, os Estados Unidos: um lugar
onde é possível maravilhar-se.
Outra, o tema da comida: desde a incrível geladeira repleta de sua mãe em
sua obra de estréia, The Town and the City (Kerouac, Cidade pequena, cidade
grande, tradução de Edmundo Barreiros, L&PM, 2008), da qual não pára de
sair comida, até o melhor brioche que jamais comera ao chegar à França em Lonesome
Traveler (Kerouac, Viajante Solitário, tradução de Eduardo Bueno, L&PM
Pocket, 2006), passando pelo melhor guizadinho de carne de porco, ou os deliciosos
feijões fritos nas versões de On the Road: exultantes comilanças, metáforas
da alegria de viver. Traço distintivo de Kerouac, inclusive se comparado aos demais
beats, e algo ainda a ser examinado e interpretado.
Mas em que diferem as duas versões, o On the Road: Pé na Estrada,
e este novo On the Road:o manuscrito original? O On the Road originário
sofreu, na passagem para a versão final, com a pontuação abusiva, as vírgulas impostas
na edição. Teve reduções, inevitáveis naquela época: o encobrimento dos nomes através
de pseudônimos, além das supressões de personagens para evitar processos (principalmente,
de Justin Brierly, mecenas, animador cultural e protetor de rapazes de talento,
inclusive Cassady, em Denver). E do sexo mais explícito, da referência ao que havia
entre Neal Cassady e Allen Ginsberg, de maiores detalhes sobre o que o que Gifford
e Lee denominaram de quadrângulo sexual na estada de Ginsberg e Kerouac em
Denver, envolvendo Cassady, Ginsberg, LuAnne Henderson e Carolyn Cassady, ou do
registro de Neal fazendo sexo com outro homem na tentativa infrutífera de arrancar-lhe
alguns trocados. Cenas como essas seriam mencionadas, mesmo antes da publicação
de On the Road, em Uivo de Ginsberg (que por isso foi recebido pelo
processo por obscenidade) e, mais tarde, em incontáveis biografias, além dos depoimentos
de participantes dessas aventuras, como registrados no fascinante Jack’s Book:
An Oral Biography de Gifford e Lee.
O primeiro On the Road é, portanto, mais biográfico. Formalmente,
também corresponde mais fielmente a uma poética, aquela do fluxo de consciência;
em Kerouac, na versão jazzística, bop. Por outro lado, o interregno de 1951 a 1956
– quando Kerouac e a Viking, pela intercessão de Malcolm Cowley, finalmente se entenderam
em matéria de edição e publicação – é aquele do seu maior envolvimento com budismo,
através de leituras e do estágio com Gary Snyder. Foi quando escreveu Scripture
of the Golden Eternity e Some of the Dharma, bem como o melhor de sua
poesia; isso, além da vertiginosa produção de narrativas em prosa, incluindo o alegórico
Doctor Sax, baseado em um sonho relatado em On the Road, e a obra-prima
Visions of Cody, o mais oral e menos discursivo de seus relatos.
Por isso, há, no On the Road final, elaborações que o enriquecem:
mais filosofia, mais reflexão. Por exemplo, no acréscimo da menção ao taoísmo nesta
justificativa das viagens sem destino, nas quais o ponto de chegada é o que menos
importa:
Ele [Dean Moriarty / Neal Cassady] estava atingindo suas decisões
taoístas de uma maneira simples e direta. “Qual é a sua estrada, homem? – a estrada
do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer
estrada... Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer
circunstância. Como, onde, por quê?” Concordamos gravemente sob a chuva. (pg. 305
da edição L&PM Pocket)
Ou então, este detalhado relato de uma experiência de êxtase, também no segundo
On the Road:
E por um instante alcancei o estágio do êxtase que sempre quis atingir, que
é a passagem completa através do tempo cronológico num mergulhar em direção às sombras
intemporais, e iluminação na completa desolação do reino mortal e a sensação da
morte mordiscando meus calcanhares e me impelindo para a frente como um fantasma
perseguindo seus próprios calcanhares, e eu mesmo correndo em busca de uma tábua
de salvação de onde todos os anjos alçaram vôo em direção ao vácuo sagrado do vazio
primordial, o fulgor potente e inconcebível reluzindo na radiante Essência da Mente,
incontáveis terras-lótus desabrochando na mágica tepidez do céu. (pg. 217 da edição
L&PM Pocket)
E assim prossegue, nesta prosa poética, original fusão de epifania cristã
e satori búdico.
Entre um e outro dos On the Road, há, portanto, depuração e progressão
na mitografia, conforme observado por George Mouratidis, em outro dos ensaios que
acompanham este novo/primeiro On the Road: vê um movimento do simbólico
para o mítico, do humano para a visão, marcando a separação gradual
que faz Kerouac do Cassady verdadeiro da sua visão sobre ele.
Diante disso, qual dos On the Road se deve ler? Este, original, ou
aquele editado? Em favor daquele que circula, no Brasil e mundialmente, em pocket,
ter sido livro de cabeceira, bolso ou mochila de tanta gente; ter contribuído para
desencadear uma rebelião juvenil; ter-se projetado na diacronia ao inspirar uma
contracultura – em outro paradoxo aparente, por trair o conservadorismo e tradicionalismo
católico de Kerouac, ao tornar-se ícone de uma cultura de resistência; traição às
intenções do autor, fiel, porém, a seu conteúdo pleno, ao sentido da obra.
Sendo histórica, On the Road fez história: sua leitura é fruição,
e também participação, gesto político ao atestar sua atualidade. É continuar acreditando
que literatura é aventura; e que, assim concebida, pode mudar a vida e transformar
o mundo.
O On the Road II, este, primeiro a ser escrito e último a ser lançado,
possibilita uma espécie de prazer voyeurista. É como olhar por trás dos bastidores.
A vida íntima, os protagonistas desnudados. A história, menos ficcionalizada. Interessa
enormemente à crítica – à crítica não-preconceituosa, àqueles que entendem crítica
como prestar atenção no que estão lendo; por extensão, a quem estuda literatura.
A obra em processo: assunto para a crítica genética. Isto é sugerido nos ensaios
que precedem esta nova edição; entre outros lugares, nesta observação de Joshua
Kupetz: A publicação do manuscrito do rolo cria um paradoxo necessário que problematiza
a própria noção do significado em um texto e desmonta a habilidade do leitor em
diferenciar, de modo confiável, o fato da ficção.
A leitura mais recomendável, mais instigante, portanto, não é de uma ou outra
das duas versões, mas do que está entre elas. Compará-las; e assim enxergar mais
naquilo que Penny Vlagopoulos bem designa como a mais monumental das cartografias
sobre o desejo humano.
*****
Aline Daka é artista visual, ilustradora
e quadrinista. Formada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS com passagem
pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em Portugal. É ilustradora
da (n.t.) Revista Literária em Tradução,
curadora do Suplemento de Arte e atualmente
publica em parceria com Vicente Pietroforte a HQ Eunice mora no penúltimo andar na página web da Pararraios Comics.
*****
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Aline
Daka
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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