• ÊNIO
SILVEIRA, O HOMEM DA CIVILIZAÇÃO
A
20 anos da morte do editor Ênio Silveira (1925-1996), trato aqui de
reapresentar resenha que escrevi em 1998 do livro Ênio Silveira. Arquiteto de liberdades. Este texto foi
publicado unicamente no jornal O Povo
(Fortaleza), sendo de todo desconhecido dos leitores de Agulha Revista de Cultura. Parece-me pelo menos sugestivo
recordá-lo agora, diante de um confuso período que atravessa o mundo editorial
no Brasil. Ênio Silveira criou em 1932 a Editora Civilização Brasileira, uma
das mais importantes casas editoriais do país. A pauta deste número 18 também
sugere harmonioso convívio entre passado e presente, ao reunir textos de época,
assinados por Carlos Ruvalcaba, Hildebrando Pérez Grande, Violeta Lubarsky e Reynaldo Jiménez, ao lado de outros, inéditos e escritos especialmente para esta edição,
de autoria de David
Cortés Cabán, Félix Ángel, Omar Castillo e Floriano Martins. Abraxas
Há um ensaio de George Steiner onde assinala algumas diferenças entre fascismo e
comunismo, observando essas duas correntes ideológicas no âmbito de suas
intrigantes influências na criação literária. Diz ele que o comunismo, ao
contrário do fascismo, “tem sido uma força central em grande parte do melhor da
literatura moderna”, lembrando, mais à frente, que há tanto de “desprezo pelo
homem” no fascismo, quanto de “uma mitologia do futuro dos homens” no
comunismo. Neste ensaio, na verdade um breve estudo sobre o livro Literatura e Revolução, de Jürgen Rühle, menciona-se uma série de escritores cuja obra sofreu um
“variado impacto do comunismo”, entre os quais se incluem Ernest Hemingway, Alberto Moravia, Cesare Pavese, Luis Aragón, Paul Éluard, André Malraux, Albert Camus, Jean Paul Sartre, Stefan Zweig etc. Observo então que boa parte dos nomes mencionados teve
sua entrada no Brasil graças à visão de mundo de um de nossos mais importantes
editores: Ênio Silveira.
E esta observação me vem
a propósito do lançamento de Ênio Silveira. Arquiteto de liberdades (1998), livro
organizado por Moacyr Félix, também ele parceiro de Ênio, em suas inexauríveis
aventuras editoriais. A observação surge naturalmente em função da afinidade ideológica
de ambos com o comunismo. Sendo assim, corrobora-se a percepção de Ênio
Silveira, sempre envolvido e comprometido criticamente com sua época, com os
desdobramentos essenciais do ser humano em um mundo castigado por injustiças de
toda ordem. O lançamento deste livro, portanto, possui um caráter especial no
cenário editorial brasileiro. É claramente um reconhecimento pelo imensurável
trabalho que realizou o editor e humanista Ênio Silveira, e deveria vir
assinado por todos nós que amamos este país.
Segundo me informou o
próprio organizador, o livro detém-se, por circunstâncias editoriais, em um
determinado segmento da vida profissional de Ênio Silveira, notadamente a que se reporta aos assuntos
reflexivos da política e da cultura brasileira. Em suas 474 páginas, diria que
acentua aspectos diretamente vinculados aos episódios de resistência da parte
de Ênio Silveira ao regime de exceção instalado no Brasil a partir do golpe de
64, quando me parece que a importância deste editor excede os limites de uma
reação – embora a sua tenha sido a mais exemplar de todas – às coações brutais
sofridas pelos brasileiros, por ele em particular, no decorrer dos anos ‘70.
Sob este aspecto, o livro traz, ao lado de outros documentos valiosos, a íntegra
de um diário de prisão, datado de 14/12/68 a 06/01/69, uma das sete vezes em
que esteve inaceitavelmente preso Ênio Silveira. Nesta ocasião, tem início a
tradução da autobiografia de Bertrand Russel, que posteriormente publicaria.
Moacyr Félix inclui, no capítulo mais extenso do livro, uma série de
textos escritos a título de apresentação e orelhas dos livros editados por Ênio Silveira, destacando autores como Octavio Ianni, Nelson Werneck Sodré, Roland Corbisier, Alberto Moravia, Ferreira Gullar, Jorge Wanderley e Manoel de Barros. Esta coletânea de textos, embora sofra da ausência de
menção à data de publicação dos livros, reflete um abrangente - e nunca
superficial - conhecimento dos inúmeros aspectos ligados à cultura. Ênio
mostrava-se um humanista fascinante, sempre consciente do mundo à sua volta.
Outro momento importante
deste volume organizado por Moacyr Félix, não posso ocultar aqui minha predileção por ele, reúne
três entrevistas concedidas à imprensa por Ênio Silveira, entre 1994 e 1996. Ali encontramos uma síntese
admirável de quem tenha sido este homem. Menciona-se de tudo: os aspectos que o
tornaram editor, suas relações com a cultura e com as ideologias, seu
entendimento acerca do mercado editorial, lúcidas ponderações ao governo atual,
o desalento ou perplexidade das esquerdas, perspectivas e reflexões que atestam
sua destacada influência nos destinos da cultura brasileira.
O paulista Ênio Silveira (1925-1996) possui um currículo fascinante:
participou da fundação da Câmara Brasileira do Livro (1946) e foi um dos
presidentes (1952) do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Trabalhou
inicialmente na Companhia Editora Nacional, de Monteiro Lobato. Como esta editora havia comprado a Civilização Brasileira,
fundada em 1932, entre outros, por Ribeiro Couto e Hildebrando de Lima, foi então para o Rio de Janeiro (1952), dirigi-la,
transformando-a mais tarde, como ele próprio diria, “num dos grandes polos
culturais do Brasil”. Cria a coleção “Cadernos do povo brasileiro” (1962) e as
igualmente históricas: Revista da
Civilização Brasileira (1965) e Encontros
com a Civilização Brasileira (1978). Influi decisivamente na criação da
Editora Paz e Terra, que se inicia com a publicação de uma revista
homônima (1966). Nos anos ‘80 cria também a Editora Philobiblion.
Implicações financeiras
decorrentes das inúmeras perseguições que sofreu por parte da ditadura militar
levaram-no à venda da Editora Civilização Brasileira, adquirida por Manuel
Bulhosa. Disse na ocasião: “pensando que é mais válido e importante
ser do que ter, passamos a editora a outras mãos, por certo mais fortes e
competentes do que as nossas para geri-la”. Manuel Bulhosa era então dono das
editoras Difel e Bertrand Brasil. As expectativas de Ênio, contudo, não coincidiram com a realidade. Falida, a
Civilização Brasileira acaba de passar para as mãos da Editora Record. O papel
que representou em um passado recente tornou-se, ao que parece, incompatível
com os princípios que regem o mercado atual.
Ênio Silveira, enquanto lhe foi possível, honrou acima de tudo o
compromisso assumido perante esta sua inconfundível aventura editorial. Como
recorda o filósofo Roland Corbisier, que teve seus livros editados pela
Civilização Brasileira: “vivíamos em permanente angústia, pois todos nós, por
qualquer motivo ou sem motivo algum, poderíamos ser presos e desaparecer para
sempre, como, aliás, aconteceu com vários. A Civilização estava na alça de mira
da ditadura militar e tudo foi feito para levá-la à insolvência. Todavia,
resistiu e Ênio sempre se comportou com dignidade e coragem, inclusive nas
numerosas prisões.”
A Civilização Brasileira
editou mais de 4.000 livros. É responsável pela publicação de James Joyce, a começar por Ulisses,
na tradução de Antonio Houaiss encomendada pelo próprio Ênio Silveira. Teve também o mérito de publicar a primeira
edição integral de O capital, de Karl
Marx. Pela Civilização
Brasileira foi publicada a obra teatral de Dias Gomes, assim como livros de Glauber Rocha. Ênio Silveira lançou no Brasil pela primeira vez a
poesia do peruano César Vallejo. Graças às traduções de Jorge Wanderley, tomamos conhecimento de importantes poetas ingleses e
norte-americanos. Ênio Silveira pôs em merecido destaque nomes como Ferreira
Gullar, Manoel de Barros e João Antonio. Enriqueceu a cultura brasileira com a edição de livros de
Julio Cortázar, Hermann Hesse, William Faulkner, Scott Fitzgerald, Vladimir Nabokov e Aldous Huxley. Lançou (ou confirmou) brasileiros como Darcy Ribeiro, Franklin de Oliveira, Barbosa Lima Sobrinho e Mário Lago.
Não adianta estender-se
em tal lista. Importa mais referir que Ênio Silveira teve o cuidado e, sobretudo, a acuidade de editar
livros que imprimissem uma nova perspectiva à cultura brasileira. Importa
referir sua insubornável condição suprapartidária, tanto quanto sua rejeição ao
best-seller como princípio regente de qualquer aventura editorial. Todos
aqueles que privaram de sua amizade apontam-no como um homem admirável. Octavio
Ianni recorda que a
Civilização Brasileira foi uma editora que “enfrentou audaciosamente as
práticas fascistas da ditadura militar”. E as enfrentou com decisão ideológica
e firmeza estética. Hoje não temos mais prisões políticas, bombas e ameaças,
direitos cassados, ao mesmo tempo em que se foi por algum bueiro toda e
qualquer noção de comprometimento, de natureza ética ou estética. E não se
entenda aqui que uma coisa esteja vinculada à outra.
Evidente que a morte de
Ênio não influi nesse processo. Contudo, julgo de extrema
importância situar aqui um aspecto: Ênio Silveira - e temos também que abrir
uma menção a José Olympio e Monteiro Lobato - foi um daqueles raros editores preocupados em fundar,
descobrir ou estabelecer uma noção mínima que fosse de cultura em um país
absolutamente carente de amor próprio. Mesmo contando com sua visão múltipla,
não poderia jamais abarcar todo um universo cultural. Neste sentido, foi ainda
mais ambicioso. Agiu dentro de sua expansiva noção do possível - não entendo a
paixão como um sacrifício, como é hábito situá-la -, cuidando obstinadamente
para que não nos tornássemos a ilha franca de debilizantes ações a que nos
resumimos hoje.
ÍNDICE
CARLOS RUVALCABA | Antoni Tàpies: del dadaísmo al arte
pobre
CARLOS RUVALCABA | Bernardo
Bertolucci, a treinta años de la filmación de El Último Emperador
CARLOS RUVALCABA | Entrevista a Lucio Muñoz,
pintor informalista que dio grandeza al grabado
DAVID
CORTÉS CABÁN | Un girasol sobre la nieve: La
casa amarilla, de Jorge Eliécer Ordóñez
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/06/david-cortes-caban-un-girasol-sobre-la.html
FÉLIX
ÁNGEL | ¿Cuán moderno fue el modernismo brasilero de 1922?
FÉLIX ÁNGEL | Ecos desde afuera: los griegos, en
Washington
FÉLIX
ÁNGEL | My Brazilian affair
HILDEBRANDO PÉREZ GRANDE | César Vallejo, in the night
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/06/hildebrando-perez-grande-cesar-vallejo.html
OMAR
CASTILLO & FLORIANO MARTINS | La inutilidad de las fuentes
VIOLETA LUBARSKY Y REYNALDO JIMÉNEZ | Javier
Sologuren: la experiencia de la palabra
Artista
convidado | JUAN PABLO RAMÍREZ | Félix Ángel: un hombre entre la pluma y el pincel
Página ilustrada com obras de Félix Ángel (Colômbia, 1949), artista convidado desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 18 | Julho
de 2016
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design |
FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS
os artigos assinados não
refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se
responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário