FM Iniciemos esta nossa conversa indagando sobre o seu relacionamento
com a poesia, este “exercício de soberania do espírito”. Como lhe toca a
poesia?
EM A poesia é, como o amor e a amizade, uma
experiência, um estado de graça comum a todos. No caso do poeta, é um estado de
graça verbal, mesmo na desgraça. Em tua pergunta falas de uma soberania do
espírito que a poesia entranha. Sim, é isto, porém, ao mesmo tempo e
paradoxalmente, entranha uma fatalidade. Não se é poeta porque se quer mas sim
porque se deve sê-lo. Porém nesse dever radica o exercício da liberdade. Em uma
palavra: é uma vocação, ou melhor: um destino assumido como vocação.
FM Julio Ortega aponta em sua poesia um
“vislumbrar, com as palavras exatas, o deslumbramento”. Também Jesus Urzagasti
nos fala em “deslumbrante odisseia da lembrança” ao referir-se ao poema “El
peregrino y la ausencia”. Concorda com ambos nisto que poderíamos situar como
uma poética do deslumbramento?
EM Creio que ambos, Ortega e Urzagasti, apontam
uma das características mais visíveis de minha poesia. É evidente que parte
dela é uma expressão do assombro frente ao mundo, frente aos seres e coisas
cotidianas: uma porta, uma palmeira, uma cadeira, a neve, o mar. Talvez um
verso de Octavio Paz: “o esquecido assombro de estarmos vivos”, seja a tarefa
que trata de cumprir minha poesia como a de inumeráveis poetas. E nada estranho
nisto, pois a poesia, como a filosofia, está ligada ao assombro frente ao ser.
Ali onde o hábito vê uma “rugosa realidade”, o olhar poético descobre uma
perpétua novidade. A poesia entranha, como a religião, uma revelação, uma
epifania.
FM Em certa ocasião você se refere acertadamente
ao exílio como uma “síndrome latino-americana”. Tendo vivido também essa
experiência, em que ponto a qualificaria de determinante em sua obra?
EM O termo exílio é muito amplo
e muito rico. No contexto de tua pergunta é claro que tem uma conotação
política. Neste sentido, a experiência do exílio foi uma das mais constantes e
desgarradoras da história latino-americana - com uma intensidade crônica nas
décadas de 60 e 70 -, ainda que, desgraçadamente, não seja exclusividade dela.
Em relação à minha poesia, “Razón ardiente” é o texto que de maneira mais clara
testemunha essa experiência. Este poema foi escrito em Paris, pouco depois de
um dos golpes de estado mais cruéis que viveu meu país. Contudo, creio que a
poesia de Pedro Shimose é a que resume essa desgarradora experiência de maneira
mais intensa e constante. E este é, entre outros, um dos méritos deste poeta.
FM Em La luz del regreso (1990)
se reproduz uma carta sua ao crítico Luis H. Antezana, em que se reflete
admiravelmente sobre a gestação do poema “El peregrino y la ausencia”. Como
situar o “princípio de simetria”, a que ali se refere, em relação à criação de
um poema anterior, “Razón ardiente”? Considera a poesia inteiramente ditada por
essa ordem de correspondências?
EM Não, não, estabelecer simetrias não foi o
propósito desses poemas, não foi uma vontade mas sim um princípio gerador dos
mesmos que pouco a pouco se foi manifestando. Nunca me senti tão pouco autor
como ao escrever “El peregrino y la ausencia”, pois, como digo em “Conto de um
canto”, a carta que mencionas, o poema me foi ditado por um acaso, ou uma
cadeia de acasos obediente a uma secreta lógica implacável e impecável. Ao
dizer isto não me refiro, sem dúvida, à qualidade do poema, mas sim à maneira,
ao processo de sua escritura. O itinerário de sua redação, tanto ou mais que o
próprio poema, foi para mim a verdadeira experiência poética. Daí a necessidade
dessa carta ou relação minuciosa de sua lenta gestação. Em troca, em “Razón
ardiente”, mesmo que também tenha sido um poema escrito lentamente, mais do que
de simetrias caberia falar em incursão de versos pertencentes a outros poemas
escritos muito tempo antes. Trata-se da irrupção do passado através de alguns
versos de conteúdo autobiográfico e coletivo. Contudo, creio que podem ser
feitas comparações entre este poema e “El peregrino y la ausencia”: a
multiplicidade de tempos e espaços que ambos abraçam, a referência a episódios
trágicos da história: a ditadura sangrenta, o medo e o exílio, no primeiro; e o
massacre dos palestinos, no segundo. À margem destas similitudes ou
correspondências, as diferenças não são menos notáveis: “Razón ardiente” tem
uma escritura fragmentada, espacial, enquanto que “El peregrino y la ausencia”
uma escritura bem mais discursiva, linear. O tom coloquial e a
intertextualidade são duas de suas características distintivas.
FM Você nos fala que, por influência de Franz
Tamayo, o modernismo se prolongou, na Bolívia, até o final da primeira metade
deste século. Por outro lado, Jaime Sáenz lamenta que a Bolívia não dê a Tamayo
sua devida importância. Em 1970 a Biblioteca Ayacucho, em Caracas, dedicou um
longo volume a esta notável poeta modernista, para alguns situado como o
primeiro poeta da América. Quem foi, de fato, Franz Tamayo?
EM Franz Tamayo foi muitos homens: um pensador,
um político, um pedagogo e, sobretudo, um poeta extraordinário em alguns
momentos de sua obra. Digo em alguns momentos, pois grande parte de sua poesia,
em minha opinião, confunde-se com a retórica grandiloqüente. Não estou de
acordo com as estimações que pretendem fazer de Tamayo “o primeiro poeta da
América”, nem o segundo ou terceiro, porque essas hierarquizações são de ordem
bem mais desportiva. O que quer dizer isto de ser o primeiro e da América? O
evidente é que a obra de Tamayo é uma das mais importantes da poesia boliviana.
FM Referi-me a Jaime Sáenz, e recordo que
em El árbol y la piedra (1986) você situa sua poética como
sendo, mais do que um diálogo com o mundo, “um debate do eu consigo mesmo”. O
crítico Stefan Baciu, ao salientar que a literatura boliviana não viveu a
experiência da vanguarda que dominou a América Latina nos anos 20, destaca este
poeta como um dos mais fundamentais na Bolívia, incluindo-o em sua já conhecida
lista de autores “parasurrealistas” (com a qual particularmente discordo).
Compartilha tal opinião, ou seja, há um vínculo entre a poesia de Jaime Sáenz e
a estética surrealista?
EM Sim, na Bolívia a poesia de vanguarda não
ingressa senão tardiamente. Não tenho uma resposta que explique esta demora,
ainda que conjeture que tenha múltiplas causas, porém demandaria muito espaço
expô-las aqui. Em relação à poesia de Jaime Sáenz, freqüentemente assimilada ao
Surrealismo, como a de Edmundo Camargo, creio que essa relação é válida se
pensarmos que a escritura surrealista tende à fratura do discurso racional,
coerente, para instalar outra lógica que expresse o irracional e o onírico. O
que não vejo em Sáenz nem em Camargo é o ideário, ou as utopias revolucionárias
que nutriram os surrealistas: instaurar a poesia na vida, fazer desta uma obra
de arte, muito além da literatura. O erotismo, o amor, que nos surrealistas é
um ato revolucionário contra a ordem estabelecida, não creio que o seja em
Sáenz. Sua poesia amatória é uma constante e comovedora evocação do sujeito
amado ausente, não um reconhecimento da presença. Por isto mesmo, o corpo é o
grande ausente de sua poesia. Falta-lhe essa ponte sensível. Em seu lugar,
Jaime Sáenz edificou uma obra originalíssima que não é uma ponte, mas sim uma
escada em caracol pela qual o poeta sobe e desce infatigavelmente nas trevas da
solidão ou no vislumbre do outro, da alteridade, do tu libertador.
FM A ética da poesia sempre foi divergente da
ética da história. O Surrealismo acentua essa disjunção justamente ao tentar
encarnar os valores da história, tornando a revelação desse “paradoxo
dramático” o principal alvo dos ataques que sofre preconceituosamente até os
dias de hoje. Contudo, ao acentuar tão decisiva contradição, não residiria
justamente aí uma de suas contribuições essenciais?
EM Esse paradoxo dramático se dá antes em vários
poetas românticos, não é verdade? Os surrealistas o retomam e, se queres, o
radicalizam. Contudo, longe de instalar uma ética poética na história, acabam
sendo, em alguns casos, assimilados por esta. Pior ainda: afetados por uma de
suas mais graves enfermidades: a ideologia a-crítica, o dogmatismo. Ali creio
que reside, mais do que o paradoxo, a amarga ironia de vários membros desse
movimento, e que explica suas adesões a ideologias totalitárias, amparadas em
uma cegueira voluntária ou, no melhor dos casos, em uma fé ingênua no mal
necessário porém passageiro. Parece que lhes faltou uma virtude muito simples e
difícil de conseguir: a humildade, intimamente relacionada à capacidade de
duvidar de si mesmo, de suas próprias ideias e crenças. No fundo, eram
espíritos religiosos e, por isto mesmo, muito proclives ao fanatismo. Daí que
suas ações se confundissem amiúde com as profanações e que, do mesmo modo, seus
manifestos contemplassem, em vários casos, as excomunhões. Contudo, é
necessário recordar que alguns de seus membros, que mais tarde foram além do
Surrealismo, conservaram sempre uma lucidez crítica em nenhum momento
desmentida. Refiro-me, sobretudo, a Octavio Paz.
FM Tendo em Gesta bárbara a formação grupal
melhor definida na literatura boliviana, e levando em conta seu vínculo direto
com o Surrealismo, é possível então afirmar que, embora tardiamente, o
Surrealismo teria sido, entre todas as vanguardas, a de influência mais
decisiva na poesia boliviana? A que poderíamos nos referir como suas contribuições
mais notáveis?
EM O Surrealismo na poesia boliviana
manifesta-se de maneira clara em dois poetas até agora não muito bem estudados:
Gustavo Medinaceli e Julio de la Vega. Ambos encarnam uma liberdade metafórica
até então inusual na poesia boliviana. De igual maneira, com eles o erotismo e
a experiência da urbe moderna cobram uma carta de cidadania à poesia de meu
país. Mas o Surrealismo não se limita a estes autores, estando presente, de
maneira soterrada, em quase todos os poetas dignos de menção: Guillermo
Viscarra Fabre, Roberto Echazú, para nomear dois de gerações distintas e algo
distantes. Frente à poesia classicista de um Tamayo, o Surrealismo soprou como
um vento de liberdade formal, de exploração verbal.
FM É sempre lamentável a maneira como a crítica
deixa para trás algumas obras literárias de grande importância. No âmbito da
poesia hispano-americana há casos notórios como o dos chilenos Rosamel del
Valle e Enrique Lihn e o do colombiano Jorge Gaitán Durán - três
fundamentais poetas e que, no entanto, raramente ultrapassam a fronteira de
seus países de origem, sendo igualmente raros os estudos acerca de suas obras.
Na poesia boliviana, ao que me parece, Edmundo Camargo constitui o caso mais
gritante. A seu ver, o que ocasionaria esses desfoques da crítica?
EM Sim, desde já, no mapa da poesia
latino-americana, há várias obras importantes que não foram ainda
suficientemente valorizadas. Inclusive, e isto é o mais grave, algumas que
quase não são mais levadas em conta. Por exemplo, há poucos anos a mim me
pareceu lamentável que a poesia de José Eduardo Guerra fosse praticamente
desconhecida fora da Bolívia. O caso de Guerra não é único e poderíamos
acrescentar vários outros nomes de outros países. Porém creio que é justamente
a tarefa que se deve impor a crítica: romper o isolamento, o desconhecimento
das obras. Desenterrá-las do silêncio em que jazem, é uma das tarefas mais
imediatas da crítica, e acaso sua maior razão de ser.
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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Graciela Rodo Boulanger (1935)
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
10 AGULHA HISPÂNICA (2010-2011)
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido
hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu
ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a
coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio
Simões.
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