Clio e Insônia, a História
que tudo penetra e a imaginação que se mantém vigilante mesmo nas horas noturnas
– eis o enlace de opostos que em discordia
concors se enlaçam para criar a poesia de Marco Lucchesi.
A História vem primeiro.
O poeta, que já percorreu tantas paisagens e as disse em tantas e diversas línguas,
agora aponta a sua bússola para o passado entre real e mítico de Portugal. Tudo
começa à beira do Mar Oceano, promissor mas tenebroso, rota das Índias e de naufrágios.
Essa descida ao âmago da
experiência de temerários navegadores é contada no plano dos acontecimentos remotos
e na esfera do imaginário em que se inscreve a palavra do poeta.
No coração da memória está
a viagem às Índias, aquele mundo remoto e fabuloso que incendiou a imaginação dos
lusíadas:
Perdidas/no caminho/para as Índias/passam /as naus/desertas/pela
noite escura:/afogam-se/oficiais/corsários/capelães
À grandeza sem par das conquistas
d’el Rei sucede o desastre do jovem príncipe desaparecido nos areais de Alcácer
Quibir. A glória se desfaz em luto. A luz esconde-se por trás da névoa espessa.
A História cede ao mito. E do mito de Dom Sebastião, o sempre Esperado, o sempre
Encoberto, profetizado nas trovas do sapateiro Bandarra, emerge a poesia. De Camões
a Fernando Pessoa, tudo é bruma que o gênio de Antonio Vieira procurou em vão dissipar.
Marco interioriza essa teia
de enigmas na sua lírica silabada em que ressoam cadências ungarettianas, luquesas;
Não tenho
novas/ de bandarras/que se tornem/profecias/nem de quem possa/desatar/o quinto império/da
névoa espessa/por onde/se dissolve/a língua em que me afogo
Nesses versos de sonho e
sangue prenuncia-se a passagem da poesia de Clio para a poesia de Insônia. À medida
que se lê a meditação pungente expressa na abertura do livro, vai crescendo no leitor
a certeza de que a História acontece fora e dentro da voz lírica. Objeto e sujeito
encontram-se e fundem-se como sempre se dá na verdadeira poesia.
As praias e as ilhas, o escolho
e os sargaços, o mar e as areias, em suma, a paisagem marítima que está no cerne
do imaginário luso, é acolhida na alma insone do poeta, que a transfigura em imagens
e modulações de sentimento.
A carta de achamento quinhentista
torna-se o lugar “onde me perco”. O que é a perfeita metáfora do ser em perpétua
oscilação entre o polo do encontro e o polo do desencontro, norte e desnorte, ora
simultâneos, ora sucessivos: E/ quando começo/
a buscar/ mais longe/ me vejo.
Trago nos olhos/o clarão/de um mundo inacabado
Insônia: um trabalho árduo
de busca e achado do que T.S. Eliot chamou, com precisão, “correlato objetivo”.
A figura traduz no seu corpo concreto de imagens a vivência, que de outro modo não
alcançaria comunicar-se com força e nitidez. Exemplar, nesse sentido, o poema “Contraste”
no qual “o fundo claro de teus olhos” está acoplado com “as cordas tensas do destino”.
A imagem humanizada dos olhos remete ao mais enigmático dos termos que designam
a vida humana: destino.
O mesmo se pode dizer do
poema “Onde”. Aqui a imagem é a da maresia, e a vivência é a da insônia. Com isso,
a experiência de cada um de nós é como que prismatizada na riqueza de perfis que
só a imagem poética consegue oferecer.
Clio e Insônia – só o tempo
dirá se nesta obra tão original e densa Marco Lucchesi atingiu o ponto mais alto
de sua carreira poética. Mas certamente a sua juventude espiritual nos dá seguras
esperanças de que o poeta se encontra apenas “nel mezzo del cammin”.
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Organização a cargo de Floriano Martins ©
2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor
da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela
(Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista de Cultura teve em
sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer,
tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu
seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob
a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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