quarta-feira, 30 de agosto de 2017

ANA MARIA HADDAD | Encontro com Marco Lucchesi


AMH | A Filosofia é muito presente em sua poesia, nos seus ensaios, em suas traduções e até em seus romances. Em que medida literatura e filosofia podem dialogar?

ML | Estudei filosofia desde muito cedo. Sempre o fascínio das ideias. Folheio meus antigos cadernos de lógica formal e metafísica. Comecei com a escolástica, com a técnica árdua e precisa, desde o edifício de Tomás de Aquino, sólido e imponente, que se eleva para uma zona inefável, como a ideia da palha, como disse Tomás antes de morrer. Recomendo a meus alunos o estudo da escolástica. Não para permanecer atado a um endereço, mas para criar uma disciplina, um ateliê do pensamento. Estudei Platão e Aristóteles, diretamente nos livros. Num certo nível, os manuais tornam-se mais complexos, num certo sentido, evidentemente, do que a leitura direta dos textos. Depois Descartes, aquele que não foi cartesiano, como gosto de lembrar. E muitos anos com Hegel e Kant. Estudei na Alemanha, em meu pós-doutorado, as filosofias do Renascimento, que me encantam, com aquela sobreposição de famílias neoplatônicas, e aproximações pouco ortodoxas com a alquimia e a cabala. Não vejo separação. Nem acredito que as obras se resfriem. Porque se trata de um pensamento emocionado, de fundo agostiniano, por assim dizer, como a escrita poética dos filósofos romenos como Constantin Noica e Lucian Blaga. Um olhar sobre os pré-socráticos, pode clarear muitos aspectos sobre a presença da filosofia para além de si mesma, ou dos sistemas omnívoros que se organizaram em vastos repertórios, específicos, fechados. O diálogo se deu no princípio e não se deve perder num século em que a fronteira dos gêneros tem-se tornado cada vez mais ambígua, criando novas linguagens e inusitadas vizinhanças.

AMH | Como vê o conjunto das obras de Sartre? Sob sua perspectiva, ele conseguiu estabelecer limites entre os romances e as obras estritamente filosóficas?

ML | Um monumento, pela extensão e variedade, por uma heterogeneidade homogênea, por um sistema de circulação retroalimentado, vaso-comunicante, sujo de vida e portanto atravessado pela práxis. As fronteiras abertas, porosas, fazem com que O ser e o Nada converse com A Náusea e A idade da
razão. E a formidável presença política, não me refiro apenas ao engajamento, mas a um profundo entendimento existencial do quadro em que a dimensão da polis se posiciona, como por exemplo em As moscas, ao aproximar o teatro moderno com o antigo, as demandas latentes, a derrota e a coragem de naufragar. Tendo ou não um espectador. Sartre permanece como a figura primaz de intelectual que atravessa o século XX e que parece momentaneamente condenado à morte no vazio da modernidade líquida, na geleia espessa do tempo que nos atravessa.

AMH | Deleuze, em diversos momentos, afirma que a Éthica de Spinoza deveria ser lida por todos, independente do grau de escolaridade. Concorda com tal afirmação?

ML | Vivemos, como alguém disse, o século de Deleuze, cuja obra não cessa de surpreender, nas obras mais famosas, em cartas e artigos menos visitados. Ele representa uma nova potência de reconfiguração de algumas tradições do Ocidente profundo. Deleuze escreveu seu famoso Espinoza e os signos, para citar o mais conhecido, onde emerge uma perfeita continuidade entre dois tempos, em aparência, quase irredutíveis. No que me diz respeito, como leitor de Espinoza, Farias Brito e Nise da Silveira, a resposta que dou é “contaminada”, dentro da família que acabo de citar. Há no Brasil uma densa comunidade, embora dispersa, ligada ao filósofo. Soube mesmo que a Ética foi um pequeno best-seller, numa edição bilíngue, publicada em Minas Gerais. Acompanhei com afeto e admiração as sete cartas de Nise da Silveira a Espinoza, a última delas versando sobre a morte. Uma grande síntese feita em língua portuguesa é de longe a de Farias Brito, em A finalidade do mundo. Só me resta concordar com Deleuze.

AMH | Impressiona demais, em suas obras, a diversidade e pluralidade de temas abordados. Percebe-se, com muita clareza, a familiaridade com que conduz os mais diversos conceitos de Matemática, Química, Física, Astronomia, História, Filosofia e outros, desde suas primeiras publicações. Poderia nos explicar como se dá tal diálogo?

ML | Trata-se de uma busca radial. A epistemologia da ciência me atrai vivamente. De um lado uma pulsão renascentista, ou goethiana, que paira no Ocidente: uma totalidade que não se deve perder, não totalizante, nem totalitária, paisagem que não se limita a fragmentos isolados, como as mônadas de Leibniz, mas à espuma de que fala Sloterdijk. Por outro lado, a ideia de Wittgenstein, segundo a qual o fragmento deve trazer impresso a marca do todo. E poderia continuar assim, entre Novalis e os pré-socráticos, Paracelso e os fractais. Esse todo é, na verdade, um espaço de busca, expressão de movimento, realidade que se espraia no conteúdo crescente, como queria Karl Popper, instigante sobre desafios e correlatos da física dos quanta. A astronomia veio com o primeiro telescópio, aos doze anos, e que continua hoje, sob o céu de Itacoatiara, sob o reinado de outro telescópio de ótima abertura, que me acerca de algumas formas celestes. Uma espécie de epifania é olhar o céu noturno, de Kant e Pascal, Safo e Bilac. O céu que cobre nossa vida e como um sonho se dilata, sob a qual se acionam os maquinismos da História, na complexa tessitura temporal. Estudo a sua epistemologia com intensidade, esfinge, pedra e hieróglifo. Por outro lado, a matemática acabou por se tornar um resgate algo intempestivo, que folheio nos meus cadernos de cálculo, entre a logística de Russel e o indecidível de Gödel. Assinalo, em poucas palavras, que o desenho de um saber radial deita raízes no estudo da poética em que cada saber se constitui. Eis o princípio da inteligibilidade, horizontal, que tanto me fascina, a ponte possível, um centro de atração contra uma natural força de ordem centrípeta.     

AMH | A música, também, é uma linguagem muito presente em suas obras. Quer de forma mais explícita, quer de forma subjacente. Ela é muito especial para você? Poderia nos falar um pouco a respeito do assunto?

ML | Todas as noites, antes do intenso combate da insônia, estudo as partituras, o tempo das notas e os silêncios, escrevo depois como acho que poderia tocar, com as mãos ao piano e me distraio com pequenas variações e outros pequenos crimes, praticados em casa, de lesa-obra, variando tempo, ritmo tonalidade. Igual ao menino que adorava abrir os brinquedos para ver como funcionavam, que foi o que fiz e de modo visceral. Ouço diversas mídias, e não desprezo um detalhe sobre a execução. Pensar a música e realizá-la é algo que se tornou primordial para mim. Estudei piano e canto, do ponto de vista canônico, tradicional, em paralelo com a música de vanguarda, a música étnica e a MPB. Posso passar alguns dias sem escrever, mas nem um só dia sem música. Vou ao teatro e às salas de concerto quando não há indício de naufrágio. A poesia que me escreve repousa decerto sobre uma base melódica, embora, atualmente, pressinta outra dinâmica, um desejo interno e mal esboçado, flutuante, fantasmal, de trazer à tona mais dissonâncias, novos ruídos, ao arrepio de certas opções que tomei nos últimos anos. Talvez não descarte reflexões acerca da escrita musical. Sou muitas vezes capturado pela melopeia, como um fio de Ariadne, quando meu labirinto, ou, laborintus, segundo alguém disse, torna-se mais incerto, escuro e tormentoso. A música é o fio de ouro, uma janela aberta, luminosa e alta, que me faz prosseguir às cegas. Tenho um piano dentro de mim e não sei até que ponto esqueceram de afiná-lo. 

AMH | Transita, como poucos neste país, tranquilamente, pela Torre de Babel. Consegue trazer para o Brasil contribuições raras e inestimáveis de outras literaturas. Vê-se pelas suas traduções a seriedade com que trata o assunto. Poderia explicar como isso ocorre?

ML | Menino bilíngue, desde o seio materno, eu me pergunto como ressoavam as melodias de minha mãe, lá onde eu me alojava, em suas vísceras, ou como repercutem, ainda hoje, seu canto quando me acalentava de noite, no berço. Duas línguas e duas pátrias me definem, duas melodias, duas fronteiras porosas, que não sei onde começam e tanto menos onde terminam, sem passaporte, sem salvo-condutos. Desse ponto de partida, habitado por uma solução anfíbia e sobreposta, que são as línguas que me habitam, não resisti ao encanto de outras, como Ulisses diante do canto das sereias. Pelo que sei, meu avô salvou-se do campo de
Mautthausen, na Áustria, porque sabia alemão. Também o neto, que não o conheceu, em outras e recentes latitudes, sobreviveu pelo simples fato de pronunciar a língua de um lugar. Eu me comovi nos campos palestinos, Sabra e Chatila, em árabe, assim como numa prisão do Rio, quando encontrei um romeno e em sua língua materna conversamos. Sim, de fato, aprendi muitas línguas, talvez excessivamente, menos para falar do que para chegar ao outro, decifrá-lo quanto possível, adivinhar como organiza o mundo mediante a palavra, na língua original da poesia, das gentes vivas e mortas, imagens de um passado perdido e de um futuro incerto. Para ouvir o grito dos povos, dos refugiados e migrantes da Mãe-Terra, ferida pelo Princípio esperança de Ernst Bloch. Essa urgência de ler o mundo levou-me ao exercício da tradução dos autores que me inspiram e de que me torno amigo, ideal, pela distância no tempo e no espaço. Uma página de Aristóteles vive, com a delicadeza e precisão do grego antigo, assim como a língua de Farias Brito quando fala de Spinoza abrange novas faces, no latim de Tomás de Aquino claro e preciso, no rigoroso alemão da Razão pura de Kant. Vivemos todos à sombra de uma Torre, que se não chega ao céu, cria um horizonte especular capaz de refletir em cheio o rosto da alteridade.

AMH | Nos seus ensaios, em especial, observa-se um entusiasmo raro, nos dias de hoje, por tudo que o cerca. Poderia nos falar um pouco sobre isso?

ML | O ensaio entendido como Unamuno, o ensaio como ensaio, “cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte alguma”, como dizem os místicos, e, portanto, suspenso e incompleto como inscrição. O ensaio é um laboratório que ensaia, justamente, e assume todos os riscos, sem medo de enveredar por um caminho cego ou de andar numa rua de mão única, para citar Benjamin. Considero o ensaio como um sonho de olhos abertos, entre rigor e aventura, como quem sonda e perscruta, no verso e no anverso, um tapete persa, e não se dá por satisfeito com o ponto final, porque saber que não cessam os motores de busca. No ensaio pode-se tudo, ou quase tudo, desde que se constitua uma linha discursiva, ao mesmo tempo reta e sinuosa, que se oriente na direção de um não saber, no coração do entusiasmo e do princípio da incerteza. Penso em Octavio Paz e Eduardo Lourenço, em Claudio Magrisou George Steiner. Trata-se de um gênero socrático, prescrito pela farmácia ambígua de Platão, de quem somos herdeiros e órfãos de um sistema incerto de significação.

AMH | Em suas obras há alguns elementos recorrentes. Um que chama a atenção é o azul. O que significa o azul? Por que o azul é tão presente em suas obras?

ML | É algo que descubro agora, obrigado. Um leitmotiv que se antecipa ao personagem não configurado ainda, ou que do ponto de vista pirandelliano me pressiona para deixá-lo viver? Meu saudoso amigo Israel Pedrosa, que dissertou sobre a cor inexistente, se vivo fosse, quem sabe não me ajudasse agora. Será o azul dramático e perfeito do sertão, sem chuva para dessedentar o homem e a terra? O azul do Atlântico que feriu os olhos de meus pais quando chegaram ao Brasil, impresso para sempre em suas retinas? Talvez o azul do céu do Cairo, em pleno Ramadã, com Nagib Mahfuz, ou talvez o azul de Tóquio, pálido e sutil, quando conheci o poeta Tanikawa e o bule do chá formava uma espiral ardente? O azul que cobre a colina de Santo Stefano, em Lucca, onde ouvi Arturo Paoli falar dos pobres e miseráveis? Talvez o azul de Lima, quando abracei, comovido, o padre Gutierrez, que formulou, com Leonardo Boff, a teologia da libertação? O azul da praia de Copacabana, onde nasci, e sobre cuja areia ensaiei os primeiros passos? Acho que nenhum deles em particular, mas todo o azul, dentro do qual me perco e para o qual me adianto, a cada dia, rumo ao sublime esquecimento. 

AMH | Suas obras têm sido traduzidas para o italiano, árabe, romeno e muitas outras línguas. Tal fato é muito relevante para a literatura brasileira e, claro, para o Brasil. Poderia falar um pouco sobre isso?

ML | A literatura brasileira dispõe de crescente receptividade no mundo com leitores apaixonados por nossos autores, Clarice, Guimarães, Drummond e Machado, para não mencionar outros que há mais tempo circulam ou atingem larga tiragem. O sistema literário brasileiro possui muitos pontos nucleares. Não são poucos, no entanto, os desafios, no campo jornalístico e editorial. Quanto à poesia torna-se um pouco menos árduo seu processo de circulação, ao redor de um conjunto de poemas. Permanece contudo o desafio da traduzir e cooperar quando o poeta e o tradutor navegam nas duas águas, para chegar a uma terceira, que é a
tradução realizada e que se distancia (ou se aproxima) do texto de partida. O tradutor não pode perder de vista que a sua missão consiste, direta ou indiretamente, em promover a cultura da paz, de reportar o princípio dialógico para dentro do próprio diálogo como queria, de forma reiterada, Martin Buber. As relações bilaterais devem ser pautadas pela cultura da paz e, nessa via, a tradução faz as vezes de um autêntico embaixador.  

AMH | Admirável como a solidão, o amor e a amizade são temáticas presentes em suas obras. Nas mais variadas dimensões. Poderia comentar um pouco sobre o assunto?

ML | Não havia pensado nisso, eis uma chave de entrada, uma porta de saída, um algoritmo. Amor. Solidão. Amizade. Talvez um Eu-Tu, disposto a reunir um conjunto de fatos dispersos, uma temperatura média entre os polos, com alguma variável climática. Talvez pudesse enfeixar tudo no mistério do rosto e da hospitalidade. Como traduzir meus assombros, como analisar os textos que já não me pertencem, publicados, em outras mãos, e que se afastam de mim com a velocidade da luz? Poderei reconhecer nos fragmentos textuais o rosto atual que de algum modo me traduz, de mim para mim, e me oferece a ilusão de que a imagem refletida represente aquela original? Estou seguro apenas no tocante à solidão, quando me hospedo ou me agarro às minhas forças, quando me eclipso e me guardo com zelo feroz. Um traço biográfico ou uma inflexão textual? Ambas as coisas? Acho que se trata do tema do rosto, como pensa Lévinas, o mistério do rosto, a inefável beleza de um semblante, e insisto uma vez mais no Eu-Tu. Quem sabe tudo não se resolva numa constelação nebulosa, onde brilhe, solitária, como pensa Rosenzweig, a altiva Estrela da redenção?    

AMH | Desde que o Nobel foi instituído pouquíssimas mulheres conseguiram conquistá-lo. Inclusive, na literatura. Quais seriam, sob sua ótica, as principais razões?

ML | O número é injusto e desproporcional e não corresponde a um quantum de realidade. Mas segue assim em tantas coordenadas sociais, no mercado de trabalho, no recesso das casas. Mas a mudança já se tornou incontornável. A mulher também opera no diapasão para consolidar a suspirada cultura da paz em nossos dias. Será outra no futuro a porcentagem.

[Julho de 2017]


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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