Numa casa cor de rosa de uma alameda nos
arredores de Curitiba, senta-se um homem de 75 anos de idade, vestindo calças azul
berrante, óculos de sol e tênis de skate. Ele afaga a barba prateada ao estilo do
ZZ-Top. Ao seu redor, centenas de brinquedos de pano empilhados sobre as prateleiras:
pássaros, ursos e bebês em uma tempestade de vermelhos, verdes e amarelos. "Tudo
aqui é um instrumento,” ele diz com um sorriso rasgado, apontando para o seu zoológico
de pelúcia. "Os instrumentos estão por toda parte!"
Bem vindos à casa de Hermeto Pascoal, um
dos compositores e músicos mais excêntricos, prolíficos e amados do Brasil, alguém
que Miles Davis certa vez descreveu como “um dos músicos mais importantes do planeta."
Em sua oitava década, Pascoal – que fará
uma rara apresentação no Barbican, em Londres, em 20 de novembro, acompanhado por
uma big band de estrelas britânicas –
diz que não tem planos de se aposentar. "Muitos artistas da minha idade estão
parando – eu acho que estou só começando," diz com seu forte sotaque do Nordeste.
"Sempre tenho mais coisas na cabeça. Não ia ser chato se um monte de velhos
da minha geração, morresse ou dormisse no palco? Nossa maior preocupação é inovar."
A palavra inovação é há muito sinônimo
de Pascoal, cujo talento para extrair música de praticamente qualquer coisa lhe
rendeu apelidos como “O Mago”.
Pascoal é um virtuose do piano, do acordeom
e da flauta, e há muito prefere meios mais anticonvencionais de produzir sons e
canções: guardanapos, tapetes, cadeiras, copos de cerveja, membros do corpo, utensílios
de cozinha e até animais. Um álbum seu de 1977 é famoso pela participação de um
porco.
"Não gosto de usar instrumentos ou
sons prontos. Prefiro transformar coisas em sons e instrumentos,” explica. “Ganho
muitos instrumentos de admiradores, mas raramente os uso porque gosto de pegar alguma
bugiganga e começar a tocar, transformando em um instrumento." Faz uma pausa
e acrescenta: “escrevo partituras para esses bonecos!"
Chamar Pascoal de multi-instrumentista
seria um erro. Quando pergunto quantos instrumentos toca, ele gagueja por alguns
instantes, num raro episódio de falta de palavras. "Olha, não tem, não tem...
a quantidade de instrumento é infinita por causa de mim – onde quer que eu esteja,
vai ter um instrumento. Uma cadeira é um instrumento. Uma mesa é um instrumento.
São tantos instrumentos."
"Os músicos, para mim, são como pintores.
Se o cara só toca um instrumento, tem pelo menos que variar o estilo com que toca
suas canções. Não tocar um só instrumento do mesmo jeito, como aquelas pessoas todas
que tocam música clássica e só música clássica, ou que tocam jazz e só jazz. Isso
é muito aborrecido."
Definir o estilo musical de Pascoal também
é difícil. Ele rejeita os nomes jazz, MPB, bossa nova, chorinho ou forró, todos elementos de seus shows e gravações.
"Não toco um só estilo. Toco quase
todos,” gaba-se, durante uma entrevista de duas horas na casa onde vive com sua
companheira, a cantora Aline Morena, de 32 anos. Ele chama o que faz de música universal. "Ela vem do universo e é por isso
que posso chamá-la de música universal," explica. "É uma energia que nunca
para. Ela paira sobre nós, onde quer que estejamos.”
"Não é um modismo. Não gosto de rótulos.
Mas a única coisa que posso aceitar como rótulo é a música universal. O Brasil é
o país com o maior número de povos do mundo. Então o mundo é o Brasil. O Brasil
tem o mundo todo aqui. Então por que não podemos ser a casa da música do mundo?"
Hermeto Pascoal passou boa parte das últimas
quatro décadas em turnês internacionais, mas vem de origens humildes no sertão nordestino.
Nasceu em Olho d'Agua, um pequeno povoado rural perto da cidade de Lagoa da Canoa,
no estado de Alagoas. "Nasci em 22 de junho de 1936. Estava chovendo; era muita
chuva."
Enquanto os pais de Pascoal trabalhavam
na lavoura, ele e seu irmão mais velho aprendiam música por conta própria. Pascoal,
sendo albino, estava sujeito a um incentivo adicional para ficar dentro de casa
e praticar a flauta e o acordeom, protegido do sol abrasador. Aos oito e nove anos,
os dois já animavam bailes locais.
Em 1950, quando Pascoal tinha 14 anos,
a família se mudou para o Recife, capital de Pernambuco, e ali ele continuou a desenvolver
suas habilidades musicais, apresentando-se em programas de rádio. Mais tarde foi
para o Sul, primeiro para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo, onde, durante
os anos 1960, formou o breve porém influente Sambrasa Trio com o baterista e percussionista
Airto Moreira.
Foi Moreira quem levou Pascoal em sua primeira
excursão internacional – uma viagem aos EUA que culminou em um encontro com Miles
Davis, que a partir daí gravou duas faixas suas em seu álbum Live Evil, de 1971.
Foi o começo de uma carreira internacional que fez com que Pascoal se estabelecesse
como um dos compositores mais produtivos que há.
Por um ano, em 1996, ele se propôs a meta
de compor uma faixa por dia – todas registradas num livro chamado Calendário do
Som. Digo a Pascoal que estou impressionado. “Rapaz, eu compus cinco vezes mais
do que isso depois que o livro saiu,” ele responde. “Componho o tempo todo, o tempo
todo. Ontem mesmo compus duas canções!"
"Quando estou em hotéis, na estrada,
às vezes nem levo meus cadernos para me dar um descanso. Mas não adianta. Fico doido
para compor – do mesmo jeito que quem usa drogas ou fica sem cigarro."
"Esta aqui, escrevi no avião,” prossegue,
agarrando uma bandeja de refeições de um voo recente da Lufthansa. Está coberta
de semicolcheias e claves de sol. “É a tampa da bandeja. Mas é tão maravilhosa e
importante quanto qualquer outra faixa que eu tenha composto.”
"As canções são minhas amigas. São
crianças. Minhas parceiras. Minhas amigas. Entende? São personagens. Quando uma
canção me vem à cabeça, é como ase alguém me visitasse. Começo a conversar, bater
papo, começo a escrever e nada me faz parar."
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O show de Pascoal em Londres será uma reunião com uma big band especialmente formada com que ele tocou pela primeira vez em 1994 no Queen Elizabeth Hall. Na época, John Fordham descreveu a apresentação como “um dos concertos de jazz mais eletrizantes vistos no South Bank em muitos anos."
"O repertório é enorme. Sempre levamos
muitas canções," diz Pascoal sobre o show. "Eu não faço uma seleção –
tudo pode mudar durante o show... Temos que ter muitas canções à mão porque quando
a gente sente alguma coisa, já pode tocar."
Existe o menos uma certeza sobre o show
de domingo: Pascoal será acompanhado por dois outros pesos-pesados da música brasileira,
o gaitista Gabriel Grossi e o bandolinista Hamilton de Holanda. Dois dos mais emocionantes
expoentes de uma nova geração de músicos brasileiros que Pascoal chama de “o bando
novo ".
Bichos de pelúcia também podem aparecer
no palco do Barbican. "Vou levar alguns bonecos para surpreender os músicos
da big band. Vai chegar uma hora em que
vou distribuí-los entre os músicos e eles não vão entender nada. Vão só dizer: ‘Ah,
é coisa do Hermeto’!”
De volta ao Brasil, o vivaz septuagenário
tem planos para um novo CD – gravado inteiramente com sons produzidos pelo próprio
corpo – e quer criar uma escola de música chamada Templo do Som.
De onde vem tanta energia?
"As pessoas me perguntam, 'Hermeto,
você está drogado?', e respondo, ‘Não a droga já sou eu’!”
ACAMPAMENTO MUSICAL
TOM PHILLIPS (Estados Unidos, 1969). Novelista, compositor e músico. Artigo traduzido
por Allan Vidigal.
*****
Organização a
cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado
| Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo
Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos
especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO
SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA,
I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL
BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO
SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA,
II
9 ACAMPAMENTO
MUSICAL
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins
e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica,
sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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