quarta-feira, 20 de setembro de 2017

TOM PHILLIPS | Hermeto Pascoal: O mundo todo nas mãos


Numa casa cor de rosa de uma alameda nos arredores de Curitiba, senta-se um homem de 75 anos de idade, vestindo calças azul berrante, óculos de sol e tênis de skate. Ele afaga a barba prateada ao estilo do ZZ-Top. Ao seu redor, centenas de brinquedos de pano empilhados sobre as prateleiras: pássaros, ursos e bebês em uma tempestade de vermelhos, verdes e amarelos. "Tudo aqui é um instrumento,” ele diz com um sorriso rasgado, apontando para o seu zoológico de pelúcia. "Os instrumentos estão por toda parte!"
Bem vindos à casa de Hermeto Pascoal, um dos compositores e músicos mais excêntricos, prolíficos e amados do Brasil, alguém que Miles Davis certa vez descreveu como “um dos músicos mais importantes do planeta."
Em sua oitava década, Pascoal – que fará uma rara apresentação no Barbican, em Londres, em 20 de novembro, acompanhado por uma big band de estrelas britânicas – diz que não tem planos de se aposentar. "Muitos artistas da minha idade estão parando – eu acho que estou só começando," diz com seu forte sotaque do Nordeste. "Sempre tenho mais coisas na cabeça. Não ia ser chato se um monte de velhos da minha geração, morresse ou dormisse no palco? Nossa maior preocupação é inovar."
A palavra inovação é há muito sinônimo de Pascoal, cujo talento para extrair música de praticamente qualquer coisa lhe rendeu apelidos como “O Mago”.
Pascoal é um virtuose do piano, do acordeom e da flauta, e há muito prefere meios mais anticonvencionais de produzir sons e canções: guardanapos, tapetes, cadeiras, copos de cerveja, membros do corpo, utensílios de cozinha e até animais. Um álbum seu de 1977 é famoso pela participação de um porco.
"Não gosto de usar instrumentos ou sons prontos. Prefiro transformar coisas em sons e instrumentos,” explica. “Ganho muitos instrumentos de admiradores, mas raramente os uso porque gosto de pegar alguma bugiganga e começar a tocar, transformando em um instrumento." Faz uma pausa e acrescenta: “escrevo partituras para esses bonecos!"
Chamar Pascoal de multi-instrumentista seria um erro. Quando pergunto quantos instrumentos toca, ele gagueja por alguns instantes, num raro episódio de falta de palavras. "Olha, não tem, não tem... a quantidade de instrumento é infinita por causa de mim – onde quer que eu esteja, vai ter um instrumento. Uma cadeira é um instrumento. Uma mesa é um instrumento. São tantos instrumentos."
"Os músicos, para mim, são como pintores. Se o cara só toca um instrumento, tem pelo menos que variar o estilo com que toca suas canções. Não tocar um só instrumento do mesmo jeito, como aquelas pessoas todas que tocam música clássica e só música clássica, ou que tocam jazz e só jazz. Isso é muito aborrecido."
Definir o estilo musical de Pascoal também é difícil. Ele rejeita os nomes jazz, MPB, bossa nova, chorinho  ou forró, todos elementos de seus shows e gravações.
"Não toco um só estilo. Toco quase todos,” gaba-se, durante uma entrevista de duas horas na casa onde vive com sua companheira, a cantora Aline Morena, de 32 anos. Ele chama o que faz de música universal. "Ela vem do universo e é por isso que posso chamá-la de música universal," explica. "É uma energia que nunca para. Ela paira sobre nós, onde quer que estejamos.”
"Não é um modismo. Não gosto de rótulos. Mas a única coisa que posso aceitar como rótulo é a música universal. O Brasil é o país com o maior número de povos do mundo. Então o mundo é o Brasil. O Brasil tem o mundo todo aqui. Então por que não podemos ser a casa da música do mundo?"
Hermeto Pascoal passou boa parte das últimas quatro décadas em turnês internacionais, mas vem de origens humildes no sertão nordestino. Nasceu em Olho d'Agua, um pequeno povoado rural perto da cidade de Lagoa da Canoa, no estado de Alagoas. "Nasci em 22 de junho de 1936. Estava chovendo; era muita chuva."
Enquanto os pais de Pascoal trabalhavam na lavoura, ele e seu irmão mais velho aprendiam música por conta própria. Pascoal, sendo albino, estava sujeito a um incentivo adicional para ficar dentro de casa e praticar a flauta e o acordeom, protegido do sol abrasador. Aos oito e nove anos, os dois já animavam bailes locais.
Em 1950, quando Pascoal tinha 14 anos, a família se mudou para o Recife, capital de Pernambuco, e ali ele continuou a desenvolver suas habilidades musicais, apresentando-se em programas de rádio. Mais tarde foi para o Sul, primeiro para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo, onde, durante os anos 1960, formou o breve porém influente Sambrasa Trio com o baterista e percussionista Airto Moreira.
Foi Moreira quem levou Pascoal em sua primeira excursão internacional – uma viagem aos EUA que culminou em um encontro com Miles Davis, que a partir daí gravou duas faixas suas em seu álbum Live Evil, de 1971. Foi o começo de uma carreira internacional que fez com que Pascoal se estabelecesse como um dos compositores mais produtivos que há.
Por um ano, em 1996, ele se propôs a meta de compor uma faixa por dia – todas registradas num livro chamado Calendário do Som. Digo a Pascoal que estou impressionado. “Rapaz, eu compus cinco vezes mais do que isso depois que o livro saiu,” ele responde. “Componho o tempo todo, o tempo todo. Ontem mesmo compus duas canções!"
"Quando estou em hotéis, na estrada, às vezes nem levo meus cadernos para me dar um descanso. Mas não adianta. Fico doido para compor – do mesmo jeito que quem usa drogas ou fica sem cigarro."
"Esta aqui, escrevi no avião,” prossegue, agarrando uma bandeja de refeições de um voo recente da Lufthansa. Está coberta de semicolcheias e claves de sol. “É a tampa da bandeja. Mas é tão maravilhosa e importante quanto qualquer outra faixa que eu tenha composto.”
"As canções são minhas amigas. São crianças. Minhas parceiras. Minhas amigas. Entende? São personagens. Quando uma canção me vem à cabeça, é como ase alguém me visitasse. Começo a conversar, bater papo, começo a escrever e nada me faz parar."





 O show de Pascoal em Londres será uma reunião com uma big band especialmente formada com que ele tocou pela primeira vez em 1994 no Queen Elizabeth Hall. Na época, John Fordham descreveu a apresentação como “um dos concertos de jazz mais eletrizantes vistos no South Bank em muitos anos."
"O repertório é enorme. Sempre levamos muitas canções," diz Pascoal sobre o show. "Eu não faço uma seleção – tudo pode mudar durante o show... Temos que ter muitas canções à mão porque quando a gente sente alguma coisa, já pode tocar."
Existe o menos uma certeza sobre o show de domingo: Pascoal será acompanhado por dois outros pesos-pesados da música brasileira, o gaitista Gabriel Grossi e o bandolinista Hamilton de Holanda. Dois dos mais emocionantes expoentes de uma nova geração de músicos brasileiros que Pascoal chama de “o bando novo ".
Bichos de pelúcia também podem aparecer no palco do Barbican. "Vou levar alguns bonecos para surpreender os músicos da big band. Vai chegar uma hora em que vou distribuí-los entre os músicos e eles não vão entender nada. Vão só dizer: ‘Ah, é coisa do Hermeto’!”
De volta ao Brasil, o vivaz septuagenário tem planos para um novo CD – gravado inteiramente com sons produzidos pelo próprio corpo – e quer criar uma escola de música chamada Templo do Som.
De onde vem tanta energia?
"As pessoas me perguntam, 'Hermeto, você está drogado?', e respondo, ‘Não a droga já sou eu’!”


ACAMPAMENTO MUSICAL


*****

TOM PHILLIPS (Estados Unidos, 1969). Novelista, compositor e músico. Artigo traduzido por Allan Vidigal.

*****

Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

Visite a nossa loja






Nenhum comentário:

Postar um comentário