O poeta, tradutor e editor Márcio Simões nasceu em Caicó
(RN), em 1979. É o editor assistente da Agulha Revista de Cultura, além de haver
criado a Sol Negro Edições, dedicada à feitura de livros artesanais e que por todo
este ano confirma o valor de seu projeto editorial com a publicação de livros de
Yvan Goll, Aldo Pellegrini, Vicente Huidobro, Hans Arp, dentre outros. Simões mantém
inédita uma antologia que organizou e traduziu do poeta beat Gregory Corso. Publicou
O Pastoreio do Boi (XII poemas sobre uma parábola Zen, 2008) e escreveu Os Dias
de Pólen (poemas, 2001-2009), inédito. O diálogo a seguir é uma entrada bastante
sugestiva em seu mundo intelectual, destacadamente no que diz respeito a seu valoroso
empenho editorial.
FM | De onde vem
essa paixão transbordante pela edição de autores fora de mercado? Bem entendido,
aqui o “fora de mercado” possui certa ambiguidade, segundo penso, pois de algum
modo aponta na direção das falhas desse mercado. Qual a razão de ser da Sol Negro
Edições?
MS | Vem da paixão
pelos livros, por tudo que acredito que representam. De um modo ou de outro o “fora
de mercado” foi o que sempre me interessou. O problema com o mercado, sem esquecer
sua meia-irmã siamesa, a mídia de massa, é que atua em função da padronização dos
gostos e das experiências, de modo que tudo aquilo que está “fora do padrão” não
interessa e/ou é estigmatizado. Nesse sentido, uma das razões de ser da Sol Negro
é justamente editar títulos que não interessam ao “grande público”, mas que possam
interessar a um “pequeno público” representativo para uma editora que trabalha com
pequenas tiragens, dando vazão a uma literatura – e um leitor – mais exigente e
menos venal.
FM | Toda pequena
empresa almeja uma expansão de sua área de atuação. No caso de uma editora de livros
artesanais, bem sabemos que a expansão será sempre de títulos, porém nunca de tiragem.
É uma espécie de contravenção mercadológica. Evidente que há um amplo horizonte
que permite a coexistência de inúmeros princípios editoriais. Em um país altamente
deficitário no plano educacional, como o Brasil, o grande mercado atua contra ou
em favor dessas defasagens estruturais?
MS | O panorama
que apontas é amplo, de modo que arrisco ser leviano com opiniões categóricas. Mas,
de maneira geral, o interesse do mercado – aí entrando as assim chamadas grandes
editoras – é mesmo o lucro. Assim que se há uma demanda de leitura de baixa qualidade
essas editoras vão atender essa demanda, sem cogitar se há uma deficiência educacional
por trás disso. Creio que o déficit educacional flagrante do país atende a interesses
outros – políticos, por exemplo – que não o das editoras, e que se houvesse uma
demanda maior por literatura de qualidade ela também seria atendida pelo mercado.
Gosto do que apontas como “um amplo horizonte que permite a coexistência de inúmeros
princípios editoriais”. Penso que há espaço – e demanda – para projetos editoriais
os mais variados, desde best-sellers e livros de bolso, edições de luxo ou artesanais,
autores de amplo ou pequeno público. Sem dúvida que a valorização da leitura (bem
como a democratização do seu acesso) anda a par da necessidade de uma educação de
qualidade. E claro que as editoras poderiam desempenhar um papel fundamental nisso,
mas para que algo desse tipo ocorresse para além das iniciativas individuais, sem
dúvida louváveis (como as edições a R$ 5,00 da L&PM), precisaria haver um mínimo
de parceria e vontade do poder público, o que não creio que seja o caso. Por outro
lado, editoras que atuam unicamente em causa própria, utilizando recursos de mídia
e publicidade para promover autores medíocres somente porque “vendem” ou são nomes
que de uma maneira ou de outra têm ressonância nos meios de comunicação, agem de
maneira no mínimo irresponsável, sem nenhum compromisso com o meio social no qual
estão inseridas, atuando, desse modo, claramente em favor dessas “defasagens estruturais”
que mencionas.
FM | Ao lado da
Sol Negro Edições também atuas como coeditor da Agulha Revista de Cultura, projeto já existente desde 1999, que tem
uma trajetória ambiciosa de tratar dos vícios de limitação de pautas e visões de
mundo de outros periódicos dedicados à cultura e à criação artística. De que forma
se funde essa tua dupla atividade editorial?
MS | Tudo se funde
em torno do trabalho do poeta. Esse é o ponto de partida e não poderia responder
de outra maneira. Todo o conjunto de conhecimentos e habilidades para exercer as
atividades editoriais que venho desempenhando surgiu dessa atividade fundamental,
essa mania que nos leva a criar poemas, e tudo o que isso implica em termos de demanda
existencial, cultural, humana etc. Fui leitor da Agulha Revista de Cultura desde
o seu princípio, coincidindo com o início da popularização do acesso à internet
por aqui. A revista, justamente pelo pioneirismo e amplitude dos temas – abrindo
o leque de uma literatura ainda centrada quase que exclusivamente em certo formalismo
e alguns nomes consagrados – teve papel importante na minha formação e acredito
que também na de parte dos autores e interessados em literatura mais ou menos da
minha idade, de modo que estava familiarizado com a revista e sua linha editorial
quando surgiu a oportunidade de participar na sua editoria.
FM | E quem imprecisamente
é o poeta que torna possível a existência da Sol Negro Edições?
MS | A pergunta
traz em si uma outra questão: a partir de que perspectiva caberia uma (in)definição?
Se o ambiente é o literário, este poeta deve ser buscado em seus poemas e nada que
eu venha a dizer aqui poderá ajudar. Por outro lado, não sou menos poeta ao editar
livros ou varrer meu quarto, mas ainda assim me sinto incapaz de dizer algo que
ajude na caracterização do personagem sem ser tendencioso (risos).
FM | Um país curioso
este nosso: com uma das maiores riquezas da terra em termos de formação mestiça
de uma sociedade, no entanto o clero cimentou as ideias do burgo de tal modo que
a cobrança periódica da hipoteca tem se dado na forma de uma hipocrisia que deforma
ou paralisa o ideário popular. O mais curioso é como este cenário se tornou a regra
de uma cultura que rejeita toda forma de autocrítica. O que significa ser poeta
em um ambiente assim?
MS | Naturalmente
que a maior parte do tempo este “ser poeta” não difere em nada do que ser qualquer
outra coisa. A busca de uma consciência crítica do tempo e do espaço, por exemplo,
é um princípio fundamental para qualquer atuação, em qualquer área. Me escapa exatamente
de que hipocrisia estejas tratando, colocado assim como está, de forma genérica,
embora esse mal perpasse as nossas relações de modo geral, e em especial a imagem
acrítica – e destorcida - que o país vem construindo de si mesmo, fruto de seu meio
cultural, e que inclui (ou mais propriamente exclui) seu elemento mais forte e vívido: a mestiçagem, principalmente em seus aspectos mágicos e não-domesticáveis. Nossa antropofagia ainda representa muito mais uma “mesclagem” da matriz europeia com elementos outros – como o estrangeiro que se enfeita com os adornos nativos para participar de suas festas – do que um mergulho enérgico no cerne de nossa mestiçagem constitutiva (e ainda inexplorada). Como criador, o que me interessa é escapar conceitualmente desta sociedade, especialmente de suas formas “naturalizadas” de pensar, suas “verdades absolutas” e presunções conceituais. Não me importa propriamente reformar o mundo, uma vez que não assumo responsabilidade por acordos e práticas que foram estabelecidas sem minha presença ou consentimento. Nossa sociedade é o que é porque os que estão no poder assim desejam, e os que não estão ou estão de acordo tacitamente (seja por medo ou interesse próprio), ou não discordam o suficiente. Merecemos cada uma das nossas mazelas. Sigo na perspectiva de uma rebelião, sempre individual, e não de uma revolução, que não tem dado sinais de viabilidade.
cultural, e que inclui (ou mais propriamente exclui) seu elemento mais forte e vívido: a mestiçagem, principalmente em seus aspectos mágicos e não-domesticáveis. Nossa antropofagia ainda representa muito mais uma “mesclagem” da matriz europeia com elementos outros – como o estrangeiro que se enfeita com os adornos nativos para participar de suas festas – do que um mergulho enérgico no cerne de nossa mestiçagem constitutiva (e ainda inexplorada). Como criador, o que me interessa é escapar conceitualmente desta sociedade, especialmente de suas formas “naturalizadas” de pensar, suas “verdades absolutas” e presunções conceituais. Não me importa propriamente reformar o mundo, uma vez que não assumo responsabilidade por acordos e práticas que foram estabelecidas sem minha presença ou consentimento. Nossa sociedade é o que é porque os que estão no poder assim desejam, e os que não estão ou estão de acordo tacitamente (seja por medo ou interesse próprio), ou não discordam o suficiente. Merecemos cada uma das nossas mazelas. Sigo na perspectiva de uma rebelião, sempre individual, e não de uma revolução, que não tem dado sinais de viabilidade.
FM | A hipocrisia
não te escapou em nada, considerando que a sintetizaste brilhantemente ao final
de tua resposta. É terrível quando governo e sociedade igualam-se em seus piores
aspectos. E parece que estamos vivendo este momento. A tamanha falácia em torno
da educação, tema que já é uma fístula irremediável. E a vulgarização espetacular
de todos os valores. Voltemos aos livros, ou melhor, à Sol Negro. A editora tem
um plano ousado de apresentação ao leitor brasileiro de obras completamente fora
de ambiente editorial. Desde já estão anunciados para este final de ano livros de
Yvan Goll, Pablo de Rokha e um encontro entre Vicente Huidobro e Hans Arp. Qualquer
leitor minimamente atento, além do agradecimento, teria a curiosidade de saber o
motivo do mercado editorial brasileiro não se interessar por obras como estas.
MS | A impressão
que eu tenho é de que não há compradores (já não digo leitores) que justifiquem
um alto investimento e tiragens expressivas. A tendência das grandes editoras é
apostar no que tem retorno certo: daí o enxame de estrelas midiáticas e autores
consagrados à exaustão nas livrarias. É evidente que aí os critérios já se vão todos
por ladeira abaixo. Mas, como sugerido anteriormente, autores seletos, que, por
suas qualidades intrínsecas, possam interessar a um pequeno público mais exigente,
são viáveis de serem editados por pequenas ou microeditoras (como é o caso da Sol
Negro), que lidam com tiragens restritas e técnicas alternativas de fatura dos livros.
FM | Sei que estás
buscando parceria com as Edições Nephelibata, que dirige Camilo Prado em Santa Catarina.
Há algo além da coincidente manufatura dos livros que te atrai em tal aproximação
estratégica?
MS | A Sol Negro
surge, em verdade, do encontro com a Nephelibata (editora já com 10 anos de atuação)
e a figura singular do seu editor, Camilo Prado, que desenvolveu uma técnica de
produção de livros que podem ser feitos até por uma única pessoa. Isso com uma qualidade
que em nada deixa a dever aos livros feitos por meios mecânicos. Os livros da Sol
Negro são feitos segundo esse procedimento, que me foi generosamente ensinado por
ele. Editamos o Mattinata do pernambucano Fernando Monteiro em coedição, e estamos
preparando mais coisas para breve, como as Três Novelas Exemplares, de Vicente Huidobro
e Hans Arp. Além de uma afinidade natural, fruto de uma visão de mundo que coincide
em vários pontos, a parceria fortalece as duas editoras, que além de trabalharem
conjuntamente na preparação dos livros, contam com a divulgação e público uma da
outra.
FM | Márcio, o
que vemos, em relação ao livro, é uma estampa de identificação que remete à história
do livro. As discussões sobre novas perspectivas tecnológicas que podem eliminar
o objeto livro como o conhecemos são de uma tolice impressionante. O que eu queria
saber de ti diz respeito ao significado mágico do livro. O que um livro – não importa
a forma como o mercado o faça chegar em tuas mãos – verdadeiramente significa na
vida de uma pessoa?
MS | Um livro contém
bastante do que costumamos chamar de vida em suas páginas. Não enxergo qualquer
exílio da literatura em relação à vida. Ler e escrever são formas de viver – de
estar vivendo – como qualquer outra. Às vezes infinitamente mais interessantes,
criativas e envolventes que as nossas rotinas sociais. O que parece estar em jogo
é uma de nossas maiores tecnologias: a escrita, cujo uso tem assumido uma vertigem
impressionante em nossos dias (assim como a produção de imagens). Sem dúvida a leitura
por meios digitais vai se disseminar, mas isso nos torna diferentes em quê? Mesmo
considerando as maneiras pelas quais as tecnologias condicionam nossa percepção,
ainda é o mesmo bicho humano fazendo suas leituras, seja num tablet ou num livro
de papel. E o que determina isso é muito mais a subjetividade (individual e coletiva)
e a capacidade imaginativa (e de processamento de textos) do que o suporte em que
isso se dá. A partir daí tudo – e nada – são completamente possíveis.
FM | Esquecemos
algo?
MS | Não me parece.
Mas algo sempre fica para mais adiante, não? Muito obrigado.
Agulha Revista de Cultura
Número 111 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO
| FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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