quinta-feira, 30 de julho de 2020

AGULHA REVISTA DE CULTURA # 155 – Julho de 2020


• EDITORIAL – ENIGMAS DE LA PERMANENCIA

Isabel Ruiz
Este número de Agulha Revista de Cultura es un homenaje a la grande artista guatemalteca, Isabel Ruiz (1945-2019). En la edición # 24 (mayo de 2002) Isabel ya figuraba como nuestra artista invitada, además de dos textos críticos sobre su obra, firmados por Sagrario Castellanos y Lucrecia Méndez de Penedo. Dos importantes críticas de arte en su país, la primera destacando la originalidad e irreverencia de la obra plástica de la artista, y, al tratar específicamente de una de sus series, Historia sitiada, señala que Isabel trasplanta su lamento colectivo, casi histórico y al plasmarlo simboliza las lágrimas de su grito desgarrando el papel. Lo hiere, lo descarna; le da la imagen doliente de nuestra historia. Y luego aclara: En el proceso de significación de Historia Sitiada se yuxtaponen la visión dinámica de los fenómenos antagónicos de la sociedad y la visión individuada de la pintora; una visión de sí misma ante su historia existencial, su quehacer, su contexto. Su cotidianidad de mujer, esposa, madre, amante. Sin radicalismos ni tropiezos en sus matices, Isabel Ruiz tiene la capacidad de reenviarnos directamente a la realidad. Su realidad: el patio de su casa desde donde anhela su pedazo de cielo; la cruda realidad del grafitti como símbolo de una sociedad desintegrada, maltrecha y espuria; los cantos hambrientos del buhonero que compra papel, botella o ropa; el canto lúdico de sus hijos al llamarla mamá; y como corteza mayor el espectro de la muerte. En el otro artículo, Lucrecia acentúa la relevancia estética de la misma serie: En algunas de las obras que componen esta instalación, Ruiz practica el collage e incorpora retazos de periódicos, fragmentos de fotografías, pregones callejeros, grafitti (mayas y actuales), Etc. en cuadros donde la acuarela, sin perder del todo su transparencia, adquiere tonalidades insólitamente terrosas o muy encendidas. Quizás esto recuerde la textura de manos y cuerpos curtidos por el sol, el trabajo, el dolor, quizás los colores aludan a pasiones incisivas. También reelabora ciertas técnicas populares como el grabado de jícaras y el peinado de los cofres de Totonicapán, sin que su inserción en el conjunto plástico se vea postiza. Asimismo, elabora una especie de crítica oblicua a la pintura tradicional, desde su práctica misma, rasgando las superficies en una actitud agresiva que implica no hacer concesiones a la estaticidad estética. Aunque, también cabría considerar estas rasgaduras como análogas al desgarre social que ha sufrido
Isabel Ruiz
nuestro país
. En esta obra multifacética, Historia sitiada, de que se ocupa la artista desde 1992 hasta 1997 –montada en Venezuela, Honduras, Costa Rica, Dinamarca y Guatemala–, hay una dimensión metafísica muy entrañable y sus sombras y figuras saltan de distintos sitios: collages, instalaciones, objetos, tejidos, grabados, con una voracidad de significados –las interrelaciones entre lo sagrado y lo profano– que hablan de la perspectiva humana en la tierra. Este video muestra el montaje de la instalación:
www.youtube.com/watch?v=RRjAladH4I4. Ahora la recordamos y la tenemos una vez más como nuestra artista invitada, siempre con la complicidad de su compañero, el poeta Francisco Morales. Esta vez contamos con un ensayo sobre su obra firmado por el poeta y ensayista Javier Payeras.
Nuestra edición avanza con la presencia de otros nombres igualmente merecedores de destaques especiales, a comenzar por este inmenso poeta argentino muy poco recordado, Juan José Ceselli (1909-1982), cuya poesía completa estamos investigando las posibilidades de su edición. El novelista brasileño Uilcon Pereira (1946-1995) es otro caso memorable, cuya obra hoy se encuentra fuera de sus espacios vitales de lectura. Tres otros artistas son aquí evocados, el venezolano Nicolás Ferdinandov (1886-1925), el cubano Cundo Bermúdez (1914-2008) y el dominicano Iván Tovar (1942). En las letras recordamos, desde Guadalupe, Daniel Maximin (1947), la colombiana Clara Schoenborn (1957) y una más de las infinitas perspectivas que definen la escritura de Jorge Luis Borges (1899-1986). Por último, como una especie de concentración de la vitalidad editorial de nuestra revista, reproducimos en portugués el ensayo que fue escrito por Floriano Martins como prólogo de la poesía reunida de uno de los más importantes poetas brasileros, José Santiago Naud (1930-2020), quien murió hace poco. Así que nos reunimos todos en vuelta de la mesa Alberto Claudio Blasetti, Berta Lucía Estrada, Carlos M. Luis, Harold Alvarado Tenorio, Javier Payeras, Juan Calzadilla, Leonardo Froes Jr, Lilian Pestre de Almeida y Plinio Chahín– para celebrar la permanencia enigmática de la creación artística, más allá de todo el tiempo y sus obstáculos.

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José Santiago Naud
José Santiago Naud é talvez o poeta de melhor convívio com o espectro cósmico e mítico nos meandros de uma lírica brasileira. A sua poesia é intensamente religiosa e une o sagrado ao espírito humano, assimilando diferenças, polindo confluências, evocando os elementos visíveis e invisíveis, nostálgicos e visionários, díspares e consensuais, para uma festa de sentidos muito além da simplificação esquemática de nossa tradição, que se satisfaz, sob certos aspectos, em opor Drummond a Cabral, logo descartando o primeiro. Santiago Naud, ao contrário, bem sabe o poder da soma e também nisto nos dá uma grande lição. Sua poesia faz surgir entre nós todos os nomes da Musa, seus truques de linguagem, máscaras rituais e vestes íntimas do espírito. Nada lhe escapa em nossa memória de testemunhos poéticos. Recorre a todos os elementos a seu dispor, mergulhando e trazendo à tona figuras inquietas de sonhos e visões. Não como sinal de conquista, antes pautado pela generosidade, por um rigor expansivo.
Como ele próprio refere em um poema do livro Oficio humano (1966), Querer ter é avareza. Trata-se de uma poesia que elude os vícios da posse. Sua excelência está no convívio. Porém tal convivência se fortalece justamente ao mesclar ciclos, ao povoar o poema de silêncio e vozerio, ascetismo e sensualidade, suspeições e clarezas. Mesmo ao dizer de Jorge de Lima que provavelmente, com Carlos Drummond de Andrade, é o poeta brasileiro mais presente em minhas inquietações poéticas, mesmo aí, sabemos a força da abrangência, pela própria profundidade do ato poético dado à luz de nossa lírica por ambos os poetas. E tal menção cumpre ainda com o notável ofício de chamar a atenção para a importância da obra de Jorge de Lima, dentre as vozes mais fundamentais da poesia em língua portuguesa, porém não sem violenta injustiça quase de todo esquecido das novas gerações brasileiras.
Esta carência de influência orquestrada por um silêncio que une o relapso ao intencional é algo que também se verifica em relação à própria circulação da obra de Santiago Naud. Deficitária em grande parte pela ausência de distribuição fora de Brasília, cidade onde seus livros vêm sendo editados nos últimos 30 anos. Aspecto agravado pela condição esgotada da maior parte deles e pela ausência em meio editorial brasileiro de alguns de seus principais títulos, publicados no exterior: Conhecimento a Oeste (Portugal, 1974), Dos nomes (Argentina, 1977), HB Promontorio milenario (Panamá, 1983) e Piedra Azteca (México, 1985). Este último, um desses exemplos engrandecedores de qualquer tradição lírica e, no entanto, do total desconhecimento de leitores brasileiros, sem esquecer que entre esses leitores se encontram também nossos poetas, de toda estirpe e inquietude.
Piedra Azteca – com seu trevo de cinco pétalas, sua arquitetura de cinco cantos ou capítulos – abriga em suas nervuras um interessante diálogo com o Drummond já aqui referido, sucedendo-o em sua evocação dos mitos urgentes. Diálogo amplificado em surpreendente direção com outro poeta, o mexicano José Gorostiza, portas abertas à altura e à síntese de duas poéticas entranháveis, medulares e transcendentes, configurando particular rito de convivência entre duas culturas, realçado pela própria residência de Santiago Naud em ambos os países. O extenso poema que compõe o livro – cuja superfície aponta na direção de uma visita ao mito ou celebração do milagre de Guadalupe – reflete um domínio alquímico, onde a Pedra de Roseta transfigura-se na forma de uma obsidiana, por sua vez transmudando-se, a cada canto, em faca, punhal, fio, língua, borboleta, sem perder o espírito mineral, mas adentrando círculos e profundidades em busca de novos contrários que possa remir unificando. Viagem plena das formas que se descobrem e restaram no convívio. Viagem insolente da ressurreição após cada sítio extraviado, assim como alguém passa / depois de tudo perdido / e leva o nome trocado. A própria construção do poema, ao recorrer a uma prática de espirais no entalhe de palavras e sentidos, modula um instigante desafio entre o repetir e o refletir, desdobrando-se em múltiplos sentidos alcançados a partir da ação de um verbo no outro.
Piedra Azteca confirma a condição visionária da poética de Santiago Naud, enlaçando-se no esplendor de suas imagens com um livro que lhe é vizinho no tempo, HB Promontorio milenario, luminoso colóquio com uma pintura homônima do panamenho Adriano Herrerabarría. Acerta Mario Augusto Rodríguez, ao dizer que se trata de uma obra de alucinantes sensações interiores, que parece desafiar a interpretação do espectador, com o denso conteúdo de um passado transido de valores culturais, em permanente rumo até o futuro. [1] Também aqui o tema definido e evocado transfigura-se e gera novos matizes. A densidade florestal da pintura de Herrerabarría frutifica nas mãos do verbo de Santiago Naud, na forma de uma vegetação espiritual: este eterno segredo / das dobras do tempo, / a madeira apodrecida gotejando em convulsão / o sêmen desprezado, os ódios ressentidos // e o ritual iludindo / os livres, que não somos. Uma vez mais se encontra plenamente postulada a vertigem criativa apontada em Piedra Azteca, o episódio barroco da viagem de um olho dentro do olho / de outro olho / no outro, original. Tive a oportunidade de conhecer parte da obra do artista panamenho que, de alguma maneira, entranha e descortina substanciosa fatia da poética de Santiago Naud. Ao destacar estes dois livros, contudo, o fiz menos movido pela intenção de diferi-los dos demais do que pela simples razão de se tratarem de livros até aqui não publicados no Brasil.
Isabel Ruiz
Estou de acordo com o poeta quando afirma não haver em sua poesia reorientações ou rupturas em termos essenciais de suas inquietudes. Suas transformações internas conduzem-se pelo mito das metamorfoses e não pela perda de guia, norte ou solidez. Ele próprio confirma: As leituras posteriores, as experiências vitais, a leitura de outros poetas e, principalmente, o estudo da mitologia universal me foram desvelando os símbolos que eu havia fixado inconscientemente em versos e que pertencem não ao meu inconsciente, pois vinham de algo maior – um inconsciente coletivo, quem sabe? [2] Em preciosa complementação, avulta que a forma, a sintaxe e a lógica que busquei, a par de se comprometerem com a linha histórica, com a poesia escrita em língua portuguesa, enraízam no primeiro livro e tratam, nos subsequentes, de esclarecer a emoção que, subjetivamente, me justifica como consciência individual ou membro específico do grupo a que pertenço. Seria uma atividade solar, busca da luz que faz uno o diverso, e vice-versa.
A obra de José Santiago Naud foi tecida de forma visionária, obsessiva e profética. Toda ela transcorre sempre em busca daquele que até hoje se configura como seu livro essencial e misterioso, que jamais se mostrou na íntegra, sabendo guardar-se parcialmente em mistério, idêntico mistério que o poeta tornou componente queimante e inestimável de sua poética. Refiro-me a Cara de cão, cujas parcelas publicadas até então – Dos nomes (1977), Vez de Eros (1987), Memórias de signos (1994) e Os avessos do espelho (1996) – repercutem intensa relação entre memória e antevisão de mundo. Relação desfiada como uma viagem incansável, onde o poeta se sente trespassado pelo Verbo / e salivado por seres estranhos. De uma margem ou outra do tempo, há toda uma colheita de imagens que são resíduos que foram se acumulando ao longo da vida do próprio poeta, o que naturalmente inclui antecedentes e utopias, ancestralidade do ser humano e potencialidade de sua errância sobre a terra.
Tais resíduos se multiplicam e repetem, configurando o estilo, mas essencialmente anotando um fundamento que não se limita ao jogo semântico, cuja advertência caprichosa encontramos em um verso que diz: toquei de novo o nome / em que tudo outra vez se pode repetir, sendo esta a autêntica vibração alquímica da poesia de Santiago Naud. Não à toa, o poeta aclara:

Para mim a poesia corporiza um ato supremo de ociosidade e trabalho. É como deixar-se levar na correnteza da vida, com todo o seu mistério de maravilhas e horror, ou lavrar como o ouro nas profundezas da terra, precipitação mineral de pureza máxima e infensa ao tempo, às traças ou à ferrugem. [3]

As associações apanhadas nessa profusão mineral de sons, imagens, sentidos, entretecendo-se sem rejeitar contradições, dissonâncias, desvarios, encontram neste poeta uma rara expressão de grandeza que é, ao mesmo tempo, o retrato mais terrível da condição humana. O erótico entrançado com o vozerio encoberto das ruas e becos, o coloquial exposto de forma ostensiva, provocativo em sua luxúria, porém jamais percebido como uma vulgaridade. Dispor-se ao perigo magnífico de lembrar ao angelical seu alcance terreno. Interligar os contrários por analogias arriscadas. Não limitar-se ao lírico, ao mesmo tempo sem deixar de ser profundamente lírico. Poesia complexa na mecânica sinfônica em que está tecida, porém fluente na opção de sua entrega. Seus códigos não são fechados, indecifráveis. A sucessão de mistérios que destaca não a torna incomunicável, ao contrário: alimenta a fome do leitor por impulsos de participação, convívio, aprendizagem, com este campo insondável que é tão tangível e intangível quanto a vida de cada um de nós.
Ao mesclar mundo prosaico e atmosfera fantástica (o mundo prodigioso da imaginação), Drummond alcançou mais do que ninguém na poesia brasileira um grau de sensibilidade que nos permitiu rever nossas ideias acerca do real e seu suspeitoso estado contrário. Santiago Naud recolheu bem a lição e deu-lhe, entremeando sequência e consequência, um sabor singular, ao dissipar outra fronteira, a que separa o lírico do épico. Em Vez de Eros, livro que recorda a tessitura de um labirinto, uma de suas passagens assim se inicia: Ponho um dragão no teu vestido! / Por baixo do pano a tua pele eriça / e enrija, estremecida, / e vai um pouco abrindo / os abismos da infância: Na forma de um dragão ali está posto o real, o imaginário, o lírico e o épico. A infância provocada é a da própria espécie humana. A subjetividade é uma fonte inestimável de acesso ao coletivo. Todo este livro, por exemplo, nos ensina que é plenamente possível romper as barreiras entre gêneros sem precisar contestar tradição alguma, e sem promover tal atitude à condição de uma vanguarda, ocasional como qualquer uma.
O próprio poeta gosta sempre de recordar que a improvisação dos repentistas foi o primeiro impulso a levar-lhe à escrita. Por ali sentiu as primeiras essências dos pomares da língua, o português de uma margem e outra do Atlântico. Raros poetas no Brasil entregam-se a este mergulho em duas águas com a intensidade com que o faz Santiago Naud. Não há retórica em seu diálogo com esta nossa contradição linguística. Assim a defino, porque na língua é que se encontram as raízes de nossas ambiguidades. No fundo, talvez não seja a cultura portuguesa que rejeitamos e sim a língua. A rejeição isoladamente não constrói uma realidade. A improvisação em Santiago Naud alcança um particular sentido de entrega ao mistério. Ela própria, com sua organização nervosa ou sua energia organizada, reconhece as estações rítmicas, semânticas, os planos de reconhecimento de leitos ou estratégias de transposição de cursos, inquietudes, decepções. Trata-se de uma poética caudalosa, porém consciente de sua volúpia, e com um inestimável aproveitamento estético desse espírito irrefreável.
Recordo isto movido por uma carta que em 1963 lhe enviou Drummond. Ali dizia: Sua poesia tem esse dom de extensibilidade; ela prolonga os temas e as visões, não se satisfaz com o mistério captado. A extensão do verso em Santiago Naud reflete a intensidade com que incorpora domínios e demônios da linguagem. É um refinamento, antes de ser um desmazelo. O verso longo, por alguma inadvertência, foi excomungado no Brasil como uma heresia. Em parte, vem daí a rejeição irreflexiva que nossos poetas cultuam em quase sigilo em relação à poesia que se faz na América Hispânica. Não se pode opor Celan a Rilke tomando por fórum a extensão do verso. A síntese, quando evocada com um metro nas mãos, pode expressar simplesmente uma falta do que dizer. A linguagem, a forma de expressão, legítima ou afetada, independente do metro.
É fato que a poesia de Santiago Naud prolonga os temas e as visões. De alguma maneira recorre a uma fonte barroca que é a mesma que animava a poesia de Drummond. Ou de Jorge de Lima. Ou de Murilo Mendes. Dá-lhe, no entanto, tratamento distinto à nascente. Já não lhe cabe ser deliberado ou irrevogável em uma instância mítica ou social, lúcida ou delirante. Não se sente incomodado com uma estrutura vigente em isolado. Quer romper com a própria natureza humana e não apenas com uma parcela de seus caprichos. Eis a franca ousadia desta poesia. Por isto que não importa – sinceramente não importa – opor seus méritos ou equívocos aos rumos traçados por seus pares geracionais. Poetas brasileiros nascidos na década de 1930 constituem – segundo meu entendimento – o mais alto grau de nossa perspectiva de entrada em um ambiente internacional insultado pelo conhecido ciclo das vanguardas. Alguns desses poetas corrigem com naturalidade os equívocos de nosso Modernismo, e o fazem com uma propriedade ainda hoje não considerada, cuja raiz é a mesma de todas as nossas volubilidades.
A poesia de José Santiago Naud nos diz que somos parte de alguma coisa. Que não avançamos enquanto não identificamos a origem. Que as mil cabeças do mito, qualquer que seja ele, não podem refletir pura e simplesmente uma sujeição à história. Que temos que percebê-la, recebê-la da maneira como se apresenta, porém com o espírito preparado para que salte dentro de nós, que se descubra em nós, que faça parte de nós, as mil cabeças sendo nossas, as nossas. O verbo se lança nu no espaço, exposto às variações e dissidências. Estamos todos em um grande salão. Até mesmo as ilusões semânticas confidenciam sua fragilidade e seguem na festa. Estamos sem disfarce. Todos somos filhos da mesma urgência. Os símbolos ganham um novo diapasão. Mas que ninguém se iluda. O mistério tem outro nome. Sempre.

NOTAS
1. Un cuadro y un poema, de Mario Augusto Rodríguez. Artigo publicado no jornal La República. Panamá, 25/11/1983.
2. A organicidade da poesia brasileira não encontra correspondência na crítica literária, entrevista concedida a Danilo Gomes. Suplemento Literário Minas Gerais. Belo Horizonte, 10/06/1978.
3. Preâmbulo, Antologia pessoal. Brasília: Thesaurus Editora, 2001.


Los editores

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Isabel Ruiz

• ÍNDICE


ALBERTO CLAUDIO BLASETTI | Juan José Ceselli, la rebelión contra la estupidez y la maldad

BERTA LUCÍA ESTRADA | La shoah en clave de atenea de Clara Schoenborn

CARLOS M. LUIS | La pintura de Cundo Bermúdez

FLORIANO MARTINS | Hipopocalipsis, Ruidurbano & Uílcon Pereira

HAROLD ALVARADO TENORIO | Jorge Luis Borges

JAVIER PAYERAS | El sueño y la resistencia: Isabel Ruiz

JUAN CALZADILLA | La travesía caribeña de Nicolás Ferdinandov

LEONARDO FROES JR | Uílcon Pereira e a nova inquisição outra

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Daniel Maximin: uma voz original do Caribe francês

PLINIO CHAHÍN | El voluptuoso Iván Tovar



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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 155 | Julho de 2020
Artista convidado: Isabel Ruiz (Guatemala, 1945-2019)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2020


PLINIO CHAHÍN | El voluptuoso Iván Tovar


Acaso ningún otro pintor dominicano conoció mejor los halagos de sus contemporáneos y la veneración de la más inmediata posteridad que Iván Tovar (1942-2020). Tovar, en efecto, tuvo el don maravilloso de estimular la fábula, aun sin proponérselo. Fino espíritu, regia y discreta presencia, generoso carácter y talentoso discurrir, serían sus virtudes más sobresalientes. Como artista poseyó sin lugar a dudas, una prodigiosa imaginación, una admirable capacidad de trabajo y una disciplina interior tan vigorosa como estricta.
La pintura de Tovar no es una obra llamada a cautivar ni por las seducciones epidérmicas de sus tintas, ni por la belleza de sus imágenes más bien recias. La suya es una pintura que se impone por la excelencia de su factura, por su incontestable calidad plástica y por su reciedumbre. Y una obra que, aparte del aval que certifica su trayectoria nacional e internacionalmente durante casi medio siglo, expresa también a su manera, una reflexión en torno al acto erótico.
En la experiencia visual de Iván Tovar lo erótico es la proximidad absoluta del objeto visto, el hundimiento de la mirada en el cuerpo deseado y huidizo: hipervisión en primer plano, dimensión sin retroceso, voluptuosidad total de la mirada con lo que se ve.
La visión fisiológica y la función normal del ojo carecen de importancia; lo decisivo es la mirada dirigida hacia el interior y, por lo tanto, la imaginación. En este sentido, el ojo puede personificarse y comportarse como un fenómeno de pesadilla. En Tovar el acto de ver está sometido a nuevas condiciones y, en consecuencia, la producción del artista surrealista obedece a la voz interior, a la visión, a la alucinación, al sueño.
Nosotros, especialmente los occidentales, devoramos la cara como los sexos, en su desnudez psicológica, en su afectación de verdad y deseo. Desprovistas de máscaras, de signos, de ceremonial, resplandecen en efecto con la sensualidad de su demanda. Y nosotros nos sometemos a la solicitación de esta verdad inencontrable, perdemos todas nuestras energías en el desciframiento en vacío.
El rostro despojado de sus apariencias no es más que un sexo, el cuerpo ortopédicamente despojado de sus apariencias está desnudo (aunque la desnudez pueda revestir el cuerpo y protegerlo de la obscenidad). Basta ver las obras Justine I y Justine II, entre otras.
En las obras visuales de Tovar es imposible despojar totalmente un cuerpo o un rostro de sus apariencias para entregarlo a la pura concupiscencia de la mirada, despojarlo de su aura para entregarlo a la pura concupiscencia del deseo, despojarlo de su simbolismo oculto para entregarlo a un desciframiento de lo erótico, de lo voluptuoso, de lo turbiamente sensual. Tal vez, por otra parte, esto nos atraiga de antemano: un universo perfectamente extático y voluptuoso de objetos puros, transparentes entre sí, y que se estrellarán entre sí como núcleos imantados de colores azules, ocres y blancos.
Tovar juguetea con las alteridades, sorprende, choca, desconcierta. Sutil y sigiloso, toma como objetivos las emociones y sensaciones intuidas y camufladas. Pero sobre todo juega con los sueños, los deseos, los anhelos; con los
comportamientos que habitualmente transcurren insospechados, de los que nunca o casi nunca somos conscientes y que precisamente por ello ejercen gran influencia sobre nuestro comportamiento. Lo demoníacamente onírico en Tovar supone para el inconsciente algo similar a lo que constituye el arte establecido y normal para el comportamiento consciente, la comprensión y la adaptación a la realidad.
Para este artista el hecho visual es una actividad mental y una habilidad psíquica, así como una característica y un efecto al mismo tiempo. La fantasía se mueve al margen de las actividades mentales corrientes, como puede ser la percepción consciente, el pensamiento convergente y lógico, la deducción a partir de sistemas preestablecidos y ordenados o el comportamiento racional. De ahí que uno de los rasgos distintivos de esta obra sea la percepción múltiple, las interpretaciones oníricas y el pensamiento divergente.
Se podría decir que la obra de Tovar se caracteriza por situarse entre dos polos, el del surrealismo y el de la abstracción. Sus primeros dibujos reflejan una simplicidad y un rigor que colocan en el centro el tratamiento de la forma, en tanto que los títulos de sus trabajos, de carácter caprichoso y poético, continúan la tradición del abstraccionismo y del surrealismo. Asimismo, su manera de trabajar, no convencional, con amplios espacios para el azar y la intuición, y sus procesos creativos, constantemente renovados y desarrollados a partir de la situación, correspondían en buena medida a las concepciones surrealistas vinculadas al erotismo, al deseo y a la muerte.
Iván Tovar es el artista dominicano que más sostenidamente ha aludido al erotismo, sobrepasando incluso a Suro. José Pierre habla de su andar inspirado en la sensualidad erótica, pero vuelta en cierto modo conquistadora e invadiendo el mundo de las garras, de los tentáculos y de las rocas de su lubricidad. En este sentido se habla del mecanismo erótico de este pintor; de máquinas ídolos no célibes, demasiado voluptuosas, máquinas deseantes, inventadas de acuerdo a Phillipe Audoin; estructuras donde las múltiples asociaciones del inconsciente se dan de manera increíble. Huevo, ala, raíz, venas, objetos espaciales, fundidos en impensables continuidades. Todo es posible en estas máquinas donde el deseo es el motor impulsor con todas sus connotaciones de sexualidad, vida, muerte, dice Jeannette Miller.
La poética de Tovar que mejor lo caracteriza es una pintura conceptual que varía modularmente dentro de una autoexigencia rigurosa y muy batalladora. Adentrado en un abstraccionismo plurimórfico de enraizamiento tropicalista, según Danilo de los Santos, asume su lenguaje claramente dos posiciones, aparte de una serie de trabajos sueltos que confirman su obra global. Una posición es la de su pintura caracterizada por lo lineal y planimétrico, de la que el cuadro Antillas, presentado en la Bienal de París de 1962, es un buen ejemplo. Con dominio bien logrado en cuanto al esquematismo lineal y coloración pura, equilibra los planos de figuras y fondos para dar con suma sencillez una visión del mundo de los trópicos.
Para 1965, según el citado crítico dominicano, la pintura planimétrica de Iván Tovar deriva en la tridimensionalidad, en una penetración espacial que busca el volumen desde la superficie. El lineamiento persiste, a lo largo de todas sus obras, pero se hace volátil y fluido, otorgándole a su poética más reciente un toque mágico de gran revelación. Estas obras con la que asume su segunda posición– dibujos en su gran mayoría– son significativas para la ubicación pictórica que alcanza plenamente en París.
Otro aspecto de sus obras de inspiración surrealista fue el interés mostrado por la metamorfosis del cuerpo femenino, que dio lugar a obras que recordaban las formas blandas, con posibilidades aparentemente limitadas de cambio, desarrolladas por Picasso o Miró a principios de la década de 1930. Un ejemplo característico es el lienzo El uno en el otro, de 1976, que recoge las formas sensuales de un torso femenino, que dio lugar a obras visuales que recordaban las formas sensuales de una figura femenina en un tronco con cabeza y con muñones redondeados. Las figuras, que presentan un desarrollo aparentemente análogo al natural, pueden contemplarse como concreciones de orden orgánico y corporal.
Concebidas sin superficies sobre la cual alzarse, las obras de Iván Tovar pueden ser vistas desde diferentes perspectivas, para alcanzar, finalmente, un estado novísimo de percepción visual.


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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 155 | Julho de 2020
Artista convidado: Isabel Ruiz (Guatemala, 1945-2019)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Daniel Maximin: uma voz original do Caribe francês


Poeta caribenho de língua francesa, nascido em 1947, no seio de uma família numerosa (pai auxiliar de enfermagem e mãe costureira), em Saint-Claude, pequena cidade no sopé de uma montanha materna-vulcão em atividade, La Soufrière, em Guadalupe, a ilha-borboleta das Pequenas Antilhas, Daniel Maximin pertence à geração dos que vieram ao mundo no imediato pós-guerra com os seus sonhos de paz duradoura e de descolonização em marcha vitoriosa. A família instalou-se em Paris no início da sua adolescência para preparar o retorno, futuro, dos sete filhos ao país natal.
Ensaísta importante sobre a produção contemporânea em geral mas sobretudo em permanente diálogo com poetas antilhanos (Aimé e Suzanne Césaire, René Ménil, Léon Damas, René Depestre, Jacques Roumain, Vincent Placoly, Guy Tirolien etc. ) e africanos (Wole Soyinka, Sony Labou Tansi, Léopold Senghor, U’Tamsi etc.), editor de poetas (a sua edição da poesia completa de Césaire permanece, ainda hoje, a melhor para quem pretende iniciar estudos antilhanos de língua francesa), [1] Daniel Maximin trabalhou, durante muitos anos, em contacto com a nova geração de escritores. Sua atividade cultural fez-se em vários níveis: a) através de um programa de entrevistas na rádio France Culture; b) acompanhando, durante anos, o festival internacional de teatro de Limoges e c) no Ministério da Cultura, encarregado da pasta Affaires culturelles, promovendo e organizando encontros de poesia e de teatro.
Maximin dirigiu ainda várias encenações de textos (Montserrat, do mexicano Manuel Robles, 1972; La danse de la forêt, do nigeriano, prêmio Nobel, Wole Soyinka, 1974; Veillée noire pour Damas, 1978 e Léon Damas, 1988, estas duas últimas sobre o poeta da Guiana francesa), tendo colaborado igualmente, ao longo do tempo, com diretores importantes na criação das peças de Aimé Césaire, La tragédie du Roi Christophe, Une saison au Congo e Une tempête: Jean-Marie Serreau, Antoine Vitez e Christian Schiaretti.
Ainda sobre a sua experiência teatral: preparou o texto a partir do qual o grande diretor burkinabé Hassane Kouyaté criou o espetáculo Suzanne Césaire, fontaine solaire, em 2018, para três atrizes, em Fort-de-France, na Martinica. Antes, em 2016, juntamente com um conhecido pianista antilhano, Alain Jean-Marie, apresentou um espetáculo de poesia e jazz, em Paris, Connivences antillaises, retomado a seguir em outras salas de espetáculo.
Daniel Maximin é provavelmente um dos maiores conhecedores, senão o melhor, da produção dos chamados Orfeus negros, ultrapassando o velho triângulo negreiro do Atlântico porque abarca ainda: o Magrebe, ou seja, o Norte da África; o Oriente Médio (o Líbano); o oceano Índico (Madagascar e La Réunion) e a Polinésia francesa.
Sobre a sua atividade crítica, aconselhamos aos leitores a consulta do seu texto Les Orphées noirs. L’originale poésie franco-polyphonique, anexo ao seu volume de poemas, e se quiserem, mais tarde, alargar e aprofundar o seu conhecimento a esse respeito, deverão consultar dois outros dos seus ensaios: Les Fruits du cyclone. Une géo-poétique de la Caraïbe (Seuil, 2006) e Aimé Césaire, frère volcan (Seuil, 2013), ainda não traduzidos para o português. A sua longa atividade crítica permite-nos igualmente aprofundar a compreensão da sua própria poética no contexto da criação antilhana.
Depois de várias publicações em revistas, inclusive um diálogo poético com o congolês Sony Labou Tansi sobre o amor, Maximin publicou, em 2000, o seu primeiro livro de poemas, L’Invention des Désirades, na editora Présence Africaine, volume retomado por Seuil, em nova edição, refundida e aumentada, em 2009.
A poesia de Daniel Maximin retoma e ilumina, resume e glosa a posteriori, passagens, figuras e temas recorrentes das suas obras em prosa: os romances (L’Isolé soleil. Paris, Seuil, 1981; Soufrières. Paris, Seuil, 1987 e L’Ile et une nuit. Paris, Seuil, 1995), [2] trilogia de poética barroca sobre o passado coletivo, ancestral e recente, graças à multiplicidade dos narradores e à evocação de personagens originários de três continentes, além de uma originalíssima narrativa de memórias (Tu, c’est l’enfance. Paris, Gallimard, 2004) em que o homem adulto dirige-se ao menino de outrora. Daniel Maximin escreve, no momento atual, um quarto romance, cuja ação se condensa num só dia – o do fuzilamento de jovens resistentes em 1943 – durante a Ocupação alemã em Paris.
O volume de poesias de 2009 divide-se em três partes – Îles, Ailes e Nous subtítulos que jogam, em francês, do ponto de vista fonético, com os três pronomes pessoais, Ils, Elles e Nous, a que se seguem Autres dérades, cinco textos muito originais em prosa poética, e, por fim, o longo poema dedicado a Christine Chaulet-Achour, sobre os poetas contemporâneos que desapareceram cedo demais. Por outras palavras: os poetas abiku, nascidos para a morte.
A segunda edição dos seus poemas, publicada por Seuil, acrescenta ainda os últimos poemas inéditos e revela, através de novas versões, mais largas ou mais densas, de poemas anteriores, o esforço constante de reescritura. Como os de Aimé Césaire, muitos dos poemas de Maximin parecem obras móveis (oeuvres mobiles, conceito de Ernstpeter Ruhe).
A nova organização dos poemas, na edição de 2009, destaca, de forma evidente, três grandes eixos de significação:

a) uma geografia simbólica da Guadalupe natal e do grande arco das Antilhas (o subtítulo Îles só pode ser traduzido, para manter o jogo dos homófonos, Elas as Ilhas);
b) uma poética, sob a invocação mítica e tutelar de Ícaro (Ailes, que para manter o jogo da homofonia deveria ser traduzido por Eles – os Voos das Asas), que retoma, subvertendo-o, o tema do horizonte vertical, de um poeta argentino, Roberto Juarroz, afastando qualquer ideia de punição da hybris e
c) o canto do amor com os seus imprevistos desconcertos (Nous, que para jogar com a homofonia em português, poderia ser traduzido por Nós os Nós).

Este último eixo de significação, essencialmente lírico, confirma, à primeira leitura, a sua proximidade com a poesia amorosa do guianense Léon-Gontran Damas assim como a busca de uma certa musicalidade, de todo ausente, por exemplo, na poesia daquele com quem Daniel Maximin dialoga incansavelmente, Aimé Césaire.
Poesia polifônica, ao mesmo tempo enraizada e aberta, sensível aos discursos aparentemente contraditórios da negritude, da crioulidade e da americanidade, Daniel Maximin dá voz não apenas aos que não têm voz, projeto militante que o seu texto atravessa e ultrapassa, em busca da terra natal e do tempo perdido, ou disperso nos desvios, fazendo falar, na primeira pessoa, a paisagem que cria a História, o vulcão materno, os elementos primordiais da criação (terra, ar, fogo e água), o êxodo que precede a gênese, a música e o silêncio, a escrita sobretudo, apagando resolutamente a distinção dos gêneros.
Para, muito resumidamente, penetrar no volume L’Invention des Désirades e entender o alcance da poética de Maximin, optamos por explorar, muito simplesmente, o título do seu livro, tentando fazer perceber não só o que significa mas sobretudo o que carrega do ponto de vista imaginário: Invention e o plural, de todo estranho, do topônimo (real) de uma ilha só existente nas cartas geográficas maiores, Désirades, por ser muito pequena e por isso mesmo quase invisível. Ou apenas visível para quem sabe que ela existe e a procura, com atenção, num mapa do Caribe mais detalhado.
Buscamos ainda explicar o paradoxo: como um lugar inóspito, com pouca água, espaço de reclusão para leprosos e delinquentes, torna-se, no texto de Maximin, numa metamorfose inesperada, as ilhas sonhadas, da materialização possível dos sonhos. Não esqueçamos a noção fundamental de que as Antilhas são um dos laboratórios culturais da América.
Retomemos pois o título – L’Invention des Désirades – em breve comentário.
Invenção, inventar vêm do latim inventio, achado, descoberta, de invenire, descobrir, achar, formado de in, em, mais –venire, vir. O sentido atual de invenção, de coisa feita previamente não-existente, no português, é de cerca de 1510. Mas o sentido arcaico, etimológico, não desapareceu.
O mesmo ocorre, aliás, na língua francesa. Inventeur (ou seja, inventor), segundo o Littré, dicionário da língua clássica, designa o homem que encontra, por acaso feliz, um tesouro de moedas antigas na terra, um monumento soterrado há séculos do qual não se tinha memória ou uma gruta pré-histórica desconhecida. Neste sentido, inventer é descobrir o que estava escondido ou perdido, significado que se mantém igualmente na iconografia e no discurso religioso e pictórico, na maioria das línguas latinas de tradição católica: na Invenção da Santa Cruz, título do ciclo admirável de Piero della Francesca, em Arezzo, não se trata de fabricar um factoide (uma falsa cruz) mas criar uma narrativa pictórica do descobrimento milagroso da cruz da Paixão de Cristo. O significado primevo mantém-se ainda, em francês, quando se trata de descobrir, por exemplo, uma gruta num terreno de sua propriedade: l’inventeur de la grotte de Rocamadour é o senhor Lamothe [3] que inventou a caverna com pinturas e desenhos do paleolítico e que, sobre ela, teve reconhecidos, oficialmente, os seus direitos legais.
Por outro lado, se olharmos com atenção um mapa grande das Caraíbas, Désirade é um ponto quase invisível, no arco das Pequenas Antilhas, uma dependência administrativa da Guadalupe desde 1648, situada a apenas alguns quilómetros a Leste da chamada Grande-Terre. [4] Na realidade, esse pontinho tem a forma de um retângulo alongado. Vigia e sentinela da Guadalupe, a ilha-borboleta, aquele rochedo achatado mede apenas onze quilômetros de comprimento por dois de largura. Os seus poucos habitantes, quase todos pescadores, são chamados hoje os Désiradiens: a ilha foi a primeira terra encontrada (ou inventada), três semanas depois de deixar as Canárias, por Colombo e seus marinheiros, durante a sua segunda viagem, de 1493, num momento de grande tensão prestes a explodir, por falta de água a bordo das naves.
O nome Désirade teria sido dado na euforia do grito de terra à vista, antes de tomar contacto com a terrível realidade: a ilha era a Desejada, mas não resolvia o problema premente da sede coletiva. O ilhéu, um estreito planalto retangular com falésias abruptas, sem cursos de água e batida por correntes de vento, tem um relevo que não favoriza a condensação da água meteórica e o seu solo é calcário e árido, condição desfavorável, ainda hoje, à agricultura. [5] A
equipagem de Colombo não encontra assim a água que deseja e de que precisa. Mas logo a seguir, surge Karukéra, a terra das belas águas no seu nome indígena, avistada da gávea de uma caravela, ainda do mar, por causa das grandes quedas de água do Carbet, e Colombo chamou-a com o nome da Virgem de Guadalupe, que viria sincretizar, em todas as Américas negras, com Oxum.
No início do século XVIII, um lazareto foi instalado na extremidade oriental do ilhéu retangular, no lugar chamado Baie-Mahault e as condições de vida dos doentes eram duras. [6] Na outra extremidade da Désirade, no sítio denominado Les Galets (ou seja, os Seixos) foi erguida uma prisão para delinquentes da Grande Terra assim como para alguns nobres desregrados da Metrópole, rejeitados, domados e internados por suas famílias aristocráticas. Estamos, portanto, diante de um exemplo perfeito da an de poemast exemplo espetacular da anpos novos Metrncretizar por todas as Amálise clássica de Foucault.
Mas tudo isso ainda não esgota as conotações virtuais desse título, em mil folhas, de um conjunto de poemas: a língua cria articulações imprevistas e sugere outras conexões improváveis. A homofonia faz de novo das suas: Désirade, a ilha dos desejos dos marinheiros de Colombo, os decepciona cruelmente e a palavra, em francês, pode ser lida exatamente como o seu contrário: désir-en-rade, ou seja, o fracasso ou a perda do desejo, condenado, para sempre, a permanecer insatisfeito.
No entanto, quando o poeta acrescenta um s [7] e põe no plural o topônimo real – Désirade torna-se Désirades – aquele se transforma uma vez mais, numa forma euforizante, a flotilha de quilhas perfeitas a singrar novos mares da utopia. São as ilhas desejadas a serem inventadas, criadas. Por outras palavras, as ilhas em metamorfose do final do Diário de um retorno ao país natal, de Césaire. Projeção para o futuro e recuperação do mito antigo da ilha do paraíso terrestre a ser reinventada.
Resumindo o processo da dupla negação (analisado por Gilbert Durand) e fechando esta breve introdução: Invenção quer dizer, em sentido arcaico e peculiar, descobrimento do que estava oculto e, no nome próprio de um topônimo, tornado plural, Desiradas, estão presentes não só as ilhas existentes ainda não edificadas, mas já atuantes no eixo do desejo, assim como o projeto a cumprir-se do Novo Mundo, lugar de todos os possíveis e laboratório de novas experiências estéticas.
Esses jogos com a língua – múltiplos e variados – por detrás da, só aparente, simplicidade do vocabulário de Daniel Maximin, estão em ação nos poemas do volume, o que lhes dificulta certamente a tradução mas permanecem, para o trio, – ou será um quarteto? – poeta-leitor-tradutor-escritor, um desafio fascinante e arriscado de leitura e escrita.
No final, em particular, em um dos seus poemas em prosa, texto enigmático mas luminoso, Maximin insinua em surdina o grande paradoxo ou será um segredo de Polichinelo?: a escrita/escriba é mulher, o que implica dizer que a escrita feminina pode ser feita também por homens.



A CHAVE DOS SONS [8]

Colhíamos insultos
E deles fazíamos diamantes

René Ménil

Nós
órfãos nascidos mudos
esmagados pela sombra e pelo sol

nós
apesar deles
apesar da mudez apesar de ilhas apesar da morte

nós
todos nós
músicos sem raízes
no sangue com seiva improvisada
luz entreaberta em blues kaladja [9] guajira [10]

recriamos
a liberdade
nos violinos da resistência
e na partitura dos tambores

a liberdade
e a harmonia
claves musicais fugidas do molho de chaves
bricolage de ritmos herdados do futuro


VULCÃO SOUFRIÈRE [11]

No coração do vulcão, tudo estalou, desmoronou tudo no barulho do rasgar-se das grandes manifestações... Desde esse dia tens uma veste de fagulhas, cada um dos teus músculos exprime, de modo pessoal, uma parcela do desejo disperso sobre a mangueira em flor.

Suzanne Césaire


Sou húmida demais para cheirar a queimado. O fogo me atravessa em pleno coração mas não sou o fogo. Apenas aquela que carrega águas e chamas, em fontes e em cachoeiras, sem as quais a terra não poderia mais girar, nem a ilha poderia mais respirar, prisioneira entre nuvens e mangues, entre pântanos e marés, com salpicos de lama nas asas das suas folhagens. As pedras preciosas derretem no meu colo, mas a minha boca é frágil e não sou o inferno

aguardo o primeiro sol para salgar a minha caldeira e deixar-me escorrer ao longo das minhas fraturas, distante dos caminhos de fuga e de salvação para os homens. E se me ponho bem alto para acolher a sua aurora, é por saber quantos vulcões no sol explodem lá muito longe para entreter a anos-luz a doçura de um só dos seus raios

eu queria só por um curto instante, retornar ao mar, por demais avaro para subir até nós, apesar de toda a água que lhe envio, apesar de todos os vulcões submarinos que salgam o oceano e o ajudam a transpirar

não lembro de ter pensado o futuro. Só sei que nele estarei presente. Com o cheiro de enxofre, as fumaças nos olhos, a argila sobre a pele, o limo nos pés, o leite do fogo do interior. Quer a ilha estoure, quer afunde sob o oceano, sou terra, se morrer a terra, serei fogo. Se morrer o fogo, serei ar, em cinza já grávida de um futuro bem simples para fecundar a primeira gota de água que me oferecer o seu leito.


ILHA-NOITE [12]

Na origem, sonhei contigo, depois inventei-te a ti. Depois me convidaste. Em ti e no teu caderno. Acreditei prever o que vias. Desenhei os teus contornos que sonhei abraçar. Ratinhos ocupados em construir para eles próprios o labirinto da saída. [13]
Segui com a minha tinta o traçado das tuas feridas e do teu desabrochar, o meu enxofre [14] e o teu mel espalharam o suor dos sentimentos, das salivas e dos sabores.
Descerramos as fontes, entreabrimos os jardins, comungamos em palavras de memória e de predição. Páginas cheias, vivas ou fenecidas bateram o ritmo das nossas conivências ou dissoluções.
Cada um fez ao outro a dádiva da sua solidão. Sem pesar demais sobre os sentimentos. Sem traficar em finais felizes de imaginárias fecundações.
Não adianta nada partir, é preciso partir a tempo. E não se acusa ninguém da sua vida reencontrada. Despidos de frases. Entre lençóis desfeitos dele e dela transtornados. Puros-sangues misturados. Guiados, deixados, separados, desamarrados. Sem necessidade de encantos ao fim das nossas mil noites. Mas a aurora retirará ao mal a sua luz.
A fiel palavra-passe vela sobre as nossas fronteiras de coração abertas sem chave nem espelho:
Ser ao outro e a si mesmo enseada, densa, dança
Miragem de moinho, magia de nora d’água


NOTAS
1. De forma semelhante, a sua edição dos textos esparsos de Suzanne Césaire, publicados, durante os anos da guerra, na revista Tropiques, é imprescindível. Título: Suzanne Césaire. Le grand camouflage. Écrits de Dissidence (1941-1945). Seuil, 2015.
2. Nenhuma dessas narrativas foi traduzida para o português.
3. A descoberta, ou invenção, data de outubro de 1920, no Lot, região da Occitânia, no sul da França.
4. A asa direita da borboleta-Guadalupe chama-se Grande Terra (Grande Terre) e a asa esquerda, Terra Baixa (Basse Terre), o que não deixa de intrigar os visitantes, uma vez que esta possui o pico culminante da ilha, o vulcão Soufrière com quase 1500 metros de altura.
5. Hoje, a ilha Desirada recebe água potável da Guadalupe.
6. O leprosário fechou as portas só em 1952. O bagne extinguiu-se, depois da II Guerra, quando se fecharam os presídios franceses de trabalhos forçados, mas o centro de detenção da Desirada continua a receber reclusos ainda hoje.
7. Processo semelhante ocorre no título do segundo romance de Maximin, Soufrières (1995) com acréscimo de um s. Breve resumo do enredo: um grupo de jovens, barricados numa casa de Saint Claude, as janelas pregadas por tábuas, espera a erupção anunciada do vulcão Soufrière, cuja força telúrica não só protege a memória do passado como atiça a esperança da recriação da ilha sob as cinzas de um paraíso fracassado.
8. O título do poema, em francês, joga com a expressão la clé des songes, título de obras que, desde os gregos antigos, pretende interpretar o significado dos sonhos; título igualmente de um quadro célebre de Magritte. Maximin joga com a dupla significação de clé, ao mesmo tempo chave e clave musical.
9. Na Guadalupe, o kaladja é um ritmo lento que exprime certa dor moral, uma ideia de tristeza e melancolia.
10. Gênero musical derivado do punto cubano.
11. O topônimo Soufrière significa mina de enxofre.
12. O poema retoma o final do terceiro romance de Maximin, L’île et une nuit, 1995, cuja ação se condensa numa noite. Breve resumo: o vento se levanta na Guadalupe, o mar engrossa e avança em torno da ilha, ameaçador: o ciclone anunciado pela rádio aproxima-se. Marie-Gabriel, sozinha na sua velha casa crioula, prepara-se para o dilúvio. Prega as portas e as janelas, reúne velas, faz provisão de água e de comida. As próximas sete horas serão intensas, cheias de nostalgia e de lembranças. De esperança também.
O título do poema no original, Île-nuit, jogando com a homofonia, tem dupla face: negativa il nuit (= ele, o vento, traz prejuízo) e il luit (= x, não se sabe quem, ilumina).
13. Fórmula que retoma, quase ipsis litteris, a proposta do OULIPO. Ouvroir de littérature potentielle, geralmente designado pelo seu acrônimo (OuLiPo ou Oulipo), é um grupo internacional de literários e de matemáticos, surgido na França nos anos 60, que se definem como rats qui construisent eux-mêmes le labyrinthe dont ils se proposent de sortir (ratos que constroem o labirinto do qual propõem, depois, sair). As figuras mais conhecidas são: Queneau, Pérec, Italo Calvino, entre outras. Criam textos a partir de regras e constrangimentos rígidos, previamente acordados e obedecidos..
14. É a ilha-vulcão que fala na primeira pessoa.


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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 155 | Julho de 2020
Artista convidado: Isabel Ruiz (Guatemala, 1945-2019)
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