Tudo se passa como
se houvesse um cadáver no armário da filosofia, da crítica literária, da
psicologia da composição, da metalinguagem. Sim, um cadáver de mulher ainda
jovem – o último avatar do eterno feminino, talvez – continua espantando,
assombrando e aterrorizando seus contemporâneos: todos falam a respeito dela,
compulsoriamente, sem o menor descanso. O assassinato da menina-moça provoca um
coro de rumores, segundo Thomaz de
Campos, um dos poucos a ter acesso aos originais: Cabelos de um negro sinistro, / sua pele bronzeou-a Satã, lembra o
ensaísta, citando Théophile Gauthier.
Ruidurbano, livro que recolhe essa tempestade verbal
– depoimentos, fofocas, plás, pipilações, testamentos, malícias, relatos
escatológicos – estará nas livrarias, enfim, a partir da semana vindoura. Fomos
dialogar com Uílcon Pereira, autor do romance (ou colagista dos boatos, como prefere qualificar-se), na sala de
antiguidades do gabinete de leituras Mario de Andrade, onde trabalha cercado de
alfarrábios, almagestos, portulanos, mapas do céu e incunábulos, dispostos
sobre enormes távolas redondas. Quarta dimensão, paisagem de Grandes Mitos, sem
dúvida nenhuma. País das fábulas.
LFJ | Ruidurbano
será mais um folheto de minicontos, uma plaquete de histórias breves, como seu
anterior, A educação pelo fragmento?
UP | Longe disso, meu amigo. Trata-se de um
calhamaço cósmico, um catatau de 482 páginas.
LFJ | Por que tal número, precisamente?
UP | Veja só a primeira edição do Grande Sertão: Veredas, que ainda uso e
conservo como totem e tabu, fetiche – 482 páginas, ele também. Idem, a edição
príncipe do Ulysses joyceano, de
1922, que o próprio Oswald de Andrade teria lido no Hotel Miramare, nesse mesmo
ano decisivo para o modernismo. Além disso, é de minha parte um coquetismo
supersticioso: o sete, seus múltiplos (7, 14, 21, 28, 35) e somatórias de
algarismos que resultem em sete ou múltiplos, número mágico, cifra da sorte –
16, 25, 1922, 482, precisamente, 482 páginas impressas.
LFJ | Um imperativo profundo, então?
UP | Ah sim, muito profundo, de ordem
inconsciente e mística, incompreensível até para os meus esquemas racionais
mais elaborados e amadurecidos. Por outro lado, funciona também, no meu caso
pessoal, a título de medida áurea ou divina proporção, um arquétipo da forma
perfeita e harmoniosa, da qual não consigo mesmo fugir. A trilogia No coração dos boatos, com a qual fiz a
minha estreia na república das letras, perfaz igualmente 464 páginas; soma das
unidades: 14, múltiplo de 7, de novo e sempre. Ruidurbano será outra variação a partir da mesma arquitetura
fundamentada no número sete, que tradicionalmente foi desenvolvido pelos
grandes mentirosos da literatura clássica – meus ancestrais, irmãos e
cúmplices, companheiros de viagem.
LFJ | Mas você era vidrado em publicações mais
leves e funcionais, do tipo folheto, jornal, revista, cartão, plaquete, fax,
arte postal?
UP | Ao contrário, meu querido. Suportei o
chamado formato curto, tão-somente.
Foi um acidente de percurso. Um livro que não fica em pé na estante, eu acho
que não vai mesmo ficar em pé na eternidade.
LFJ | De onde você retira assim tanto fôlego e
inspiração, tanto volume literário?
UP | É antigo hábito meu dar audiência, cada
manhã de domingo, às personagens das futuras histórias. Cinco horas, das oito
às treze. Pois bem, nos últimos anos – sete- para não variar nunca –
encontrei-me sempre em má companhia. Não sei por qual razão ou jogos do
destino, a essas audiências acorreram aos magotes, em confusão total, as gentes
mais obsessivas do mundo, afligidas por uma espécie de mal estranho, com o qual
foi penoso lidar: só falavam de uma jovem mulher assassinada, por garroteamento
vil, na madrugada de uma noite de vento seco, ali nos fundos do Bar Pirandello,
na rua Augusta. Essas figuras me forneceram o material necessário para o
livrão, todo esse volume literário,
como você disse. Meu trabalho reduziu-se a quase nada: selecionar, cortar,
enxugar um pouco, montar o conjunto, passar um verniz no estilo geral das
conversatas, trololós, discussões, falaricos e reconfabulações.
LFJ | E quantas personagens você recebeu por
semana, em média?
UP | Disso não me queixo, pois em média
compareciam trinta e cinco depoentes – cinco grupos de sete pessoas ou sete
conjuntos formados por cinco Falantes. Uma vez ou outra, a assuada era tão
grande que me via obrigado a atender simultaneamente a bandos inteiros, toda a
companhia selecionada previamente, via secretária eletrônica, fichários, minha
datilógrafa, amigos, parentes, ex-alunos.
LFJ | Nesses casos a balbúrdia se instalava?
UP | Pelo menos a falação crescia, no número
de vozes combinadas, discordantes, interpenetradas. O mais frequente, porém,
era o visitante limitar-se a verdadeiro picadinho de conversa. Outro, a papo de
aranha, emaranhado e levianinho. Outro, ainda, pedia licença ao grupo e expunha
de modo engatado, assim, com toda corda solta. Em certos momentos, aquele que
teria algo de novo a relatar, adiantava-se para em seguida calar-se, no meu
palratório dominical. Ao contrário, os que nada teriam a declarar, posto que os
fatos já haviam tomado a palavra, esses, seguiam pipilando sem o menor desconfiômetro,
até que eu acionasse a minha sineta para jogá-los no limbo das testemunhas
findas, classificadas e datadas.
LFJ | Como você percebia, afinal, se estavam
sendo verazes? Aliás, quando foram verídicos ou mentirosos? Havia algum
critério de verdade?
UP | Ah jamais contariam a verdade: sempre
diriam uma meia verdade ou uma verdade-e-meia sobre a donzela que o encapuzado
garroteou de modo infame, essa heroína trocadora-de-formas e sem qualquer nome
próprio, sem um nome íntimo e definido, só glossolalias do tipo Bê, Bó, Biú,
ruídos assim…
LFJ | Exercendo sua privilegiada função de
Ouvidor Geral, você lhes fazia também algumas perguntas indiscretas?
UP | Eu dava início, sim, todos os domingos,
no meu pensatório, a uma inquisição exterior e interior, uma outra Divina
Inquisição. Estabelecia um tribunal meio fantasmático, onde os visitantes e o
outro lado de mim, o outro lado de mim e os depoentes, juntos, colados,
participamos das questões e dos responsórios em pé de igualdade, dividindo as
responsabilidades. Ora, sucede que mais de um ficava desconfiado com certas
perguntas ou soluções minhas, embirrando ou discutindo furiosamente, talvez por
lhe parecer que eu me deleitara em despi-lo daquela seriedade com que se
apresentara enquanto Falante.
LFJ | Você também se irritou, em certas
momentos quando eles o colocaram em xeque?
UP | Naturalmente. Ninguém é de ferro. Em
certos lances, o meu espírito, assim dividido e perturbado, recusou-se a
aguentar a sobrecarga de tensão e conflito. Desandava, então, a gritar: que
viessem com mais calma, devagarinho, um de cada vez, pedindo licença para
emitir seus julgamentos de valor, compreendendo meus limites. E nos momentos
mais graves, de situação extremas, quando se recusavam mesmo a obedecer-me,
ordenei-lhes que retornassem aos purgatórios até a semana próxima, fechava o
escritório e ia dar uma volta no quarteirão, fazer o meu cooper, tomar um café
na esquina e refrescar a moringa em chamas.
LFJ | Escutou-os sempre com resignação e
ternura?
UP | Na medida do possível, fui um delicado e
competente Ouvidor Geral. Essa é a minha avaliação do trabalho, pelo menos.
Recebi topetudos e moicanos, que conviveram por horas e horas com carecas
agressivos, militantes esquerdistas, nobres de cartola e fraque, tocadores de
viola e harpistas, barrocos, padres, executivos, meninas de coturno e boinas
militantes. Além de um grupo em fusão, interessado em reciclar a estética
sadomasoquista da By, suas coleções de espartilhos expostos, barbatanas de
alumínio, saltos e bicos pontiagudos. Não me arrependo desse liberalismo todo…
LFJ | Interrogou-os de boa vontade? Ou
preferiu sempre, no teatrinho da má-consciência, o ponto de vista deles – dito
por você mesmo?
UP | Procurei interroga-los de boa vontade,
anotei os nomes, estados e condições de cada um desses Falantes. Objetivamente,
cuidei de lhes registrar as traquinices, experimentos, lérias, ranhetices,
banalidades, delírios verdadeiros ou ideias de ficção sobre aquela santíssima e
pastuta de coração esfolado vivo. Levei-lhes em conta os sentimentos, ódios e
amores, desejos e raciocínios. Quando me cansava de estenografar, punha em ação
os gravadores de voz. Depois, transcrevia os blocos de frases, pontuando e
padronizando graficamente. Devo acrescentar, porém, que não sou fácil de
contentar. Resignação, paciência, compreensão – muito bem. Ótimo. Agora: ser
embrulhado, representar o papel de bobo por conta própria, lá isso nunca. E não
mesmo! Quis penetrar. Assim, até o âmago desses personagens à procura de um
autor, por meio de indagações muito longas e sutilíssimas, especiosas,
pertinazes e implacáveis.
LFJ | Não é sem razão que elas vivem
espalhando, por Àssombradado e colônias: você se teria portado como um Grande
Inquisidor sem entranhas, duro, traiçoeiro, crudelíssimo, perverso ao grau
máximo. Concorda? Você é ruim?
UP | Corta essa, cara. Seria preciso na
realidade um crítico de bom senso para demonstrar quanta compaixão eu oculto
sob os risos e as ironias, sarcasmos e observações desmistificadoras. Será
possível, afinal, um escritor compadecer-se de certas desgraças alheias – o
ridículo, a falsa gravidade, a mesmice solene, o infantilismo, a toleima – a
não ser com a condição de rir delas?
LFJ | Mas onde localizar, hoje, esses
críticos?
UP | Ah, que os Falantes saiam por aí, então,
já que isso me parece mesmo inevitável. E que obtenham até algum sucesso de
escândalo, fazendo a única coisa na qual se tornaram mestres: palrar e palrar,
em trêmulo gorjeio ou pipio de falsete, chorrilho de falácias ou beletrismos de
maviosa elegância vernácula. No fundo, só ajudarão na publicidade gratuita,
boca a boca, de Ruidurbano. Melhor,
impossível: as criaturas se rebelam e desta forma promovem o criador e seu
romanção, aqueles bestalhões, com línguas de fel e vidro moído nas entranhas.
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Agulha
Revista de Cultura
UMA AGULHA
NO MUNDO INTEIRO
Número 155 |
Julho de 2020
Artista
convidado: Isabel Ruiz (Guatemala, 1945-2019)
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de
textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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