quinta-feira, 30 de julho de 2020

LEONARDO FROES JR | A nova inquisição “outra”


Tudo se passa como se houvesse um cadáver no armário da filosofia, da crítica literária, da psicologia da composição, da metalinguagem. Sim, um cadáver de mulher ainda jovem – o último avatar do eterno feminino, talvez – continua espantando, assombrando e aterrorizando seus contemporâneos: todos falam a respeito dela, compulsoriamente, sem o menor descanso. O assassinato da menina-moça provoca um coro de rumores, segundo Thomaz de Campos, um dos poucos a ter acesso aos originais: Cabelos de um negro sinistro, / sua pele bronzeou-a Satã, lembra o ensaísta, citando Théophile Gauthier.
Ruidurbano, livro que recolhe essa tempestade verbal – depoimentos, fofocas, plás, pipilações, testamentos, malícias, relatos escatológicos – estará nas livrarias, enfim, a partir da semana vindoura. Fomos dialogar com Uílcon Pereira, autor do romance (ou colagista dos boatos, como prefere qualificar-se), na sala de antiguidades do gabinete de leituras Mario de Andrade, onde trabalha cercado de alfarrábios, almagestos, portulanos, mapas do céu e incunábulos, dispostos sobre enormes távolas redondas. Quarta dimensão, paisagem de Grandes Mitos, sem dúvida nenhuma. País das fábulas.

LFJ | Ruidurbano será mais um folheto de minicontos, uma plaquete de histórias breves, como seu anterior, A educação pelo fragmento?

UP | Longe disso, meu amigo. Trata-se de um calhamaço cósmico, um catatau de 482 páginas.

LFJ | Por que tal número, precisamente?

UP | Veja só a primeira edição do Grande Sertão: Veredas, que ainda uso e conservo como totem e tabu, fetiche – 482 páginas, ele também. Idem, a edição príncipe do Ulysses joyceano, de 1922, que o próprio Oswald de Andrade teria lido no Hotel Miramare, nesse mesmo ano decisivo para o modernismo. Além disso, é de minha parte um coquetismo supersticioso: o sete, seus múltiplos (7, 14, 21, 28, 35) e somatórias de algarismos que resultem em sete ou múltiplos, número mágico, cifra da sorte – 16, 25, 1922, 482, precisamente, 482 páginas impressas.

LFJ | Um imperativo profundo, então?

UP | Ah sim, muito profundo, de ordem inconsciente e mística, incompreensível até para os meus esquemas racionais mais elaborados e amadurecidos. Por outro lado, funciona também, no meu caso pessoal, a título de medida áurea ou divina proporção, um arquétipo da forma perfeita e harmoniosa, da qual não consigo mesmo fugir. A trilogia No coração dos boatos, com a qual fiz a minha estreia na república das letras, perfaz igualmente 464 páginas; soma das unidades: 14, múltiplo de 7, de novo e sempre. Ruidurbano será outra variação a partir da mesma arquitetura fundamentada no número sete, que tradicionalmente foi desenvolvido pelos grandes mentirosos da literatura clássica – meus ancestrais, irmãos e cúmplices, companheiros de viagem.

LFJ | Mas você era vidrado em publicações mais leves e funcionais, do tipo folheto, jornal, revista, cartão, plaquete, fax, arte postal?

UP | Ao contrário, meu querido. Suportei o chamado formato curto, tão-somente. Foi um acidente de percurso. Um livro que não fica em pé na estante, eu acho que não vai mesmo ficar em pé na eternidade.

LFJ | De onde você retira assim tanto fôlego e inspiração, tanto volume literário?

UP | É antigo hábito meu dar audiência, cada manhã de domingo, às personagens das futuras histórias. Cinco horas, das oito às treze. Pois bem, nos últimos anos – sete- para não variar nunca – encontrei-me sempre em má companhia. Não sei por qual razão ou jogos do destino, a essas audiências acorreram aos magotes, em confusão total, as gentes mais obsessivas do mundo, afligidas por uma espécie de mal estranho, com o qual foi penoso lidar: só falavam de uma jovem mulher assassinada, por garroteamento vil, na madrugada de uma noite de vento seco, ali nos fundos do Bar Pirandello, na rua Augusta. Essas figuras me forneceram o material necessário para o livrão, todo esse volume literário, como você disse. Meu trabalho reduziu-se a quase nada: selecionar, cortar, enxugar um pouco, montar o conjunto, passar um verniz no estilo geral das conversatas, trololós, discussões, falaricos e reconfabulações.

LFJ | E quantas personagens você recebeu por semana, em média?

UP | Disso não me queixo, pois em média compareciam trinta e cinco depoentes – cinco grupos de sete pessoas ou sete conjuntos formados por cinco Falantes. Uma vez ou outra, a assuada era tão grande que me via obrigado a atender simultaneamente a bandos inteiros, toda a companhia selecionada previamente, via secretária eletrônica, fichários, minha datilógrafa, amigos, parentes, ex-alunos.

LFJ | Nesses casos a balbúrdia se instalava?

UP | Pelo menos a falação crescia, no número de vozes combinadas, discordantes, interpenetradas. O mais frequente, porém, era o visitante limitar-se a verdadeiro picadinho de conversa. Outro, a papo de aranha, emaranhado e levianinho. Outro, ainda, pedia licença ao grupo e expunha de modo engatado, assim, com toda corda solta. Em certos momentos, aquele que teria algo de novo a relatar, adiantava-se para em seguida calar-se, no meu palratório dominical. Ao contrário, os que nada teriam a declarar, posto que os fatos já haviam tomado a palavra, esses, seguiam pipilando sem o menor desconfiômetro, até que eu acionasse a minha sineta para jogá-los no limbo das testemunhas findas, classificadas e datadas.

LFJ | Como você percebia, afinal, se estavam sendo verazes? Aliás, quando foram verídicos ou mentirosos? Havia algum critério de verdade?

UP | Ah jamais contariam a verdade: sempre diriam uma meia verdade ou uma verdade-e-meia sobre a donzela que o encapuzado garroteou de modo infame, essa heroína trocadora-de-formas e sem qualquer nome próprio, sem um nome íntimo e definido, só glossolalias do tipo Bê, Bó, Biú, ruídos assim…

LFJ | Exercendo sua privilegiada função de Ouvidor Geral, você lhes fazia também algumas perguntas indiscretas?

UP | Eu dava início, sim, todos os domingos, no meu pensatório, a uma inquisição exterior e interior, uma outra Divina Inquisição. Estabelecia um tribunal meio fantasmático, onde os visitantes e o outro lado de mim, o outro lado de mim e os depoentes, juntos, colados, participamos das questões e dos responsórios em pé de igualdade, dividindo as responsabilidades. Ora, sucede que mais de um ficava desconfiado com certas perguntas ou soluções minhas, embirrando ou discutindo furiosamente, talvez por lhe parecer que eu me deleitara em despi-lo daquela seriedade com que se apresentara enquanto Falante.

LFJ | Você também se irritou, em certas momentos quando eles o colocaram em xeque?

UP | Naturalmente. Ninguém é de ferro. Em certos lances, o meu espírito, assim dividido e perturbado, recusou-se a aguentar a sobrecarga de tensão e conflito. Desandava, então, a gritar: que viessem com mais calma, devagarinho, um de cada vez, pedindo licença para emitir seus julgamentos de valor, compreendendo meus limites. E nos momentos mais graves, de situação extremas, quando se recusavam mesmo a obedecer-me, ordenei-lhes que retornassem aos purgatórios até a semana próxima, fechava o escritório e ia dar uma volta no quarteirão, fazer o meu cooper, tomar um café na esquina e refrescar a moringa em chamas.

LFJ | Escutou-os sempre com resignação e ternura?

UP | Na medida do possível, fui um delicado e competente Ouvidor Geral. Essa é a minha avaliação do trabalho, pelo menos. Recebi topetudos e moicanos, que conviveram por horas e horas com carecas agressivos, militantes esquerdistas, nobres de cartola e fraque, tocadores de viola e harpistas, barrocos, padres, executivos, meninas de coturno e boinas militantes. Além de um grupo em fusão, interessado em reciclar a estética sadomasoquista da By, suas coleções de espartilhos expostos, barbatanas de alumínio, saltos e bicos pontiagudos. Não me arrependo desse liberalismo todo…

LFJ | Interrogou-os de boa vontade? Ou preferiu sempre, no teatrinho da má-consciência, o ponto de vista deles – dito por você mesmo?

UP | Procurei interroga-los de boa vontade, anotei os nomes, estados e condições de cada um desses Falantes. Objetivamente, cuidei de lhes registrar as traquinices, experimentos, lérias, ranhetices, banalidades, delírios verdadeiros ou ideias de ficção sobre aquela santíssima e pastuta de coração esfolado vivo. Levei-lhes em conta os sentimentos, ódios e amores, desejos e raciocínios. Quando me cansava de estenografar, punha em ação os gravadores de voz. Depois, transcrevia os blocos de frases, pontuando e padronizando graficamente. Devo acrescentar, porém, que não sou fácil de contentar. Resignação, paciência, compreensão – muito bem. Ótimo. Agora: ser embrulhado, representar o papel de bobo por conta própria, lá isso nunca. E não mesmo! Quis penetrar. Assim, até o âmago desses personagens à procura de um autor, por meio de indagações muito longas e sutilíssimas, especiosas, pertinazes e implacáveis.

LFJ | Não é sem razão que elas vivem espalhando, por Àssombradado e colônias: você se teria portado como um Grande Inquisidor sem entranhas, duro, traiçoeiro, crudelíssimo, perverso ao grau máximo. Concorda? Você é ruim?

UP | Corta essa, cara. Seria preciso na realidade um crítico de bom senso para demonstrar quanta compaixão eu oculto sob os risos e as ironias, sarcasmos e observações desmistificadoras. Será possível, afinal, um escritor compadecer-se de certas desgraças alheias – o ridículo, a falsa gravidade, a mesmice solene, o infantilismo, a toleima – a não ser com a condição de rir delas?

LFJ | Mas onde localizar, hoje, esses críticos?

UP | Ah, que os Falantes saiam por aí, então, já que isso me parece mesmo inevitável. E que obtenham até algum sucesso de escândalo, fazendo a única coisa na qual se tornaram mestres: palrar e palrar, em trêmulo gorjeio ou pipio de falsete, chorrilho de falácias ou beletrismos de maviosa elegância vernácula. No fundo, só ajudarão na publicidade gratuita, boca a boca, de Ruidurbano. Melhor, impossível: as criaturas se rebelam e desta forma promovem o criador e seu romanção, aqueles bestalhões, com línguas de fel e vidro moído nas entranhas.

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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 155 | Julho de 2020
Artista convidado: Isabel Ruiz (Guatemala, 1945-2019)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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