quinta-feira, 30 de julho de 2020

FLORIANO MARTINS | Hipopocalipsis, Ruidurbano & Uílcon Pereira


1. A FICÇÃO DE UÍLCON PEREIRA

Defende Marcel Schwob que o ponto de partida moral do homem é o egoísmo. Conclui-se, a partir de então, que a perversão é um atributo natural que determina e aprimora a existência humana. A poesia e seu mundo povoado de imagens alucinantes fundamenta o princípio de toda perversão, a partir de um sentido absoluto de descontinuidade. Diz o poeta: sou todos os homens. E o diz justamente por compreender, mais do que qualquer outro, a múltipla diferença que existe entre os homens, por habitar com seu próprio ser essa morada descontínua e abissal. Sabe que somente no âmbito de suas criações estéticas consegue demonstrar tal diferença, ainda que isto implique – o que verdadeiramente se dá – em seu afastamento do mundo. Julga-se a si mesmo, portanto a partir de sua própria perversão, e de sua noção extrema de comunhão de todos os seres. Graças ao ponto de partida moral defendido por Schwob compreendemos melhor a definição de um eu devorador, obsessivo em sua fome de imagens e identidades, um eu interior em perpétua mudança, essência da genialidade de Shakespeare, segundo a explicação de Harold Bloom. Trata-se, sobretudo, do eu que determina a perversão do criador, não limitando o cenário a um simples jogo de ambivalências, mas sim a um fluir e refluir de egos em combate mortal. Representando a si mesmo, em seus excessos de descontinuidade, evidencia o poeta o sentido maior da experiência como transitoriedade, passagem contínua de um estado de espírito a outro.
Há muitos casos em que a ironia é um instrumento preciso e inconfundível dessa evidência, expressa em múltiplas faces a partir da intensidade com que a assume o poeta. Pensemos na ironia corrosiva de Kafka ou na sofisticada agudeza irônica da prosa borgeana. Evidencie o poeta uma verdade alegórica ou a transcendência de sua própria verdade interior, defenda a originalidade do arbítrio ou o arbítrio da originalidade, sua obra não encontrará radical mais contundente do que o de sua própria invenção, organismo vital do que quer que venha a violar. Seguramente o leitor não se revelará figura indispensável ao universo de tais aparentes contradições enquanto não entender a harmonia hierárquica com que essas forças interagem. Antes do leitor, é natural, interessa-nos aqui a presença inconfundível do criador, hoje uma espécie de audaz sobrevivente à fanfarra publicitária de uma arte feita para todos – em dissonância brutal com o dístico memorável de Lautréamont.
Define-se a obra de Uílcon Pereira (São Paulo, 1946-1995) dentro daquela obsessiva voracidade do eu shakespereano, obsessão desdobrada a partir de sua visão peculiar do exercício de autoironia e do sentido omnívoro de sua versão da originalidade. Lugar evidente da intertextualidade, ao mesmo tempo em que cenário vertiginoso do saque, da pilha; não pura e simples usurpação divertida do texto alheio – como entende parcela da crítica –, mas sim um exercício de invasão aos prejuízos causados pelos domínios precários e evasivos de um falso sentido de originalidade. Mesmo em sua grande e pacífica diversão, não busca outra coisa o texto de Uílcon Pereira – em seu fundamento irônico – que não seja a negação da originalidade como extensão de uma realidade literária. Insiste em dizer: sou todos os homens, recusando a deformidade de seu tempo em torno dos falsos atributos da identidade do ser.
Alimentada por suas leituras – ele mesmo um sequioso e confesso devorador de textos –, não se define sua vontade criativa pela violação criminal do alheio, mas sim pelo questionamento corrosivo dos fantasmas que determinam os usufrutos da arte, da criação. Em tal sentido, há um grande equívoco na leitura que se tem feito da obra deste poeta: não reproduz textos alheios, mas sim os deforma a partir de uma consciência irônica de que a diferença somente será evidenciada pela descontinuidade, em seu grau zero de transformação constante da matéria-prima. Talvez pudéssemos falar em paródia, se acaso mantivesse alguma espécie de diálogo com o alheio convocado. Disse-me o poeta argentino Leónidas Lamborghini (1927-2009), em entrevista que lhe fiz: Interessa-me a paródia como olhadela da qual as coisas são vistas bem distintas… A paródia, penso, é nossa tragédia verdadeira e, portanto, teria que ser nossa arte verdadeiramente séria. De fato, há uma distinção crítica estabelecida pela paródia que complementa nossa defesa da descontinuidade. Contudo, no caso de Uílcon Pereira não se pode falar em paródia ou, se preferem, no exercício paródico em isolado.
Um de seus pares, o romancista Deonísio Silva, refere-se ao empreendimento de uma espécie de arqueologia narrativa, na medida em que [seus textos] retomam fios que pareciam meio extraviados da ficção atual. Também não creio em tal ação isolada, sobretudo porque ponho em discussão a aplicação das usuais delimitações genéricas na leitura crítica da obra de Uílcon Pereira. Não radica, portanto, a obsessão de sua escrita na busca de um conhecimento dilatado do universo literário ou no diálogo – ainda que movido por uma fina ironia – com seus pares ou sistemas narrativos que lhes sejam contemporâneos. É outra a ordem de sua perversão, outro o ponto de partida de seu egoísmo criador. Está certo Camilo Mota, este sim, ao observar a descaracterização da própria ideia de ficção, seja ela qual for. É tão amplo o universo de deformação intertextual em que age a escrita de Uílcon Pereira que soaria redutor buscar sua definição a partir do pastiche, da paródia, da metalinguagem romanesca etc. O que mais se aproximaria seria a colagem, de acordo com seu entendimento de uma alquimia da imagem, conforme defendia Max Ernst, naturalmente referindo-se ao universo visual. No entanto, não busca Uílcon Pereira – como esperava Breton que a colagem o fizesse, em seu território plástico – uma reorganização do espaço literário, mas sim uma acentuada evidência do caos que determina o sentido de originalidade em nosso tempo, a precariedade com que a arte se move em um universo de ações e reações engendradas por uma noção degradante de servilismo do homem em relação a seu próximo. Não há arte sem perversão, não sobrevive o homem longe de seu ponto de partida moral, eis no que insiste a obra de Uílcon Pereira ao fundamentar o sentido absoluto de sua descontinuidade: sou todos os homens. Desta maneira, erra ainda Fábio Lucas ao observar que o centro de gravidade dessa aventura poética radica na tumultuada realidade brasileira. Sequer a questionante raiz do provincianismo urbano presente em seus livros pode ser observada como um universo limitado pelo prisma do nacionalismo. O desprograma a que se reporta a evidência de sua escrita é de caráter humanístico. Refere-se, portanto, à tumultuada realidade humana.
E qual então a evidência da obra de Uílcon Pereira? Dupla ação: um permanente sentido crítico em relação ao nonsense prefixado pela indústria da arte e a defesa constante de um espaço da diferença, da descontinuidade. Todos os meandros de sua escrita são o território de um diálogo permanente, pensemos na série de entrevistas que compõem Ruidurbano (tomo I: Entre/vistas, 1992; tomo II: Uma antologia, 1993) ou na tessitura fabular que orienta o leitor a circular pelos espaços prismáticos do que ele próprio denomina de cidade não-lugar, no caso de A educação pelo fragmento (1996). No primeiro: a evidência se mostra na forma de uma corrosiva ironia: a articulação jornalística de um romancista que percorre todos os cenários de difusão de sua obra, colhendo os louros de sua pródiga aceitabilidade no mercado editorial. Alimenta-se o autor – protagonista de sua própria trama – de um cruzamento múltiplo de reações oriundas do lance intrincado dos arquétipos de nossa sociedade. Sujeita-se então a uma série de entrevistas – programas de auditório, revistas especializadas, folhetins de subúrbio, rádios interioranas etc. –, onde cinicamente ilude a todos com um pastiche bizarro que aglutina Cervantes e Blade runner, canções pop e Justine, Guimarães Rosa e Satiricon, tiras de gibi e O jogo da amarelinha.
No segundo: fragmenta-se em infinitos eus que confluem para a formação de uma verdadeira unidade territorial, reverberações de um espaço idealizado com ironia pelo autor, o lugar comum da própria existência humana. Como se fosse um compositor pop com formação clássica, sua escrita articula-se através de compassos insólitos, algo incomuns, quase sempre fora de tempo. Suas variações, contudo, são todas em torno de um mesmo tema: Àssombradado. O não-lugar de que nos fala faz com que sua poética não radique na corriqueira argumentação do fragmentário, mas sim na definição de um espaço indiscutível da unidade. Não se perde em si. Ao contrário: desorienta a todos para que a partir dessa desordem momentânea possa fundar seu território poético.
Seja o escritor-personagem sarcástico de Ruidurbano ou as múltiplas vozes que habitam a fábula de A educação pelo fragmento – e o mesmo se verifica e acentua-se nos seis livros que seu espólio conserva ainda inéditos –, há uma única personagem central na escrita de Uílcon Pereira: o não-lugar ou cidade imaginária em que se constitui Àssombradado. Não se trata, contudo, da idealização de um visionário, mas sim de uma perturbadora visão crítica do espaço habitado por sua própria contemporaneidade. Não descreve uma angústia da imaginação, mas sim um universo de relações inseparáveis entre o grotesco e o banal. Não se trata de transe e sim de um diferencial de consciência. Sua geografia humana é vertiginosa como a própria estrutura biológica de nossa percepção da realidade. Sua afeição pelo fragmento? Recordo Italo Calvino ao definir que sua vida funcionava à base de elencos: listas de coisas que ficaram em suspenso, projetos que não se realizaram. Confunde-se o lugar do mito com o do fragmento. O próprio Calvino suspeitava que a mente humana só funciona à base de mitos, e que a única alternativa consiste em adotar um código mítico em lugar de outro. Tudo nos leva a crer que Uílcon Pereira já solucionou tal suspeita, concluindo pela indevassável permanência do mito e suas articulações peculiares. Assim é que Àssombradado é sua cidade-escrita. Não a exemplo da cidade imaginária do construtivismo de Paul Klee ou da idealização fantástica de García Márquez ou mesmo das representações angustiantes da terra inóspita de Eliot. Sua reflexão acerca de um não-lugar é a eleição de um lugar comum a toda sorte de mediocridade que tem definido a ação humana neste final de século. Àssombradado é a epígrafe brutal e inevitável de tudo quanto configure o elenco de contradições e ridicularias de que se alimenta o homem em nosso tempo.
Mesmo na trilogia anteriormente publicada, No coração dos boatos (tomo I: Outra inquisição, 1982; tomo II: Nonadas, 1983; tomo III: A implosão do confessionário, 1984), quando ainda sofria uma acentuada atração por Pierre Menard e as táticas burlescas do palimpsesto, já era possível observar que sua fiação narrativa buscava a síntese de um não-lugar. Não nos cabe, no entanto, discutir o quanto que Uílcon Pereira despoja-se de suas obsessões ao ambientar, com sua ironia convulsiva, os obscuros territórios da divina comédia humana (Belchior). Importa, isto sim, salientar o risco que corre ao definir um espaço vertiginoso de descobertas – de si mesmo, afinal – ao leitor que se aventure no desdobramento perene de sua leitura. O excitante em sua narrativa fragmentada, na plenitude de seus ardis, não é a exigência de uma credibilidade no artifício que tece, mas sim a identificação com o enigma de seu curso, com a realidade efêmera, ostensivamente banal, de seu mundo rotulado justo pelo desgaste das relações diretas entre os homens.
Há uma teoria da descontinuidade que necessita ser defendida a ferro e fogo. Não há uma linguagem idealizada, ao mesmo tempo em que o mundo dos signos é o mundo das diferenças, do exercício perene da sensibilidade. Não há outra maneira de imaginar senão à luz da diversidade. Somente a diferença toca o indivíduo. Por outro lado, nenhum poeta realiza-se fora de sua escrita. Ao questionar a fragilidade difusora da obra de Uílcon Pereira – em grande parte resumida a seu estoico esforço epistolar –, não faço senão recusar qualquer argumento que impeça o trânsito de uma das mais contagiantes aventuras livrescas que se tenha a dispor entre nós. O envolvimento de sua escrita – sobretudo a partir desse diferencial de consciência crítica a que já me referi – conclama alguns de seus célebres pares, lamentavelmente um tanto ausentes da realidade editorial brasileira: Francis Ponge, Hermann Broch, Marosa di Giorgio, Robert Graves, William Burroughs. Átomos, claro, mas que garantem a convulsão descontínua em que age o humano em nós. Assim o faz a educação pelo fragmento (alheio) em Uílcon Pereira, justamente em função de uma evidência do descontínuo, raiz de toda poesia.

2. A MELHOR ENTREVISTA QUE EU NÃO FIZ

Entrevista originalmente publicada no SLMG – Suplemento Literário Minas Gerais, Belo horizonte, 14/06/1986. Devo, no entanto, esclarecer que a entrevista não foi feita por mim, e sim pelo próprio Uílcon Pereira. O resultado, por sinal excelente, não reflete o mundo de perguntas que eu lhe teria a fazer, mas antes as respostas que ele gostaria de dar. Assim é que às perguntas que originalmente lhe enviei ele sobrepôs outras, mantendo intactas tão-somente as duas últimas. Tal entrevista, deste modo, poderia muito bem ser incluída no livro Ruidurbano: entre/vistas (1992), onde Uílcon recolhe diálogos reais e imaginários, sempre mesclando ficção e realidade, como essência de sua criação.

FM | Filósofo, crítico literário e de artes plásticas, romancista, o que diabos é Uílcon Pereira?

UP | Por favor: filósofo, não. Jamais. De jeito maneira. Sou de fato bacharel em Filosofia pela USP, mais ou menos por equívoco e por acaso. Hoje dou aulas dessa matéria, na Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara. Procuro disfarçar a minha incompetência (talvez irremediável) desenvolvendo um grande respeito aos alunos, paixão pelos temas abordados e alguma dose de imaginação criadora. As relações com as artes plásticas foram mais breves, tranquilas e gratificantes. Redigi duas teses acadêmicas sobre a pintura contemporânea. Em ambas, refleti de modo teórico, genérico e abstrato, acerca dos vínculos entre figuração e escrita, linguagem verbal e signos visuais. Nada além disso. Sinto-me um verdadeiro selvagem – ingênuo, espontâneo, desinformado, meio aturdido – quando visito os museus, bienais, galerias, ateliês. No último balanço da peneira, então, só resta um candidato a ficcionista, assumindo e aperfeiçoando uma razoável capacidade de narras estórias. Sou apenas um fabulador, e nada do que diz respeito à fabulação me é estranho, desde as piadas de barbeiro até o fineganês que James Joyce laboriosamente fabricou.

FM | E o crítico literário, você se esqueceu dele?

UP | Esse, nunca existiu mesmo. É só maravilhosa generosidade do entrevistador. Produzi cinco ou seis resenhas para a Folha de S. Paulo, somente para fazer mais um exercício intelectual. E vários prefácios para livros de amigos, lances de fraternidade e admiração. Nesse domínio, minha inabilidade chega à perfeição. Sou incapaz de análises objetivas, julgamento de valor, contextualizações precisas das obras em questão. Reajo como subjetividade no estado puro: gosto ou não, sob o signo do amadorismo e do primarismo emocional, projetando os meus próprios desejos e fantasmas. Adaptando uma frase de Autran Dourado, não sei se falo delas ou de mim, ao falar delas e de mim. Mire e veja, portanto: sobrou mesmo um candidato a narrador, apenas um ficcionista que começa a inventar seus caminhos e horizontes.

FM | Então, que ele nos diga quais as suas principais referências/influências/confluências.

UP | Penso que fundamentalmente as coisas podem organizar-se em volta da ideia de intertextualidade, e da constelação de noções por ela sugerida: diálogos entre textos, polifonias, entrechoques de vozes e dicções, apropriações de discursos alheios, paródias, pastiches, interpolações, deformações das palavras dos outros, cruzamentos e descruzamentos de falas simultâneas e múltiplas. Isso, no plano formal, enquanto uso de técnicas e meios narrativos. Mas sempre em homologia – profunda e essencial – com o próprio universo ficcional que eu pretendo constituir. Assim, nos meus escritos – bem de acordo, aliás, com a estética e a visão-de-mundo que hoje se convencionou chamar de pós-modernista – roubo e transformo o discurso alheio, para instituir um conjunto de incessantes metamorfoses dos personagens, cenários, conflitos básicos, situações-limite, perspectivas ideológicas. Neles, enfim, tudo flui, tudo parece deslizar constantemente. E faço emergir deste modo um cosmos dinâmico, ágil, ambíguo, febril, polimorfo a um grau extremo e quase à beira do inapreensível.

FM | Mas a ideia de trabalhar com colagens, como romance, vem de onde? De onde vem o insight?

UP | Providencial questão. Oferece-me a oportunidade de mergulhar um pouco nas raízes existenciais do meu fazer literário. Há quase duas décadas, eu desejava contar mirabolantes estórias. Elaborava-as mentalmente, sonhava com elas, chegava até mesmo a relatá-las oralmente. Porém, um indestrutível bloqueio psicológico me impedia de coloca-las no papel. Um perigo me rondava sempre: jamais ultrapassar as fantasias de um bem-intencionado candidato a escritor, que iria passar a vida em plena esterilidade, apenas consumindo os escritos dos outros. Então, certa madrugada de chuva, frio e solidão em quitinete na Boca do Lixo paulistana, olhei com vagar as estantes que me rodeavam: pilhas de livros, revistas, jornais, quadrinhos, catataus e cartapácios, novelas, poemas, ensaios e tratados, manuais e antologias, dicionários, crônicas. Encarei aquela minibiblioteca de Babel como se a enxergasse pela primeira vez, com olhar inaugural, de amor-ódio, atração dolorosa, espanto e estranhamento. Para o que servia, afinal, tanto material impresso? Qual o auxílio que me oferecia? Traria a chave para sair de meu impasse? No meio dessa crise de amadurecimento à força (eu questionava a própria significação da minha existência, dialogava em abismo com o meu próprio destino) deu-se uma espécie de visão mágica – epifania, telegrama do inconsciente, voz do demônio interior, presente dos deuses do verbo, sei lá, jamais o saberei integralmente. A súbita iluminação: eu poderia gerar universos imaginários, poderia fixas as minhas queridas fabulações através de uma simples colagem de fragmentos daqueles textos pré-existentes. Bastava-me selecionar, recortar, copiar, juntar ou superpor trechos de todos os impressos do mundo, saqueados e reduzidos por mim à condição de matéria-prima em estado bruto, de encontrado-feito, de encontrado-escrito à espera da minha soberana e livre manipulação. Pronto, começava aí mais uma delirante aventura artística: a prosa-colagem.

FM | Mas você conhecia as experiência de colagem, assamblage, ready-made, apropriações. Duchamp, Schwiters, o cubismo, Ernst, a pop art já faziam parte da sua formação cultural?

UP | Sem dúvida, ainda que de forma superficial e fragmentária. E também as primeiras colagens em cinema, Godard ou o underground norte-americano; a técnica das citações em Pound e Eliot, por exemplo; a costura de mitos brasílicos, no Macunaíma; Serafim Ponte-Grande, com seus lances de simulação de um livro feito de inúmeros livros, segundo a fórmula de Haroldo de Campos. A colagem, como procedimento estético-ideológico, era uma das forças atuantes desde o início do século. Planava no ar do tempo, digamos. Para a prosa de ficção era só agarrar, transplantar de modo coerente e sistemático, deixar florescer integralmente. Eu pressentia, naquela madrugada, todas essas necessidades, potencialidades e fascínios. Regra primordial, para a nova ficção: jamais escreva uma só palavra de sua própria autoria; anule o falso ego, a sacrossanta subjetividade, a crença no autor como emissor pleno e exclusivo dos discursos narrativos.

FM | Por isso, então, é que você lançou mão da frase de Flaubert, como epígrafe de Outra inquisição, o primeiro volume da sua trilogia?

UP | Com efeito, prestei uma homenagem a esse meu progenitor ilustre. Será necessário que em todo o livro não haja uma só palavra de minha autoria, dos projetos para Bouvard et Pécuchet, eu transpunha para: Será necessário que, em todo o processo, não haja uma só palavra de minha autoria. A frase anunciava a grande (talvez a única) novidade da minha inquisição outra. Eu apontava, honesta e explicitamente, para o formidável companheiro de viagem, aquela espécie de artesão mítico e gênio tutelar das letras contemporâneas. Afinal, Flaubert era sua Penélope, no verso de Pound. Por outro lado – e como reforço – a abertura de Nonadas também é reveladora. O plágio é necessário, do Conde de Lautréamont, ali comparece assim travestida: Aqui, nesta sucessão de entrevistas, o plágio é necessário. Mas se houver uma reedição (coisa que não incentivo nem repudio), porei no umbral da trilogia esta colocação de Borges, em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: Não existe o conceito de plágio: se estabeleceu que todas as obras são obra de um só autor, que é intemporal e é anônimo. Parece-me definitiva, assim curta e sutil. Sintetiza às maravilhas o meu programinha como criador de literatura (ou de anti-literatura?).

FM | Mas quem estabelece o novo princípio? Onde vai parar a noção de propriedade privada? E os direitos autorais? E os interesses das grandes editoras comerciais?

UP | Quero que se lixem. Pode haver algo mais urgente e mais coerente, em termos de arte progressista, do que batalhar pela implosão de todos esses baluartes das velhas formações capitalistas? Quem instaura essa nova escritura? Em uma só palavra: Quem. Escrevo para conhecê-lo, apreendê-lo, fixa-lo de uma vez por todas. Até mesmo: a fim de tentar eliminá-lo, para acabar de ver com o julgamento desse perverso Quem. Boa pergunta, talvez a primeira e última, do ponto de vista lógico: Quem?

FM | Desaparece a tão famosa e mitificada criação individual? Você disse um longo adeus à liberdade criadora? Ao pessoal e intransferível?

UP | Cuidado com o andor: apenas o material de partida é que pertence a outrem. O restante que é, por sinal, o decisivo nesta empresa – precisa ser, só pode mesmo ser cada vez mais singular, pessoal, irredutível, intransferível, inédito. De preferência: confessional, expressão dos grandes fantasmas individuais e coletivos, documentos de uma crise civilizacional, coração desnudado, crítica e denúncia violenta das injustiças, alienações, torturas, expropriações, preconceitos, privilégios criminosos. Nenhuma concessão ao formalismo ou à literatura sorriso-da-sociedade. Senão, o charme desaparece, o intertexto vira antologia de passagens notáveis, demonstração de cultura livresca, beletrismo estetizante. A energia que motiva e lastreia o desenvolvimento de uma estória-colagem, essa, não se aprende no colégio, na faculdade ou nas mesas de leitura da biblioteca de Babel, de Bizâncio, de Alexandria, de São Paulo, do Rio ou de Belo Horizonte. Os fragmentos já trabalhados pelos outros fornecem o som; da fúria, porém, eu não quero abdicar jamais. Eu, quem? Quem? Eis aí um enigma que até pode gerar uma original estória, uma fábula, um mito ou um romance, uma nova montagem de textos enfim.

FM | Já sei que você considera sua trilogia apenas um exercício de formas narrativas e uma busca radical de autodisciplina. O que isto significa exatamente?

UP | Sim, apenas um contato com o material disponível e um aprendizado as técnicas narrativas. Enfim, uma oportunidade para experimentar o experimental, na expressão do Hélio Oiticica. Eu tinha descoberto uma fonte, uma jazida preciosa. Mas em estado virgem, bruto. Para a fusão entre a colagem de trechos alheios e as novas significações que dariam vida às montagens (toda essa dialética entre o já feito e o meu próprio imaginário), para a construção desse tecido surpreendentemente original, não existiam esquemas pré-fabricados, soluções preexistentes. Precisei testar as possibilidades do fluxo de consciência e do simples diálogo, das representações realistas e da prosa ensaística, dos versos e das reportagens jornalísticas. Puxei fios narrativos que andavam meio relegados na cultura ocidental de hoje, conforma a oportuna observação do Deonísio da Silva. Recuperei, assim, de acordo com as necessidades internas das minhas estórias, as linguagens dos relatos infantis, casos clínicos, diálogos socráticos, sagas da Escandinávia, cronicões medievais, koans budistas, manuais para uso dos inquisidores e confessores, adivinhas populares, catecismos, enredos das escolas de samba ou terreiros de candomblé, estilizações dos gibis e fotonovelas, macetes e ganchos usados nas entrevistas (afinal, o ritmo fundante da trilogia é o manso fluir de perguntas e respostas). Foi um longo, exaustivo trabalho de garimpagem, que só me trouxe alegria, conhecimentos e ampliação da consciência. Custou-me um esforço de autodisciplina, fuga dos agitos e programas sociais, renúncias a cargos, glórias efêmeras, sucesso fácil, tranquilidade doméstica. Depende a criatura para ter grandeza de sua infinita deserção, escreveu Manoel de Barros, um dos maiores poetas do Brasil contemporâneo. Para mim, é disse e somente disso que se trata: uma aspiração, travessia infinita.

FM | Mas o que não deu certo, a ponto de você sempre afirmar que ainda não fez a sua estreia para valer?

UP | Faltava-me capacidade de síntese. Escrevi quase cinco mil páginas, depois fui podando, enxugando, depurando. Ainda assim, resultou um calhamaço cósmico, 450 páginas ao todo. Há muitas redundâncias, muitas passagens mortas, nesse desmesurado romance-rio. Proust disse, no final da vida, que se sentia como um tapeceiro que havia produzido um tapete gigantesco demais para os minúsculos apartamentos modernos. Sinto-me, igualmente, como um medíocre sucedâneo do velho Balzac, ou uma reencarnação degradada do Euclides da Cunha, ou mesmo um clone do Otávio de Faria. Só que em plena era do clip, do curta-metragem, do videotexto, do conto breve, da minientrevista, das apostilas e cursos rápidos. Você já leu na contracapa do último volume: a trilogia, na verdade, representa um demorado e doloroso adeus ao romanção. Minha insatisfação envolve o próprio gênero, todos esses modelos que presidiram à minha formação de homem de letras: de O Guarani à Montanha mágica, de Grande Sertão: Veredas ao Guerra e paz, de Moby Dick a Os irmãos Karamazov. Demonstração de fôlego, tudo bem, porém, não tanto assim, porque, afinal, ninguém é de ferro, nem o autor e nem o leitor eventual.

FM | Disse o Renato Pompeu, no Jornal da Tarde, em 1984, que o 2º romance da trilogia nada acrescenta ao primeiro, e que o seu erro foi o de querer imitar-se a si mesmo. Concorda com ele? Poderíamos estender essa afirmação ao 3º volume?

UP | Em cima de minha estreia, ele pressentiu algumas virtudes, promessas e ousadias, no contexto da geleia geral tupiniquim. Resenhou Outra inquisição para o Jornal da Tarde, saudando-o como um clássico da vanguarda brasileira, embora rarefeito e árduo. Um ano mais tarde, acusou Nonadas de mera repetição das invenções anteriores, eu me transformando em epígono de mim mesmo. Citei a observação na orelha de A implosão do confessionário. Os julgamentos sempre julgam também os juízes. Mais ainda: parecia mais uma intervenção dos falantes ou dizedores que comparecem na própria trilogia, emitindo sem maiores pudores aquele desconcertante besteirol da minha colagem-boataria. A realidade, mais uma vez, imitava a arte – pobres de nós, no caso, autor e leitores desprevenidos. Para resumir e encerrar o evento joco-sério: o Pompeu não tinha lido, pura e simplesmente, o programa geral da obra, na contracapa do primeiro volume da série, em letras brancas sobre fundo amarelo. Somente por necessidades da editora – econômicas, de planejamento, de concepção global, de atuação junto ao mercado - é que se publicava em três momentos distintos aquele mar de estórias, aquele delirante pesadelo, obsessão unificada pelo encadeamento/ruptura do jogo perguntas/respostas, perfazendo um todo fechado e orgânico: No coração dos boatos, uma trilogia, trilogia una.

FM | Por que um número tão grande de perguntas e respostas, indo do metafísico ao frívolo, da cor do esperma aos sonhos dos utopistas, do inconsciente coletivo ao inquérito policial? Você tenta narrar – como propõe Luz e Silva, no ensaio a respeito da trilogia – o inenarrável de nossa época? Não seriam mais do que suficiente, nesse caso, uma só pergunta e uma só gigantesca resposta?

UP | Seria uma outra aventura, uma outra totalidade orgânica, talvez mais eficiente como estratégia ficcional. Mas a insistência (quase intolerável, de tão obsessiva) na solução por mim praticada, serviu para realizar a principal intenção: gerar um clima de paralisia, de imobilidade, de gente que não sai mesmo do lugar, como burro no arenoso. E permitiu-me fazer os intercâmbios entre as figuras dos mestres inquisidores e dos réus, todos igualmente homens ocos numa terra desolada, trocando entre si perguntas e respostas meio absurdas e meio gratuitas, sem maiores encadeamentos ou necessidade racional.

FM | Isso tem a ver com a atmosfera brasileira, não é mesmo? Você dubla em falsete a dicção alheia (cito novamente Luz e Silva), a fim de apreender essencialmente a nossa sociedade, suas vicissitudes, mazelas e encantos?

UP | Boatos e tédio, círculo vicioso e falta de perspectivas, eterna repetição das mesmas flores da retórica, falação e inércia, Repúblicas Velhas e República Nova; a curiosidade superficial, os doutores anônimos, as inquisições interiores e exteriores: enfim, o Suave Palrar que tanto nos infelicita e inferioriza. O leitor chega, enfrenta duas ou três páginas e logo pode concluir: tudo isso me é familiar, essa zoada geral eu já ouvi por aí. Fábio Lucas foi o primeiro leitor dos originais. E mostrou, com a lucidez que o caracteriza, como apesar de um aparente distanciamento do nosso miserê cotidiano, o centro da gravidade é a tumultuada realidade brasileira, o nosso terceiro-mundismo, o desprograma do caráter nacional. Não sou, não quero tornar-me Pierre Ménard copiando o Quixote. Meu lance de dados é mais sujo, mais cafona, mais programa de auditório do gênero mundo-cão. Colando e costurando fragmentos dos outros, pilhando a literatura universal, em última instância busco representar a cena brasílica. E como poderia ser diferente? Como fugir a esse destino, que assumo até bem prazerosamente?

FM | Você desde já nos promete um novo livro, para o início de 1987, Ruidurbano. Adiante-nos algo a respeito.

UP | Fiz progressos bastantes sensíveis, na direção da síntese, da condensação dos materiais que ponho em ação. Continuo, aliás, um formidável vampiro de textos alheios, cada vez mais diversificados, múltiplos, heterogêneos e complexos. Mas em Ruidurbano já se esboça inclusive um fio de estória, ou pelo menos uma situação-limite que ajuda na organização de tessitura verbal. Nessa colagem-boataria (de 150 páginas, aproximadamente) toda uma população ficcional vem depor – sempre os mesmos falantes ou dizedores – sobre uma jovem senhora, assassinada por estrangulamento, em condições misteriosíssimas. Como núcleos do relato (seus focos imantados, para aqui lembrar a bela expressão de Osman Lins), distribuídos ao longo de um dia na vida da moça – a véspera da sua paixão e morte, entre seis da manhã e duas da madrugada – comparecem a violência urbana e as metamorfoses na sexualidade, guerrilha e espionagem, tédio, cansaço físico, frieza nas relações humanas, sadomasoquismo, entrega amorosa e transações comercializadas, casas do zodíaco, perfumes, tarô adivinhatório, medo, estações do ano. Os subtítulos que fazem a ligação entre os blocos narrativos foram extraídos das pornochanchadas e da música popular, dos tratados de alquimia, das novelas de cavalaria ou dos guias turísticos. Ao mesmo tempo, excitam o leitor e oferecem-lhe uma pausa, uma chance de tomar fôlego, respirar fundo, reorientar-se na rede de pistas e despistes, intuições e espantos que o assaltaram no curso do passeio pelo buraco negro dessas lendas, versos, reportagens, psicodramas, ditados populares, adivinhas, cartas. Agora, meu caro, eu espero sobretudo que haja mais densidade existencial, mais substância humana, política, moral, social e psicológica. Pois em essência – e bem no âmago, por trás da conversalhada toda – cuidei de dar forma a uma penosa reflexão sobre a morte, a um sofridíssimo trabalho de luto, com a forte presença de elementos de cunho autobiográfico.

FM | No que precisamente O livro de Biúte representa um avanço em seu trabalho?

UP | Bem, não sei direito, porque é trabalho em progressão, ainda no canteiro de obras. Na opinião de amigos (saíram seis re-lances, em boletim da Faculdade de Marília, onde lecionei estética) 0 personagem salta das páginas e faz concorrência ao registro civil. Vejamos se dará mesmo certo. Por enquanto, parece-me que há ruptura com o meu percurso anterior, mais do que um simples avanço. Será um mosaico de pequenos contos, em narração direta e quase tradicional – montagens e colagens, sempre, mas desta vez com princípio, meio e fim. A disciplina funcionou: caminhei no fio da navalha, aprendendo a sintetizar, condensar, encapsular. Atualmente, para mim, menos é mais: com um reduzido número de estruturas e signos elementares pode-se fazer nascer os grandes arquétipos que a palavra escrita se encarrega de aprofundar até às medulas. Curioso, então: comecei vidrado no romanção, passei ao novelão e finalmente desemboco no miniconto, pátria de eleição tardia. Nas inter/in/venções deste Livro, os relatos breves deixam aflorar (aos poucos e meio de viés, devagar e com rodeios) uma figura central/descentrada, o Biúte, personagem-título, símbolo do homem comum que vai reviver de novo todas as experiências, da covardia ao amor-louco, da ironia ao discurso eloquente, da religiosidade ao incesto ou à perversão sexual. Paralelamente, vai constituir-se igualmente uma região entre o real e o maravilhoso, espécie de microcosmos ou de aldeia global, Àssombradado, cenário fundante e fundamental, com as suas pirâmides, matutos mágicos, alfândegas e portos, paraísos perdidos, roças e usinas atômicas, palácios imperiais e (naturalmente!) vastas bibliotecas, inumeráveis salas de leitura e escrita. Mapear e administrar esse país – o próprio país das fabulações, o coração dos mitos – exigirá um diligente esforço de anos e anos de exercícios e autodisciplina. Outra vez…

FM | Se a fotografia, o cinema e a TV tomaram a si a tarefa de reportar sistematicamente o mundo visível; e se estar completa tecnologia na qual estamos imersos, atolados, está cuidando de anular o restante das linguagens artísticas, o que fazemos ainda envolvidos com teatro, poesia, pintura, romance, conto? Uílcon: o que a Arte de cada um de nós ainda pretende do mundo em que vivemos?

UP | Nós, particularmente, envolvidos com as sutilezas e mistérios da linguagem escrita, somos os últimos sobreviventes e herdeiros dos esplendores da Galáxia Gutenberg. Assim como o Lulu Santos se declara o último romântico, talvez sejamos os derradeiros animais da era da palavra impressa e lida – espécie em extinção. Contudo, não se deve esquecer jamais: certos pássaros cantam melhor na hora do suspiro final. Há um personagem de Kafka (o grande poeta deste século sem poesia) que não tolerava comida, não suportava alimentos. Ele jejua com prazer e tranquilidade, o artista da fome vai se realizando cada vez mais, à medida em que a plateia e as testemunhas o condenam ao esquecimento. A verdade é que não gostamos suficientemente, não vibramos plenamente com a TV, o cinema, vídeo ou fotos. E muitos de nós – quase todos, talvez – vomitariam até à desidratação se precisassem aderir à cultura de massa, à indústria cultural, ao lazer industrializado, a toda essa quermesse primário que recebemos de presentes da tecnociência e do capitalismo selvagem. Cito de memória este relato maravilhoso dos Hassidim: Na escola primária, um menino se põe a chorar durante a aula e o professor lhe fala assim – Olha dentro do livro, quando se olha lá dentro não se consegue mais chorar. Costumo usá-la como divisa, lema, mote. Para os resistentes da nossa tribo – o povo dos livros, afinal de contas – cada palavra equivale a mil desses fetiches concebidos, fabricados e transmitidos em série para consumidores passivos, infantilizados e à margem dos centros de decisão. Legiões estão condenadas ao Roque Santeiro e aos requentados programas do Sílvio Santos, às mesmices fotográficas da Manchete, aos filmes elaborados em função do marketing e das pesquisas de opinião. Em contraposição, preferimos ainda reler Guimarães Rosa, Clarice, Raduan Nassar, Ivan Angelo. Preferimos um poema de Augusto de Campos – poesia, sim, esse afazer da afasia – ao Jornal Nacional, aos enlatados ou aos horroríveis videoclips que se limitam a repetir os mais surrados clichês da vanguarda. Para nós, desde sempre e de uma vez por todas, o decisivo é gostar, amar, curtir, sentir tesão e obter prazer, comunicar, partilhar emoções e ideias que somente a palavra escrita pode filtrar e requintar, transcender e iluminar. A alegria é a prova dos nove também para quem se liga principalmente em substantivos, adjetivos, verbos, metáforas e metonímias, perífrases e parágrafos, recursos tipográficos, espaços entre os grafemas, ritmos das frases e epígrafes. No restante, fora disso, somos homens simples, massacrados pelos donos da vida, entre os quais se destacam hoje os barões da complexa tecnologia, por você em boa hora evocada. Até quando sobreviveremos? Vamos libertar-nos, um dia? Haverá mesmo redenção póstuma? Se olharmos dentro de um livro, pelo menos não conseguimos mais chorar. Aprendemos a poupar energias para o que der e vier. E descobrimos que nem todas as cartas foram distribuídas. Neste jogo, em última instância de caráter social, político, econômico, educacional tudo verte e reverte, como diria o nosso guru Riobaldo.

FM | A propósito, Ernesto Sábato nos diz que já não sabemos qual o nosso lugar neste período de crise que vivemos, porém acredita que o romance é a expressão da crise, mas ao mesmo tempo, é um dos instrumentos que torna possível sair dessa mesma crise. Assim como ele, você acredita nessa possibilidade? Poderá mesmo a civilização ser salva?

UP | Oh meu doce inquisidor, agora sim você me preparou uma verdadeira armadilha. Contudo, vou desarmá-la a tempo: não cairei em contradição, não esquecerei a resposta inicial. Filosofar, não, sobretudo em tão elevado grau de generalidade. Para compensar, ofereço a você e aos nossos leitores eventuais, em re-lance do meu próximo livro. Em Àssombradado ocorreu uma implosão do arsenal atômico. No dia seguinte – The day after, como se diz – Biúte e Christo (artista plástico de origem búlgara, famoso porque amarrou e embrulhou uma das pontes de Paris, o Grand Canyon, Yoknapatawpha County, o calcalhar de Aquiles, os arquétipos do inconsciente coletivo e o Buracão de Assis) trabalham juntos na empacotagem do róseo cogumelo atômico. Eles batem papo acerca do apóscalipso, contam-se causos e riem felizes, enquanto devoram saquinhos de pipocalipse doce. Ali perto, um escriba humilde recolhe essas falações, inscrevendo as letrinhas em folha de papel tamanho ofício, sob um título geral – Hipopocalipses. As expressões mais frequentes são: inverno nuclear, Blade Runner, chuva ácida, mutantes, as civilizações são mortais, nichos ecológicos e nichos poéticos, o sonho continua.


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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 155 | Julho de 2020
Artista convidado: Isabel Ruiz (Guatemala, 1945-2019)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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