segunda-feira, 24 de novembro de 2014

EDUARDO DALL’ALBA | As poéticas do grupo Matrícula






INTRODUÇÃO | A poesia contida no grupo Matrícula trazia, ao seu tempo, poetas de diferente dicção, embora estivessem reunidos ali por formação do gosto, pelo senso estético e estilístico comuns e por isso, pelas afinidades eletivas compostas na formação escolar de cada um deles, o que, no livro Matrícula se entrevê como construção estética de um projeto que se confirmaria mais tarde, na trajetória de sua poesia.
Apesar de apresentarem características estilísticas comuns entre si, vistas aqui e ali, a dicção de cada poeta que no Matrícula se estabeleceu, daria mostras de vir como uma vigorosa força, apesar da limitação histórico-geográfica brecar o excesso de produção, que se mostra esparsa, mas contínua, ao longo das três décadas seguintes. A par das semelhanças registradas na temática e na estilística, desponta a voz individual que marcaria a trajetória de cada um deles.
Apontados como uma revelação da poesia na revista Civilização Brasileira, após o lançamento do Matrícula, este grupo de poetas continuou a pesquisa do universo ainda desconhecido da literatura Sul-rio-grandense, que se fundamentava em uma cultura recente e que, ao momento de publicação, ainda sentia os efeitos da disseminação cultural das capitais e a de anteriores injunções político-governamentais, que sitiou a língua dos colonos, ao tempo de Getúlio Vargas, isolando ainda mais uma região que já era isolada, desde a colonização, pela sua geografia.
Daí que a pesquisa, vista sob o códice da língua portuguesa, irá revelar o conteúdo da cultura da região, e a manifestação em poesia, irá fundamentar o elemento humano de um lugar e não somente a paisagem registrada anteriormente na poesia como em Olmiro de Azevedo e outros exemplos, que, com o olhar estranho à terra, não concebiam o elemento colonizador como agregador de valor à cultura, não ao momento de do registro poético ou de qualquer outro registro, na escrita, que intentasse a leitura do lugar. Sobravam apenas, a paisagem como possibilidade descritiva, como texto fotográfico, e o penumbrismo do recorte individual da poesia de Vivita Cartier, a um tempo em que a cultura começava a ser pesquisada no país, pelos modernistas.
Em um momento em que a região da serra gaúcha mal assimilava o discurso do centro do país, com suas regras militares que eram determinadas pelo império americano, o surgimento do livro Matrícula se punha a pesquisar, mapear e dar voz a uma cultura antes silenciada quer pela dificuldade do estabelecimento de uma cultura expulsa da Itália, quer pelo isolamento geográfico a que estavam submetidos os colonos. A publicação era já um pequeno grito, em um momento difícil da cena brasileira, que apontava para a luta por um espaço para a literatura em um lugar inóspito para a poesia.
A poesia de Matrícula surgiu como um pequeno projeto de poetas que, vistos mais como poetas e menos como grupo que tinha, no entanto, um projeto político esboçado aqui e ali pelas brechas culturais que se ofereciam à época e que, desta forma, faziam lembrar, de modo pictórico ou alegórico, que em face à tirania, a poesia poderia ser um caminho para a liberdade de expressão individual primeiro e depois, coletiva.
Em uma época em que os militares governavam por atos institucionais, realizar a publicação de poemas não era só um ato subversivo, no sentido de ser transgressivo, era a própria transgressão e apontava para uma alegórica forma de crítica, ainda que não tocassem exatamente em problemas sociais e políticos e cuidassem de mapear o universo da aldeia ainda desconhecido do país.
Realizando uma poesia que deu/dá uma dicção à região da serra gaúcha, fugindo da dicção dialetal, a poesia do Matrícula se estabeleceu na linha da tradição da poesia ocidental, inserida na cultura cristã, ou seja, na linha da tradição da língua portuguesa, sem deixar de beber na tradição da poesia neolatina, em especial a francesa, e a anglo-saxônica, e na linha do racionalismo cartesiano, o que, até então, não fora registrado na literatura do sul do país. A dicção individual, a partir daí, insere a poesia da serra no sistema da poesia brasileira de modo simbólico e discreto, como apontavam os meios e a época.
Uma vez feita a escolha pela dicção da poesia na língua portuguesa, cumpria aos poetas estabelecerem a tradução de suas pesquisas do universo cultural que se manifestava, o mais das vezes, no universo da formação de uma comunidade formada por portugueses, italianos e alemães. A escolha estética domodus operandi viria da leitura dos poetas modernistas, que propunham, entre outras coisas, a renovação da linguagem e uma aproximação de uma leitura mais universal do homem brasileiro e da poesia posterior de João Cabral e dos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, Décio Pignatari e, posteriormente, Mário Chamie e Ferreira Gullar, que propunham, de um lado, o rigor estético feito de depurações e depurações da linguagem, quando não da sintaxe, e de outro, o esgotamento da linguagem pela forma, lição aprendida de Mallarmé.
Se era possível o esgotamento da taça da linguagem, caminho in verso rumo ao Cubismo de Picasso ou ao Surrealismo de Dalí e Artaud, era também possível fixar a tradição em um território mais pleno de significação da palavra, caminho escolhido não por todos os poetas de Matrícula, mas de sua maioria. A tarefa seria então de, uma vez feita a escolha, estabelecer-se como poetas sem fazer com que o peso da tradição abafasse as vozes, ao mesmo tempo em que se renovava a linguagem, e não cair na armadilha do Concretismo, que punha a palavra fracionada e dividia os semas e sememas em sentidos outros que não o do verso escandido, metrificado ou livre para o qual haviam apontado os modernistas e a vizinhança próxima.
À época do Matrícula, varriam-se os estudos com a aplicação dos métodos estruturalistas que permitiram as ideias da Semiótica e de suas análises, postas em prática por um sem número de professores das áreas das letras e que limitavam e transformavam a interpretação da poesia e do romance a uma linguagem técnico-científica, o que traria problemas insolúveis à decifração da linguagem hermética da crítica, que erguia ali, um muro intransponível entre a obra e o público e que deixaria marcas, mas não saudades, de seus métodos analíticos e não seriam mais ensinados às gerações posteriores como baliza de análise da produção literária, mas como parte da teoria da literatura.
A própria tradição poderia abafar as origens e as escolhas deveriam ser, senão as melhores, as justas. Feito isso, o que sobrasse dessa querela formal, estilística e estética, seria a poesia do Matrícula.       

AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE ARY NICODEMUS TRENTIN |

a. Fábula I
O homem plantou a rosa/ e nasceu o canto./ O canto mordeu o lábio/ e floriu o sangue.// O sangue (…)//e alvoroçou o celeiro.// O celeiro viu a claridão/ e recompôs o anel.O anel subjugou a voz/ e imaginou a estrela.   

b. Fábula II
A estrela construiu o cavalo/ e aqueceu o vento.O vento diluiu o abismo/ e aprisionou o rei.// O rei cristalizou a mulher/ e fotografou a canção.A cançãodespiu o sentimento// (…)// e despiu a forma.// A forma lançou a flor e murmurou a palavra./ A palavra santificou a surpresa/ emudeceu o poeta.

A poesia de Trentin aponta para um fazer particularíssimo. Os poucos críticos que o estudaram não conseguiram lhe decifrar o enigma, afirmando que sua poesia é hermética, do que eventualmente, discordaremos. Há uma poiesis que estabelece um jogo entre o rigor e a paisagem alternada. O jogo estabelece a relação como nos poemas Fábula um e II. Executa-se a técnica ou o recurso do cavalgamento dos versos, ou seja, a repetição de uma palavra no final de um verso que serve de mote para o início do verso seguinte. O jogo se estabelece na surpresa da palavra usada aqui, como em toda a poesia de Trentin, com um rigor que confunde o leitor. Rigor e precisão como medida da poiesis:

Na verdade, a poiesis é uma função lúdica,. Ela se exerce na região lúdica do espírito, num mundo próprio criado para ela pelo espírito, na qual as coisas possuem uma fisionomia inteiramente diferente da que apresentam, das da lógica e da causalidade.

Ao rigor acrescente-se o ludismo verbal com que tem de se haver o poeta, quando em imagens afirma a verdade de um espaço interior feito de metáforas e de uma linguagem habitualmente utilizada na poesia para as crianças. Mas não nos enganemos. A noção de jogo para as crianças, como afirma Huizinga, é séria, no sentido de que quando a criança joga, não está brincando, mas estabelecendo relações de conhecimento com o móbile da invenção e do ludismo, uma vez que estes dois elementos formulam a imaginação, desde que o mundo é mundo e desde que o homem é homem.
Desfiando o carretel da Fábula, agora pode-se pensar nas imagens metafóricas dirigidas ao homem adulto e voltadas para a imaginação ou para a surpresa do real, na forma da imagem supra-real e por isso surpreendente. O poeta diz a palavra e cria a imagem que retoma a palavra anterior e cria outra imagem. A técnica nos poemas fabulares, que levam sempre a um mundo encantador, novo, como Alice no país das Maravilhas Estilhaça-se a lógica, no sentido apenas de desfiar o carretel até que a história termine ou até que o fio do carretel acabe.
Os dois poemas fabulares de Matrícula contam a história de um rei medieval , pois a medida fabular, depois da antiguidade, é medieva. O vento diluiu o abismo/ e aprisionou o rei.// O rei cristalizou a mulher/ e fotografou a canção. A sintaxe aqui destrói a lógica que se dá por repetidas imagens pelo recurso estilístico já apontado como construção do verso. São imagens surreais dentro da lógica surreal que afirma ao mesmo tempo em que desconstrói a linearidade da narrativa. O rei que depois de se apaixonar, vai rumo à batalha, o que está nos versos anteriores aos citados: A estrela construiu o cavalo/ e aqueceu o vento. Este exemplo de desconstrução da lógica racional cartesiana exige do leitor que não se prenda senão na circularidade do poema:
O poema apresenta-se como um círculo ou uma esfera, algo que se fecha sobre si mesmo, universo autossuficiente no qual o poema também é um princípio que volta, se repete e se recria. E essa constante repetição não é senão o ritmo.
A fábula conta sempre uma história, de cunho narrativo e, geralmente aparece em prosa. Torná-la verso e o trabalho do poeta que tem de juntar as várias acepções de seu tempo para poder dar à tradição algo novo. O poema circular eivado de um ritmo constante e exato, e com o rigor da palavra metafórica, e com o requinte do elemento surreal que desloca as imagens, quebrando a sintaxe ortodoxa da língua, não só e novo como sugere ao leitor que esteja atento ao movimento do poema. Isso faz a diferença entre os experimentalismos contemporâneos a poesia de Trentin, pois a canção despiu a forma. A forma é exercida com rigor, precisão, ritmo, imagens e com a palavra exata. Essa forma constitui o poema e o poeta Trentin em Matrícula e irá acompanhar o poeta nos livros subsequentes.

AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE OSCAR BERTHOLDO |
   
             a. Poema de minha verdade
Aqui o poeta faz/ a transfusão meticulosa/ das coisas secretas./ Aqui nascem os mal/traçados poemas./ Surda gestação /das cousas usuais. /Aqui, o direito/ de ser/ áspero e ignorar/ a sintaxe da usança/ à mercê da lembrança./ Aqui, o úmido espaço/ paciente de se reatar/ o sabor dos frutos./ Aqui, a solidão côncava/ em tudo, só a condição/ de estar ciente. E mais/ que a fonte, sem medo/ algum ser a casa/ que buscávamos. Aqui/ os poemas de frágil/idade/ emprestam a palavra/ que em mim existe./ Neste vale de urgências/ é absoluto o sentimento/ de se haver chegado.

Afeito às regras, reivindicando o direito de ser áspero e ignorar a sintaxe de usança, Bertholdo utiliza a linguagem elevada juntamente á linguagem padrão, usual da escrita poética. A erudição presente em seus poemas faz aqui e ali a concessão às expressões do latim e de expressões da literatura da Baixa Idade Média, ao tempo em que se colmavam as línguas neolatinas e, com exceção do grego clássico e do latim, as línguas cultas modernas ainda não existiam. Isso posto, o idioma que o poeta apascenta é feito sob o fluxo psicológico que, ao início se mostra contido, caminha nas obras posteriores para um fluxo verbal sem igual na poesia do Matrícula.
 A poesia Bertholdo se estabelece entre uma poiesis que busca a liberdade de expressão pelo ritmo e pelo verbo que, flexionado pelo primeiro, se tornará vertente caudalosa, contrária à contenção e exatidão e do rigor encontrados na poesia dos outros poetas de Matrícula. Há uma revelação “das coisas secretas”, do mundo interior do poeta, do que nele é expressão e se dá pela urgência da palavra, no poema. A consciência de ser, baixada à condição da simples constatação do saber-se só, basta ao poeta como um ponto de auto referência e localização de si para si mesmo. É o que se dá no Poema de minha verdade.
Bertholdo tem urgência de dizer e pressa de chegar à casa da palavra, do poema, da expressão, em uma voracidade produtiva, rastreando os poemas entre uma certa erudição e uma necessidade de mapear o vale da paisagem ao mesmo tempo em que mapeia o vale interior por onde seu espírito carreia sua fome de respostas.

b. Pastoral
Nada tenho, tenho tudo, meu reino/ e a terra, trago pão e vinho/ tímido sou e oprimido venho.//(…)// Aqui a planície, aqui/ o rastro dos pássaros estercando o pouco/ descanso entre as cercas dos vales.//(…)// Tenho nada, tudo tenho, recém-parido me vou, idoso mental/ apascentando cálido idioma.

Evocando repetidamente o Belo belo de Manuel Bandeira modernista, ao início e ao fim do poema PastoralNada tenho, tenho tudo (…) Tenho nada, tudo tenho, o poeta localiza suas posses, sua condição e sua circunstância: (…) tenho(…) meu reino e a terra, trago pão e vinho,/ tímido sou e oprimido venho. Seu primeiro vale tem cercas e o espaço é limitado e opressivo, montanhoso, mas é plural. Ao evocar a linha modernista, o poeta dá mostras da filiação de sua poesia à tradição da poesia brasileira.
O vale do poeta é para além da imagem de si mesmo; o vale àquele onde o poeta tem de se haver consigo mesmo e com as circunstâncias que o limitam e o impelem para a rebeldia libertária do espírito. O vale de dentro, além do vale paisagístico, o de fora, também se torna matéria de poesia. Eis o verbo de Bertholdo, que se presentifica na alma da aldeia e se personifica em suas palavras, alargando o espaço da linguagem e aumentando a possibilidade de entendimento e esclarecimento do leitor. Como poeta “recém-parido”, fruto do trabalho árduo com a palavra, já demonstra a sapiência dos mais velhos da aldeia, “apascentando cálido idioma” da língua portuguesa em suas matizes de formação e referência.
Porém, para ver o vale o poeta se estabelece na planície onde os pássaros estercam o “pouco descanso”, isso é, a “planície” da palavra vem acompanhada de sujeira, na língua, do eco de outros poetas, o que é preciso ver e eliminar, ao se romper, em posteriormente, as cercas e o cansaço, e fixar o vale como um processo interno de recuperação do vivido e do que se vive. Conquanto em Matrícula, o poeta apascenta as possibilidades de sua poesia e acrescenta o tema do vale universal, porque ao vale da paisagem equivale o vale interior do poeta, o qual é preciso, como ao outro, decifrar.

AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE JAYME PAVIANI |

a. Ausência
As árvores roubam a solidão./ As árvores na tarde fria./ Na sala já não arde a lareira/ ninguém abre a porta/ deixando entrar uma lufada fria./ Ninguém traz notícias/ se há casimira na venda/ se a Elisabete vai casar/ se a estrebaria ficou aberta.

No poema Ausência há o sentido do vazio de uma solidão roubada ao homem que espera o próximo movimento. A sequência lógica do discurso da espera entre as possibilidades do acontecer, condicionadas pela solidão roubada: “se há casimira na venda/ se a Elisabete vai casar.” O apelo da solidão recai sobre a possibilidade de contemplação diante da Rosa,- outro poema -, que passa a ser redefinida: “Rosa de carne e espírito// (…) branca, (…) aberta ao sol (..) única e amada.”

b. Rosa
Rosa de carne e de espírito (…)// Rosa branca// (…)//Rosa aberta ao sol. / Rosa única e amada.// Morrer é nada.

Ali, a solidão de Ausência se adensa na saudade da Rosa como metáfora da mulher amada, de carne e espírito, única. A solidão ri da morte no verso que fecha o poema:” Morrer é nada.” A ausência que busca na infância a flor - rosa – mulher que nascia na soleira da porta encontra a impossibilidade de viver novamente o passado presentificado na memória e que o poema evoca:

c. Infância
A infância foi simples,/ uma flor nascia na soleira da porta.// (…)//
Minha infância montou num cavalo de pau/ e nunca mais voltou.

Não há dúvida, o poeta se utiliza da palavra precisa, contida, metafórica, no rigor da escrita. A constante repetição de palavras como: árvore e ninguém do poema Ausência e Rosa do poema de título homônimo, é utilizado aqui como recurso estilístico, mas não só: há uma tentativa do refazer o caminho, que o poeta procura, o que se pode ver nos livros seguintes, e sob variado aspecto, na reunião As palavras e os dias. Sua obra será marcada pela procura dessa “flor que nascia na soleira da porta”. Tanto, que o fazer e o constante refazer dos poemas, na busca da rosa perfeita, encontrará na obra o permanente conflito delineado nestes primeiros poemas de Matrícula.
O tema ou o mote da Rosa é antigo, e remonta às lendas orientais e ao passado medievo ocidental. Em Paviani, como em Trentin, o uso de recursos trazidos da poesia Provençal como o motivo da Rosa mostra que os recursos estilísticos eram comuns à formação dos poetas de Matrícula. E o recurso do rigor, a contenção das palavras são comuns a estes poetas, mas na poesia de Paviani, ao contrário de Trentin, não há a possibilidade do surreal, mas da imaginação criadora, dentro da lógica metafórica da linguagem.
A precisão ou justeza da palavra é levada ao extremo da procura e do rigor na poesia de Paviani. Poucos poetas enfrentaram a si mesmos, na procura eterna da rosa azul que é a linguagem, a metáfora e o poema em sua resolução como Paviani, porque a cada refazer, o grau de precisão e o sentido ganham em depuração e clareza.
Essa poesia é feita do máximo de sentido e de um mínimo de palavras, mas não se trata de economia verbal, mas da procura da exatidão e do rigor estilístico do verso livre, já não tão livre quando trabalhado à luz da bigorna e do martelo do poeta. A poesia encontra o refluxo da angustiosa ausência da forma, o que, no entendimento do poeta, só pode ser buscado no refazer do poema, trazendo o exercício que, antes de reflexivo, é estético, pertencente à estética mínima presente nos poemas de Matrícula
Em Paviani, a poesia passa a romper o discurso oficial da teoria e da filosofia, para se transformar numa poesia limpa, dotada de um grau maior de percepção e intuição, o que nos devolve a questão à contrária: pode-se partir dos poemas de Paviani para encontrar substratos teóricos ou filosóficos? Não significa que o poeta desconheça a teoria e seus constantes desdobramentos e linhas a posteriori do discurso poético, mas que abandona o discurso teórico em detrimento de uma poesia que se pretende simples, justamente por frequentar a teoria como campo de conhecimento.
O poeta sinaliza a partir desta ruptura uma construção própria de seu conjunto, com a característica da contenção. A contenção é fruto de uma ruptura com ensejo de guinada à contrária. Explico: se o abandono paulatino da teoria se faz no campo da criação, essa mesma atividade poética desconfia de todo o discurso como gerador de teoria, mas confia no discurso poético como produtor de conhecimento; daí a contenção da forma, contenção própria da poesia que se pretende clara, longe do discurso que não seja o da simplicidade, o da raiz mesma do poeta, e do seu vocabulário algo entre contido e aparentemente simples.
Para se compreender a estética mínima da poesia de Paviani temos que atentar para a visão de mundo do poeta. Esta estética se compõe de temas que formam a base do mapeamento poético. Desse modo, encontramos na poesia de Paviani a recorrência de temas: a infância, o campo, a simplicidade, a nomeação das coisas e a presença do feminino. Em ritmo desconjunto, a estética pode ser nomeada como a estética mínima, porque está ligada a duas fundamentais ideias: a simplicidade conquistada e clareza quanto à escolha de temas, e no uso dos recursos técnicos, estilísticos e estéticos que o realizam como poeta.

AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE JOSÉ CLEMENTE POZENATO |

a. Esaú e Jacó
Tenho dois poemas atravessados no ventre/ em litígios e tropelias, porfiando por nascer (…)// Dois poemas lutam dentro de mim/ tentando suplantar-se./ Não tenho poder de escolha. Deixar/ que entre eles se decidam, o mais forte/ ou o mais hábil vença (…)// (…) Limito-me a esperar a minha hora/ A hora difícil em que se deseja o filho e se teme o/ monstro.

No poema Esaú e Jacó encontramos àquela escolha com que teria de se haver o poeta. No poema, dois poemas atravessam o ventre do poeta, lutando por sua predestinação, tentando suplantar um ao a outro, como em uma luta interna, vigorosa, da qual sairá vencedor o poema mais forte, ou o que levar a cabo, na linguagem, sua expressão. Aqui se trata da escolha da forma entre seguir a tradição ou optar pela poesia concreta. São dos poetas as palavras: “Quem ler estes poemas(…) vai perceber que fiquei ao lado da tradição. Monge renitente e teimoso, enveredei para a Biblioteca, sobretudo a da velha lírica desta belíssima língua portuguesa.
O poeta escolheu o poema à luz da lírica da língua portuguesa, enveredando para a Biblioteca, isto é, lendo os clássicos da literatura universal, e principalmente, a lírica portuguesa, da qual se filia e são herdeiras a prosa e a lírica da literatura brasileira. O poema Esaú e Jacó não evoca somente o mote bíblico, mas pertencente à prosa brasileira quando, em Machado de Assis, o lemos em romance. É, pois, na dúvida da escolha que resultará na forma do poema que se fundamenta o poema Esaú e Jacó, pois o poeta aflige-se na espera do poema que virá: A hora difícil em que se deseja o filho e se teme o/ monstro. Aqui a dúvida é movida pela angústia da hora da escrita do poema, feito a partir de mil pequena escolha, a qual pertence a decisão do poeta. O poema é um filho “porfiando por nascer.”
Assim, quando da escolha do verso livre e do caminho da tradição, o que implica leitura e estudo constante, o poeta nasce, porque resolve a dúvida e acrescenta outros motes e temas à sua lírica posterior, como no exemplo de O poeta, que na linha da tradição antecede a um poema não conhecido de João Cabral de Melo Neto. Não se trata de uma comparação, mas é justo reconhecer que, uma vez na linha da tradição, o poeta chegou ao mesmo tema antes de João Cabral:

b. Poeta
Mas foi de el-rei o mandado/ que fosse para a bigorna/ e em forja o malho fizesse/ a imagem que não deforma// Das calosas mãos surgiam/ bezerros e sementeiras// No fogo de suas mãos/ mil ferros amolecia/ e nesse trabalho intenso/ forjava um novo dia.

Forjar o poema com a imagem que não deforma, fazendo surgir bezerros e sementeiras, forjando um novo dia é o trabalho do poeta, que define o caminho a partir daí; não só o novo dia como significado da poesia que fará, uma vez resolvida a dúvida, mas, o novo dia é o dia visto além do tempo da ditadura a que era submetido o país ao tempo do poema. Um novo dia que seria celebrado em outro poema:

c. Convívio 
Eu os convido a todos para um banquete./ Não, não se trata da última ceia dos condenados,/ Embora os tempos assim permitam pensar.

A forja de uma poesia libertadora presente nos versos acima aponta para uma poesia consciente e voltada à liberdade de expressão cerceada á época da publicação do Matrícula. Na poesia deste livro os únicos poemas que se voltam contra a linguagem oficial, de modo transgressivo, a par da busca da resolução da forma, são O Poeta e Convívio, o que, por si só, era um início da resistência -tímida - do intelecto, senão que do espírito do poeta, irmanado ao sentimento de liberdade aos que sofriam o degredo, a tortura e a morte baixo a um regime ditatorial militar.
 Daí que se o tempo não fosse dos mais princípios à poesia, ela cumpria, como no caso do poema, sua função social mais plena: a de dar voz, ou fazer coro, ainda que em surdina, à voz dos oprimidos, buscando-lhes a liberdade através da palavra. A poesia em tempos difíceis vem acompanhada do sentimento melancólico, que o poeta não evita, antes, o carrega como no poema Elegia:

d. Elegia
 Era outono quando te levamos./ Pinhões caíam sobre os caminhos./ Tombavam as folhas dos parreirais./ Graves seguíamos, chapéu na mão, os pretos/ sapatos gemendo ao peso do teu corpo.

Se o poema evoca a cena fúnebre de um enterro, não cita o morto. Sabemos que o morto é um membro da família, que, antes de o carregar, o leva, e o verbo dá a medida da leveza do levado ou a medida do sofrimento de quem o leva. Mas o que chama a atenção não é a morte, mas a evocação melancólica da atmosfera dada pela paisagem outonal que se apresenta, e por isso, mais triste, o que acrescenta à cena da lírica da poesia da serra o elemento humano, dado antes somente pela paisagem como a evocação dos pinheirais feita no início do século por Olmiro de Azevedo.
Dois ganhos, pois, à poesia da serra gaúcha: o elemento da melancolia, traço do sentimento íntimo do autor e de boa parte da lírica portuguesa e brasileira, o que demonstra a maturidade do poeta já ao lançamento do Matrícula e sua visão de mundo, e o ganho estilístico e estético do elemento humano inserido na paisagem, como queria Machado de Assis quando afirmava que à cor local se devia acrescentar certo sentimento íntimo para compor uma estesia brasileira, diferente da portuguesa e das demais.
Portanto, uma conquista esta em um poeta que, além de estrear consciente do caminho a ser percorrido, continuou escavando e escrevendo, sem abrir mão da exatidão da palavra, do rigor e da contenção, traços estilísticos que o farão, mais tarde, realizar a poesia buscando a forma antiga da redondilha, como aprendera na Cartilha Maternal de João de Deus e, empós, praticar a ironia da narrativa ou da prosa exata do romance.

AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE DELMINO GRITTI |

Paisagem
1 Muro,/ vento,/ a menina,/ o mundo em gênese./ onde semear o silêncio? / Regresso apressadamente ao território humano.
2 Pousa em mim uma viagem./ Sou o próprio caminho./ Aceito todas as faces/ e continuo a cantar.
3 Nem o impossível poderá sobreviver em mim./ Onde estarei quando deixar de formular-me único?
4 È preciso parar o mar/ e criar uma estrela/ para o menino que chega./ Inútil sentimento/ mundo fabricado/ sem olhos e sem coração…/ Mundo sem terras/ sem horizontes/ para a possível viagem./ E andarei minha ansiedade/ à beira do mar.
5 Volto anjo sem força/ apenas a palavra/ que leva uma rosa./ Nas mãos/ a única manhã.
6 Não me perguntem por que não/ ontem e amanhã./ Hoje quero o mar./ Mar…/ Desarmar-me e caminhar.

No poema Paisagem, a evocação da viagem e do mar são os temas recorrentes que o ligam à tradição da lírica portuguesa, com inflexão da poesia camoniana e pessoana. O verso: (…) e criar uma estrela/ para o menino que chega, na primeira frase da parte quatro é uma evocação do mote natalino. Há um sentimento de depuração estrema onde a linguagem não adjetiva, não tem ornamentos. No verso primeiro da parte cinco “apenas a palavra/ que leva uma rosa” o poeta reforça o argumento da palavra que se torne uma flor, uma rosa.
É possível que este poema realize a síntese dos temas do Matrícula, sob o ponto de vista do poeta, com a recorrência interna, no poema, de temas como a estrela e a rosa, temas trabalhados antes por Trentin e Paviani. Mas também é uma evocação indireta da poesia de Pozenato, quando afirma no verso segundo da parte quatro: “Inútil sentimento/ mundo fabricado/ sem olhos e sem coração”, o que o prende ao “Mundo mundo vasto mundo/ mais vasto é meu coração”,de Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro que orienta de viés a poética de Paviani e de Pozenato, tanto na evocação do mundo vasto quanto na fabricação de um mundo injusto, sem olhos e sem coração, mundo do capitalismo moderno do século XX.
E, de forma indireta ainda, a escolha do mar como refração ao vale de Bertholdo, no sentido de sua expansão sem limites, sem cercas, sem opressão. Não por acaso o poema tem o título de Paisagem, pois ali há a conformidade e evocação da paisagem de Bertholdo vista à contrária.
O que é de Delmino, não é só a síntese, mas a reflexão e a viagem. Senão vejamos: “Onde estarei quando deixar de formular-me único?” Este verso traz uma formulação filosófica sobre a morte, no sentido de que a dúvida do poeta formulada em sua pergunta encontra o limiar da finitude humana. Por isso, não há ornamento, no sentido verbal, em sua poesia. Na segunda parte do poema, o verso inicial “Pousa em mim uma viagem” se desdobra nos da quarta parte: (…) “Mundo sem terras/ sem horizontes/ para a possível viagem.”
Estes versos acima indicam que se há o desejo da viagem que se há de fazer, ela não se dá no espaço geográfico, mas no espaço do imaginário, onde não há terras nem horizontes. A viagem é a de si a si mesmo, como um movimento circular do poeta que tem urgência da vida no momento em que escreve, - na parte seis: “Não me perguntem por que não/ ontem e amanhã./ Hoje quero o mar./ Mar…/ Desarmar-me e caminhar.”
O caminho e a possibilidade do mar evoca o verso anterior da segunda parte do poema: “(…) Sou o próprio caminho.” Este verso indica a consciência reflexiva do centramento do eu do poeta como formulador da viagem impossível, pois que se dá no imaginário contido do caminho do poeta. Assim, a poesia de Delmino, além de operar a síntese do Matrícula, aponta para o rumo da reflexão, onde o poeta, como observador atento não é senão o guardador do que vê/lê pelo viés de sua imaginação criadora.
A participação de Delmino Gritti no Matrícula é breve. O rigor do crítico abafa a voz do poeta, sendo o mais literalmente contido dos poetas do volume. Delmino aparece na capa como um enigma nada claro, mas prenunciando o que há ou não há de vir no volume, pois seu nome está incompleto: DELMIN, e logo o espaço da capa acaba. O nome incompleto é coerente à brevidade de sua participação no volume.
Seus poemas vão aparecer no fim do livro em número pequeno, mas evitem-se as comparações. Se os outros poetas de Matrícula trabalham a língua e buscam, aqui e ali, o rigor técnico e estilístico, na expressão de uma estesia que intente a decifração do homem e da paisagem, quer pela figura, ou pela fuga do real, quer pela poesia de Trentin que se apresenta como um ponto de fuga pela linguagem do jogo surreal, ou em Paviani, onde o rigor se estabelece no ato de refazer o poema, quer pela exatidão da poesia de Pozenato, ou pelo fluxo psicológico verbal da poesia de Bertholdo, em Delmino a poesia encontra todos esses elementos elevados ao grau máximo, valendo-se dos mesmos recursos dos seus pares de escrita: rigor técnico, rigor estilístico, rigor estético, rigor da forma, rigor, rigor, rigor., acrescido da extrema economia verbal, quase a formulação de um arabesco, sem ornamentos.
O que o nome prenuncia, alude ou evoca desde a capa é que abertamente o poeta não se declarará poeta de publicações posteriores, embora tenha tido, guardadas as particularidades, mais do que todos os outros, a responsabilidade que se cobra dos poetas, no sentido da ação propriamente dita. Delmino buscava os livros proibidos pela censura e pelos militares aos estudantes de todo Estado, viajando sem trégua e cumprindo o papel de libertador de espíritos pela ação mesma do poeta.
Por isso, talvez, depois de organizado e publicado o Matrícula, não publicou outros livros de poesia, deixando seus poemas inéditos, aqui e ali, e sendo discreto quando do falar de poesia, e dando mostras, em tempos difíceis, - tanto àqueles, à época da publicação do Matrícula, como os nossos, onde outras injustiças acontecem diante de nossos olhos - , do homem tímido e do poeta humílimo que foi e é, o que basta a uma geração como lição do ser abnegado em prol da poesia e da literatura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS | Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda que trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
Conquanto os poetas de Matrícula se ocupem de se alimentar de assuntos que lhes oferece a sua região, e tendo o sentimento íntimo necessário para compor, com os elementos estilísticos, temáticos e estéticos uma poesia nova para a região, guardando, ao mesmo tempo, o sentimento íntimo da formação familiar e a leitura dos poetas da língua portuguesa, da francesa, sua irmã - ambas filhas do latim - e da língua inglesa, filha segunda do ramo proto-germânico.
Nenhum deles se limitou, no entanto, a realizar uma poesia estritamente local, pois, inseridos no universo da leitura, souberam traduzir pela poesia, alguns temas universais, cada um a seu modo, é claro, mas a realização resultou em uma renovação dos parâmetros da poesia da Serra Gaúcha e influenciou a geração mais nova, onde se lê, aqui e ali, algum traço daquela poesia do Matrícula. Como afirmou Machado de Assis: “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo tem os modernos, com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.”
O resultado da poética desta reunião é sentido na trajetória de cada poeta de Matrícula a posteriori, fazendo crer que as escolhas foram acertadas quando da publicação do pequeno volume de poemas, o que, por si só, era já um ganho para a poesia Sul - Rio-grandense e brasileira, o que viria a se confirmar pela trajetória de cada poeta da reunião, cada um a seu modo, circunscritos às circunstâncias particularíssimas, com suas leituras e idiossincrasias pessoais, inseridos como poetas e como homens de seu tempo, nos tempos difíceis do Matrícula. O volume apresenta a poesia melhor de uma época diversa de parcela da poesia atual, superior ao que, atualmente, no baixio do mercado, intente passar por literatura. A poesia do Matrícula será para sempre uma referência para as gerações mais novas da Região, do Estado e do País, pelo conjunto, a um tempo áspero e renovador, realizado à luz do estudo e da pesquisa das formas poéticas, situando o homem da região para além da fronteira do tempo e do espaço.


EDUARDO DALL’ALBA (1963-2013). Ensaísta e crítico literário. Autor de Vinhedo das vontades (1998), Lunário perpétuo (2008), e Os bens intangíveis(2013). Página ilustrada com obras de António Beneyto, artista convidado desta edição de ARC.


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