sábado, 22 de novembro de 2014

ERIK SLAGTER | Lucebert: poeta e visionário, pintor e testemunha Ocular





LucebertO poeta e pintor Lucebert (ps. de Lubertus Jacobus Swaanswijk, 1924-1994) tem assento garantido na literatura holandesa como “Imperador” dos novo poetas do pós-guerra. Desde o dia, um 1953, em que se vestiu de Imperador para receber prêmio de poesia de sua cidade natal, Amsterdã, seus poemas não apenas mereceram mais atenção do que os de outros poetas; desde aquele dia, sua crescente reputação como grande poeta jamais foi contestada. Mesmo depois de começar a concentrar-se mais na pintura, de meados da década de 1950 em diante, ainda era conhecido, acima de tudo, como poeta. Era considerado o líder de um grupo de poetas inovadores, inicialmente chamados de “Experimentalistas”, embora o próprio Lucebert num poema programático escrito em 1951, tenha apontado sua admiração e afinidade com os poetas Friedrich Hölderlin e Hans Arp. Em outro poema, em que defendeu a poesia experimentalista de sua geração, ou o “Movimento Cinquentista”, como veio a ser conhecida, Lucebert também mencionou Blake, Rimbaud e Baudelaire, além de Dada, a tendência mais impactante da literatura e das artes visuais no período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial.
O Movimento Experimentalista da poesia holandesa que surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial foi, na verdade, de certa forma, a recuperação de um atraso. A pintura expressiva holandesa a partir do período da libertação, em 1945, também lembrava o trabalho de tendências internacionais das décadas de 1920 e 30, como o Dadaísmo e o Surrealismo.
A Holanda se mantivera apartada dos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial e as tendências culturais internacionais dela decorrentes, por isso, tiveram pouca ou nenhuma influência sobre a arte e a literatura holandesas. A lacuna somente foi preenchida depois da Segunda Guerra Mundial, quando os jovens poetas e pintores pós-’45 extraíram sua inspiração de uma nova fonte, de autores e artistas que já tinham deixado sua marca na França e na Alemanha. Isso não quer dizer, contudo, que fossem apenas seguidores. A maior virtude da poesia de Lucebert é ter rompido as barreiras da língua holandesa e aberto caminho para novos sons e uma poesia inteiramente original.
LucebertA poesia e a pintura de Lucebert abalaram muitas convenções desgastadas pelo tempo, demonstraram grande variedade em termos de sonoridade, traço e cor, e, afinal, evoluíram de um protesto contra a injustiça e as regras para um anseio pelo amor e por valores místicos. Na qualidade de realista, Lucebert era testemunho de sua época; era, também, um visionário que revelava o desconhecido e o misterioso de uma maneira inteiramente nova. É isso que dá à sua obra tal importância, seja em sua terra natal, seja no contexto internacional – como revelam as muitas traduções e mostras de seu trabalho. Isso não significa, contudo, que sua poesia e sua pintura seja extensão uma da outra; são duas formas de expressão diferentes que, às vezes, se complementam, mas que na maioria dos casos vêm de fontes diferentes e nem sempre correm paralelas.
O protesto de Lucebert se volta menos contra a poesia de seus antecessores do que contra a guerra e o abuso de poder. Durante a crise da década de 1930 – quando Lucebert tinha cerca de dez anos de idade e vivia num bairro operário de Amsterdã – a violenta supressão policial e militar de uma revolta dos desempregados o marcou profundamente. Quando, alguns anos depois do fim da ocupação da Holanda pela Alemanha, o governo holandês anunciou “medidas policiais” em resposta à pressão pela independência em sua antiga colônia, a Indonésia, a voz de Lucebert foi uma das primeiras a se erguer em protesto. Sua ‘Carta de Amor à Noiva Torturada, a Indonésia” (“Minnebrief aan onze gemartelde bruid Indonesia”), que surgiu em 1948, foi seu primeiro poema publicado:

...Sou eu o noivo doce Borobodur
quanto se vinga o noivo de sua noiva
enquanto ela se debate sobre poças do sangue de Java
saqueadores partem e sugam sua presa seus olhos-ostras?

O poema foi frequentemente citado em 1995, ano em que a Holanda celebrava meio século desde a Libertação e em que a Indonésia celebrava o quinquagésimo aniversário de sua própria declaração de independência.
O protesto contra a gana por poder e repressão não é incidental na poesia de Lucebert, mas um tema central. Em um de seus primeiros poemas, na coletânea de 1952 intitulada Apócrifos - O Nome Alfabético (Apocrief - De Analphabetische naam), ele declara, “Não sou um poeta gentil”. Havia muitos desenhos e pinturas dedicados ao tema, além de uma antologia poética. O tema foi constante em sua obra até o fim de sua vida: um dos últimos poemas de Lucebert foi um protesto contra a pena de morte decretada pelo Irã contra Salman Rushdie.
Para Lucebert, a poesia era algo de que precisava para enfrentar um mundo em que o homem abusa do homem usando dos mais hediondos meios. O fato de que o uso das palavras como arma não era questão de escolha para Lucebert, mas, isto sim, uma compulsão, ficou claramente demonstrado no “Poema Experimental” (“Het proefondervindelijk gedicht”). Nele, Lucebert declarou que o poeta é testemunha e porta-voz de seu tempo. Também escreveu que “meus poemas são formados / pelos meus ouvidos”. Lucebert não era apenas testemunha ocular do seu tempo, contudo; era, também, um poeta lírico que expressava as vozes internas que escutava como sons e ritmo, como mensageiro do mistério. Noutra obra, disse do processo da escrita que “trata-se de um Deus / tocando violino com a minha garganta”.
LucebertEssas múltiplas origens e funções da obra poética de Lucebert (um pseudônimo composto de “lux” e “bert”, ambos com o significado de “luz”), isto é, enquanto comentarista do que via e intérprete de uma voz sobrenatural, significam que sua poesia pode ser interpretada de mais de uma maneira. Isso, por sua vez, faz com que ela seja de difícil tradução. O próprio Lucebert estava ciente dessa qualidade de seu trabalho e fazia uso pleno dessa multiplicidade de sons e significados. Os sons conduzem o poeta a associações e emprestam novos significados que as convenções normais da língua não proporcionam. Lucebert tentou “dar expressão à extensão mais plena da vida”. Por isso, seus poemas assumem um significado adicional quando lidos em voz alta. Por um lado, como Hans Arp, Lucebert utiliza associações e jogos de palavras; por outro, como Hölderlin, é um poeta místico que está em contato com vozes divinas que não podem ser representadas por meio da linguagem convencional. Quando, em ‘Procuro à Maneira Poética’ (‘Ik tracht op poëtische wijze’), o poeta escreve que “procurou a linguagem beleza em sua beleza” e “escutou que ela nada mais tinha de humano”, isso pode ser encarado como uma referência tanto a uma realidade em que não mais existe qualquer beleza quanto à necessidade de recriar a beleza por meio do uso de novas palavras.
Lucebert recorreu ao dicionário e a outros poetas em sua busca: “É tudo no mundo é tudo”. Ele não só explorou as possibilidades da língua, soprando vida nova, por exemplo, em expressões caídas em desuso, como também se voltou para as artes plásticas em busca de formas que pudessem ser traduzidas em poesia.
A coletânea Apócrifos contém uma separata intitulada ‘O Nome Desenhado’ (‘de getekende naam’) que traz poemas dedicados a artistas. Aqui, vemos que Lucebert considera a obra de Arp “o batimento cardíaco da pedra”; descreve Henry Moore como “a terra que vagueia e rola pelo homem”; a obra de Paul Klee é descrita assim: “pela janela alegre ergue-se o aroma dos frutos coloridos das coisas”, e, noutro ponto:

...as gaiolas da poesia se
abrem para os bichos de Miró
uma pulga, um lekkerkerker e uma joaninha
estendem seus tentáculos para dentro da língua.

O talento de Lucebert foi canalizado para a poesia e as artes plásticas. Foi estimulado pela necessidade de renovar a língua e pelo ímpeto de tornar-se conhecido como testemunha ocular do seu tempo. Como artista plástico, expôs constantemente os maus atos de seus contemporâneos.
Lucebert conseguiu deixar de lado a poesia, mas jamais o desenho. Desde muito jovem, desenhava em tudo; na juventude, copiou muitos trabalhos e fez croquis espontâneos nas margens de seus poemas, croquis que não pretendiam servir de ilustração para os poemas. Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, foi “descoberto” desenhando nas ruas e levado para a escola de arte, onde um professor progressista o apresentou ao Dadaísmo e ao Surrealismo. Os primeiros rendimentos de Lucebert vieram de cartuns e ilustrações. Seus desenhos livres são impressionantes pela imaginação fantasiosa e pela sua capacidade surpreendentemente constante de evocar associações.
Embora jamais tivesse parado de desenhar, Lucebert, no começo, ficou famoso principalmente como poeta. Envolveu-se apenas indiretamente com o novo movimento expressivo e experimental da arte holandesa associado ao grupo CoBrA (1948-1951). Só depois de 1955 começou a aplicar-se mais intensamente a seus desenhos e pinturas, que expôs regularmente a partir de 1958 - na Galerie Espace no Haarlem e depois em Amsterdã, mas também em Londres, na Marlborough Art Gallery.
O próprio Lucebert descrevia seu trabalho de artista plástico assim: “Pinto tudo que me vem à cabeça, Desenho e pinto tudo e em tudo, valorizo igualmente todas as visões, não escolho motivos e não luto para encontrar sínteses, me satisfaço em deixar as oposições no lugar e, enquanto lutam umas com as outras, não ofereço resistência e me mantenho fora de alcance, experimentando a liberdade que apenas eles me dão, minhas pinturas, meus poemas, esses playgrounds felizes onde tudo tem seu lugar, onde Saaras e oceanos se reúnem nas caixas de areia. Assim, não me prendo a pinturas espessas ou finas, não tenho preferência por determinadas paletas, hoje busco refugio no marrom das árvores, amanhã me afogo, rindo, no azul-orvalho. Concretude, abstração, para mim é tudo a mesma coisa, mal percebo a diferença, sei apenas que são termos vindos de um mundo de conceitos em que sou e quero permanecer um forasteiro xenófobo.” (De Calma, Crianças, Algo de Importante Está Acontecendo - kalm aan kinderen, er valt iets zwaars, 1961).
Numa entrevista de 1989, quando lhe foi perguntado a que critérios uma boa pintura deveria atender, Lucebert respondeu: “expressão, forma, composição cromática... Em primeiro lugar, tem que ser interessante. Interessante pra o olho interno. Surpreendente. Nova a cada manhã. A pior coisa é se tornar cansativa. Ou, ainda pior, virar uma simples decoração pendurada na parede. Tudo é possível numa pintura, fina ou espessa, bagunçada ou rigidamente composta, desde que surpreenda”.
As diferentes fontes a que Lucebert recorre abrangem o livro de Prinzhorn de 1922, Bildnerei der Geisteskranken (sobre ‘as pinturas dos loucos) e “uma mancha que poderia perfeitamente ser um rosto / entre a borracha e o líquido corretivo / (...) nada melhor que ser dominado pela mancha / para apagar recortar dissolver borrar substituir / confuso reconstruir encharcar derrubar levantar...’ (de ‘A Mancha como Obra da Vida” - ‘vlek als levenswerk’, 1963).
Lucebert deixa claro que o acaso é importante em seu trabalho e que os jornais, o rádio, a TV e o cinema também podem ser a centelha para sua imaginação. “Então nasce uma boa pintura na terra de ninguém, uma área limítrofe entre o desígnio e a consciência, uma terra onde nem as convenções da memória e nem os sonhos-dogmas de uma ou outra utopia podem representar seus papeis limitadores. Um bom poema, uma boa pintura, portanto, nunca estão completos, nunca estão terminados, são abertos e improvisados, não permanecem em silêncio enquanto sofrem ou riem, permitem, satisfeitos, que um excêntrico os manipule e modifique ao longo do tempo”. (de Calma, Crianças, Algo de Importante Está Acontecendo).
Em seu trabalho visual, Lucebert frequentemente faz o contrário do que percebe e enfrenta no mundo que o cerca: empresta domínio à sua impotência, usa as armas de sua arte em vez de abusar do poder para impor sua vontade aos outros e às coisas que produz. Sua arte parece ter surgido espontaneamente; o artista não precisa fazer nada além de se ocultar: “Deixo que loucos, imperadores, mandarins e outras personagens parecidas falem por mim e, se necessário, me objetifico um pouco”, disse, numa entrevista de 1959.
LucebertOs resultados surgem num processo experimental, enquanto ele trabalha em comunhão com seus materiais: desenhos que empregam as mais variadas técnicas, colagens, xilogravuras, litogravuras e silk-screen; pinturas a guache, tinta acrílica e óleo; cerâmica e fotografia – praticamente tudo pode servir ao improviso; assim como o ritmo de sua mão que escreve e pinta pode ser conduzido pelo jazz de Thelonious Monk ou Dizzy Gillespie.
Nada disso significa que não haja desenvolvimento ou linha temática em sua obra: cada pintura, cada desenho, é inconfundivelmente um Lucebert. No começo, seu trabalho era brincalhão e fantástico, com uma boa dose de humor, mas, depois de 1958, quando Lucebert já tinha estúdio próprio há muitos anos e também começara a se concentrar em pinturas a óleo, a agressividade aumentou. Seu trabalho se tornou mais raivoso, com generais frenéticos e tiranos a ranger os dentes. Nesses trabalhos, o abuso impiedoso do poder se contrapõe à subjetividade indefesa. Lucebert espelhava-se no mundo de Hieronymus Bosch e, na verdade, escreveu um longo poema sobre uma das obras de Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas, em 1968.
Lucebert passou muito tempo nas Espanha de meados da década de 1960 em diante e desenvolveu interesse pela cultura do país; influenciado, em parte, pelo sol espanhol, seu trabalho tornou-se mais claro e nítido, mais raivoso e satírico. Adquiriu o impacto da obra de El Greco ou Goya, com sua expressão visionária, amarga, implacável, algo que também caracteriza as telas de Francis Bacon, por exemplo. “Talvez seja por isso que os monstros não se disfarçam mais”, disse, “mas se revelem como são e como os vejo: desejos ilimitados de poder ou suspiros impotentes de ressentimento’.
Sua raiva arrefeceu e sua crítica tornou-se mais controlada, mas isso não diminuiu o impacto de seus trabalhos. Com uma pequena variação sobre um poema de 1981 para o poeta / pintor Breyten Breytenbach (verThe Low Countries 1995-96: 252-258), que foi aprisionado por suas opiniões a respeito do apartheid, o trabalho de Lucebert também “se envergonhava de ser um poema e não uma bala / com que – poeta – pudesse matar seu carrasco”.
Os horrores da guerra e da execução, do terror, do ódio racial e da vaidade continuaram a ser um motivo importante nos trabalhos de Lucebert durante a década de 1970. Ele obrigava o observador a olhar para os complexos penitenciários, os pátios de seleção e as cabanas (‘O Crime Perfeito’ - ‘De perfekte misdaad’, 1968).
O cinismo de Lucebert a respeito de um mundo que se repete mas não se aprimora aumentou depois dessa fase, embora ainda houvesse espaço em sua obra para um humor brincalhão e uma ironia leve, dando um caráter mais anedótico à agressividade contra a repressão.
A produção de Lucebert foi muito ampla; todos os dias eram dias de trabalho com uma rotina consideravelmente rígida e definida. Como o pintor francês Dubuffet, cuja concepção e cujo método de expressão apresentam forte correspondência com os de Lucebert, ele gostava de tomar “aquilo que lhe causa aversão”como ponto de partida para o trabalho. Rejeitou todos os estilos e isso dificulta a classificação de sua obra. Influências de todos os tipos, de arte tanto antiga quanto mais recente, estão incorporadas em seu trabalho e recebem a expressão que lhe é própria. E os títulos, por fim, são também elementos originais que abrem ainda outra perspectiva.

Lucebert

A impressão de encantamento e, às vezes, de tolice que o trabalho de Lucebert deixa naqueles que o veem mantém intacto o espelho inclemente que ele apresenta à humanidade quando expõe suas falhas e a envolve, como um criminoso militante, no mundo sardônico de suas criações. Sua arte é implacável e ainda assim empática e nos força a participar. Lucebert permaneceu “um comentarista da comoção”. A acusação que suas imagens trazem é opressiva; ao mesmo tempo, sua originalidade surpreendente e visionária pode ser libertadora.

Erik Slagter (Holanda, 1939). Crítico de arte. Texto traduzido ao português por Allan Vidigal. 
O tradutor agradece a Hilde Herbold pela ajuda com a interpretação do original em holandês do poema “Minnebrief aan onze gemartelde bruid Indonesia”, de Lucebert. Página ilustrada com obras de Lucebert (Holanda), artista convidado desta edição de ARC.



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