A epistemologia que conferiu à ciência a exclusividade do conhecimento válido traduziu-se num vasto aparato institucional – universidades, centros de investigação, sistema de peritos, pareceres técnicos – e foi ele que tornou mais difícil ou mesmo impossível o diálogo entre a ciência e os outros saberes.
Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses
O problema é que o grosso dos países africanos tem cultura ágrafa, e eu pergunto: antes da chegada dos colonialistas, não curávamos a malária ou ela não existia? Havia dentistas no século treze? O preto não sofria de dentes? Só começou a sofrer de dentes depois da colonização? Mas como nós não tínhamos escrita, isso trouxe o problema da aculturação, da rejeição da cultura. Diz-se ser um mundo supersticioso e eu digo não, esse mundo supersticioso tem o seu quê de racionalidade, para sustentá-la, vi que a literatura é um caminho, e quem abriu esse caminho foram os latino-americanos, eles tomaram aquilo que os ocidentais consideraram irracionalidade como uma base para a racionalidade própria.
Ungulani Ba Ka Khosa
Uma, entre outras questões que se colocam ao ler-se o último romance de Ungulani Ba Ka Khosa, Choriro, é sobre o conhecimento. Trata-se de um apelo a uma discussão epistemológica sobre os desafios que se colocam, num primeiro plano, à ciência histórica, essa narração metódica de passados, na produção do conhecimento a partir de um olhar local, de dentro. Esta proposta pode ler-se na nota que Khosa faz questão de colocar no livro:
Este retrato de um espaço identitário, de uma utopia que se fez verbo, assentou na rica e impressionante História do vale do Zambeze no chamado período mercantil. A intenção do livro foi a de resgatar a alma de um tempo, a voz que não se grudou aos discursos dos saberes. O fundamento histórico valeu-me como porta de entrada ao mundo de sonhos e angústias por que o vale do Zambeze passou durante mais de quatro séculos…
Choriro, um lamento, uma espécie de exorcismo ao “epistemicídio” [1] africano; um discurso que procura resgatar essas vozes abafadas, silenciadas ao longo do processo de produção desse conhecimento que temos sobre nós próprios e sobre outros.
Subjaz neste projeto um fundamento existencialista, a ideia de que o fato dessas vozes vincularem-se ao universo da oralidade não lhes permite afirmarem-se como um discurso válido e promotor de um conhecimento produzido a partir de dentro. Isto significa, ironicamente, que “os discursos dos saberes”, a que Khosa se refere em alusão à epistemologia promovida pelo Ocidente, produziram e promoveram um conhecimento sobre a “nossa” realidade a partir de fora, portanto, não intercambiando os afetos, não ouvindo essas outras vozes, exatamente pela sua natureza ágrafa, imprecisa e dúbia.
Assim se entende por que, em Choriro, os afetos em relação aos objetos observados são potenciados num jogo de racionalidades que se negam, alegorizando formas variadas de conhecer e teorizar o próprio conhecimento. Veja-se o exemplo:
Em geral, os indígenas, nas frequentes e animadas conversas em volta da fogueira, de tanto acharem natural a beleza circundante, não se extasiavam com o intermitente luzir dos pirilampos, a miríade de estrelas abarrotando o céu, o sussurro das folhas das árvores, ou o longínquo rugir de um leão na savana dos predadores da noite. Eles pasmavam-se com o encantamento de Chicuacha [o padre branco] ante o nascimento, na entrada abrupta da noite, das ilhas de fogo com que os canoeiros e carregadores pintavam as noites ao longo do leito do Zambeze. Na escuridão das águas, era-lhe possível observar os intrigantes olhos dos crocodilos que à direita e à esquerda perscrutavam os movimentos humanos. Seguros nos pequenos e confortantes pedaços de terra, os canoeiros pouca atenção prestavam aos répteis das águas. Estes, silenciosos, reluziam os olhos enquanto as línguas de fogo iam, aos poucos, fenecendo com a madrugada que ia abatendo as estrelas.
A naturalidade com que os indígenas observam a realidade circundante, a ponto de se imiscuírem nela como um todo harmonioso – repare-se que canoeiros e carregadores deixam-se estar serenos no leito do rio, partilhando as mesmas águas com os crocodilos – é antítese da artificialidade estampada no olhar de Chicuacha, para quem essa aliança não só não faz sentido como é perigosa. Mas é exatamente a essa aliança a que Etounga-Manguelle (1991) se refere ao tentar caracterizar os valores de África, os quais, exatamente por serem consubstanciais a tudo a que à África diz respeito, caracterizarão a forma como o continente deverá (re)produzir um conhecimento localizado. Essa epistemologia, entre outros valores, será caracterizada por “uma inserção pacífica com o meio ambiente”. [2] Mas o que se entenderá por tal inserção?
Wellek e Warren (1948), na busca de uma ciência literária, fundamentam a sua existência no que entendem como “fruição em estado de simpatia” em relação aos objetos observados. Parece estar aqui reforçado, de certa forma mais extensivamente, o pressuposto de Etounga-Manguelle. Ora uma inserção pacífica com o meio é o desejável, mas poucas vezes é conseguida, sobretudo quando o investigador é “estranho” à realidade observável e vice-versa. A inserção torna-se, então, não raras vezes, conflituosa, e essa conflitualidade determina o tipo de conhecimento que se produz, um conhecimento pouco emancipador, que castra o diferente. É prestando a devida atenção a este “delírio uniformizador” [3] que Matusse (1998) repensa a teoria sobre o Fantástico, de Todorov. Esta teoria é repensada por Matusse em função de determinados objetos, com os quais seguramente o teórico russo não contatou.
A caracterização do fantástico, segundo Todorov, baseia-se na intervenção de fenômenos sobrenaturais em condições tais que provocam na(s) personagem(s) e no leitor implícito a hesitação sobre a sua natureza real ou ilusória. Assim, o fantástico situa-se entre o maravilhoso e o estranho. [4] Entretanto, referindo-se à prosa de Couto e Khosa, Matusse adverte para a necessidade de se
considerar a noção de fantástico numa perspectiva histórica, como uma noção relativa. Com efeito, o fantástico resulta da ocorrência de fenômenos que a experiência humana julga como transgressores da ordem natural, tal como essa experiência permite concebê-la. Não há, por conseguinte, um padrão válido para todas as sociedades e civilizações a partir do qual se possa traçar uma fronteira entre o que é e o que não é fantástico. As nossas reflexões partem de uma visão do mundo assente no modelo racionalista ocidental, mas os universos retratados nas obras pertencem a civilizações onde imperam outros modelos de pensamento, outras crenças, enfim, outras concepções do que é a ordem natural.
A reserva de Matusse em relação à aplicação da teoria do fantástico sobre o objeto em estudo é explicável à luz da afetividade e reconhecimento culturalmente estabelecida e que se desencadeia quando o crítico entra em contacto com o objeto, o que lhe permitiu tomar parcialmente aquela teoria, ou seja, produzir esse conhecimento outro, localizado.
Esse é, como dissemos, o desafio que Khosa coloca no seu Choriro. Esta é a questão primacial, uma questão metaforicamente sugerida pela “burla referencial”, para usar a noção de Matusse em As poses indescritíveis. Com efeito, ao fim das 145 páginas do romance de Khosa, depois de levados, por esse mundo de sabedoria a resgatar, pelos olhares, pensamentos e racionalidades que se cruzam e muitas vezes se negam – porque esse o projeto – perguntamo-nos se Nhabezi [5] ou o branco Luís Antônio Gregódio, depois de morto, chegou, de fato, a transmudar-se num espíritompondoro, nesse “espírito de leão como outros soberanos das terras à margem sul do Zambeze se haviam transformado e governado espiritualmente os seus homens. Mas muitos duvidavam da real capacidade de o espírito de Nhabezi em coabitar com outros no seleto reino das divindades africanas.”
– No fundo não acreditas na mudança.
– A questão não está em acreditar. É necessário que a alma seja aceite.
– Por quem?
– Não perguntes a mim.
– É a cor?
– Nunca um branco se transformou em mpondoro.
Se Luís Antônio Gregódio assimilou os valores culturais, a cosmovisão das gentes locais com quem contatou, a ponto de mudar o nome para Nhabezi, podia esperar-se que a tão desejada transmudação ocorresse. Entretanto, a narrativa é aberta. Abre-se, pois, entre o curso dessa aculturação e o desejo dos indígenas, de que a transmudação de Nhabezi num espírito mpondoro se desse – e assim veríamos concretizados, metaforicamente, alguns dos valores de África apontados por Etounga-Manguelle: o apagamento do indivíduo, face à comunidade; a aceitação e a canalização das paixões (principalmente pela ritualização); uma inserção pacífica com o meio ambiente – um espaço virtual para todas as possibilidades, pois se o branco não permanece o mesmo, o mesmo acontece com o indígena.
Uma dessas possibilidades seria considerar, numa perspectiva contemporânea, que Nhabezi personifica o projeto político do Ocidente que vem à África “reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo”. [6] Do ponto de vista estritamente epistemológico, a metáfora aponta para o fato de o Ocidente estar disposto a ajudar a África a resgatar as suas formas de conhecimento e a potencializá-las para o avanço da humanidade. Abre-se, entretanto, a segunda possibilidade. Sugere-se então que, não se dando a transmudação de Luís Antônio Gregódio, apesar da suposta inserção no meio ambiente, há uma negação ou pelo menos reserva e estranhamento em relação à primeira possibilidade. Mas por que Khosa colocaria possibilidades aparentemente antagônicas, a segunda tornando inviável a primeira?
Os espaços virtuais, como o que se abre na última página do romance, serão formas de projeção de futuros? Ora Khosa sugere, ao buscar essa História não escrita sobre o Zambeze, que o futuro não é exatamente uma incógnita porque é feito de passados. Isto significa colocar o Homem africano – como aliás ele próprio é a metonímia – no centro da questão e acreditar que, afinal, África pode escrever o seu futuro a partir dessas vozes que, não estando grudadas aos discursos dos saberes produzidos a partir de fora, estão grudadas na memória local. Esta ideia faz de Choriro um discurso alegórico sobre todas as formas de produção e reprodução do conhecimento válidas em função de contextos diversos e desiguais. Neste sentido, parafraseando Aurélio Rocha no posfácio à obra, diríamos que todo o conhecimento válido precisa, para a suposta validade, de algo que não foi ou não é possível afirmar-se a partir de um certo número de hipóteses e dados. É com esta tese que em Choriro a escrita e a oralidade colocam-se no centro de ambivalências, hesitações e preconceitos muitas vezes difíceis de resolver. E o grande preconceito que Choriro nos obriga a questionar é o das “autoridades científicas”, preconceito (re)produzido sob o influxo ideológico segundo o qual o conhecimento científico é a única forma de conhecimento válida e que fundamenta, de forma radical, a emergência de qualquer forma de conhecimento na escrita que aos países africanos chega com a nau colonial, no século XIV. Sabe-se que uma visão eurocêntrica acreditará que África passa a existir desde então. Entretanto, Khosa desafia-nos a pensar na opção contrária.
O autor sugere-nos, por um lado, a escrita, o grafema, como o espectro de uma racionalidade fixa, inflexível no que diz respeito à abertura a outras experiências, outras esferas do conhecimento. Por isso se esfuma no tempo, ou seja, é a imagem escatológica da epistemologia ocidental. Sugere o autor, por outro lado, que a racionalidade africana há de ser deveras eclética, flexível e ritual. Por isso se renova ao longo do tempo, numa visão mais humanista e até pragmática:
A princípio a relação [entre Tyago e Alfai] tendeu a azedar-se por Alfai querer registrar em letra os procedimentos do fabrico da pólvora e das gogodas, fato que irritou Tyago, pois só a ele e poucos outros, cabia passar o testemunho, dizia o messiri. E esses testemunhos não se fixam em letras que tremem ao vento. Tudo deve estar na nossa mente. Papéis aqui não, Alfai, sentenciou Tyago.
Atente-se ainda no excerto seguinte:
A relação entre Tyago e Alfai estreitara-se tanto com o tempo que Chicuacha deixara gradualmente de ser o confidente próximo no momento em que se deslumbraram com as técnicas de fabrico de pólvora e armas de fogo. Fora lá, nas resguardadas oficinas de fogo e a mando de Gregódio, que Chicuacha e Alfai se deram conta de outras capacidades que não divisavam nos pretos. Rodeadas de secretismo e rituais, as oficinas de armas e utensílios de ferro encontravam-se interditas aos não-iniciados. A elas só os iniciados por Nhabezi, Makula, Tyago e alguns mais podiam se iniciar nas artes de fabrico de pólvora, armas de fogo e outros artefatos letais e não letais. Tal como os que se dedicavam à caça, canoagem ou ao comércio, a atividade ferreira tinha os seus rituais.
Depreende-se que Khosa evoca, por um lado, e na linha de Granger (1955), aquela concepção fixista da razão científica, que rompeu com os quadros habituais da percepção, como é o caso da “apreensão das qualidades sensíveis individuais” dos objetos. É obliterando esta “fruição em estado de simpatia”, ou seja, a especificidade e o contexto em que os objetos em análise se inserem, que este tipo de pensamento científico determina antecipadamente a natureza dos problemas científicos e os tipos de procedimentos que levam às respectivas soluções. [7] Ora sabe-se que tais soluções muitas vezes não respondem aos problemas colocados. Por isso Khosa sugere-nos, por outro lado, e ainda na esteira de Granger (1955), essa concepção romântica do conhecimento, a qual faz predominar os valores vitais sobre os valores intelectuais, [8] onde a ação, a emoção, a paixão, desempenham os principais papéis. Contra a imagem duma investigação paciente, controlada, discutida, oferece-se o modelo de um saber direto, indecomponível, intraduzível, onde signos como símbolo, mito, imaginação constituirão a porta de entrada para um universo de conhecimentos que o mundo da oralidade encerra e cuja validade deve ser potenciada. Não há, portanto, na recusa de Tyago, um pretenso monopólio científico, quiçá determinado pelo caráter mitológico ou pelo secretismo a que se refere o narrador, como se poderia pensar. Pelo contrário, a epistemologia africana há de homogeneizar porque tudo deve estar na “nossa mente”, tornando possível a comunhão. O acesso ao conhecimento pressupõe sempre uma espécie de iniciação, seja qual for o paradigma e as leis que gerem o conhecimento. Assim se entende que o monopólio científico aqui é evocado como referência à epistemologia ocidental, de base escrita, exclusiva, seletiva e que cria a noção de Poder. É a esta imagem caótica, do Poder, a que o autor nos pode arrastar discorrendo sobre o fim último da epistemologia ocidental.
A escrita, aqui entendida como metonímia de epistemologia ocidental, criou e vai perpetuando o Poder, a subordinação de uns, que não sabem ler e escrever em português, aos que detêm esse poder e assim o conhecimento que ele mesmo produz e veicula. De fato, a palavra grafada reclama a sua individualidade e subjetividade, e subjuga outros tons na cadeia sintagmática. Aqui está metaforizado o fundamento, a gênese e a natureza das nações africanas, que não se acautelaram perante estas questões de modo a potenciar outros saberes e outras formas de os produzir, de modo a salvaguardar o equilíbrio que a educação trazida pela colonização não consegue. Importa destacar, entretanto, que esforços há no sentido de empoderar o cidadão analfabeto do ponto de vista da gramática das línguas não locais. Basta pensar-se em desafios como o Ensino Bilíngue ou em iniciativas de organizações que têm pedido proficiência em línguas bantu a candidatos a emprego. Estes exemplos devem aguçar a nossa atenção de modo que aprofundemos os argumentos aí subjacentes.
Ora, as reflexões sobre as realidades dos países africanos saídos da dominação colonial têm sido produzidas a partir do modelo racionalista ocidental. Os níveis de desenvolvimento político e econômico não lhes permitem ou quase não lhes permitem potenciar e disponibilizar as suas formas de produção de conhecimento. Pelo contrário, condicionam que estes, como referem Santos e Meneses (2009), sirvam de matéria-prima para o avanço do conhecimento científico que vem do Norte. Para estes autores, continua adiada a negação a este epistemicídio, esta supressão dos conhecimentos locais perpetrada por um conhecimento alienígena que vem do Norte, cujo projeto é homogeneizar o mundo, obliterando as diferenças culturais. Ora, não parece que essas diferenças adiem a utopia do diálogo, de um diálogo emancipador. Isto é o que se pode dizer do caráter aberto da narrativa de Khosa, já atrás referido. O espaço virtual, que na última página se abre, terá de ser híbrido, o que significa que o futuro de países como Moçambique depende do intercâmbio dessas duas formas de conhecer e disponibilizar o conhecimento. Fundar o conhecimento a partir de uma visão de dentro e relacioná-lo com outras visões é emancipar o próprio conhecimento e o seu agente de produção, o homem.
Lucílio Manjate (Moçambique, 1981). Romancista e ensaísta. Autor de manifestO (2006) e Os silêncios do narrador (2010). Contato: cicopi07@yahoo.com.br. Página ilustrada com obras de Luciano Bonuccelli (Itália), artista convidado desta edição de ARC.
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