segunda-feira, 24 de novembro de 2014

ROB MERRITT | A diversidade como tempero da vida: uma conversa com o poeta Thomas Rain Crowe, do Oeste da Carolina do Norte





TRC | Durante os anos 70, eu vivia em São Francisco, onde andava com os Beats – Ferlinghetti, Hirschman, Kaufman, McClure, DiPrima, Everson, Micheline, Norse, Ginsberg (quando estava na cidade), Brautigan, Bukowski (quando estava na cidade), Meltzer e outros – e vivia, respirava, comia (e bebia) poesia vinte e quatro horas por dia. Era uma experiência de vida incrível, intensa, como a de Paris na década de 20, ou Moscou e São Petersbugo depois da revolução Bolchevique. Esses caras (os Beats) estavam totalmente à nossa disposição naquela época. A fascinação toda com o movimento Beat diminuíra àquela altura e os Beats não estavam recebendo muita atenção da imprensa; e quando nós, jovens, aparecemos em São Francisco e começamos a agitar – organizando récitas, ressuscitando a antiga revista Beatitude, organizando protestos e eventos... e envolvendo a turma dos anos 50, mais velha e mais famosa, tudo se tornou uma verdadeira família/comunidade que lhes devolveu um público e, ao mesmo tempo, nos deu um público. Foi uma grande colaboração por diversos anos e muitos de nós, os mais jovens (ou “Baby Beats”, como fomos rotulados) tivemos uma educação verdadeira que não poderíamos ter comprado ou ganhado em nenhum outro lugar. 

RM | Vocês tinham um nome, uma expressão, para se referir àqueles anos em São Francisco. O que era? A “universidade” do quê? 

TRC | “A universidade da rua,” uma expressão cunhada por Neeli Cherkovski (que fora secretário de Bukowski por diversos anos antes de ir para S.F.), inspirado pelo uso que Jack Hirschman fez da palavra “rua” como topônimo socioliterário. Ele muitas vezes usava a palavra “rua” metaforicamente em conversas e em seu trabalho – em frases como “corações da rua” (“street hearts”, no original, parodiando a expressão carinhosa “sweetheart”) e assim por diante.
Tive sorte por estar ali na hora certa, quando tudo aquilo estava acontecendo. Essa “educação”, essa “universidade” que acontecia nos bares, cafés, apartamentos e palcos das ruas de North Beach. Foi ali que obtive minha verdadeira educação literária. Seria impossível replicar aquilo num ambiente universitário naquela época, assim como hoje. Ao contrário da maioria dos estudantes de hoje em dia, que não sabem nem por que estão na escola, sabíamos exatamente por que estávamos em North Beach, perto da livraria City Lights, e o que esperávamos extrair daquela experiência. E dávamos duro para isso.

NR | Acho que os melhores poemas tanto soam bem quanto parecem bons na página impressa; mas como se obtém os dois ao mesmo tempo – algo que tanto soe bem quanto pareça bom, impresso?

TRC | Isso provavelmente é o que a maioria de nós busca como ideal. Foram os Beats que me fizeram perceber que a poesia podia ser escrita na linguagem normal do dia a dia. A poesia deles foi a primeira a que fui introduzido que era numa língua que eu entendia, que tinha a ver comigo. Nos sistemas de educação secundária e universitária deste país, a literatura é ensinada de trás-para-a-frente, acho – com as velharias sendo enfiadas goela abaixo dos jovens, que logo se sentem afastados e acabam detestando até a palavra “poesia”. Lembro de pensar com meus botões depois de ler Um Parque de Diversões da Cabeça, de Ferlinghetti: “Cara, que bacana! Isto é algo que eu saberia fazer. Posso não saber escrever como o Chaucer, mas claro que sei escrever que nem o Ferlinghetti!”
Como venho das montanhas, aqui dos Apalaches Meridionais, a tradição oral me é importante – e inclui o dialeto Montanhês do Sul. Quando crescia, minha língua nativa era o Montanhês do Sul, como a chamaram Jim Wayne Miller e Cratis Williams. O ponto de contato entre Jim Wayne e eu era toda essa questão do dialeto e de como ele é denegrido e desprezado e criticado pelos forasteiros. Quanto mais para o norte me mudava com minha família, mais tarde, mais tive que refinar meu uso do Montanhês. Quando cheguei na Virgínia, já falava uma língua completamente nova...
  
UM BEATNIK VAI PARAR NOS APALACHES E APRENDE A LÍNGUA DA TERRA E DO CÉU

Pelos riachos e sua trama úmida de raiz
& pedra um murmúrio quente respira submerso
numa poça de música onde brilham água e podridão
sobre ramos verdes molhados de musgo e orvalho
profundos.

Sente a dança da hera
escalando a roda de pedra.

Sente o botão de rosa azul
Criado na carícia da torrente de terra podre.

Sente a onda madura de anoitecer que toca a chama
& rompe a fervura lenta do sangue de húmus e chuva.

Pelos galhos-escada acobreados das árvores verdes
& suas copas ergue-se um bando de assovios
num desmaiar de luz do sol quando bate o trovão e
a cor se arqueia nas nuvens e seu humor turvo de toras
e folhas

Sente o esquife de neve que prega, suave,
junto à toca do coelho.

Sente o Pássaro de Olho Grande no ramo ou oco
Da acácia e da mata fechada.

Sente a corcova da terra fresca e o favo dourado
de mel e centeio invernal.

Sente o carrapato e o pé de fresno.

Sente o céu!

NR | Recentemente percebi uma ênfase muito maior na poesia como palavra falada, em vez de poesia como algo apenas escrito. Sei que você não só faz récitas públicas, mas também realiza apresentações com sua banda poético-musical, The Boatrockers. Gostaria de saber – lhe parece de mais valor escutar um poema do que o ler? Ou são duas experiências completamente diferentes?

TRC | Para mim, não há muita separação entre a voz e a palavra escrita ou impressa. E acho que isso provavelmente tem a ver com duas coisas. Quando eu era jovem, meu primeiro contato com a língua e com a poesia em particular veio de minha mãe, que, quando chegava a hora de dormir, sempre cantava, declamava, ou lia para mim. E muito do que ela lia, cantava, ou dizia vinha da tradição celta – principalmente contos ou poemas da Escócia, a terra dos meus ancestrais. Robert Louis Stevenson vem à mente como um dos meus escritores predileto quando era criança. A combinação da fala/canto da minha mãe e, depois, minha própria capacidade quando tinha idade o bastante para ler sozinho. Muitas vezes, eram livros como a série The Childcraft Books ou A Child’s Garden of Verses, com ilustrações que acompanhavam os poemas. Minha mãe recitava os poemas e contos para mim, já que os sabia de cabeça. Com isso, eu literalmente tinha ao mesmo tempo uma experiência visual e oral. Estou convencido de que foram aqueles anos que de fato informaram meu ouvido e minha voz e, mais tarde, meu trabalho. Ainda mais tarde, minha ligação com os países celtas e sua percepção de que não há separação entre música, poesia, contar estórias e até dança. Veem tudo como partes de uma só tradição... a tradição bárdica. Uma tradição de milhares de anos que incorpora o contar estórias, cantar, tocar instrumentos, tudo simultaneamente em termos de apresentação.

NR | Pode dar aos leitores da Nantahala Review algumas ideias de a quê recorrer, quem podem escutar, para experimentar a tradição bárdica?

TRC | Me ocorrem, de pronto, duas pessoas: Dylan Thomas e Robin Williamson. Dylan Thomas talvez seja um dos maiores poetas celtas/bárdicos de todos os tempos – o que pode parecer estranho para quem sabe a respeito de Thomas, que era galês, mas escrevia em inglês. Em sua poesia em língua inglesa, há um tom mais lírico [1] do que o de qualquer outro poeta que eu conheça – talvez mais, até, do que em Shakespeare! Como poeta lírico, como bardo, ele é muito musical. Sua poesia talvez seja mais “celta” do que a de qualquer poeta que tenha escrito em línguas celtas no Século XX. É verdade que não falo nenhuma língua celta – gaélico escocês, irlandês, galês, córnico, manquês e bretão – mas, pelo menos na tradução, não percebo na maioria dos poetas líricos galeses o mesmo senso lírico que sinto em Dylan Thomas, que, ironicamente, como já disse, escreve em inglês! Enfim, a musicalidade da sua voz e a sua influência sobre mim são enormes, mesmo. Sempre me comparo com Dylan Thomas – não no sentido de que seja tão bom quanto ele, ou de que escreva o mesmo tipo de poesia, mas sempre o encarei como um padrão a que aspirar.

NR | Estava pensando se, ao escrever um poema “não-oral”, ele teria um aspecto diferente na página. As quebras seriam diferentes, digamos, das encontradas em algo que você estivesse escrevendo e considerasse lírico?

TRC | Sim e não. As quebra de verso e de página podem acontecer – e, com isso, poemas líricos e não-líricos podem ter aspectos diferentes – mas é tudo orgânico. Como não escrevo racionalmente, não escrevo nada de maneira pré-concebida. Até mesmo os textos de freelance e não-ficção que escrevo. Tudo simplesmente me vem. Aprendi a confiar num processo espontâneo. Isso tem a ver, de novo, com a infância e com as qualidades mágicas do que pode acontecer na página escrita. Sempre me impressionei com o que sai da minha cabeça. Quando eu era mais jovem, parecia mágica. A palavras vinham de algum outro lugar. Amava aquele processo e aquela experiência e não quero mexer com isso por que acho que, se alterar o processo, alteraria a maneira como eu lido com o escrever de modo geral – o que significaria que eu provavelmente não escreveria mais. O processo se aproximaria mais do trabalho do que da diversão. E, embora eu ganhe a vida com a palavra e dê duro no que faço, ainda acho divertido escrever da maneira como escrevo. E não quero mudar isso.
Tive a sorte de encontrar editores que me permitem escrever como escrevo. Cada poema, cada artigo, cada resenha, tem uma voz própria. Nesse sentido não saberia lhe dizer o que é que faço. Não saberia como rotular. Não há um dispositivo interno de censura, ou um fator de controle. Cada peça é uma experiência singular baseada em algo em que estou envolvido, ou algo que me rodeia, ou algo que sabe-se lá de onde veio, e esse algo tem uma voz própria e não quero brincar com isso. Não quero que todos os poemas soem e sejam parecidos, que é o que acontece com tantos poetas hoje em dia. Na verdade, não quero ter “uma voz”. Não quero me limitar dessa maneira. Para mim, escrever/viver é justamente assumir riscos.

NR | Isso parece ir contra a corrente contemporânea, já que muitos professores de escrita dizem que precisamos encontrar uma voz própria e nos agarrar a ela.

TRC | Acho que tudo bem, desde que seja isso que você quer e especialmente se puder encontrar uma voz potente. Mas, depois de algum tempo, me parece que a maioria dos escritores – e principalmente dos poetas – que trabalham esse ângulo acabam escrevendo o mesmo poema um monte de vezes. Nãomson é um verdadeiro bardo contemporâneo, um trovador. Algumas pessoas talvez se lembrem dele da década de 1960, quando era membro daThe Incredible String Band. Robin é do País de Gales e levou, literalmente, toda a tradição bárdica para a estrada. Faz turnês pela Europa, Estados Unidos e o mundo, apresentando antigas baladas, poesias e canções celtas enquanto toca literalmente dúzias de instrumentos. De modo geral apresenta poesia ritmada com acompanhamento musical – que é a maneira bárdica e da qual obtive a inspiração para musicar poemas não-rimados e não-cantados com minha banda, The Boatrockers.
E há outros que trabalharam e trabalham com a palavra falada e a música e que de alguma maneira influenciaram meu trabalho dentro deste gênero. Entre essas influências estão o roqueiro Jim Morrison, de The Doors, com seu álbum An American Prayer; a performista Laurie Anderson; o poeta ativista indígena (da tribo lakota) John Trudell; e, mais recentemente, a poeta indígena muskogee/creek Joy Harjo e sua banda Poetic Justice. Acho que esses artistas são a nata do gênero. Mas não devemos nos esquecer de pessoas (poetas) como Kenneth Patchen e Kenneth Rexroth, que vieram antes deles, e que trabalharam com grupos de jazz, apresentando seus poemas perante grandes plateias durante os anos 50 e o começo da década de 1960.

NR | Você acha que procura, ao escrever o poema, reproduzir ou indicar a sua sonoridade? Em outras palavras, se você não achasse que ele seria lido em voz alta, seu aspecto na página seria diferente ao escrever?

TRC | Acredito que não, por causa da minha maneira de escrever. Tenho essa coisa lírica desde a infância e de quando crescia aqui nas montanhas do oeste da Carolina do Norte, que tem a ver com o Montanhês do Sul. E há o meu modo de escrever, que é espontâneo – quase um fluxo de consciência, numa maneira parecida com a que os escritores surrealistas de Paris, na primeira metade do Século XX, perceberam um processo criativo ímpar que significava escrever a partir do inconsciente, com uma voz livre de censura. Não é exatamente assim que escrevo – pelo contrário, procuro manter os pés no chão – mas me permito ser totalmente espontâneo e livre de censura. Nesse processo, não há uma noção pré-concebida de tentativa de ser lírico ou não-lírico, de ser acadêmico ou não-acadêmico. É tudo simplesmente o que acontece na hora. No momento. Acho que, literalmente, escrevo a partir de uma sensação, ou, para ser mais exato, um ritmo. Algumas palavras podem bastar para criar um ritmo; parto desse ritmo e tento permitir que o que vier depois delas participe dessa batida espontânea. O poema Beatnik que acabei de ler foi escrito assim.

NR | Acha que esse veículo é algo que está dentro de você e sai, ou algo que está fora e entra?


TRC | Acho que é as duas coisas. O que ela “é” tem que ser algo que seja parte de mim, já que vem através de mim. Tem que passar por mim para emergir como linguagem escrita ou falada, de modo que aquelas influências, que são eu mesmo, existem. Ao mesmo tempo, contudo, sou metafisicamente ingênuo o bastante para acreditar que haja mais alguma coisa acontecendo que simplesmente não podemos ver ou não conseguimos entender. Não se trata de bobagem new-age. Só estou dizendo que há escritores como Ken Wainio, o poeta/romancista surrealista da Costa Oeste americana, que estão abertos e dispostos a se permitir ser um veículo perfeito para o mundo desconhecido, não visto. E isso me anima. Entretanto, não quero, necessariamente, ficar preso naquele lugar. Prefiro acreditar que estou com os pés no chão quando permito que um poema chegue através de mim. Procuro ficar consciente. Essa ligação com o chão pode ter algo a ver com o fato de que tenho Virgem, ou outros signos, em três das minhas “casas” astrológicas” [risos]

NR | E como você se abre para esse processo? É como uma meditação, ou simplesmente como saltar para dentro de um “rio”?

TRC | Na verdade, nenhum dos dois. Acho que já nasci assim. Nunca tentei ser da maneira que sou. Nunca tentei ser poeta. Nunca tentei fazer qualquer coisa da vida. Tudo simplesmente aconteceu, entende, e deixou... Segui meus impulsos e a ideia de correr riscos nunca foi alto a temer. Simplesmente vou aonde me sinto atraído. As coisas que mais me atraem são as que sigo e busco. E talvez em tenha dado sorte, no sentido de que consegui sobreviver assim. Mas dei duro para viver dessa maneira – no sentido de que tive muitos trabalhos que me tomaram muito tempo e esforço – só para ter dinheiro o bastante para sobreviver. Mas a parte de trabalho e emprego sempre me pareceu secundária em relação à ideia de me permitir ser livre. E não sei bem de onde veio essa ideia, essa obsessão com a liberdade. Talvez venha de ter crescido no Condado de Graham, em Robbinsville, vivendo entre descendentes de Irlandeses, o povo dos Apalaches e os Indígenas. Ou talvez venha de algum outro ugar – eu realmente não sei. Mas sempre foi importante para mim, num nível consciente, ter liberdade. E, para mim, ser livre significa seguir a própria felicidade. Joseph Campbell colocou com perfeição: “seguir a felicidade.” É um processo bem direto: você vê algo que lhe atrai e vai explorar.

NR | É incrível como isso é difícil para a maioria das pessoas.

TRC | Parece que é. As pessoas sempre expressam as mesmas impressões a respeito de como levei a vida. A certa altura, passei quatro anos sozinho no mato, sobrevivendo à base do que podia plantar e sendo autossuficiente. E toda hora encontro gente que me olha de um jeito esquisito e pergunta, “como você conseguiu!?” Na verdade, era muito fácil. Era só agir! Para mim, ser poeta tem tudo a ver com ser livre, seguir a felicidade, e simplesmente agir.

NR | Quero ir mais fundo no processo de escrita e conversar um pouco a respeito de técnica. Você faz muita revisão? Sei que a maioria das pessoas faz. Mas, com base no que você acabou de dizer, acho que você não gosta muito de revisão.

TRC | Na verdade, faço muito pouca revisão. Muito pouca. Meu processo tem a ver com deixar as coisas acontecer. Quando escrevo, não sei bem, em termos racionais, o que estou fazendo. Só deixo acontecer. Quando termino de escrever, leio uma só vez o que escrevi, só para ver o que foi que fiz. E depois guardo. Às vezes fico mais de um ano sem olhar de novo para o poema ou o texto. Mas, geralmente, são algumas semanas, ou dois meses – especialmente se for algo datado, ou com prazo. Kerouac muitas vezes dizia que a primeira ideia era a melhor (“first thought, best thought”) e esse conceito ficou comigo esses anos todos. É verdade que sou parte dessa tradição, a tradição Beat, mas, organicamente falando, é assim que trabalho melhor. Descobri que, se não tivermos cuidado, a revisão pode arrancar a alma e o coração de um poema, e muitas vezes vi meus amigos mais acadêmicos caindo nessa armadilha. Para mim, a coisa tem mais a ver com o processo do que com os resultados. Não estou tão preocupado com o “poema perfeito.” Claro que quero que aquilo que entrego ao público seja o melhor possível, de modo que faço mudanças e revisões de tempos em tempos, mas mesmo quando escrevo resenhas, ensaios ou artigos para o jornal... é sempre um processo espontâneo. Não sigo um regime rígido de me sentar para escrever três horas por dia. Apenas parto de alguma coisa – uma ideia, um conceito, um ritmo – e vou em frente até terminar. Até que não tenha mais nada a dizer. E às vezes faço revisões, etc. – principalmente quando se trata de prosa. Mas isso é fácil. O difícil é começar. Sempre digo que “começar” é a parte mais difícil da escrita. O resto, até reescrever, é só a cereja do bolo.

NR | Por falar nisso, queria perguntar a respeito da sua escrita jornalística. Na semana passada, ao ler parte do seu material, fiquei impressionado com um ensaio que você escreveu e que era quase todo feito de citações de um jovem fazendeiro dos Apalaches, cuja família cultivava tabaco há gerações e que estava explorando novas maneiras de cultivar. Era um homem de grande visão e parecia personificar o dilema que muitas pessoas daquela região hoje enfrentam, com as mudanças da economia americana e com o afastamento que enfrentamos da possibilidade de ganhar a vida de maneiras mais tradicionais. Me pergunto como você extraiu aquilo tudo dele. Foi tudo muito bem dito e muito bem escrito.

TRC | Você está falando de William Shelton, lá do Condado de Swain, Carolina do Norte. Ele é uma pessoa singular, articulado e muito inteligente! Gosta de conversar. Por isso, não foi difícil obter respostas para as minhas perguntas, e nem tirar dele uma boa matéria. É um falador...
Ao longo dos anos, nossa relação se transformou numa espécie de amizade. A certa altura, percebemos que podíamos conversar um com o outro a respeito de alguns assuntos. Ele tinha coisas que queria dizer a respeito da agricultura e do estado das coisas no país, e confiou em mim para representar suas ideias de maneira honesta e correta. Com isso, passamos muito tempo conversando sobre os diversos problemas dos pequenos fazendeiros, de globalização, do GATT e do NAFTA, e da conjuntura econômica... Eu queria que a matéria fosse a voz dele, não a minha, principalmente porque ele fala bem e é capaz de articular o assunto, como você notou, tão bem quanto eu mesmo poderia, mas de um ponto de vista objetivo. Então fiz muitas anotações e tentei me lembrar do máximo que pude. Quando terminei a primeira versão, entreguei a ele para que lesse, para garantir que as citações e informações (nomes, datas, essas coisas) estivessem corretas. Foi esse o processo que adotamos. O resultado final foi quase como uma entrevista. Prefiro que as pessoas contem as próprias estórias, com as próprias palavras, a própria voz. E foi desse jeito que escrevi muitos artigos para jornais e revistas.

NR | Do que você disse, deduzo que a tradição de história oral dos Apalaches permanece viva na região onde você vive e nas pessoas que tentam lidar com os seus problemas, por aqui... a globalização, os danos ao meio-ambiente e outros desafios, correto?

TRC | Nunca pensei no artigo sobre o William Shelton como algo que indicasse a tradição oral dos Apalaches, mas, já que você tocou no assunto, acho que e isso mesmo. William vem de uma longa linhagem de contadores de estórias. Seu pai é um tremendo e brilhante contador de estórias. E William herdou dele esses traços. E convém mencionar que o motivo que levou William a retornar à sua fazenda, em Whittier, foi ter encontrado os poemas e ensaios de Wendell Berry, enquanto estava na Universidade do Tennessee. O trabalho de Wendell Berry fez com que ele mudasse de ideia e de vida! Depois de ler os ensaios de The Unsettling of America, William decidiu abandonar os estudos, voltar para a fazenda da família e fazer com que desse certo, contra todas as probabilidades. É uma estória incrível. E um ato de confiança e de vontade quase inacreditável.
E, de fato, a tradição oral está muito bem, obrigado, nos Apalaches do Sul, como mostram os muitos festivais e eventos de contação de estórias que acontecem aqui e nas montanhas do Tennessee a cada ano. E, fora isso, nas simples conversas do dia-a-dia do povo daqui, a tradição oral persiste em grande estilo.
[...]
O que originalmente me atraiu para a escrita foi a poesia, assim como as leituras que minha mãe fazia à noite para mim. Quando cresci e comecei a ler sozinho, lembro que pensava, “cara, como seria legar poder fazer isso. É uma coisa que valeria a pena passar a vida tentando. Se eu soubesse escrever assim, teria realizado alguma coisa de verdade. Escrever como Robert Louis Stevenson!” E foi com esse pensamento que tudo começou para mim. E houve um incidente quando eu era bem jovem... fui à casa de alguém – acho que estava nos escoteiros – e naquela casa uma mãe distribuía refresco, enquanto a gente fazia coisas de escoteiro. Daí ela vem trazendo seu filho, que era da mesma tropa de escoteiros, em diz, “Meu filho é poeta”. Claro que aquilo chamou a minha atenção, porque os poetas, para mim, eram pessoas como Robert Louis Stevenson, James Whitcomb Riley, Eugene Field e por aí afora – grandes escritores. Enquanto eu escutava o garoto declamando seus poemas, me lembro de ter pensado: “porra, eu sei fazer melhor do que isso!” (eu comecei a falar palavrão ainda muito novo – tendo crescido em Milltown, lá em Robbinsville. Aliás, lembro do primeiro palavrão que ouvi e de quem o disse). Eu provavelmente não saberia fazer melhor naquela época, mas achei que poderia, se quisesse de verdade.
Esses foram os meus pontos de partida conscientes. Eu adorava aquilo, a magia e tudo o mais, e pensava “poxa, seria ótimo se eu soubesse fazer isso. Seria realizar algo de verdade”, e depois me lembrava do incidente com aquele garoto. Foi minha plataforma de lançamento. Muitas vezes me peguei imaginando o que teria sido daquele jovem “poeta escoteiro” – se ele chegara a fazer qualquer coisa como escritor.

NR | Queria ouvir um pouco a respeito do estado mental que você experimenta ao escrever. Pode desenvolver um pouco esse tema?

TRC | Vamos dizer assim... sabe a tal “zona encantada” de que falam os atletas? Pois é a mesma coisa para os poetas e escritores. Tendo sido tanto atleta quanto escritor durante a vida, pude experimentar o fenômeno pelos dois ângulos e, por isso, posso falar com um certo grau de certeza a respeito. Por outro lado, enquanto os esportes são predominantemente competitivos, não há nada de competitivo na poesia. Mas, de certa forma, há, sim. Deixe-me explicar... Essa coisa toda do Slam, para mim, é por um lado anátema, porque tem tudo a ver com competição e poesia, no fim das contas, não tem a ver com competitividade. Acho que os Slams foram muito bons para a poesia de modo geral, no sentido de que trouxeram um novo e numeroso público. É preciso dizer, a esta altura, que há “poetas” performistas que são incríveis naquilo que fazem e que gosto de assistir suas apresentações, mas não gosto do contexto de competição – da pontuação, das notas, porque, para mim, é uma antítese daquilo a que o processo de fato se refere. A poesia, afinal, tem a ver com unificação e união de pessoas, não apenas com sua diferenciação pela personalidade teatral e, muitas vezes, a-poética.
Dito isso, por outro lado, gostaria de acrescentar... tendo passado bastante tempo perto de outros escritores, posso dizer que, quando nos aproximamos de outros poetas, há, sim, uma espécie de competição tácita e silenciosa que acontece o tempo todo. Como em qualquer esporte, pode ser positivo – assim como o é para os atletas que usam essa competição para aumentar sua habilidade – se a gente estiver perto de quem seja melhor do que somos. Foi algo que senti na Califórnia, convivendo com poetas mais jovens que eram melhores do que eu, e principalmente com os mais velhos, pessoas cujo trabalho eu há muito admirava. Estar perto daqueles caras me tornou um poeta melhor. Aprendi, ouvindo os Beats conversar entre si durante aqueles anos, que havia uma enorme competição entre eles. Ainda há. São muito competitivos. Quero dizer... quando se reuniam, só falavam dos poemas que tinham publicado, das grandes editoras que tinham comprado seus trabalhos e de quanto dinheiro estavam ganhando. Era nojento, mesmo. Mas o que eu não entendi naquela época era que a coisa era competitiva de uma maneira positiva. Os caras eram os melhores amigos uns dos outros e não estavam se atacando de maneira egoísta; na verdade, usavam essa comparação para fazer com que todos melhorassem. Sempre estavam se ajudando de outras maneiras – como apresentar uns aos outros a editoras e arranjando bolsas, lugares para morar, empregos uns para os outros... Estavam sempre se ajudando. E vi muito disso com os poetas da minha geração em San Francisco – frequentando os poetas mais jovens que eram amigos meus, ou com quem eu trabalhava. Sempre havia competição, mas era uma competição amigável. E acredito que todos crescemos com isso e continuamos a crescer – aqueles entre nós que ainda mantêm o contato.


NR | Gostei do que você disse a respeito de aprender com os outros. Assim, até um poeta morto pode nos desafiar e ensinar.

TRC | Com certeza! Embora eu tente pensar no ato de escrever e publicar como um processo romântico, livre de ego, na verdade há muito de ego envolvido em ser criativo. De todas as pessoas que conheci nesta vida, nenhuma era mais egocêntrica do que os artistas. E os poetas talvez sejam os piores de todos. Isso foi um choque enorme para mim! Sempre imaginei os poetas como sábios. E quando finalmente conheci alguns deles e tive a chance de conviver bastante com eles, vi que eram os imbecis mais mesquinhos e egocêntricos que se pode imaginar. Isso não quer dizer que eu tenha parado de admirar seu trabalho ou deixado de conviver com eles – não mesmo – mas foi, sim, um golpe na minha visão romântica do mundo e do lugar que os poetas nele ocupam.

NR | Entendo, no sentido de que a gente “se abre” e precisa ser capaz de aceitar a crítica e tudo o mais que acompanha a escrita e a publicação.

TRC | A parte do “ego” também é parte dessa coisa competitiva, sabe? Quando alguém escreve um poema melhor do que qualquer coisa que você já fez, ou quando seu melhor amigo aparece com um poema incrível, você se sente ultrapassado e isso força a gente a ir em frente e tentar escrever ainda melhor.

NR | Tenho um ex-colega de faculdade com quem ainda troco coisas... estamos sempre enviando um para o outro textos de que, no fundo, esperamos que o outro sinta um pouquinho de inveja. Você não acha que esse tipo de troca é sadio para os escritores?

TRC | Acho que é, sim. A menos, claro, que um de vocês dois esteja fazendo isso só para fazer com que o outro se sinta inferior. Mas acho que esse tipo de “fogo amigo” é uma boa coisa; uma coisa importante de verdade. Que a competição amigável, ou seja lá o nome que você queira dar a isso, é parte da dinâmica entre escritores. Quando converso com jovens que talvez queiram ser escritores algum dia a respeito de ser poeta ou escritor e seguir esse caminho, lhes digo, “vá para onde tem mais gente como vocês, outros escritores e artistas.” Acho que, quando a gente é jovem, precisa estar por perto de outras pessoas que pensem de maneira parecida e tentem fazer coisas parecidas. Mas a competição nunca para. Amigos meus dos dias de San Francisco com quem ainda mantenho contato, a gente compete. Até hoje. Mas todos entendemos de quê se trata, de modo que não é nada de negativo.

NR | Será que, se você não tivesse ido para San Francisco, provavelmente estaria cultivando a terra, ou no volante de um trator?

TRC | Difícil dizer, mas pode ser que sim.

NR | Onde vivo, se alguém quiser ser escritor, não há modelos em que se mirar. Como foi para você? Uma coisa que a Internet pode fazer é proporcionar uma “comunidade”. Temos uma comunidadezinha (na Internet). As mesmas pessoas aparecem por lá ao longo dos anos. Se você desse um intervalo de três anos, provavelmente encontraria por lá algumas das mesmas pessoas. Nesse sentido, existe uma comunidade que se constrói em torno de publicações ou de um determinado grupo de pessoas. E acho que temos esperança de que a Nantahala possa dar certo por este motivo, porque estamos esperando que alguns de nossos alunos vejam os trabalhos de pessoas como você, sintam-se ligados a eles e percebam que existe uma comunidade em que se encaixam.

TRC | É isso aí. Antes de ir para a Costa Oeste, em 1973, eu não tinha passado o tempo com poetas ou artistas – e, por isso, não sabia quem eu era no contexto de ter tido a experiência de cruzar com outros escritores. Hoje, contudo, minha família e comunidade literária continuam a ser a minha verdadeira comunidade. Não vejo alguns deles há vinte anos, mas sempre mantivemos contato e a distância não parece fazer diferença. Seria bom estar com eles mais frequentemente, mas estão morando na Califórnia, Itália, Grécia, Alasca, e sabe-se se lá onde mais – ainda assim, é a minha comunidade e me alimento constantemente dela, no sentido psíquico. Mesmo quando fico um tempo sem ter notícias, eles sempre estão por aí. E, quando nos encontramos, é quase como se ainda estivéssemos juntos – pelos bares e pelas ruas de San Francisco. Agora estou aqui, no me do nada, em termos de qualquer verdadeira comunidade artística com que possa conversar. Não há ninguém por aqui com quem eu interaja nesse nível. Há muita gente que escreve e com quem tenho contato, mas que não são parte daquilo que considero a minha comunidade. Não temos o mesmo tipo de ligação que tenho com o grupo de San Francisco/Beatitude de antigamente. Sei que isso pode soar meio elitista e já fui publicamente acusado disso, e admito que e verdade e não tenho a menor vergonha de admitir. É assim que são as coisas. Por que eu queira, não podemos ser todos amigos íntimos uns dos outros – ou sequer ter os mesmos interesses ou crenças. O mundo é diverso. Existem muitos tipos de pessoa. E como se diz por aí, todos os tipos são necessários.

NR | Pode falar um pouco mais de diversidade e, talvez, do que aprendeu sobre biorregionalismo na costa Oeste durante os anos 1970, e como isso pode ter se aplicado a parte de sua criação?

TRC | Muitas vezes fui acusado de ser “dispersivo”, de fazer muitas coisas diferentes em áreas completamente diferentes e não interligadas, e de não ter uma obra, ou voz, focada. O fato é que os meus interesses me levam a lugares distantes e diversos. Coisas variadas, em relação uma com a outra, atraem minha atenção e lá vou eu... e uma coisa não leva, necessariamente, a outra. Por isso, minha escrita e minhas viagens me levaram a muitos lugares diferentes. Também me mostraram, recentemente, que a maior parte do meu trabalho é voltado para lugares. Que meus livros são livros sobre lugares. Que meus livros são sobre lugares. São sobre lugares específicos e as pessoas e a paisagem desses lugares. E é verdade. Percebi, recentemente, que todos os livros que já publique são assim. E que os livros em que estou trabalhando são todos assim, Tendo a ir para algum lugar e me apaixonar ou envolver com ele e seu povo, e minha escrita, naturalmente, vem dessa excitação. Mas, provavelmente, a verdade a respeito de por que sou tão disperso é simplesmente que meu intervalo de atenção é curto. [risos]
Num nível mais filosófico e, ao mesmo tempo, de experiência, por me envolver nos dias iniciais do Movimento Biorregional, trabalhando com gente como Peter Berg, autor de Planet Drum, Lee Swenson, de Simple Living, o poeta Gary Snyder e outros mais, aprendi que a diversidade é um conceito fundamental em toda a natureza – e, aliás, em todo o universo. No fim das contas, é a diversidade que permite a qualidade de vida de todas as coisas, além de permitir que tudo sobreviva, evolua e prossiga. Uma vez que a noção ou o fato da língua ou da cultura única se torne enraizada, tudo começa a ficar parecido com tudo o mais – o pool gênico diminui e a qualidade de vida fica comprometida. Para mim, a diversidade é essencial em termos tanto filosóficos quanto práticos. É essencial para o mundo natural, o que quer dizer que é essencial, também para o mundo humano. Acho maravilhoso termos diferentes culturas, diferentes povos, diferentes raças, diferentes crenças. Se não fosse assim, a vida como a conhecemos não existiria. E seria bem chata, não acha, se todos fôssemos da mesma cor e só existisse um tipo de árvore e um tipo de salamandra, e uma só maneira de pensar em Deus ou o adorar? Num mundo monolítico, nossas imaginações, que são essencialmente alimentadas pelo mundo natural e pela diversidade e pelo mistério do Universo, iriam secar. A entropia se estabeleceria. Pararíamos de evoluir.

NR | Ainda mais do que de excitação, não se trata de questão de sobrevivência?

TRC | Acho que sim. Acredito haver muitos estudos sustentando a ideia de que a diversidade é necessária para a continuação das espécies e para o meio-ambiente em geral no que se refere à sustentabilidade. Minha vida sempre foi – e de maneira consciente – abraçada pela diversidade em termos dos assuntos a que me apego ou com que me envolvo. Eu não apenas gosto da diversidade, mas a procuro. Então acredito que é natural que isso também surja na minha escrita.
Por falar nisso, “capacidade de carga” é outro aspecto disso tudo. A explosão da cultura monolítica que estamos vendo hoje neste país e que está se espalhando pelo planeta é resultado de nossa falta de consciência ou conscientização sobre a capacidade de carga. A maioria das pessoas não sabe da questão da superpopulação e, por isso, estamos encrencados! Nós superdesenvolvemos e superexploramos a terra e assim por diante... Isso tudo, afinal, tem a ver com uma melhor gestão de nossos recursos naturais e com uma educação que faça de todos nós guardiães dos lugares, em vez de usuáriosdeles.

NR | Esse paradigma ecológico se aplica, de alguma maneira, também ao mundo artístico? Você imagina uma cultura monolítica que invada o mundo da poesia e literatura?

TRC | Nem me diga!... [risos] o que sua pergunta me traz à mente, imediatamente, é toda essa institucionalização da literatura e da poesia. Acho que isso é resultado, principalmente, da proliferação de cursos superiores de Artes pelo país – onde as pessoas pagam uns poucos mil dólares e passam um ou dois anos estudando em casa ou em salas de aula, “aprendendo como ser escritores”. Vou deixar claro, logo de cara, que não acredito que a gente possa ensinar ninguém a escrever. Não mas do que pode ensinar alguém a se tornar um pintor, ou um músico. Podemos ensinar as pessoas a apreciar as artes e o mundo criativo, mas não como ser artistas – não mais do que podemos ensiná-las a pensar. São habilidades inerentes, a gente nasce com elas. Ou a gente tem jeito para a coisa, ou não tem. E não há diploma acadêmico ou soma de dinheiro que possa comprar essas habilidades. A gente aprende a escrever escrevendo, vivendo. Aprende da vontade de escrever. Da necessidade de escrever. Quanto aos cursos de Artes e seus efeitos adversos sobre o mundo dos escritores... a popularidade desses programas é crescente e eles produzem centenas, se não milhares, literatos de carteirinha por ano. Pode até ser que alguns ótimos escritores venham desses cursos. Mas o ponto é que há escritores demais para o mercado, de modo que temos milhares de pessoas competindo por  muito poucas oportunidades de publicação. De novo, é um problema de “capacidade de carga”, percebe? Carros demais e motoristas de menos. As editoras sobreviventes em nossa cultural aliteraria são muito poucos para sustentar um mercado tão superpovoado. Há escritores demais. É fácil demais virar um, digamos, escritor. Será que as pessoas dos Estados Unidos não têm mais nada para fazer a não ser virar escritores? Aliás, para começar, nem consigo imaginar porque alguém em sã consciência quereria se tornar escritor. Vai contra a lógica.

NR | E por que você quis? Tornar-se poeta/escritor?

TRC | Não tem um “porque”, e é exatamente disso que estou falando! De uma maneira racional e lógica, se você olhar para a minha vida, o simples fato de eu ter me tornado poeta vai contra a lógica. O fato de um garoto das montanhas do sul, vindo de uma família conservadora de classe média baixa e que era atleta ter virado poeta. Qual a chance disso acontecer? Acho que meu pai ainda está em estado de choque por causa do que fiz com a minha vida. Minha vida simplesmente aconteceu. E eu deixei acontecer. Interessei-me por poesia e literatura muito cedo e a coisa assumiu o controle sobre a minha vida. Eu não planejei nada disso, nem conspirei para que acontecesse, nem fui estudar o assunto, apenas “segui minha felicidade”, como diz Joseph Campbell; e ela me trouxe até aqui, até agora, nesse pedaço de mata perto do ribeirão de John’s Creek, Condado de Jackson, esta serraria que ajudei a construir e onde estamos conversando para a edição de Outono da Nantahala Review.

NR | Que conselho você daria aos jovens que querem ser escritores?

TRC | A melhor resposta breve para essa pergunta vem, acho, de Rilke – em suas “Cartas a um Jovem Poeta”. Rilke diz, na carta a um jovem aspirante a poeta que o procurara, que se ele conseguir passar um dia ou uma semana sem escrever, ou se conseguir imaginar uma vida da qual a escrita não seja parte fundamental, então não tem nada que ser escritor. Concordo e acho que é um bom critério. Se escrever for parte intrínseca de você, se for como um braço, ou uma perna, então vá em frente. Faça tudo o que precisar. Mas insista e escreva. A certa altura, o esforço e a repetição irão dar resultado. E você irá aprender o que precisa saber através da própria escrita. E da leitura! Mas, se sua decisão de ser escritor for lógica – motivada por ideias a respeito de uma “carreira”, ou coisas que não estejam ligadas ao seu coração e à sua alma – então a decisão de ser escritor provavelmente será um grande erro. Não precisamos de mais escritores e decididamente não precisamos de mais poetas acadêmicos medíocres. E o problema é que tem tantos poetas medíocres saindo desses cursos superiores de Artes que os bons escritores – as pessoas que de fato têm algo a dizer e o sabem dizer bem – não conseguem encontrar quem publique o seu trabalho e são justamente estas as pessoas que precisam ser ouvidas! De acordo com esse paradigma, a cultura se enfraquece porque não tem acesso a esses poetas que não encontram editores. Se você não acredita no que estou dizendo basta olhar para a situação em que nos encontramos, hoje, nos Estados Unidos. Seria possível argumentar que nos encontramos nessa situação porque não há mais líderes morais entre nós, mas, também, primeiro, porque vivemos em uma cultura semianalfabeta e, segundo, não temos acesso aos nossos melhores poetas.

NR | Acho muito importante a ligação que você faz entre o mundo da ecologia e do meio-ambiente e o processo artístico!

TRC | Depois de uma derrubada, as árvores que ressurgem numa floresta decídua diversa, como esta em que vivo, são principalmente a acácia americana e o choupo. Eles expulsam todas as outras. Não dão espaço para mais nada crescer. Sim, há usos para a madeira das duas, mas são muito limitados. Principalmente no caso do choupo. É uma madeira muito mole, não dá para fazer muita coisa com ela – não traz grandes vantagens para o mundo. A acácia americana é boa para fazer cercas; é uma bela madeira de lei. E queima bem para quem aquece a casa com lareira, como eu, mas viver só com acácias e choupos? Que mundinho chato seria, se estivéssemos limitados a esses dois tipos de madeira. O mesmo raciocínio se aplica ao mundo criativo e aos artistas entre nós.

NR | Derrubada – é mais ou menos isso que tem acontecido no meio cultural. A derrubada de tudo o que é diferente e a reconstrução de tudo de uma maneira homogênea.

TRC | Exato! Isso mesmo! Uma só linguagem, um só tipo de culinária, uma só filosofia política, um só Deus... Se as coisas fossem do jeito que querem os republicanos, teríamos um sistema monopartidário. Em tudo: um só tipo. Acho que um jeito mais sadio de viver é abraçar a ideia de que “o pequeno é belo e a diversidade é necessária.” São dois axiomas que falam comigo em termos da minha própria experiência, tendo vivido aqui nas florestas da Carolina do Norte há tantos (25) anos, e convivendo com a tribo cherokee e os montanheses que vim a conhecer. Simplesmente faz sentido acreditar nisso e viver dessa maneira.

ACHTUNG!

Atenção!
não à janela,
mas aos helicópteros no céu,
ao zumbido na linha,
à polícia que bate à porta.
Achtung!
O céu despenca
pelos átomos que foram arrancados
do ar.
As árvores cortadas para construir templos
ao petróleo.
A água turva que não serve mais
para os peixes.
Atenção!
Quando liberdade é só um nome
para aquilo que perdemos.
Quando paz e só mais uma marca
de bomba.
Quando o símbolo da nação não é mais a águia,
mas o cordeiro.
Achtung!
Os republicanos estão chegando.
Os republicanos estão chegando...
Para nos internar
No sanatório não tem nada de são.
No hospício.
Na cadeia para terroristas.
Sobre meu cavalo conspirador,
Sou Paul Revere passando por Dachau a bordo do trem.
E os republicanos estão chegando.
Os republicanos estão chegando...
Atenção!
Os alemães conhecem bem os truques da Casa Branca.
Deram um soco no nariz do valentão.
Citam Bukowski e Chomsky
como os filósofos da era,
em vez de Wolfowitz e Bush.
E Dachau está vazio
esperando para ser lotado
dos ricos da América.
Achtung!
Vamos pô-los todos na Autobahn
Sem freios.
No topo do Zugspitze
Sem esquis.
No fundo do lago Starnberg
com Luís, o Louco.
No meio de Munique
sem roupas.
No salão do trono de Neuschwanstein
sem tronos.
Atenção!
Tudo o que se vê não é o que parece.
Isto é um pesadelo.
E todos dormem.
Democracia é fascismo
escrito de trás para a frente.
Os políticos falam
pelos cantos das bocas.
A TV é uma lobotomia frontal.
Hollywood, uma nova religião.
César ressurgiu das cinzas...
Achtung!
Atenção!
O Imperador está de roupa nova,
e só se fala disso.
Achtung!
Atenção!
É uma nova ordem mundial.
Na mesma gaiola de sempre.

De Munique para Pfaffenhofen
Primavera de 2003

NR | Acho que o mundo acadêmico enfatiza o multiculturalismo, mas a gente fica com a sensação de que a coisa não é tão sincera assim.

TRC | Acho absolutamente necessário ensinar, ou pelo menos apresentar os jovens a outros povos, outras culturas, outros processos criativos e outras realidades. Absolutamente necessário!

NR | Mas quando se vê a realidade da América, o comercialismo, está tudo indo na direção oposta.

TRC | Verdade. E podemos seguir esse raciocínio até a origem – até o núcleo da globalização e da economia. Essencialmente, o que está acontecendo neste país e nos países em desenvolvimento, por causa do GATT e do NAFTA e da ganância empresarial em geral, é que os pequenos estão perdendo a batalha – quando nem sequer deveria haver batalha! Aqui na zona rural da Carolina do Norte, a pequena propriedade familiar está desaparecendo, da mesma maneira que no resto do país. E acho que isso é uma grande perda – não só culturalmente, mas em termos da saúde das pessoas e do país como um todo. Provavelmente, em algum momento do futuro, vamos ter que pagar por isso. É triste. A coisa toda é triste. E provavelmente ainda não chegamos no fundo do poço – o desaparecimento dos valores que sustentam este país. Dois dos quais são a poesia e a arte.

O BARRACÃO DA SERRARIA

 

Vim para esta terra,
faz muitos anos.
Sozinho, durante meses,
construí esta serraria.
Pedra e cimento sobre pedra,
troncos ajustados e encaixados,
tábuas rudes de carvalho pregadas nos pilares e nas vigas
com pregos de nove polegadas.
Almoçar todos os dias escutando
o riacho correndo sobre as pedras,
através dos rododendros, vindo do Monte Doubletop.
O som das asas de marreco batendo na mata –
Telhado montado, janelas colocadas,
e o forno a lenha instalado na sala,
olho para fora e miro o que
estas mãos fizeram.
Uma velha chaminé, ainda firme e coberta de hera,
agora virou um lar.
Cansado do esforço e do corpo
velho demais para trabalhar.
Deitar mais uma pedra lisa e chata na mureta do quintal.

John’s Creek
Primavera de 2001


NOTAS:
[1] No original, entrevistador e entrevistado usam o termo “lyric” no sentido de letra de música e não, propriamente, de lirismo. É o primeiro o sentido a ser adotado na tradução brasileira.


Rob Merritt tem B.A. e M.Aem Inglês na Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill e um Ph.D. em Inglês na Universidade de Kentucky. Lecionou na Virginia Tech, da Universidade de Kentucky, edesde 1990, na Bluefield College. Seu interesse acadêmico primordial é a poesia moderna. Contato: newnativepress@hotmail.com. Entrevista originalmente publicada em Nantahala Review # Issue 2:2. Tradução de Alan Vidigal. Página ilustrada com obras de Nelson de Paula (Brasil), artista convidado da presente edição de ARC.
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