Morto em pleno centenário de Cataguases, a cujas comemorações ele não chegou a assistir, pois falecera dias antes, Rosário Fusco completou 100 anos em julho de 2010, sem qualquer lembrança da crítica e da mídia que fizessem justiça à sua estatura intelectual e ao seu combate estético. Mas sua vida e sua obra são maiores que qualquer homenagem pública ou privada que possam ser prestadas a um homem, como ele – maior que seu tempo e sua cidade – sem cair na obviedade, na repetição ou até na caricatura.
Poucos dias depois de morrer, em 17 de agosto de 1977 (mesma data em que, dez anos depois, morreria Carlos Drummond de Andrade), o jornalista José Carlos Oliveira, um dos maiores cronistas brasileiros de todos os tempos, escreveu no Jornal do Brasil sobre a importância de Fusco e a necessidade de se entender a monumentalidade de sua obra e o vazio que deixaria nas letras e na cultura nacionais. Não era uma hipérbole, pois RF foi essa estrela solitária, porém fulgurante, em nosso cenário. É desses demiurgos que surgem de tempos em tempos, que não só os seus conterrâneos, mas os leitores, os críticos e certa parcela da intelligentsia nacional levarão anos para cair a ficha e compreender o homem e a obra.
Indagado, à época, pelo escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes, para uma matéria que escreveu no Estado de Minas, para falar sobre a importância de Rosário Fusco para a literatura brasileira e resgatar a sua bibliografia, resumi: “Um dos mais importantes legados de Fusco foi tratar dos dramas humanos e existenciais a partir de uma mirada suprarreal. Fugindo dos estereótipos até então predominantes em nossas obras, sua preocupação não era de recompor eu reproduzir cenários sociais, urbanos ou rurais – muito comum nos romances do realismo-naturalismo e do regionalismo – mas explorar a vida e os fenômenos (ou mistérios) psicológicos que desembocavam nos dilemas íntimos de seus personagens, como o delírio, a paranóia, as obsessões e as patologias psíquicas, que são transtornos visíveis no homem contemporâneo.”
Apesar de sua importância, Fusco continua esquecido ou negligenciado, não só no resto do país, mas na cidade onde passou os últimos anos de sua vida, depois de ter peregrinado pelo Brasil e o mundo. Defendo que a população cataguasense, que pouco conhece sobre a “Verde” e sobre o que a revista (que circulou entre 1927-1929) deflagrou no processo cultural e literário local e nacional, merecia saber mais sobre a obra rosariana. De tal sorte que nas grades escolares fosse incluído o estudo de sua obra, como também dos demais nomes da revista. É triste constatar que em outros estados a importância da literatura cataguasense, principalmente dessa época, seja mais cultuada e (re)conhecida que entre nós. Essa falha didático-pedagógica deve ser corrigida. Há que se estabelecer, penso eu, uma reserva de mercado para os autores locais, a exemplo do que faz, com muito sucesso e eficácia, a rede escolar gaúcha.
Passar em revista à obra de Fusco em uma despretensiosa resenha é temerário, dada a magnitude da sua bibliografia, mas se o “O agressor” é considerado pelos críticos como seu melhor livro, não menos o são suas demais obras. Ele compõe, ao lado de “Carta à noiva”, O livro de João” e “Dia do Juízo”, uma espécie de unidade temática. Essas narrativas mergulham no processo vertiginoso de insularização do ser humano, tentando compreender suas neuroses, seus fracassos e sua fuga permanente da realidade, tão premido que é pelas demandas e urgências do quotidiano, situações que o levam a uma vida de permanente desconforto íntimo e desassossego social e mental. Fusco, como poucos, soube antecipar em seus livros, e o retomou em a.s.a.- associação dos solitários anônimos, publicado postumamente, essa vertente de uma prosa visceralmente sintonizada com o deslugar do ser nesse mundo e nesse tempo de coisificação e etiqueta.
O papel de Fusco na revista (que teve Francisco Inácio Peixoto, Ascânio Lopes, Guilhermino Rosário Fusco e Enrique de Resende,d entre outros) foi catalisador e fundamental para a afirmação estética do grupo. Tanto em razão de uma acuidade intelectual tão precoce - aliada a um senso de humor, escracho e irreverência -, quanto pelo despojamento de suas idéias, um tanto anárquicas e tendentes a uma verdadeira ruptura com os cânones e as tradições até então vigentes. Essas características de sua personalidade marcaram decisivamente sua atuação, contribuindo para a recepção do movimento, que culminou num fabuloso intercâmbio com os modernistas de São Paulo e autores estrangeiros, chamando a atenção do País para algo inusitado, novo e até “abusado” que se fazia no interior de Minas Gerais, a ponto de Ribeiro Couto esbravejar: “Todo o Brasil está surpreso: existe Cataguases!”
A temática dos romances de Fusco continua atualíssima, porque ela toca nas tensões e conflitos humanos, na sua complexidade e nas suas formas caóticas de exteriorização, como fizeram Dostoievski, Kafka e Camus, por exemplo. Por meio de sua lente foi possível transpor o absurdo da realidade, sem cair nos exageros da inverossimilhança. O que ultrapassa o real na obra de Fusco é justamente o que legitima sua compreensão do homem a partir de seus deslocamentos e de sua indesviável imperenidade espacial e geográfica. Sua obra merece uma releitura da nova geração de críticos e ensaístas, principalmente quando a literatura contemporânea padece de um certo vazio, fruto da repetição, do pastiche e do requentamento de certos temas e realidades. Não há como esquecer Fusco diante da condição agressiva e calcificante que vigora nesses tempos de coisificação e etiqueta, de fetichismo dos mercados (o financeiro e o editorial) em que vivemos, e que mais vale o ter do que o ser. É imperdoável não levar em conta sua literatura, narrativas que antecipam os absurdos e abismos em que se meteram o homem e a sociedade, quando tanta mediocridade e verniz, tanta dissimulação e fraude, são publicados com status de boa literatura, com laivos de bestsellerismo num cenário viciado por tanto arranjo. Talvez por conta de sua participação no Estado Novo, quando no governo Vargas exerceu funções públicas, não tenha escapado ao patrulhamento da intelectualidade brasileira e ao silêncio glacial da crítica e da mídia, algo análogo ao que aconteceu com Wilson Simonal, na MPB.
Sem nenhum exagero, foi comparado a Kafka por Antonio Olinto; e passados mais de trinta anos de seu desaparecimento, Rosário Fusco deve ser lembrado como um dos maiores escritores não de Cataguases; nem de Minas nem do Brasil; mas da língua portuguesa. Um autor que não cedeu às tentações alucinatórias do mercado (a exemplo de um Campos de Carvalho, de um Samuel Rawet e de um José Agripino de Paula). Nem por isso sua obra deve ser alijada do cânone, porque trovejou, em alto e bom som, pela voz e pela palavra escrita, contra o caos efervescente e absorvente desse mundo, que dia a dia, só recicla suas tragédias individuais e coletivas, no plano moral ou político.
Em seus romances, vislumbramos um autor preocupado com um mundo que vai se apartando e perdendo seus referenciais lógicos, identificando na condição humana um certo desvio escatológico e vícios contingenciais de uma aldeia humana transformada em rebanho, cada vez mais eivada de agressividade e condicionamentos acachapantes. Vivendo um auto‑exílio no seu próprio meio (morou no exterior, viveu em Nova Friburgo e voltou para Cataguases, aí permanecendo até morrer), RF deu uma dimensão extraordinária às questões humanas, ao tratar em sua obra do grande conflito que caracteriza a existência num mundo eivado de incongruências. Em certo momento, podemos até perceber um certo niilismo e alguma tendência para o realismo fantástico. Um dos fundadores da vertente modernista do interior de Minas, publicou Poemas Cronológicos (1928), Fruta de Conde (1929), Amiel (ensaios,1940), Vida Literária (crítica, 1940), Política e Letras (Repertório, 1940), Introdução à experiência estética (ensaio, 1949), Anel de saturno (teatro, 1949), O agressor (romance, 1943), Carta à noiva (romance, 1954), Auto da noiva (farsa, 1961), Dia do juízo (romance, 1962), O livro de João (romance, 1944), deixando inéditos A.S.A. – Associação dos solitários Anônimos, Vacachuvamor (romances), Um jaburu na torre Eiffel (livro de viagens), Creme de pérolas (poesia), Erótica menor(poesia) e Diários. Graças à iniciativa da Ateliê Editorial (SP), em 2009, A.S.A. foi incluída na coleção Lê Prosa, dirigida por Marcelino Freire, porém a obra passou despercebida da mídia hegemônica e monopolista do eixo Rio-São Paulo.
A leitura de sua densa lavratura nos coloca diante de um autor regurgitando os sobressaltos de sua época e as angústias do homem de quotidiano pulverizado, em que sua projeção crítica suscita uma sacudida em nossas consciências tão fragilizadas pelos atavismos; de uma modernidade levada ao paroxismo. Sua poesia, embora produção de menor quantidade, carrega também uma subjacente expressão do mundo, captada pelo seu foco inquiridor sobre um mundo que, já naqueles tempos, vinha dando sinais de exaustão coletiva, perdendo‑se em correntes baldas de substancialidade.
Rosário Fusco deixou um corolário estético‑filosófico que o particulariza. Introdução á experiência estética, entre outros ensaios do gênero, traz uma reflexão candente e objetiva sobre as perspectivas da arte e sua condição de instrumento permanente de resistência, libelo e afirmação da nacionalidade.
Como um Bukowski, um Cèline, um Roberto Piva ou um Jean Genet, Fusco andou na contramão, principalmente numa época de preconceitos mais arraigados: era mulato, gostava de uísque e não dourava a pílula quando em tela sua postura crítica sobre a literatura e os escritores. Não cabia nesse mundo de convenções, rótulos e estereótipos, era o gênio que se atormentava diante da normalidade e das exigências morais de uma sociedade burguesa e hipócrita, e sua agudíssima percepção da herança ancestral e caótica do ser, do tempo e do universo, pode ser medida em uma de suas últimas entrevistas, ao Pasquim, esquadrinhando a realidade, angustiado com a ordem natural das coisas: “A única novidade é o sol. Nem Deus inova: por isso,o moderno é o eterno.O ser é: o criado na sua intransmissível solidão.”
RONALDO CAGIANO (Brasil, 1961). Narrador e ensaísta. Autor de Dicionário de pequenas solidões, Dezembro indigesto e Concerto para arranha-céus. Página ilustrada com obras de Leonardo da Vinci, artista convidado desta edição de ARC.
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