sexta-feira, 21 de novembro de 2014

WANDERSON LIMA | O túnel e o subsolo: presença de Dostoievski em Ernesto Sabato




 Ernesto Sabato
I | Num ensaio sobre Shakespeare, o filósofo Julían Marías refere-se a uma estirpe de escritores, cujo prócer seria o Bardo inglês, que tem a qualidade da página. “Quando um escritor com qualidade da página escreve algo”, diz Marías, “o faz a partir de si mesmo, não a partir de um repertório impessoal de fórmulas, e simplesmente pondo a mão sobre as linhas impressas de seus escritos podemos sentir o pulsar de seu coração”. Assim era Ernesto Sabato: de cada página sua emanava uma luz própria, intensa e urgente, carregada de uma vida cheia de experiências e crises, e também de muita leitura. Seu gênio intenso casava-se com o aforismo, com a escrita fragmentária à maneira de Pascal e Nietzsche e sua profundidade só era equiparável com sua frase reta, límpida. Toda e qualquer página de Sabato o contém em sua inteireza. Como Borges, Sabato tinha o dom de elaborar ideias desconcertantes em uma linguagem humilhantemente clara. Mas ao contrário do irônico e lateral Borges, seu gênio se revestia de uma gravidade típica de quem assume responsabilidades hercúleas e sua palavra ganhava ares proféticos e salvacionistas: era palavra proferida às vésperas de um Apocalipse.
Luciano BonuccelliHomem de guinadas e rupturas, Sabato saltou da militância comunista à ciência (chegou a trabalhar no Laboratório Curie em Paris e no Massachusetts Institute of Technology – MIT, nos EUA) e desta à literatura. Ainda que tenha morrido quase aos 100 anos, em 30 de março de 2011, só escreveu três obras de ficção – o restante de seu trabalho se constituindo de ensaios e textos autobiográficos de grande lucidez e forte engajamento humanitário. Sua estreia na ficção deu-se com um pequeno romance, intitulado El túnel (1948), que discutirei neste texto. O túnel é uma narrativa de tom sombrio centrado num caso passional pleno de conflito e mistério, envolvendo Juan Pablo Castel e María Iribarne. Denso e simbólico, embora linear em seu enredo, O túnel já foi lido em diversas pautas, algumas convergentes, outras quase opostas: como típico romance existencialista (no que é aproximado especialmente de Camus); como romance metafísico de atmosfera trágico-cristã; como encenação de obsessões psicopatológicas e até como narrativa policial. Os apontamentos que faço a seguir aqui aproximam esse romance de estreia à imagem do “homem do subsolo” de Dostoievski, imagem consagrada nesta obra-prima que éMemórias do subsolo (título da louvada tradução de Boris Schnaiderman, mas que também foi vertido como Memórias do subterrâneo).

II | Sabato sempre se pronunciou favoravelmente à novelística russa e a Dostoievski em particular. Entre as inúmeras menções ao romancista russo presentes nos ensaios de Sabato, destaco uma passagem de Homens e engrenagens por nela está sintetizado o sentindo da obra de Dostoievski na evolução do romance: 

A literatura hoje não propõe a beleza como fim – que além disso a alcance é outra coisa. É mais uma intenção de aprofundar o sentido da existência, uma encarniçada tentativa de chegar até o fundo do problema. Esse desejo de autenticidade, que em alguns homens como Antonin Artaud chegou até a ferocidade e a loucura, é o que põe abaixo o sentimentalismo convencional e falso que poluía a literatura anterior a Dostoievski, essa literatura em que os homens eram bons ou maus, heróis ou covardes, nobres ou vilões. A partir de Dostoievski, fomos nos acostumando à contradição e à impureza que caracterizam a condição humana: já sabemos que por trás das mais nobres aparências podem ocultar-se as paixões mais vis, que o herói e o covarde são muitas vezes a mesma pessoa, como também o santo e o pecador. Pela primeira vez, as crianças podem ter maus instintos e sentimentos perversos. Como está longe Dimitri Karamazov do bandido ou do herói de um filme do distante Oeste! E como está longe, também, de Monsieur Teste, essa espécie de autômato cartesiano.  

Tomando, pois, Dostoievski como paradigma, Sabato concebe o romance como gênero eminentemente metafísico, instrumento de uma investigação total do ser humano. A matéria dos romances, para o argentino, é o destino humano, com todos os seus problemas e mistérios. No seu livro de ensaio mais famoso, El escritor e sus fantasmas, Sabato distingue cinco fatores que modelaram a vocação metafísica do romance moderno – isto é, aquele romance que se constituiu, na leitura sabatiana, no arco que vai de Dostoievski a Camus. São esses os cinco fatores:

Luciano Bonuccelli- O racionalismo, que, ao relegar as forças irracionais e inconscientes do homem, fê-las explodir no domínio da fantasia;
- O cristianismo, que, ao romper a harmonia do homem pagão com o cosmos, criou uma consciência intranquila (veja-se Pascal, Kierkegaard e tantos outros);
- A tecnocracia, que, ao coisificar o homem, provocou nele a necessidade de buscar formas de comunicação autênticas por meio de obras de ficção;
- A instabilidade social, que, ao produzir um sistema fluido de classes sociais, acentua o angustiante sentimento de transitoriedade no homem;
- A mecanização da palavra, que, ao substituir o relato oral pelo livro lido solitariamente, estimulou o surgimento de um espírito introspectivo, analítico, desconfiado, espírito esse típico da cultura científica moderna.

O Túnel é um romance que corrobora a contento a ideia deste gênero como espaço de debate de uma crise da condição humana em larga escala, uma crise que não é apenas econômica e social, mas que abala mesmo os fundamentais estruturais do ser humano, incluindo aí sua relação com o divino. Umas das fontes deste romance de Sabato é, sem dúvida, o já citado Memórias do subsolo, de Dostoievski. Esta obra dostoievskiana fixou, nos quadros da literatura universal, a imagem do chamado “homem do subsolo”, este ser sem nome, irritadiço, de humor oscilante, vaidoso de sua capacidade intelectual, anacoreta aniquilado por um rigor hipercrítico, consigo e com os outros, que o impede de agir.
No excelente Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoievski (2003), Luiz Felipe Pondé realiza uma leitura deMemórias do subsolo que se baseia na oposição entre o “homem do subterrâneo” (Pondé prefere o termo subterrâneo a subsolo) e o “homem de ação”. Para Pondé, o revoltado sem nome das Memórias, juntamente com Raskolnikov (de Crime e castigo) e Ivan Karamazov (Os irmãos Karamazov), formam a trilogia dos agoniados: “agoniados por conta do exercício da razão levado ao paroxismo” (Pondé). A raiz dessa agonia é de natureza religiosa – para Dostoievski, o homem só pode ser entendido em sua economia com o divino. Daí que Pondé rechace a leitura da metáfora do “subsolo” como visão precursora da ideia de inconsciente: não que o escritor russo visse com maus olhos a psicologia, mas, homem fundamentalmente religioso, para quem o problema do mal era urgente e grave, o que o escritor russo fazia, segundo Pondé, era antes “pneumatologia” (do grego “pneuma”, espírito, sopro divino) do que “psicologia”. Os agoniados de Dostoievski são revoltados metafísicos, inconformados com a ambição científica, em sua época, que também não deixa de ser ainda a nossa, de mapear o homem, reduzir-lhe a uma cadeia de causas e efeitos. Para Pondé,

o homem do subterrâneo é aquele que sabe que está perdido no infinito, que, quando olha para dentro de si mesmo, não encontra nada a não ser um eterno deslizar de significado sobre significado, mas que, na realidade não é nada: ele é o que descreve e, ao mesmo tempo, não é. Subterrâneo implica a ideia de mal infinito, infinito como tormento. O homem de ação é o homem moderno, aquele que acredita em si mesmo, que toma como causa primeira causas segundas do seu comportamento; isto é, confunde causas a que tem acesso e as interpreta como causa daquilo que ele é, como causa primeira eficiente, quando se trata, na realidade, de causas segundas. […] A base do homem de ação é o utilitarismo inglês.

Luciano BonuccelliSegundo ainda Luiz Felipe Pondé, não é que esse “homem do subterrâneo” – ou do subsolo, como prefiro chamar – seja antimoderno. Ele sem dúvida está preso aos instrumentos e modos de refletir modernos, porém sua ruína demonstra que a compreensão moderna do ser humano, bem como o típico homem de ação que ela engendrou, não satisfaz, é falaciosa. Eis o que diz a personagem dostoievskiana: […] Vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada” (in: Memórias do subsolo, trad. de Boris Schenaiderman). O homem do subsolo, com orgulho e dignidade, opta heroicamente por ser um derrotado, um pária jogado nos subterrâneos da vida, a fim de não se juntar aos que ele considera os medíocres, isto é, os homens de ação.

III | Essa meteórica discussão sobre o “homem do subsolo” permitirá, agora, entender melhor o personagem Juan Pablo Castel, protagonista de O túnel. Castel, como o protagonista das Memórias e como Raskolnikov, leva seus raciocínios e críticas às últimas consequências, descobrindo um túnel que o separa dos demais. Assim, isolado, ele se encontra sempre acima ou abaixo da escala humana, dependendo do humor, e pode tanto falar da humanidade como se dela não fizesse parte como pode defender como normais posições que repugnam ao grosso da humanidade. Logo no primeiro capítulo, por exemplo, Castel defende que os criminosos são mais limpos e inofensivos que os cidadãos comuns e lamenta-se de estar preso por matar apenas uma pessoa, quando deveria de matado pelo menos umas seis ou sete.
Castel é artista, é pintor, mas sua arte, em vez de lhe permitir comunicar o inefável, o não passível de verbalização, serve apenas para ele comprovar a mediocridade do gênero humano. Talvez ele não se considere gênio, e, portanto, não pense que não lhe entendem por se encontrar à frente de seu tempo. Na verdade, as pessoas não lhe entendem porque simplesmente, na sua visão, todos nós vivemos num túnel, translúcido e hermético, através do qual vemos o próximo, mas não lhe podemos falar e ouvi-lo. Nem todos, porém, vivem nessa prisão-túnel: fora dele estão justamente o que em Dostoievski eram os “homens de ação”, esses seres mergulhados na inautenticidade, no medo e no cinismo. O túnel é, assim, signo de uma vitória trágica, de uma vitória na derrota: ele condena, mas afasta o condenado do rebanho. Dentre os que vivem uma existência inautêntica fora do túnel, especial asco é destilado aos críticos de arte, que Castel considera como nada menos que a escória da humanidade. E por quê? Supostamente porque são pessoas que querem comunicar o que não entendem, em vez de se calarem. São seres que evitam a dura verdade da incomunicabilidade se amparado em clichês de notória ineficácia.
Quanto María Iribarne Hunter (atente-se ao sobrenome inglês!) compreende o enigmático quadro de Castel, o racionalismo deste, com suas teses negativas sobre os homens e a capacidade de comunicação entre eles, entra em crise. Este fato poderia levar Castel, não fosse ele um derrotado por escolha, a reconsiderar suas ideias: afinal, a situação grita que, se não é possível uma autêntica comunicação com todos, ao menos com uma pessoa, quem sabe com o ser amado, isso é possível. Mas ele não aceita que o amor (sua identificação intensa com María) ou a arte (o quadro que os aproxima, porque só os dois entendem o simbolismo profundo da cena pintada) possam transcender nossas limitações, estabelecendo uma ponte segura entre mim e o outro. Esta possibilidade de transcendência o assusta, o encontro com o outro lhe parece menos uma espécie de milagre que uma conspurcação. Daí sua estranha reação: “Existió una persona que podría entenderme. Pero fue, precisamente, la persona que maté” (El túnel, grifos do autor)
Neste sentido, Castel, como também o inominado homem do subsolo de Dostoievski, podem ser considerados heróis trágicos incompletos, se endossarmos a seguinte observação do filósofo Karl Jaspers em O trágico:

Luciano BonuccelliA visão trágica é um modo pelo qual vemos ancorada metafisicamente a aflição humana. Sem fundamento metafísico há apenas miséria, lamento, infelicidade, ruindade e fracasso; o trágico só se mostra ao saber transcendente.

Castel não ancora sua aflição em nenhuma instância transcendental: vive aquém do trágico e aquém, portanto, de uma redenção. Reage movido pela desconfiança e pelo ressentimento, sabendo que a razão não o libertará, mas ainda assim se apoiando nela e levando-a às últimas consequências. É claro que, se Castel tivesse admitido a comunicação ser um ato possível, isso não lhe ia garantir que María, essa mulher misteriosa, pudesse trazer-lhe felicidade – porém, ela já seria a testemunha viva que de que a incomunicabilidade não é um dado irrevogável, definitivo.
Se María, porém, foi a única pessoa que o entendeu, por que Castel a matou? Se nossa resposta é que foi por ciúme, temos que dar a este sentimento uma dimensão bem mais ampla do que aquela que damos em nosso cotidiano (tal como acontece com outro grande romancista admirado por Sabato, Marcel Proust). O “ciúme” de Castel não era apenas do corpo de María Iribarne; ela usurpou-lhe algo mais sutil e profundo. Ela minou uma certeza metafísica – a radical solidão do homem, e sua incapacidade de comunicar – que sustentava seu orgulho perante os outros. Que lhe dava a pedante e, em certo sentido, ingênua condição de homem mais lúcido que a maioria: o que os outros buscavam – a utopia da comunicação plena – ela já abdicara. Por trauma, por infantilidade, certamente por orgulho, Castel não queria sair de seu túnel, de seu ventre. Nunca é demais insistir: assim como o homem do subsolo de Dostoievski poderia ter encontrado sua redenção na prostituta Liza, Castel poderia obter o mesmo com María (embora, dada a personalidade desta, isso seria mais difícil). Mas ambos preferem marchar resolutos rumo ao abismo. As imagens quase ao final de O túnel, de pungente beleza, revelam a tragédia que é a condição do homem vivente no túnel:

[…] había un solo túnel, oscuro y solitario: el mío, el túnel en que había transcurrido mi infancia, mi juventud, toda mi vida. Y en uno de esos trozos transparentes del muro de piedra yo había visto a esta muchacha y había creído ingenuamente que venía por otro túnel paralelo al mío, cuando en realidad pertenecía al ancho mundo, al mundo sin límites de los que no viven en túneles” (El túnel, grifos do autor).

Castel – como outros homens e mulheres do subsolo que pululam por aí em Graciliano, em Camus, em Lispector e em outros mais – construiu conscientemente sua prisão metafísica, e sua única válvula de escape consistia no orgulho de não ser um medíocre, de não ter recuado de seu túnel. O desfecho tinha, assim, de chegar àquela melancólica constatação: María era só mais um sujeito de ação, nunca viveu no túnel: tinha de morrer, portanto. A lógica é implacável com o coração: Castel chora, mas se vê obrigado a cravar a faca no peito de María: “Entonces, llorando, le clavé el cuchillo en el pecho” (El Túnel). Viver no túnel ou no subsolo é, pois, assumir uma luta de antemão perdida, cujo dilema é reconhecer a falibilidade e a fatuidade das utopias que construíram o homem moderno, talvez mesmo o homem de todas as épocas, sem poder transcender a esta condição. A arte ou eros poderiam ser essa forma de transcendência tão clamada, mesmo que implicitamente; mas o “homem do túnel” de Sabato, assim como o “homem do subsolo” de Dostoievski, preferem ser arautos do fracasso e revelarem, com a dor do próprio corpo, os paradoxos da razão moderna e a desventura mal disfarçada que é a vida dos “homens de ação”.

Wanderson Lima (Brasil, 1975). Poeta e ensaísta, escreve sobre cinema e literatura. Edita a revista de
 cultura e literatura dEsEnrEdoS (www.desenredos.com.br). Contato: wandersontorres@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Luciano Bonuccelli (Itália), artista convidado desta edição de ARC.


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