segunda-feira, 6 de abril de 2015

DANIELA BUNN | O atrativo e o nutritivo: a imagem do alimento na literatura para crianças








Daniela Bunn
1. O uso da metáfora alimentar | Vários dos sermões analisados no Brasil entre os séculos XVII e XVIII eram baseados fundamentalmente em metáforas alimentares. Em uma sociedade na qual a oralidade era a principal forma de difusão do conhecimento, tais metáforas eram muito recorrentes. Pe. Antônio Vieira, no Sermão de Nossa Senhora do Rosário, no ano de 1654, fundamenta seu sermão numa analogia do corpo - o corpo de Cristo que é alimento para alma - chamando a atenção para o ato de ruminar (ao modo de alguns animais): comer, remoer muito devagar o que comeram. A analogia entre o ato de comer e o ato de pregar remonta à tradição medieval que oferece a palavra do pregador como alimento espiritual para as almas necessitadas e famintas. São Bernardo (1090-1153), Abade de Claraval afirma que “um alimento indigesto, mal cozinhado, produz maus humores e, em vez de nutrir o corpo, corrompe-o, assim também pode dar-se o caso de o estômago da alma, que é a memória, ao ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram pelo aparelho digestivo da alma”.
Marina Massimi (2006) afirma que o uso dessas metáforas baseava-se em dois pilares fundamentais: Aristóteles e Platão. Desse modo, segundo a autora, os sermões constituíram-se numa modelagem dos comportamentos sociais e adquiriram grande significação em relação à história do uso de metáforas alimentares com função antropológica, pois comparam o processo de conhecer ao de ingerir alimentos. Neste sentido, essas metáforas ajudavam a fundamentar o ciclo pedagógico dos sermões. Na hierarquia da primeira Idade Moderna, a comida era destinada e classificada segundo o grau de nobreza do consumidor, pois se acreditava que cada um deveria consumir o alimento adequado à sua natureza. Assim, alimentos próximos da terra eram considerados inferiores e destinados às classes sociais mais pobres, em oposição aos alimentos elevados na direção do céu que eram considerados superiores. Os voláteis, por exemplo, eram considerados comida adequada para príncipes e reis - os nobres consumiam mais perdizes e carnes delicadas, pois acreditava-se que isso conferia mais inteligência e sensibilidade em comparação aos que comiam porco, por exemplo. [1]
Para Flandrin & Montanari, em História da alimentação (1996), a função religiosa da alimentação remonta ao terceiro milênio antes de Cristo na Mesopotâmia, onde a homenagem aos deuses era feita por meio de oferendas alimentares (carnes, pão, leite, cerveja e vinho). Segundo os autores, a função social do banquete, muito ressaltada no mundo grego e romano, girava em torno do convívio e da troca de cortesias ocasionando um importante elemento de distinção entre o homem civilizado, o bárbaro e os animais:

O homem civilizado come não somente (e menos) por fome, para satisfazer uma necessidade elementar do corpo, mas também (e sobretudo) para transformar esta ocasião em um ato de sociabilidade, em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação: nós não nos sentamos à mesa para comer – lemos em Plutarco – mas para comer juntos. Segundo certa etimologia, o termo cena deriva da idéia de 'comer em comum' ... O convivium é a própria imagem da vida em comum (cum vivere).

Nesse contexto, o Banquete (ou Simposium) de Platão, como lembra Massimi (2006), é caracterizado como expressão da função social e cultural do convívio à mesa. Alberto Magno, em De nutrimento et nutribili, enfatiza que a questão mais importante em relação à alimentação é a qualidadedo alimento, para tanto faz-se necessário conhecer o processo alimentar e seus efeitos. Se pensarmos na literatura não é muito diferente, somos este homem civilizado que come (ou lê) não somente por necessiade? Quando comemos pensamos sim na qualidade do alimento, mas a pergunta é: e quando damos de comer aos nossos alunos, somos também criteriosos?
No primeiro e segundo tomo de História da alimentação no Brasil, Câmara Cascudo expõe o percurso da sociologia do alimento no cardápio tradicional indígena, africano e português em relação à constituição do comum na comida nacional, porém refere-se sempre à alimentação e não à nutrição. Na Antologia da alimentação no Brasil, publicado em 1977, os textos recolhidos dão ênfase desde a higiene da mesa às iguarias regionais do Brasil e falam da digestibilidade dos alimentos, dos regimes alimentares mistos, dos condimentos, das cantigas entoadas na feitura da comida, das descrições de Frei Manuel de Santa Maria Itaparica (1704-1768) sobre os limões, melões, araçás e ananás, dos comentários de Debret, da “Viagem em redor do almoço”, de João Chagas (1863-1925).
Os trabalhos de Câmara Cascudo e de Flandrin e Montanari nos ajudaram a montar um panorama da história e da sociologia alimentar e servem como aporte teórico para adentrar no estudo da imagem do alimento na literatura e na sua relação com a infância. Para tanto, optamos por privilegiar textos curtos de autores brasileiros que não escreveram somente para crianças, mas que podem ser lidos por crianças. A metáfora do alimento parece-nos apropriada sendo que nos alimentamos também da leitura, devoramos livros quando estamos com fome, salivamos ao ler a descrição de uma cena, podemos até sentir o cheiro das gostosuras da Dona Benta. No emaranhado de emoções e lembranças de uma infância que não nos abandona é que se mistura o alimento como ingrediente de muitas histórias: a cesta levada à vovó por Chapeuzinho Vermelho, a casa comestível em João e Maria, o banquete servido pelo Rei ao sapo em Henrique de Ferro (mais conhecido como A princesa e o sapo), as ceias de Ano Novo, vistas pelas janelas pela Pequena vendedora de fósforos, dentre outras. Assim, a imagem do alimento permeia não só as antigas histórias da tradição oral – que segundo Cecília Meireles são os primeiros livros da criança - e os contos contemporâneos, como também a própria crítica literária.

Risques Pereira2. Os hábitos alimentares dos pequenos | Cecília Meireles, em Problemas da literatura infantil, livro que reúne três conferências proferidas em Belo Horizonte em 1949, usa-se de metáforas alimentares em suas considerações: “a literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição” (grifo da autora). Ao falar da literatura de tradição oral, Meireles afirma que era dela que “se nutria a criança, antes do livro, recebendo-a como um alimento natural nos primeiros anos da vida” (grifo nosso). [2] Usando termos como nutrição, receita e alimento a autora aproxima do leitor suas idéias, como os sermões tentavam se aproximar do quotidiano de seus expectadores. Como já apontava a escritora nos fins da década de quarenta, o problema não era (muito menos hoje) de carência e sim de abundância de livros (o que em nosso texto chamamos de atrativos). Títulos multiplicam-se nas prateleiras, mas a nossa preocupação é se eles chegam efetivamente à mesa do leitor e se tornam nutritivos por meio da leitura.
Werner Zotz em Livro que te quero livre escreve sobre a preferência do pequeno leitor, pois “tão importante quanto desenvolver e melhorar o paladar literário no jovem leitor é entregar-lhe um livro do qual goste” (2005, p. 25) e completa sobre o prazer da leitura: “não existe uma receita pronta, pelo menos eu não a conheço. O educador vai precisar usar toda sua sensibilidade, tendo em mente que cada situação e ocasião têm aspectos muito particulares” (p. 31). Bordini e Aguiar em Literatura: a formação do leitor (1988) trabalham os interesses do leitor na escolha do texto literário como ponto fundamental para a aquisição do gosto pela leitura. Além disso, é necessária a provocação de novos interesses, a fim de aguçar o senso crítico e a preservação do caráter lúdico do jogo literário. O lúdico é indispensável na relação entre leitor e obra literária, pois precede e facilita a “desconstrução do conhecimento”, estimula a percepção e atua nas descobertas, nas relações a serem estabelecidas e nas funções a serem conhecidas.
Benjamim lembra-nos, nos textos recolhidos em Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2004), que as crianças sabem jogar e brincar e atribui aos adultos (convencido sobre a pobreza da experiência) uma certa incapacidade de magia. O escritor ainda adverte sobre a polissemia do jogo, o duplo sentido, tanto jogo como brincadeira: “a essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação da experiência mais comovente em hábito”, assim “comer, dormir, vestir-se, lavar-se devem ser inculcados no pequeno irrequieto de maneira lúdica, com o acompanhamento do ritmo de versinhos”. Compactuando com essa idéia, Gianni Rodari, escritor italiano, discute sobre o jogo que se põe à mesa na hora das refeições e os personagens criados pelos pais - o que dá ao ato de comer um significado simbólico: “comer torna-se um ato estético”. Com os capítulos “Comer e brincar de comer” e “Histórias à mesa” do livro Gramática da Fantasia (1985), Rodari sugere o híbrido de fábulas que podem ser criadas à mesa, como a Madame colher e suas aventuras românticas com um garfo e sua terrível rival, a faca:

Nessa nova situação a fábula se duplica: de um lado sugere ou provoca os movimentos reais da colher-objeto; de outro, cria a ‘madame colher’ na qual o objeto é reduzido a um outro nome, apenas com uma virtude evocadora: Madame Colher era bem alta  e muito magra, e tinha uma cabeça tão grande e tão pesada que não parava em pé, ela achava mais cômodo andar de ponta–cabeça. Assim via todo mundo ao contrário e só tinha idéias do avesso...

Rodari, escritor que sofreu certo reducionismo no âmbito escolar por ser estudado apenas pelos seus textos de cunho pedagógico, assinala a fome como uma das grandes tragédias do século XX - fome tanto do corpo como da alma. O escritor afirma que ambos (corpo e alma) precisam ser nutridos - talvez por isso seus textos reflitam essa profunda ligação com o alimento. Rodari envolve o leitor no saboroso mundo da leitura por intermédio de uma escrita lúdica e surreal. Prosa e verso unem-se aos textos críticos e contribuem para tornar o ato da leitura uma degustação, nos termos do escritor, fantástica. O livro Fábulas por telefone, com uma edição brasileira em 2006, apresenta histórias curtas porque são contadas por um caixeiro viajante, pelo telefone, à sua filha antes de dormir. No livro temos a ocorrência de uma mansão de sorvete, uma cozinha espacial, oshomens de manteiga, a febre comilóide, a senhora Apolônia de geléiaa rua de chocolate, a história do reino da comilança, o caramelo instrutivo. No conto “Os homens de manteiga”, Rodari conta a história de um grande viajante que explorou um país no qual todos os homens eram de manteiga: “esses homens derretiam ao se expor ao sol, eram obrigados a viver sempre na sombra, e moravam numa cidade em que, no lugar de casa, havia um monte de geladeiras”. Em A mansão de sorvete, o teto era de chantili, a fumaça das chaminés de algodão-doce, as portas, as paredes e os móveis de sorvete: “Um menino bem pequenininho agarrou-se aos pés de uma mesa e lambeu um de cada vez, até que a mesa caiu em cima dele com todos os pratos.”
Risques PereiraFerreira Gullar no poema “A Jia e a Jibóia”, em Dr. Urubu e outras fábulas (2005), conta a história de um sapo (ou uma sapa) que se vendo a ponto de ser devorada pela jibóia, decide convencê-la do contrário:

[…] Responde a cobra: - Tolice!
Tou nem aí pra crendice!
Matar a fome é um direito
de todo e qualquer ser vivo.
Tudo o mais é preconceito.
Passar fome é que é afronta.
Eu de comer não me privo.
E você, que come inseto,
Acha que isto é correto? […]

Outra sugestão apetitosa é o livro de Jonas Ribeiro, Poesias de dar água na boca (com ilustrações de André Neves), que nos oferece um cardápio poético para a semana inteira, desde comida japonesa até uma sobremesa mineira, passando pela Vila da comilança e pela Escola Água na Boca. Pensando nas relações familiares temos o livro de Simone Schapira Wajman, intitulado O ovo e o vovô (2001), com ilustrações de André Neves, que compara o vovô à frágil vida de um ovo: “por fora, parecia duro, como a casca do ovo, mas por dentro era mole, mole, como a clara e a gema.”; o vovô brilhava como a gema, dava beijo estrelado como ovo.
Já no poema “Hortifrutigranjeiros”, Sérgio Capparelli (2007) lembra principalmente da alface:

Ajuntar alface com jaca
Dá pepino por aqui.
Não somos bananas
Ou conversamos abobrinha
E, se quiser saber, plantamos batata, sim,
mas pra quebrar um galho
ou descascar abacaxi.
Ajuntar alface com jaca
dá pepino por aqui.

Murilo Mendes em “Amostra da poesia local” (1994) também nos fala da alface:

Tenho duas rosas na face,
Nenhuma no coração.
No lado esquerdo da face
Costuma também dar alface,
No lado direito não.

Em outro poema, “A alface aérea”, Ricardo da Cunha Lima (2007, p. 37) narra um fato amalucado:

Este fato amalucado
Ocorreu no mês passado:
Uma alface bem verdinha,
Já lavada pra salada
E que estava repousada
Sobre a mesa da cozinha,
De repente se mexeu,
Suas folhas agitou
E a seguir se debateu,
Bateu folhas e voou.

Sabor de Sonho (1997), de Cláudio Feldman, conta a história de um sonho “que conto neste momento. Sonhei que estava na terra em que tudo era alimento”:

O chão […] com trechos de paçoquinha,
tinha buracos de queijo
e pedras de batatinha.
[…] Os sítios eram cercados
Por muros de pirulitos,
E os galos dos cata-ventos,
Que delícia, estavam fritos!

Risques Pereira
Em “Traças de regime”, poema de Sérgio Capparelli, do livro 111 poemas para crianças:

As traças gostam de suspense:
Lêem com cuidado
E de olhos fechados.

Se estão com pressa,
Comem sanduíches de escritores importantes,
Cecília Meireles, Lygia Bojunga,
Hesíodo e os deuses gregos.

Elas dão conselhos:
“as histórias lacrimejantes são melhores
Porque facilitam a digestão”.

E estamos conversados!

Traças iletradas são sem cerimônia:
Comem heróis, heroínas, enredos,
E no fim devoram o autor.

Ah, as traças, como evitá-las?
Comem Mario Quintana, devoram os dois
Verissimos (Pai e filho)
E, de sobremesa, encomendam escritores bem
Românticos.

Olha, lá vai uma arrotando Lobato.

A partir dessa pequena amostragem de textos que se relacionam com a questão alimentar, identificamos algumas categorias: o alimento como personagem que ganha vida, bate asas e voa, como no poema “A alface voadora”, de Ricardo da Cunha Lima; o alimento sendo comparado a um personagem, como no livro de Wajman, O vovô e o ovo ou no poema “Hortifrutigranjeiro” de Sérgio Capparelli, no qual o escritor usa-se dos jogos de linguagens e dos ditos populares para montar o poema; o alimento compondo objetos como em Sabor de Sonho de Cláudio Feldman que fala de um delicioso sonho num lugar em que tudo era comestível (assim como no conto “A mansão de sorvete” de Rodari); o alimento implícito no próprio ato de devoração animal, no ato de comer no poema de Ferreira Gullar. Podemos individuar ainda, pensando num prato bem nutritivo, personagens vegetarianos como em “Pequenos Assassinatos” de Affonso Romano de Sant’Anna; os gostos da terra, da batata e do mingau de cará em Eloí Bocheco; o almoço no Tchau de Lygia Bojunga; o pato na panela ou a “Feijoada à minha moda” de Vinicius de Moraes; a vontade da faminta princesa Tiana de comer pizza de maçã, no livro de Márcio Vassallo; as frutas do pomar de palavras de Werner Zotz; o prato de macarrão em Elias José; uma limonada em Ana Maria Machado ou ainda as saudades em Ruth Rocha que na aurora da vida “não gostava da comida, mas tinha que comer mais”. O ato de comer nessas histórias poderia ser dividido em dois momentos: personagens que comem e que são comidos (neste ponto cabe re-visitar os clássicos e também fazer tal distinção).
Pensando na relação nutritivo/atrativo, não podemos deixar de mencionar o papel do professor. Segundo Di Santo:

Falando em aprendizagem como alimentação, podemos traçar um paralelo com a famosa história da Branca de Neve e os sete anões, onde a maçã, embora com uma aparência apetitosa, estava envenenada e deixou a heroína num sono profundo, por muito tempo. Da mesma forma, se for oferecido ao aluno um conhecimento descontextualizado, que não desperte sua curiosidade e vontade de aprender, ele permanecerá desligado […]. No entanto, se a aprendizagem for como uma maçã realmente saborosa e sadia, o aluno a comerá com prazer e sua digestão será leve e rápida. Ele sempre se lembrará com satisfação desse momento prazeroso e procurará aplicar o que aprendeu em outras circunstâncias de sua vida. E isso tem a ver com a didática do professor. Se aprender é como se alimentar, tanto o educando quanto o educador se alimentam/aprendem.

O professor, segundo Di Santo, deve estimular o apetite do aluno, pois mesmo quando não estamos com fome sentimos vontade de comer ao vermos algo que nos estimula:

Realmente, para cada aluno que o professor ofertar o seu conhecimento/maçã, a forma de mastigar e engolir será diferente, única. […] Para um aluno, a maçã dará dor de barriga, para outros, provocará alguns quilos a mais, para alguns, a quantidade de maçã será pouca e para outros, suficiente. Há os que vão considerar a quantidade excessiva, não conseguindo engolir/absorver tudo. […] Os conhecimentos precisam ser mastigados, engolidos e digeridos.

Risques PereiraPerrone-Moisés lembra que a leitura exige tempo e esforço que não condizem com a vida cotidiana atual: “os novos escritores, afinados com os hábitos alimentares deste fim de século, publicam livros light, para serem consumidos rapidamente” e com isso muitos livros tornam-se meramente atrativos. Na relação do alimento com o ensino, Rubem Alves, em Conversas sobre Educação (2003), utiliza-se da cebola, do queijo, da pipoca para falar de escolas, alunos, pais e professores. Em “Sobre cebolas e escolas”, o escritor afirma ocupar a cebola um lugar de destaque no seu pensamento, tanto de forma científica, culinária (“entidades acidentalmente lacrimogêneas, de tamanhos variados, cheiro característico e gosto saboroso, que se prestam a ser usadas em molhos, saladas, conservas e sopas”) como poética - a cebola o faz pensar filosófica e pedagogicamente. Rubem Alves equipara a cebola ao pensamento de Piaget e seus ciclos de desenvolvimento, como os círculos das cebolas, as escolas e a sociedade que formam camadas sobrepostas que por vezes isolam o aluno. Para ele, a cebola é metáfora da aprendizagem: “aquele círculo mínimo central é o corpo do aluno. O corpo, a que Nietzsche dava o nome de grande razão, procura entender o mundo que o cerca a fim de poder apreendê-lo: o meio ambiente deve se tornar comida. Para que o corpo viva. O que não vira comida, o que não é vital para o corpo, não é aprendido”.
Bakhtin em “O banquete em Rabelais” afirma que o homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si. O banquete, como já visto, não se trata do beber e comer quotidiano, mas sim da boa mesa, da abundância: “o papel das imagens de banquete no livro de Rabelais é enorme. Quase não há página onde essas imagens não figurem, pelo menos no estado de metáforas e de epítetos tomados do domínio do beber e do comer”. Ao falar do corpo grotesco, do qual as imagens dos banquetes estão estreitamente mescladas, Bakhtin caracteriza-o como um corpo aberto, inacabado, em interação com o mundo: “o corpo escapa às suas fronteiras , ele engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e cresce às suas custas [...]. O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si”.
Benjamin usa uma imagem muito interessante que é da criança lambiscando, “pela fresta do guarda-comida entreaberto sua mão avança como um amante pela noite […] como o amante abraça a sua amada […] da mesma forma o tato tem um encontro preliminar com as guloseimas antes que a boca as saboreie”. Esse encontro entre a criança-leitora e o alimento, ou seja, o livro parece cada vez menos apaixonado com o passar dos anos escolares, é preciso, como dito antes, acordar os sentidos para a boa degustação: o tato ao pegar um livro, a visão ao apreciá-lo, a audição ao ouvir uma história, o paladar ao saborear um texto literário; é preciso lambiscar mais, devorar mais. Quem sabe dar voz ao livro pelas palavras de Quintana: decifra-me ou te devoro.

3. Conclusão | Entendemos ser o uso da imagem alimentar no texto literário um elemento que seduz (independente da faixa etária) e contribui para estimular o gosto pela leitura por ser algo que gera facilmente uma identificação do leitor com seus gostos ou desgostos alimentares. Estes gostos ou desgostos se re-significam no campo da experiência mesmo que com características surreais, alfaces que batem asas, sanduíches de escritores ou ruas de chocolate que despertam a imaginação ardente da criança e da criança em cada adulto. Embora tenhamos visto exemplos de narrativas contemporâneas cabe lembrar que tal imagem sempre percorreu as narrativas da tradição oral, mesmo que em um papel secundário.
Atualmente, os jogos de linguagens propostos pelos escritores atualizam cada vez mais a inserção do alimento no texto – é algo muito próximo da criança e do adulto, pois faz parte de nosso quotidiano. Procuramos assim, perante o livro infantil (atrativo) mostrar como seria nutritivo estimular o ato de ler, de saborear um texto que trabalhe com tais imagens. Enquanto na crítica literária ou educacional a imagem do alimento aparece como metáfora, nas narrativas ou nos poemas para crianças destacamos algumas categorias. O alimento serve como isca para o leitor. Podemos ainda falar de outra categoria de leitor, o adulto que não procura mais livros somente para a sala de aula ou somente para os filhos, mas que se deleita e consome da literatura por um bom tempo chamada de infantil. Para sua próxima leitura sem pretensões didáticas, uma boa degustação!

NOTAS
1. Lourenço Craveiro, da Companhia de Jesus, por volta de 1665, elencou seis pratos diferenciados oferecidos a diferentes consumidores, pratos que alimentavam o corpo e metaforicamente a alma. O primeiro prato sugerido destinava-se aos enfermos: trata-se da carne de galinha, tradicionalmente destinada aos doentes; o segundo prato sugerido é o de codorniz e perdiz, alimento este apropriado para os convalescentes; o terceiro prato proposto para a merenda espiritual era à base de carnes de cordeiro e de cabrito, destinado aos mimosos (pecadores arrependidos), por serem carnes tenras e nutritivas, boas para comer assadas; o quarto é o de vitela, para os sãos, os santos; o quinto prato, de carnes de cervo e veado, destinado aos esforçados, ou seja, aos dotados de estômago robusto; o sexto prato é a carne de águia, destinado aos entendidos. Desse modo, cada alimento e cada ingrediente eram relacionados à fé, à obediência, às crenças, aos castigos e as doenças (cf. MASSIMI, 2006).
2. Câmara Cascudo ao falar dos contos maravilhosos afirma ser “o primeiro leite intelectual”, documentos vivos, denunciando costumes, idéias e mentalidades. Para aprofundar Cf. BUNN, Daniela. Da história oral ao livro infantil. In: Revista Estação Literária, v.1, 2008. p. 50-57. Disponível on-line.
Daniela Bunn (Brasil, 1979). Ensaísta. Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da UFSC. Contato: danibunn@yahoo.com.br. Página ilustrada com obras do artista Risques Pereira (Portugal).

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