Georges Duby, um dos mais notáveis medievalistas do século XX, publicou em 1974 uma obra, hoje clássica, intitulada O Ano Mil, na qual defende que os chamados ‘terrores do ano mil’ são uma ficção literária, uma lenda romântica produzida por autores oitocentistas. No entanto, se este conhecido historiador dissipa esse mito e rejeita a existência de um sentimento generalizado de pânico nas sociedades cristãs do final do primeiro milénio, não deixa de conceder que, esse período, foi para os cristãos uma época de profundas inquietações, de severas angústias e de grandes expectativas. É precisamente neste período de ‘inquietação difusa’ para a Cristandade que decorre a acção da obra de Alberto Santos, A Escrava de Córdova – mais precisamente, entre os anos de 976 e 1002.
A delimitação do quadro temporal, no entanto, é por si só insuficiente para nos permitir apreender plenamente as linhas estruturais sobre as quais assenta esta obra. Há também que fazer referência ao quadro geográfico em que a intriga se desenrola. E esse quadro é quase na sua totalidade o da Península Ibérica.
‘Mãe de muitos povos’, como se lhe referiu Santo Isidoro de Sevilha no século VII da nossa era, terra fecundada ao longo de milénios por diversas culturas que aqui floresceram, este território sofreu, nos inícios do século VIII, as investidas da expansão religiosa, política e militar do Islão.
Na verdade, o imparável avanço islâmico também para o Norte de África traduziu-se, primeiro, na conquista do Egipto e, depois, na submissão dos berberes pelos árabes de Musa ben Nusayr. A passagem para este lado do estreito de Gibraltar fez-se facilmente, aproveitando as rivalidades intestinas que se agudizavam no seio da monarquia hispano-visigótica. E é assim que, a partir de 711, os invasores muçulmanos se foram lançando à conquista deste território e, em batalhas sucessivas, destruíram os quadros políticos, religiosos, administrativos e militares da Hispânia visigótica, empurrando cada vez mais para norte aqueles que ainda optavam pela resistência armada, confinando-os à zona das Astúrias, área onde se constituiu um minúsculo reino cristão.
Os muçulmanos procuraram então ampliar as suas conquistas na Europa, passando os Pirenéus. No entanto, foram derrotados em duas batalhas decisivas: em Toulouse (721) pelo exército franco chefiado pelo Duque da Aquitânia; e em Poitiers (732), pelas tropas lideradas por Carlos Martel. A expansão muçulmana pela Europa cristã foi, assim, detida. No entanto, no que à Península Ibérica diz respeito, a presença islâmica, enquanto realidade política estruturada sobre um espaço territorial autónomo, far-se-ia sentir durante séculos – o último reduto islâmico no território actualmente português resistiu até 1249 (conquista do Algarve por D. Afonso III), tendo a conquista de Granada pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel, em 1492, marcado o final da Reconquista cristã da Península.
Temos assim, portanto, que o enredo da obra A Escrava de Córdova ocorre num período de claro domínio islâmico sobre a maior parte do actual território peninsular. Os reinos cristãos, se nesse final do século X já não estão confinados aos montanhosos espaços asturianos, não ocupam, no seu conjunto, mais do que um quarto do território peninsular. O grande reino da Península Ibérica – e que ocupa as suas regiões mais férteis – é muçulmano e tem a sua capital em Córdova. Foi chamado de ‘Al-Andaluz’ (atenção: não se trata do equivalente da actual Andaluzia espanhola…).
Por esta altura, Córdova é, muito provavelmente, a maior cidade da Europa, destronando mesmo Constantinopla. Segundo alguns autores, contaria, então, com cerca de cem mil habitantes (outros, menos comedidos, referem que provavelmente rondaria o meio milhão). Desde 756 e até 929, Córdova foi a capital de um Emirado, independente dos Califas Abássidas de Bagdad. Nesse ano de 929 constitui-se, mesmo, um Califado, elevando-se assim o território do Al-Andaluz à mesma dignidade dos poderes então reinantes em Bagdad e em Tunes e com estes últimos competindo pelo controle do Norte de África. Esta época do Califado (929 a 1031) é vista por muitos autores como a ‘época de ouro’ do Al-Andaluz. A agricultura que aí se praticava era a mais avançada da Europa, assentando a produção fundamentalmente no trigo, na vinha e na oliveira (a chamada ‘tríade mediterrânica’). Esta cidade de Córdova era ainda, sem sombra de qualquer dúvida, um centro científico e cultural de primeira grandeza. Por exemplo, só na maior das suas 70 bibliotecas estavam depositados cerca de 600 000 livros, um número verdadeiramente espantoso se tivermos em linha de conta que a maior biblioteca da cristandade ocidental por esta altura não possuía mais de quatro centenas de trabalhos.
A partir de 976, o Al-Andaluz foi governado pelo Califa Hisham II, que ainda criança sucedeu a seu pai, tendo, ao longo do seu reinado, deixado bem patente a sua incapacidade governativa. Na verdade, quem, de facto, passou a governar este território foi o seu hajib (condestável) Abu Amir Muhammad ben Amir al-Maafíi, caudilho que, graças aos seus sistemáticos êxitos militares, recebeu o epíteto de al-Mansur (Almançor), ou seja, ‘O Vitorioso’. Venceu os exércitos cristãos em mais meia centena de devastadoras campanhas – chegou a arrasar Santiago de Compostela e o mosteiro de San Millán de la Cogolla, locais com um profundo simbolismo para o cristianismo peninsular. Na obra em apreço, este líder cordovês desempenha, é claro, um papel relevante.
É nesta singular cidade, pois, que decorre uma importante parte da obra de Alberto Santos. A personagem principal é Ouroana, uma jovem da nobreza portucalense, filha do Governador do território de Anégia, cuja sede se situava no actual concelho de Penafiel. Ao longo das mais de quatrocentas páginas deste livro, escrito de forma fluida, segura e elegante, acompanhamos as vicissitudes pelas quais vão passando esta jovem de cabelos dourados e o lugar-tenente de seu pai, tanto no seu espaço cristão do norte peninsular, quanto nas desconhecidas terras meridionais sob o domínio islâmico. Estes são dois mundos em conflito e diametralmente opostos, tão discrepantes que – e cito – parecem constituir “diferentes épocas de evolução da humanidade” – o primeiro, rude e eminentemente rural e senhorial; e o segundo, requintado, administrativamente bem organizado, urbano e comercial (a que acresce, como já referi, uma prática agrícola bastante desenvolvida e com óptimos resultados). Os seus templos são disto um bom exemplo: só Córdova contava então com cerca de 700 mesquitas, muitas delas imponentes e mesmo opulentas, bem diferentes das pequenas e recatadas igrejas do norte cristão.
Este livro descreve, pois, algumas jornadas com um marcado cunho épico. O leitor acompanha as extraordinárias viagens de algumas personagens por territórios desconhecidos, com os consequentes e inevitáveis percalços habituais em deambulações dessa natureza. Estas personagens conhecem assim, pela sua própria experiência, aspectos de um mundo até então desconhecido e misterioso. A apreensão empírica dessas realidades vai obrigá-las a reequacionarem várias das suas crenças, suscitando-se, por via desse combate interior, um estado de maior lucidez que lhes permite assimilar melhor o mundo em que se movimentam, mas também, paralelamente, que lhes possibilita compreender aquilo que efectivamente é importante na existência humana.
Neste sentido, atrevo-me a defender que, se esta obra é um excelente livro de aventuras, no sentido mais autêntico – e portanto nobre – da expressão, ele apresenta igualmente, como atrás referi, o despertar de várias consciências pessoais, pelo que, em conformidade, também realça a existência de algumas verdadeiras viagens iniciáticas – não nos esqueçamos que a Grande Tradição indica que ‘o oculto não é o que não se vê, mas o que se não entende’.
Fica imediatamente claro ao leitor que, para escrever este seu trabalho, Alberto Santos empreendeu um notável labor de investigação. Não se pense, porém, que estamos em presença de um texto cerrado e quase hermético para quem não dispuser de significativos conhecimentos históricos. É que essa solidez documental não foi utilizada pelo autor para produzir uma obra num estilo enfatuado e professoral, mas sim para elucidar sobre aspectos históricos e culturais dos mundos cristão, judaico e muçulmano. Estas explicações, constituindo uma das mais-valias deste livro, são indispensáveis ao correcto desenvolvimento da sua intriga, com ela se harmonizando. A componente descritiva desta obra incorpora, em conformidade, uma vertente pedagógica assinalável: nas situações de batalha, por exemplo, a tipologia do armamento, as tácticas utilizadas, as motivações dos contendores, são aspectos tratados com todo o rigor, mas também com suficiente agilidade para que essas explanações não quebrem o ritmo da escrita. O mesmo poderia ser dito dos demais elementos do quotidiano em que as personagens se vão movimentando, sobressaindo, neste campo, os que têm a ver com parâmetros de requinte que a civilização do Al-Andaluz atingiu: os banhos, os produtos de beleza e os correlativos serviços dispensados aos que os podiam pagar e deles usufruir, o refinamento da gastronomia, o aprimoramento dos jardins, o esmero colocado na construção de estruturas arquitectónicas…
Em algumas dessas descrições, Alberto Santos, com mestria, mergulha o leitor num turbilhão de odores, de texturas e de cores – componente sensitiva, aliás, bem ao gosto das gentes meridionais. Dou um exemplo do que afirmo, retirado do início do Capítulo XL: “Abdus encontrava-se sentado num banco de jardim da sua residência, sob um gracioso e frondoso ulmeiro. Ouvia-se o murmurejar da água que caía continuamente num tanque e ajudava a refrescar o ambiente. Nele se encontravam gerânios e nenúfares, quais luminosas estrelas flutuantes multicolores. Vermelho, cor-de-rosa, salmão… mas os mais belos eram amarelo-pêssego que se abriam de manhã e, quando fechavam, à noite, adquiriam já uma cor acobreada. As narinas de quem frequentasse aquele jardim não poderiam evitar o suave aroma dos nenúfares e das rosas trepadeiras carmesins.”
Não se pense, contudo, que o autor construiu um trabalho delicodoce e encomiástico sobre o esplendor do Al-Andaluz e que, por extensão, cedeu à tentação de cantar loas algo simplistas às virtudes da civilização islâmica, contemporizando com aqueles que ainda defendem o mito da sistemática e perdurável convivência pacífica das três religiões no sul da Península Ibérica. Tenho para mim que o facto de Alberto Santos também contribuir, com esta sua obra, “para resgatar do olvido a época de ouro […]” do Al-Andaluz, para parafrasear o Professor Adalberto Alves, tal não significa que o autor tenha sido condescendente com os seus piores aspectos, que os desconheça ou que secundarize o facto, facilmente comprovável, de a invasão islâmica da Península Ibérica também ter aniquilado uma florescente e refinada cultura hispano-visigótica, de que eram epígonos personalidades como o erudito Santo Isidoro de Sevilha, os historiadores Idácio e Paulo Orosio, o filósofo João de Bíclaro ou, até, o Rei-poeta Sisebuto, por exemplo.
Além do mais, acredito perfeitamente que Alberto Santos, ao pensar esta obra e ao desenvolver as suas linhas de evolução, tinha a clara consciência do facto de a sua estrutura apresentar significativas debilidades se apenas exibisse a faceta mais bondosa de uma civilização que, se expressou grandeza e esplendor em diversos domínios, também não deixou de assentar em certas traves-mestras que, hoje, não podem deixar de ser encaradas com aversão.
Outra componente essencial à compreensão desta obra, em minha opinião, é a intransigente defesa que o autor faz dos princípios humanistas, encarados enquanto elementos que integram um sistema ético que tem no Homem, como diria Sartre, “o fim e o valor superior”. Ora, o autor defende que é através da componente espiritual que o ser humano acederá à plenitude desse humanismo que liberta de dogmatismos destrutivos e que constrói pontes de entendimento entre os indivíduos.
Neste enquadramento, Alberto Santos não deixa de esclarecer que a mais importante forma de Jihad – ou seja, de Guerra Santa – é a “que se estabelece no interior de cada um contra as próprias tentações e defeitos, com vista à sua elevação moral e espiritual.” Várias são as personagens que, nesse percurso, se vão procurando conduzir segundo princípios de justiça, de compaixão e de honra. O pai de Ouroana, o Conde Múnio Viegas, por exemplo, verbera os cristãos que, por diversos interesses pessoais, são coniventes com Almançor. E questiona: ”Que honra têm esses desgraçados? Que recompensa esperarão no final dos seus dias? Que dirão os seus filhos, sabendo-os traidores?”. E o seu lugar-tenente, Ermígio, faz coro com o seu amo em matéria de honra, proclamando, a dado passo, a propósito da palavra dada: ”Promessa é dívida.” A defesa destes princípios e a abertura à compreensão das várias facetas da realidade circundante, levam algumas destas personagens a viver apaixonadamente a sua religião, mas através de vivências despidas de fanatismo, a ponto de expressarem que estão cientes que a sua própria religião contém princípios escritos – frequentemente levados à prática, de forma nefasta – que são desmandos, exageros e sinais de intolerância relativamente aos crentes de outras religiões. Veja-se, como bom exemplo disto que refiro, o diálogo entre o cristão Ermígio e o judeu Ben Jacob, no Capítulo XLIII. Nesta linha de pensamento, este último afirma: “A harmonia só se desfaz quando as questões religiosas se sobrepõem à boa convivência entre raças e credos.”
Ora, nesta outra transição de milénio, agora como há mil anos, a sociedade ocidental continua perpassada por temores de diversa índole, ou não fosse o medo um dos mais antigos e perenes inquilinos do coração humano.
Num outro livro que viria a ser um dos seus últimos, Georges Duby (a quem me referi no início desta intervenção) apontou a existência de inquietações e de angústias na sociedade contemporânea e o facto de esta tender a virar-se para o passado, para as suas memórias, como uma forma de ganhar confiança e de apaziguar apreensões relacionadas com a possibilidade de perda da sua identidade cultural. Num mundo transformado numa “aldeia global”, para utilizar a feliz expressão de Marshall McLuhan, este tipo de receios ganha uma particular relevância. Há ainda outro género de temores que estão na ordem do dia. Um deles não pode deixar de ser referido aquando da abordagem a uma obra, como esta de Alberto Santos, que discorre acerca da civilização islâmica do Al-Andaluz e persiste em relembrar-nos – qual grilo de Pinóquio – que também nela o povo português tem raízes. Esse temor é o do actual terrorismo islâmico.
Desde o 11 de Setembro de 2001 que as acções da Al-Qaeda e de outros grupos terroristas ganharam um novo fôlego – e maior tempo de antena – para atingirem objectivos ocidentais que são, na sua enorme maioria, de cariz ideológico, mais do que militar: sedes diplomáticas, homens de negócios e trabalhadores, turistas, igrejas, missionários e fiéis cristãos, sinagogas, hospitais. No mundo ocidental, não foram poucos os que procuraram encontrar explicações para este corrupio de atentados, as quais, em alguns casos, mais pareciam legitimações do que explicações…
Ora, em 7 de Outubro de 2001, no Cairo, um terrorista da Al-Qaeda e porta-voz de Bin Laden apelou à Guerra Santa – “uma guerra entre o Islão e os infiéis”, como então referiu – e realçou a necessidade de recuperarem o Al-Andaluz, aspecto que o próprio Bin Laden reafirmou num vídeo divulgado aquando da sua celebração do primeiro aniversário dos atentados de 11 de Setembro. Em Julho de 2002, entretanto, militares marroquinos ocuparam o ilhote espanhol de Perejil e hastearam a sua bandeira, em sinal de soberania sobre este local, até que a Espanha respondeu com intensa actividade diplomática e com meios militares apropriados, recuperando o ilhote e pondo fim a esta insólita e provocatória actuação marroquina. Anos mais tarde, na manhã de 11 de Março de 2004, uma série de atentados terroristas sacudiram Madrid, causando 191 mortos e mais de 1500 feridos. E, desta vez, não foi obra da ETA, mas sim de terroristas islâmicos. E os exemplos poderiam multiplicar-se…
Como é que nós, portugueses e espanhóis, deveremos abordar o nosso relacionamento com uma cultura frequentemente antagónica, mas que lança raízes na nossa história e que a marcou de forma indelével, como esta obra de Alberto Santos, A Escrava de Córdova, permite constatar? E, numa perspectiva mais ampla, como deve o mundo ocidental situar-se perante o Islão?
Em minha opinião, parece-me muito avisada uma orientação de S. Paulo contida na sua 1.ª Carta aos Tessalonicenses: “Examinai tudo, guardai o que é bom. Afastai-vos de toda a espécie de mal”.
A este propósito, um escritor e poeta português manifestava-me, há dias, a sua opinião sobre este assunto, com a qual estou plenamente de acordo. Dizia-me ele: “Mediante leis equilibradas, o Mundo Democrático e livre, sem ceder a chantagens, tem de dizer firmemente: ‘pratiquem a vossa religião. Há liberdade para isso. Mas a sua prática não vos dá a prerrogativa de ultrapassarem os direitos humanos que tanto custaram a conquistar. A prática da vossa religião não pode consistir numa forma de obviar à prática da cidadania democrática, nem consentiremos que a ela se sobreponha. De contrário, é apenas um instrumento de pressão e subversão que não admitiremos!”
Pelo que atrás deixo dito e para concluir, entendo que Alberto Santos, ao realizar esta obra, não só produziu um trabalho que divulga de maneira muito digna uma época insuficientemente conhecida pelos portugueses, mas que conduziria à construção da nossa nacionalidade; como escreveu um bom livro que nos entretém, nos ensina e – para os interessados – nos sugere caminhos seguros que deverão ser utilizados no nosso permanente esforço de aperfeiçoamento interior.
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João Garção (Portugal, 1968). Historiador de Arte, mestre em História Contemporânea de Portugal pela Universidade de Coimbra. Desempenha, actualmente, o cargo de Vereador em Regime de Permanência na Câmara Municipal de Felgueiras. Inédito em livro. Contacto: jfvgarcao@gmail.com. Página ilustrada com obras do artista Risques Pereira (Portugal).
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