Quando Pier Paolo Pasolini percebeu o irremediável fim
dos vaga-lumes, nos campos do norte de Itália, nos anos 1960, ele ainda pôde
vislumbrar, nos poucos brilhos remanescentes, um tímido traço de beleza que
permanecera nos lampejos de uma inocência perdida. O desaparecimento dos
vaga-lumes foi a metáfora que Pasolini utilizou para denunciar a profunda
mudança pela qual passava a sociedade italiana em tempos de fascismo.
Conhecemos o
apreço de Piva pela obra de Pasolini através das referências que encontramos em
seus poemas, como por exemplo o, “A propósito de Pasolini”, publicado no Ciclones (1997). Contudo, antes de ler
este belíssimo poema, adentraremos nos arquivos do poeta. Piva deixou um
infindável número de poemas e textos inéditos guardados em seus cadernos e manuscritos;
entre eles encontramos um texto intitulado “Os jovens infelizes – Ed.
Brasiliense Pasolini – Dioniso: Paixão & Morte”. Neste texto que pode ser
considerado uma incursão de Piva pela crítica, Pasolini é apresentado como um
artista controverso e polêmico; ele aparece nos arquivos de Piva como um
provocador engajado politicamente, liberto sexualmente, mas que sucumbiu à
violência. Nesta espécie de resenha manuscrita, Piva faz suas considerações
sobre a tradução brasileira do livro Os
jovens infelizes (Brasiliense, 1990). O texto é dividido em quatro partes;
na primeira Piva escreve o seguinte:
Os jovens infelizes – Ed. Brasiliense
Pasolini – Dioniso: Paixão & Morte [1]
I | Com o título “Os jovens infelizes” a Editora
Brasiliense lança uma antologia de escritos e artigos de jornal de Pier Paolo
Pasolini (1922 – 1975), publicados nos livros “Scritti Corsari” & “Lettere
Luterane”. Finalmente uma boa tradução de Pasolini com notas elucidativas sobre
personagens & eventos do mundo político & literário da Itália. Tenho
duas ressalvas quanto a tradução: traduziria “garoto” em vez de “rapaz” cada
vez em que aparece a palavra “ragazzo”, pois estaria mais de acordo com o
universo de Pasolini. A tradução brasileira de “Ragazzi di Vita” para “Meninos
de Vida” é nesse sentido correta pois coincide com o mundo pasoliniano.
Genariello, discípulo imaginário de Pasolini em “Lettere Luterane”, tem 15
anos, e é portanto um garoto. Idem Palosi & centenas de garotos
pasolinianos que vimos em seus filmes. A outra ressalva é a tradução de
“lucciole” por “pirilampos” onde “vagalumes” estaria mais de acordo com o
“velho universo agrícola e paleocapitalista” do autor.
Embora Piva
considere boa a tradução da obra para o português, não deixa de observar que a
tradução da palavra “raggazzo”, para
“garoto” ou “menino” seria melhor do que “rapaz”. Além de estar, como observa
Piva, “mais de acordo com o universo de Pasolini”, a palavra “garoto” é
importantíssima para o imaginário poético de Piva (lembremo-nos do Coxas (1979) e do 20 poemas com brócoli (1981),
por exemplo). Do mesmo modo, a palavra “lucciole”,
é importante para a crítica à sociedade italiana pós-fascista, engendrada por
Pasolini em seu Articolo dele lucciole,
palavra que deveria ter sido traduzida por “vagalumes”, na opinião de Piva.
É a partir da
constatação de que os vaga-lumes desapareceram, que Pasolini relata uma
“mutação antropológica”, [2] que
teve consequências nefastas no “universo agrícola e paleocapitalista”, cujo
“espírito popular” era amado por Pasolini. Esta modificação que vinha ocorrendo
desde a unificação da Itália, culminou em 1974, no que Pasolini chamou de
“genocídio cultural”, quando afirmava que “o verdadeiro fascismo é aquele que
tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do
povo.” [3]
O também leitor
de Pasolini, Georges Didi-Huberman explica em seu livro Sobrevivência
dos vaga-lumes, que ao utilizar a imagem “lírica e delicada” do
desaparecimento dos vaga-lumes, no Articolo
delle lucciole publicado em 1975 no jornal Corriere della sera, Pasolini chama a atenção para o
enfraquecimento cultural pelo qual passava a Itália, nos anos 1970. Pasolini
via uma intensa e irreversível adesão aos modelos impostos pelo que restou do
fascismo que ele chamou de um fascismo “democrático-cristão” – “La continuità tra fascismo fascista e
fascismo democristiano è completa e assoluta.” –; [4]
[No sistema
democarta-cristão] os “valores” que contavam eram os mesmos que eram
importantes para o fascismo: a igreja, a pátria, a família, a obediência, a
disciplina, a ordem, o não desperdício, a moralidade. Estes “valores” (como, de
resto, durante o fascismo) eram “também reais”: pertenciam às culturas
especiais e concretas que constituíam a Itália arcaicamente agrícola e
paleoindustrial. [5]
Junto dos
vaga-lumes, desapareciam também os tímidos, mas autênticos lampejos do ser
humano frente aos holofotes de uma política do espetáculo, os mesmos holofotes
que eram, antes, os perseguidores de fugitivos nos campos de concentração. “É
toda uma realidade do povo que, aos olhos de Pasolini, está prestes a
desaparecer”. [6] A constatação do
desaparecimento “irremediável” dos vaga-lumes, naquele momento mostrou, segundo
Didi-Huberman, uma espécie de imobilização causada por um “luto”, era um
“desespero político”.
Muito antes de
publicar l’articolo delle lucciole,
Pasolini escreve uma carta ao amigo Franco Farolfi em 1941, em que descreve um
momento feliz quando ainda se podia ver o cintilar esverdeado dos vaga-lumes no
campo:
[...] vimos uma quantidade imensa de
vaga-lumes (...), que formavam pequenos bosques de fogo nos bosques de
arbustos, e nós os invejávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em
seus voos amorosos e suas luzes (...), enquanto nós estávamos secos e éramos
apenas machos numa vagabundagem artificial.
Pensei então no quanto é bela a
amizade, e as reuniões dos rapazes de vinte anos, que riam com suas másculas
vozes inocentes e não se preocupam com o mundo a sua volta, continuam vivendo,
preenchendo a noite com seus gritos (...). Sua virilidade é potencial. Tudo
neles se transforma em risos, em gargalhadas. Sua impetuosidade viril nunca
fica mais evidente e inquietante do que quando eles parecem ter voltado a ser
crianças inocentes (...), porque em seus corpos permanece sempre presente sua
juventude total, alegre. [7]
Percebemos
aqui, neste bosque repleto de vaga-lumes, uma cena em que a inocência se
arrasta da infância até a juventude e também ao seu revés, pois que os pequenos
insetos luminosos provocam a alegria infantil de um brinquedo. Didi-Huberman
observa que há nesta amizade expressa em gritos e gargalhadas uma potente
“alternativa aos tempos muito sombrios ou muito iluminados do fascismo
triunfante” [8]
A metáfora do
desaparecimento dos vaga-lumes se refere ao desaparecimento de sinais da
inocência “aniquilados pela noite – ou pela luz ‘feroz’ dos projetores – do
fascismo” [9] e dos “shows
políticos, dos estádios de futebol. Dos palcos de televisão”, mas é também, por
outro lado, a imagem de um desejo sexual, pois os vaga-lumes se iluminam em
bandos na busca de parceiros para procriar. O desaparecimento de uma tal dança
tão erótica quanto iluminada, diz respeito tanto às “formas marginais da
sexualidade”, pois que aparecem somente em meio à escuridão, das quais
compartilhava Pasolini, quanto ao seu desejo fugaz de “emancipação política”.
Piva
compreendeu a infelicidade que causou a Pasolini, ver sua vida particular se
tornar pública, se tornar alvo. Na segunda parte da resenha, Piva escreve sobre
as dificuldades enfrentadas por Pasolini ao manter um comportamento desregrado,
inaceitável para os moldes daquela moralidade neofascista.
II | Como deveria viver um homem que é: homossexual,
escritor, comunista, cineasta, jornalista político, poeta, homem de teatro,
etc. no mundo dos muitos infelizes? A resposta foi a vida perturbadora da ordem
sexual, ideológica, artística, levada por Pasolini num meio dominado por
“Penteus italianos, medíocres, mesquinhos imbecis; não são sequer dignos de ser
dilacerados pelos Mênades”. Por isso que em “Carta aberta a Silvana Mangano”,
Pasolini escreve: “Para voltar a nós ambos, reconhecemos Dionisio: mas com
medo, um medo nascido no mundo dos Muitos Infelizes.”
Este “bárbaro”
sabia que a sociedade de consumo, cujo poder é planetário, requer indivíduos
massificados, dóceis, conformistas, que não perturbem a lógica do consumismo. O
sagrado, a beleza dos garotos de periferia, os vagalumes, os terrenos baldios,
são valores não contabilizados pelo neo-capitalismo enquanto “valores” mas
somente se pudermos transforma-los em negocio. Este pragmatismo implacável,
empurra as relações eróticas & amorosas para a camisa de força do casal
heterossexual consumidor. [10]
Piva constata
que a única vida possível para Pasolini foi ser um “perturbador da ordem” em
meio àquela sociedade baseada na “racionalidade e no bom senso”, cujos valores
só são assim considerados, na medida em que podem ser transformados em negócio,
valores que tem seu preço. Piva utiliza o conceito dos “Muito infelizes” da
escritora italiana Elsa Morante, [11]
citado por Pasolini na carta aberta à Silvana Mangano. Estes, designados como
“Penteus”, cuja crítica retoma ao mitológico Penteu, rei de Tebas, que teria
proibido o culto a Dionísio. Pasolini esclarece, na carta para Mangano, que os “muito
infelizes” são a maioria das pessoas que vivem sob esta “racionalidade e o bom
senso, que não compreendem a graça de Dionísio, a sua liberdade, e, por isso,
terminam cruelmente na carnificina: uma carnificina, afinal, que tem a própria
irracionalidade como força dominante.” [12]
Penteu mandado cortar os cabelos de Dionísio.
Na carta à
atriz Silvana Mangano, citada na nota de Piva, Pasolini fala da profunda
tristeza pela qual estava passando, por estar envolto em um processo contra o
filme Teorema, no qual a atriz foi protagonista.
Ele escreve como que um desabafo, assumindo a mea culpa pelo processo judicial, e constata, ao mesmo tempo, que
tanto ele quanto a atriz são “dionisíacos” no sentido de estarem inconformados
e terem, cada um, de uma forma diferente, sofrido as consequências de tal
processo. A imagem de Dionísio é o índice de um comportamento além daquela
moral ditada e solicitada, pois Pasolini não deixa de observar, na carta para
Mangano, que esta força dionisíaca atua tanto para a beleza e felicidade,
quanto para a violência e a barbárie.
O Pasolini
inconformado e “bárbaro” sentiu uma amargura massacrante por permanecer em suas
agruras dionisíacas, e Piva compreende muito bem sua vida “perturbadora” de
quem constatara a aniquilação, sem volta, do “espírito popular” daquela gente
que amava, como escreve no l’articolo
delle lucciole:
[...] para entender as mudanças
pelas quais as pessoas passaram, é necessário amá-las. Eu, infelizmente, as
amei [...]. Tratava-se de um amor real, radicado no meu modo de ser. Vi, assim,
“com meus sentidos”, o comportamento forçado do poder do consumismo recriar e
deformar a consciência do povo italiano, até chegar a uma degradação
irreversível. [13]
Em suas últimas
entrevistas, dos anos 1970, Pasolini expressa uma nostalgia às “pessoas pobres
e verdadeiras que lutavam para derrubar o patrão, mas sem querer com isso tomar
o seu lugar”. [14] Didi-Huberman
explica que era uma maneira anarquista, ao que tudo indica, de desconectar a
resistência política de uma simples organização de partido. Uma maneira de não
conceber a emancipação segundo o modelo único de uma ascensão à riqueza e ao
poder. (...) Isto não acontecia sem uma certa “mitificação” do povo, sem
dúvida. Mas o mito – o que Pasolini chamava com frequência de “força do
passado” (...), fazia parte, justamente segundo ele, da energia revolucionária
própria dos miseráveis, dos excluídos
do jogo político corrente. [15]
O que chama a
atenção na leitura de Didi-Huberman e que também chamou a atenção de Piva foi
esta forma anárquica de resistência política, que para Piva estava mais
associada a uma necessidade de desordem e “confusão”, de “esculhambar” a
organização do partido político, ou seja, desestabilizar a instituição. Vemos
nestas notas escritas em cadernos diferentes de seu arquivo institucional, guardado do Instituto Moreira Salles do Rio
de Janeiro, a reunião de imagens, de modo até desordenado, em torno das
questões criticadas por Pasolini como a industrialização e a sociedade de
consumo.
Intelectual
brasileiro entra em partido político para lavar chão, para ser Devoto, Pasolini
entrou em partido político para criticar, pra esculhambar. Os poetas deixaram
de ser bruxos pra serem broxas. Fantasmas-Eunucos deste teatro de Sombras que é
a sociedade Industrial. Bibelos do Consumo devidamente etiquetados &
vacinados contra a Raiva, a nossa viagem Xamânica começa agora: para as praias desertas & florestas
do mundo, rumo ao centro da Terra cidade lúcida & quente. Ilha Comprida 90.
[16]
Pierre
Clasters, Bataille, G. Freyre, Mircea Eliade & Pasolini, iluminados, xamãs,
Profetas da diversidade contra a homovalência. A sociedade
industrial-tecnológica só nos fez perder o instinto. Apoiar a nova Barbárie,
Punks, & índios urbanos, Anarquia contra anarquismo. Dionysos deus da
desordem & da vegetação. Itapecerica 86. [17]
Muito a fim com
a visão de Pasolini, Piva também expressa esta “mitificação” do povo,
identificada por Didi-Huberman, sendo os pivetes e os michês seus ícones
marginais, além dos índios e dos “Punks” vistos como uma “nova Barbárie”. Na
poesia de Piva, mais do que uma autêntica energia revolucionária, estes seres
periféricos são dotados de uma resistência composta de excitação jovial e
ingênua, para persistir com a existência daquela inocência que Pasolini via se
esvair dos jovens italianos. Para Piva a única solução aparente era a
preservação desta energia que culminava na potência sexual, ou seja, a
preservação do instinto, e o abandono dos centros urbanos, como lugar
contaminado pelo consumismo. Aparentemente foi com o efeito desta resistência
que Piva compôs o poema “A propósito de Pasolini”: [18]
No poema de 15
versos o poeta descreve uma cena. É uma imagem entre a luz a e a sombra,
referência direta ao barroco de Caravaggio. Composta sob um ângulo fechado e
estático em que os “cabelos ouriçados” do garoto curvado para a água de um
chafariz, brilham na tremeluzente água que se move sob o raio “turquesa” do sol
poente, ou nascente. A esta cena, o poeta compara um outro momento, outra cena,
que desta vez, ao invés de estática exprime a sensação de um momento ínfimo, um
“momento doente” determinado pelo tempo e pela leveza surda de um cantarolar:
“um solfejo pagão”. Um ritmo pagão que parece encher tanto de alegria quanto de
mal-estar aquele instante “doente” “depois da orgia”. Impossível não lembrar da
obra Pequeno Baco doente, considerado
um autorretrato de Caravaggio, [19]
e principalmente do menino Narciso do
mesmo pintor, cuja luz da pintura forma um arco que vai do braço esquerdo,
passando pelo pescoço, ao braço direito, encontrando equilíbrio do brilho de
seu joelho. [20]
É desta orgia
báquica, claramente impregnada do deus do vinho, de onde o poeta propõe o
“crescimento” dos deuses, como frutas que amadurecem a seu tempo. Estes
“meninos-deuses” não aparecem, contudo, sem uma dose de languidez, cuja “sombra
selvagem” de “videntes” escurece os “anos” e os “povos”. Aquela época em que o
povo italiano de Pasolini perdera a liberdade e a inocência de seus corpos e
teve ameaçada a riqueza de seus dialetos em vista da ofuscante dominação do
idioma oficial. Mas a potência sexual transgressiva dos “garotos-deuses” – “sombra
selvagem”, “orgia”, “não broxaram” – persiste no poema: os “garotos videntes”
não sucumbiram a esta escuridão, à cegueira causada pelos “holofotes” da
sociedade espetacularizada, denunciada com pesar por Pasolini e criticada nas
notas de Piva. Eles são, como os vaga-lumes, estes pálidos lampejos
tremeluzentes que se pode ver desde o crepúsculo até a noite mais densa.
Na terceira
parte do texto que Piva escreve sobre Pasolini, ele continua citando a carta à
Silvana Mangano em que o cineasta italiano discorre sobre a necessidade de
compreender a própria irracionalidade, um dionisismo que nas observações de
Piva, acaba por se tornar um tormento para artistas que como ele mesmo, não são
capazes de se conformarem com a “dessacralização” da vida nas metrópoles
modernas. Um pouco mais catastrófico do que Pasolini, Piva menciona grandes
desastres causados pelo homem que nega a irracionalidade e vive imerso em um
totalitarismo consumista esmagador. É à possessão por Dionísio que Piva atribui
tanto a força criativa quanto a melancolia de Pasolini.
III | É por isso que os seres possuídos pelo deus Dioniso,
são abrigados na sociedade dominada pelos Muito Infelizes à “renuncia ou compromisso
são drogas com as quais buscamos encher o vazio deixado por aquela metade de
felicidade que não estamos em condições de desfrutar.” Mas Dioniso é um deus
Caprichoso, irracional que provoca a ruína dos Muitos Infelizes, pois é “a própria
incompreensão dessa irracionalidade que a leva irracionalmente à ruína.”
Os genocídios,
os desastres ecológicos em escala planetária, a criminalidade, as epidemias,
etc. são exemplos desta incompreensão da própria Sombra, da própria
irracionalidade. Todas reações negativas devido a falta de sentido da vida
urbana, esta dessacralização que atinge as metrópoles modernas,
transformando-as numa arena de autômatos.
Pasolini foi um
xamã, “guia espiritual da comunidade” (M. Eliade), chamando para si,
incorporando, trabalhando no próprio corpo o fascismo, a repressão clerical, o
lixo cultural da sociedade de consumo, elaborando alquimicamente todas estas
trevas para transmutá-las no Ouro luminoso de Eros.
Finalmente,
Piva termina escrevendo como o “espírito Dionisíaco” dos artistas inconformados
com seu tempo acaba por condená-los a um fim trágico, imerso na violência como
foi o assassinato de Pasolini. Curioso notar que Piva assume o michê Pino
Pelosi como o único responsável pela morte do cineasta, enquanto sabemos que em
virtude de uma série de denúncias de corrupção e ligação da Máfia com o Partido
Democrata Cristão, publicadas no jornal Corriere
della Sera, havia muitas autoridades interessadas em calar Pasolini. O fato
de que Pasolini circulava entre michês e criminosos, com quem tentou uma
negociação para resgatar o filme Salò de
um roubo, [21] talvez não fosse do
conhecimento de Piva, na época. Piva parece preferir a cena de um crime
passional, cometido por um jovem rapaz no rompante da sua selvageria
irracional, tal como uma Mênade.
IV | Muitas vezes porém, poetas & artistas tomados por
Dioniso pagam caro seu inconformismo. As biografias de Rimbaud, Lautréamont,
Genet, Dino Campana, Sade, Artaud, Caravaggio, Crevel, Qorpo Santo, Nietzsche,
Nerval, Trakl, etc. estão aí para não me deixar mentir.
As Mênades do
bom senso, da razão, do conformismo, estão sempre a espreita para o linchamento
cultural. E foi na madrugada de 1º. de novembro de 1975, num lugar isolado, que
uma destas Mênades matou & despedaçou Pasolini-Dioniso fazendo seu grande
coração explodir sob o peso do carro do poeta. O assassino era uma Mênade de 17
anos. Uma Mênade chamada Pino Pelosi.
Esta Mênade é
vítima, por sua vez, daquela “mudança antropológica” causada pela transição de
uma cultura paleoindustrial para o “neo-capitalismo” (Piva), que transformara a
sociedade italiana em “um povo degenerado, ridículo, monstruoso, criminoso.
Basta caminhar pelas ruas para compreendê-lo”, [22] afirmava Pasolini. Ele que se sabia dionisíaco, sucumbiu, no
mundo dos “infelici molti”.
Enfim, este
“coração explodido” do Pasolini de Piva parece se revelar muito mais naquele do
corpo jovem e nu “possuído pelo deus Dionísio” que em seu êxtase, em seu transe
de celebração, não sente o vento cortante de uma manhã gelada, mas o calor dos
primeiros raios de sol da aurora – “Eu me despi e dancei
em honra da luz (io mi sono denudato e ho
danzato in onore della luce); eu estava completamente branco (...),
enquanto os outros, envolvidos em seus cobertores como peões, tremiam ao
vento.” [23]
Corpos que dançam,
a pesar de tudo, são os garotos pintados em luzes barrocas de Caravaggio, mas
com um traço turquesa de melancolia – “sol turquesa” –, aqueles “felici pochi”, que Piva captura de sua
leitura de Pasolini.
1. PIVA, Roberto. Os jovens
infelizes – Ed. Brasiliense Pasolini – Dioniso: Paixão & Morte. Manuscrito. Arquivo
privado. São Paulo, s.d. (Provavelmente
de 1990, ano da publicação do livro de Pasolini).
2. Expressão
de Vinicius Nicastro Honesko em: Saló e Petróleo: agir apesar de tudo: Como
pode o intelectual intervir no mundo?. Cult, São Paulo, ano 17, n. 196, p.27-29,
nov. 2014.
3. PASOLINI, Pier Paolo. Écrits corsaires. In
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos
vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova et ali. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2011, p.29.
4. PASOLINI, Pier Paolo. Il vuoto del potere in Italia:
L'articolo delle lucciole/O vazio do poder na Itália [o artigo dos vaga-lumes]. Trad.
Davi Pessoa Carneiro.
(n.t.) Revista Literária em Tradução, Florianópolis, ano 3, n. 4, p.104-117,
mar. 2012, p. 106.
5. Ibidem, p. 112.
6. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Op. cit., p. 34.
7. PASOLINI, P. P., Lettere,
1940 – 1954. In DIDI-HUBERBAN, Georges. Sobrevivência
dos vaga-lumes. Op.
Cit., p. 19, 20.
8. DIDI-HUBERBAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Op cit., p 20.
9. Ibidem, p. 26.
10. Reproduzo o manuscrito
tal como o original, onde a palavra “negocio” está escrita sem acento.
11. Esta ideia dos
“muito infelizes” aparece em um poema de Elsa Morante intitulado La canzone degli Infelici Molti e dei Felici
Pochi. Em seu livro Il mondo
salvato dai ragazzini, Morante explica de que se
trata essa ideia dos “infelici molti”
e “felici pochi”: “O que
significa F. P.? Trata-se de
uma abreviação para Felizes Poucos. E quem são os Felizes Poucos? Explicá-lo
não é fácil, porque os Felizes Poucos são indescritíveis. Embora
poucos, existem de toda raça sexo e nação época idade sociedade condição e
religião. Pobres e ricos (porém, se nascem pobres, eles, em geral, assim
permanecem, e se nascem ricos, logo se tornam pobres) jovens e velhos (porém
dificilmente eles chegam a tempo à velhice) lindos e feios (para dizer a
verdade, eles, mesmo quando são popularmente considerados feios, na REALIDADE,
são bonitos; mas a REALIDADE é raramente visível às pessoas... Em suma.
Objetivamente, por justiça, aqui se certifica, fielmente, que os F. P. são
todos e sempre lin-dís-si-mos, mesmo se por sua conta as pessoas não o
percebam). MORANTE,
Elsa. Il mondo salvato dai ragazzini
(1968, p. 119). In BARBOSA, Davi Pessoa Carneiro. A escritura ambivalente: Elsa Morante - Macedônio Fernández. 2013. 243 p. Tese (Doutorado) -
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão,
Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, 2013, p. 162.
12. PASOLINI, Pier Paolo. Carta aberta a Silvana Mangano. In Caos – Cronicas políticas. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. Sao Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 73-76.
13. PASOLINI, Pier Paolo. Il vuoto del potere in Italia: L'articolo delle
lucciole.Op. cit., p. 114.
14. PASOLINI, Pier Paolo. Nous sommes tous en danger. In DIDI-HUBERMAN,
Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad.
Vera Casa Nova et ali. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.33.
15. DIDI-HUBERMAN, Georges.
Sobrevivência dos vaga-lumes. Op. Cit., p.
34
16. PIVA, Roberto. Caderno de criação. Incipit: “A máfia de branco [...]”,Excipit: “[...] P.S. É
deslumbrante”. Arquivo Roberto Piva: IMS-Rio, 1980 -1990. Este texto foi
publicado como poema primeiro na revista Chiclete com Banana, n. 23 de 1990 e
depois na reunião de poemas, textos em prosa e manifestos intitulada “Sindicato
da Natureza” no volume 3 das obras reunidas pela editora Globo. PIVA, Roberto. Estranhos Sinais de Saturno. São Paulo:
Globo, 2008, p. 183.
17.
Idem. Caderno de notas. Incipit:
“Diários, poesias, entrevistas [...]”,Excipit: “[...] jejum da prosperidade”.
Arquivo Roberto Piva: IMS-Rio, 1980 – 1987.
18.
PIVA, Roberto. A propósito de Pasolini.
Datiloscrito. Arquivo privado. São Paulo, março de 1987. Do mesmo poema há uma
cópia manuscrita no arquivo institucional
(IMS-Rio) e o poema foi publicado no Ciclones
(PIVA, 2008, p. 103).
19. Pequeno Baco doente (autorretrato, cerca
de 1593-1594). Óleo sobre tela 67 x 53 cm. Galleria Borghese, Roma,
Itália .
20. Narciso (1597-1599). Óleo sobre tala 113,3 x 95 cm. Galleria
Nacionale d’Arte Antica, Roma, Itália.
21. Cf. VULLIAMY, Ed. Quem realmente matou Pier Paolo Pasolini. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago. 2014. Ilustríssima.
22. PASOLINI, Pier Paolo. Il vuoto del potere in Italia: L'articolo delle
lucciole. Op.
cit, p. 114.
23. PASOLINI, P. P., Lettere,
1940 – 1954. In DIDI-HUBERBAN, G. Sobrevivência
dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova et ali. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 22.
***
IBRIELA BIANCA (Brasil, 1980). Ensaísta,
especialista em Estética, mestre em teoria literária doutoranda no programa de
pós graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Integra o Núcleo
de Estudos Literários e Culturais da UFSC e professora de inglês. Contato: ibriela@hotmail.com. Página ilustrada
com obras de Zuca Sardan (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
Não é sempre que se escreve sobre Piva à altura da paixão do poeta por outros poetas que dedicaram suas vidas às criações do Eros e da Morte, como ele: obrigado Bia! Aprender sobre a leitura de Piva (de Pasolini, que homem lindo foi ele!) nos dá tanto mais tesão quanto conhecer o que foi e não foi escrito para ser só lido...
ResponderExcluirSaiba que na esteira dos maravilhosos (mas tb. dolorosos: a verdade, assim como a beleza, podem "machucar" nossos sentidos poucos) Pasolini e Piva, seus escritos têm nos trazido mais luz e sombras desconhecidas, ambas necessárias para a aproximação íntima de que a grande poesia da vida e seus intérpretes báquicos-órficos nos pedem, nos dão e nos brindam - mas nem sempre recebem de volta. Veja você que a escolha desses quadrinhos para ilustrar sua pesquisa séria, libertadora e gozoza é algo que beira o oportunismo mais gratuito e menos inspirado. Convenhamos, esse tipo de "atitude" sem sensibilidade para com a OBRA de Piva ajudou a desafinar um pouco suas brihantes descrições e interpretações de todos os inigualáveis autores com os quais nos presenteou. Mas se tirou um pouco a afiação desta Agulha, é justamente porque o problema está nos próprios leitores de Piva, tão mais cegos e enfurrujados frente à necessidade atual de expandir sua poesia (sobretudo a xamânica, a mais experiente) para além dos limites que ela necessariamente possui, o que não significa perder em estilo e em poesia. Enfim, seu artigo tem ambos, e a classe do riso e do grito dos seres que ainda nos embalam com as mais belas palavras e imagens mesmo não estando mais aqui ao nosso lado