Herdeiro
do Dadaísmo, o Movimento Surrealista tem início em 1924, com a publicação do Manifeste de Surréalisme, de André
Breton. Em sua primeira fase, há uma influência da psicanálise freudiana. Por
isso, o sonho, nessa etapa inicial, é tomado como um dos principais meios de acesso
ao instinto e ao inconsciente humanos, que são elementos essenciais para a construção
da linguagem artística surrealista.
A arte, no Surrealismo, surge em meio a uma
crise de valores causada pelo período pós-guerra e aponta para uma necessidade
de introspecção humana, na busca de, por meio do sonho, ir de encontro ao que
há de mais profundo e livre das amarras da racionalidade no homem. Nesse
primeiro momento, a escrita - no caso da literatura – e a pintura automáticas,
a análise dos sonhos e a livre associação tornam-se procedimentos básicos na
composição de obras artísticas surrealistas. Já em 1930, com a publicação do
Segundo Manifesto, assinado por Breton, Salvador Dalí, Tristan Tzara e pelo
cineasta Luis Buñuel, dá-se o que se pode chamar de uma segunda fase do
Movimento, na qual ocorre uma adesão de diversos artistas a questões de
conscientização política e social e ao materialismo marxista (FORTINI, 1980).
Pretendia-se explorar, de modo geral, a força
criativa do subconsciente, valorizando os ambientes oníricos, o
antirracionalismo. Em virtude disso, em todos os campos artísticos que
estiveram vinculados ao Surrealismo – como a escultura, a pintura, o desenho, a
literatura, o teatro e o cinema – houve uma tentativa de ruptura com o
tradicionalismo vigente. A princípio, foi na pintura, devido ao caráter
profundamente imagético que o Movimento apresentou, que as suas ideias puderam
ser expressas da melhor forma. Tomando como ponto de partida a tela e as
tintas, os artistas deixavam sua imaginação fluir livremente no decorrer de
cada pincelada e construíam uma série de imagens que, muitas vezes, não
possuíam uma relação clara entre si ou com a realidade empírica.
No campo das artes plásticas, o Surrealismo
subdivide-se basicamente em duas formas do fazer artístico: a primeira,
figurativa, cujo principal representante é Salvador Dalí, trabalha-se com a
distorção e a justaposição de imagens familiares ao público; já a segunda,
abstrata, os artistas buscaram libertar a mente e dar vazão ao inconsciente,
sem nenhum tipo de controle da consciência ou relação com a realidade material.
Dessa última, temos como representantes as obras de Max Ernst e Joan Miró, que
apresentam muitas formas curvas, linhas fluidas, com bastantes cores.
Já no cinema surrealista há uma quebra do
tradicionalismo cinematográfico. Os cineastas dedicaram-se a criar um novo
olhar sobre a composição e estruturação do filme. Há, nesse tipo de cinema, uma
visível despreocupação com o enredo, pois o que importa não é a linearidade ou
o sentido lógico das cenas, mas as imagens que são evocadas. A produção
cinematográfica, além de tudo o que já foi mencionado, também é o espaço para o
combate a determinados ideais burgueses, para a presença do sonho e dos desejos
não racionais do homem. De acordo com Hellmann (2012):
O cinema surrealista é de difícil interpretação uma vez que
envolve enigmas simbólicos, metáforas desafiantes, provocando sempre dúvidas no
expectador. O faz refletir, pensar sobre os processos acerca do fazer artístico
e do próprio conceito da obra cinematográfica.
Dois importantes cineastas surrealistas que
podemos mencionar aqui são: Luis Buñuel que, em parceria com Salvador Dalí em
1928 e 1930, respectivamente, produziu Um Cão Andaluz e L'Âge D'Or; e Jean Cocteau. Este último foi poeta e um dos
primeiros cineastas que fez uso da concepção do fazer artístico surrealista na
construção de suas obras. Foi dele a famosa Trilogia Órfica, composta por Le Sang d’un Poète (1932), Orphée (1950) e Le Testament d’Orphée (1960). Uma das propostas do
cinema no Surrealismo era apresentar diante do público o conhecido mundo do
inconsciente e o nebuloso universo do inconsciente e suas múltiplas
possibilidades:
[...] o Movimento Surrealista no Cinema surge com
a proposta de alcançar uma realidade absoluta, através da mediação entre o
mundo consciente e o mundo inconsciente. Para tanto, vale-se da reprodução de
situações circundadas por uma lógica onírica, tomando como referência uma
interpretação da teoria do sonho de Freud, baseada na ideia de escrita
automática proposta no Manifesto Surrealista, de André Breton. (LUCINDA
& ALVARENGA, 2015)
No
que diz respeito a um teatro surrealista, sem dúvidas, Antonin Artaud é um dos
grandes expoentes. Valorizando a performance em detrimento do diálogo, ele
mostrava uma postura contrária ao modelo dramatúrgico do Naturalismo francês, devido
ao seu caráter extremamente retórico e de subordinação ao texto, realizando um
Teatro como vertigem ou pulsão, onde os corpos dos atores são como templos
transcendentais, que aproximam os espectadores do mundo divino e dos rituais
sacros aos quais as primeiras encenações realizadas na Grécia antiga estiveram
ligadas (NOGUEIRA, 2015).
Artaud
propunha uma compreensão das cenas apresentadas para além das transmissões
tradicionais de significados as quais a plateia estava acostumada. Para ele, o
texto, embora não devesse ser descartado, não se configurava como o principal
componente do espetáculo, mas como um dos elementos presentes no seu processo
criação. Sendo assim, não seria necessária somente a palavra ou o corpo, mas a
junção de ambos na composição da cena.
Na
literatura, especificamente, um dos principais representantes é o próprio
fundador do Surrealismo, André Breton. Criando importantes obras tanto no campo
da poesia quanto da prosa, o autor não só deu as diretrizes teóricas e
ideológicas desse movimento de vanguarda, como também inaugurou na prática
muitos dos elementos que se fizeram cruciais para a criação e o desenvolvimento
de obras no âmbito literário. Além dele, outros autores franceses como Paul
Éluard e Jacques Prévert, na poesia; e Louis Aragon, com obras poéticas e em
prosa; contribuíram para a consolidação da literatura surrealista francesa e
inspiraram prosadores e poetas modernos.
No
Brasil, as primeiras manifestações de obras surrealistas ou de aspectos
surrealizantes dão-se entre os autores que estavam vinculados ao Movimento
Modernista de 1922. De acordo com José Niraldo de Farias (2003), “as projeções
do surrealismo no Brasil se iniciam desde a Paulicéia
Desvairada, de Mário de Andrade”. Não obstante o próprio autor fosse
refratário a essa ideia, Farias (2003) ressalta que já no título da obra
pode-se observar uma noção de “irracionalismo e de explosão do inconsciente” (idem).
Dentre os autores modernistas, de diversas
gerações, que, de certo modo, abraçaram ideais surrealistas, destacam-se Murilo
Mendes, Jorge de Lima, Rosário Fusco e até mesmo o João Cabral de Melo Neto de Pedra do sono (1942). Inclusive, em
1925, como afirma Robert Ponge (2015), Prudente de Moraes, neto, e Sérgio
Buarque de Holanda começaram a trocar entre si cartas surrealistas, seguindo a
receita de Breton.
Octávio Paz (1983) ressalta que o Surrealismo é
um dos frutos da nossa época e que, apesar deste não ser invulnerável ao tempo,
ultrapassa o sentido das obras que produziu, pois ele não se trata de uma
poética e muito menos de uma escola literária, mas de uma atitude do espírito
humano. Nesse sentido, sua concepção sobre o Surrealismo aproxima-se bastante
da de Aldo Pellegrini (2013), que retrata o movimento como uma concepção de
mundo e não como um mero fazer artístico engessado e demarcado.
Muito embora não se possa falar de escritores que
dedicaram suas produções literárias, de forma mais veemente, à consolidação do
Surrealismo no Brasil antes dos anos 60, com grupo surrealista de São
Paulo/Rio, nem por isso podemos deixar de lado que, anteriormente, houve sim
importantes manifestações surrealistas no interior do Modernismo brasileiro. Tendo
em vista a circulação de ideias do Surrealismo no Brasil durante a década de
20, neste ensaio, pretendo discorrer sobre os principais aspectos do Movimento,
principalmente no campo da prosa, e refletir sobre a presença de traços
surrealizantes em O Agressor, de
Rosário Fusco, e O Anjo, de Jorge de
Lima.
Colocando o Movimento Surrealista, assim como
outros autores, a exemplo de Guillermo de Torre (1967) e Franco Fortini (1983),
como um herdeiro do Dadaísmo, Aldo Pellegrini (2013) vai um pouco mais além e
afirma ser esse tipo de fazer artísitico muito mais do que uma atividade
criadora ou um movimento engessado, cujo principal objetivo fosse justamente a
quebra de toda e qualquer estética. O Surrealismo seria, para ele, antes de
tudo, uma concepção de mundo e a sua preocupação central não estava na arte ou
no tensionamento da arte, mas no homem concreto, no seu ser e estar no mundo,
na sua necessidade de se conhecer, nos seus sonhos e paixões, enfim, em tudo
aquilo que era parte indissociável dele. Por causa disso, os artistas ligados a
ele sacralizam a vida humana e empreendem uma luta contra tudo aquilo que tende
a desvalorizar o homem e o que há de humano nele, na tentativa de explorar
todas as possibilidades e liberar todas as potências da vida.
Ainda de acordo com Aldo Pellegrini (2013) o
Movimento é, ainda, “uma mística da revolta”, e se põe contra as estruturas
fossilizadas da sociedade convencional e seu falso sistema de valores; e a
condição mesquinha humana. Além desse caráter de rompimento com certas
estruturas estratificadas ontológicas e sociais, teve-se em alta conta o amor,
pois se via nele a capacidade da união entre o físico e o metafísico, o
material e aquilo que faz parte da essência do próprio homem.
Ao
comparar as produções literárias francesas declaradamente surrealistas, como as
pertencentes àqueles que estiveram ligados a Breton, a exemplo de Jacques
Prévert, Paul Éluard, Louis Aragon, René Crevel, Benjamin Péret, Robert Desnos
e Michael Leiris, observa-se que há uma tendência maior para a poesia. Alguns
desses autores, ao longo da vida, dedicaram-se apenas à escrita em verso, já
outros, seguindo o mestre Breton, além de poemas, publicaram textos em prosa ou
até mesmo prosa poética.
Foi
justamente na poesia, graças ao maior desprendimento da sintaxe que essa forma
permite na construção de imagens, que o Surrealismo pode atingir seu ápice.
Como afirma Nogueira (2004), esse Movimento “nunca esteve circunscrito nem à
escrita automática nem à mera criação artística de uma atmosfera onírica”. É
justamente o trato diferenciado em relação às imagens e metáforas, segundo a
autora, que o caracteriza.
A prosa surrealista francesa tem como
principal expoente André Breton. Desse autor, temos três importantes romances: Nadja (1928), O Amor Louco (1937) e Os
Vasos Comunicantes (1938). Além
desses escritos, podemos destacar também: La
Mise à Mort (1965), Blancheou l’oubli
(1967), de Aragon; Meu Corpo e Eu (1925)
e La Mort Difficile (1926), de Crevel. É comum entre essas obras um caráter, muitas
vezes, autobiográfico.
Em Nadja, André Breton expõe,
logo de início, que deseja construir um escrito “antiliterário” e sem nenhuma
preocupação com o estilo. Para esboçar melhor a veracidade das situações que se
apresentam a ele, o autor lança mão de diversas fotografias de momentos
vivenciados, dos locais pelos quais andou, dos desenhos feitos por Nadja e de
retratos de pessoas que conheceu. Abrindo mão da escrita automática, Breton
constrói toda a obra permeada pelo que ele mesmo denominaria como “acaso
objetivo”, definido por Rebouças (1986) como a “escrita automática do destino”
ou até mesmo “o lugar geométrico das coincidências”.
Em meio ao acaso objetivo circulam premonições, revelações, encontros inesperados
ou insólitos e coincidências perturbadoras que podem acontecer na vida humana.
Motivados principalmente pelo desejo, que ainda segundo a autora, é “a chave
mágico-circunstancial para o acaso”, certos acontecimentos se desenrolam no
interior da narrativa bretoniana.
Em Nadja, bastava o espírito
de Breton inclinar-se a desejar algo que, logo, ele se materializava. Durante
um de seus inúmeros passeios, o autor e também narrador da obra menciona que
sempre teve o desejo de encontrar, alguma vez, à noite, “uma bela mulher nua”
(BRETON, 2007) e, com o tempo, relata que, de fato, chegou a encontrar uma dama
nessas mesmas condições, coberta apenas por um casaco. Além desta, ao longo da
obra, outras situações também ocorrem de acordo com o que o protagonista passa
a ambicionar. Contudo, é a partir do momento em que ele encontra Nadja, que dá
nome a sua obra, que esse acaso objetivo torna-se ainda mais evidente. Ele
passa a pressentir prováveis encontros com essa mulher avassaladora e, do mesmo
modo, ela parece conhecer bem todas as suas aspirações do espírito, como se
pudesse, de fato, mergulhar em seus pensamentos:
Diante de nós derrama-se um chafariz cuja curvatura
ela parece acompanhar. "São os seus pensamentos e os meus. Olha de onde
eles vêm, até onde se devam, e como é mais bonito ainda quando caem. Logo em
seguida se fundem, se refazem com a mesma força, e recomeça esse arremesso que
se despedaça, essa queda ... e assim indefinidamente." Fico assustado:
"Mas, Nadja, como isso é estranho! Onde é que você foi buscar justamente essa
imagem, que está expressa quase da mesma forma num livro que você não pode ter
conhecido, e que acabei de ler?".
(BRETON)
Mesmo sem possuir um acesso aparente aos
desejos de Breton e às suas pretensões, Nadja parece antever seus passos. Em um
de seus encontros, a moça chega a sugerir que o próprio André escreveria, um
tempo depois, um romance sobre ela e sugere-lhe algumas coisas para a provável
obra:
[...]
André? André?... Você vai escrever um
romance sobre mim. Garanto. Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós ... Mas isso pouco
importa: você arranja outro nome: que nome, quer que eu diga, isso é muito
importante. Tem que ser um pouco o nome do fogo, pois é sempre o fogo que
aparece quando se trata de você. A mão também, mas é menos essencial que o
fogo. O que vejo é uma chama que começa no punho, como aqui (com o gesto de
fazer uma carta desaparecer) e que faz com que a mão se queime e desapareça num
piscar de olhos. Você vai encontrar um pseudônimo, latino ou árabe. Promete. É indispensável. (BRETON)
No decorrer da narrativa, Nadja também começa
a agir de acordo com alguns textos poéticos que Breton havia escrito, fazendo-o
compreender na prática certas imagens que ele mesmo afirmava não ter ideia do
que se tratavam antes. Há uma conexão tal entre ambos na qual, por muitas
vezes, um parece fazer parte do outro e ela, não raramente, confunde-se com as
imagens poéticas produzidas pelo autor em outras obras. É como se Nadja fosse a
síntese do poder criador do protagonista e de todos os seus anseios instintivos
que, racionalmente, não eram postos em prática.
Nadja configura-se quase como uma força da
natureza, arrebatadora, forte, desmedida, de gênio livre. Ela é o Surrealismo
personificado, feito em corpo de mulher e converte-se nas próprias disposições
de espírito do poeta. Seus mistérios, encantos e até mesmo seus desvarios são
para André Breton, na obra, irresistíveis e inevitavelmente atrativos.
Além do acaso objetivo, temos temas muito
caros ao Surrealismo e bastante elogiados no Manifesto de Breton: o amor e a loucura. O primeiro pode ser
encontrado no próprio envolvimento entre Nadja e o autor, que a idealiza e não
consegue livrar-se das amarras do sentimento que o liga a esta mulher. Em O Amor Louco, esse tema volta a ser
retomado e também a noção de uma beleza convulsiva, tal como também possuía a
própria Nadja; e, juntamente a isso, retorna, nesse outro livro, da mesma
forma, a ideia do acaso objetivo. Já a segunda temática surrealista presente
na obra, encontra-se na própria insanidade da moça, revelada nas últimas partes
do livro, que a leva para sempre para o mundo da total irracionalidade. Ao fim,
ela se desconecta de uma vez por todas do mundo material e lógico,
entregando-se totalmente ao delírio.
Na
literatura brasileira, não foi sem resistência que as ideias surrealistas
adentraram. Não é novidade que o Surrealismo aqui, principalmente no período
das suas primeiras incursões literárias, foi um movimento à margem. No entanto,
também é verdade que essa tal “margem” era o espaço ideal, onde ele, não só
aqui, como também no seu país de origem e em outros, pretendeu circular. Fez-se
margem para explorar o que havia de mais profundo no homem e ir contra todo
tipo de regra limitadora. Contudo, paradoxalmente, não pôde livrar-se
totalmente de algumas amarras que lhe impôs o marxismo, nem da marca de, um
dia, ter se vinculado a ele.
É certo, como já foi dito, que não foi sem
dificuldade que as ideias surrealistas adentraram na literatura brasileira.
Entretanto, José Niraldo de Farias (2003) nos propõe um exame mais atento da
presença do Surrealismo no Brasil e afirma que o Movimento “influenciou nossa
literatura muito mais do que usualmente se pensa”. Porém, Gilberto Mendonça
Teles (1996 apud NOGUEIRA, 2004)
afirma que durante o início do Modernismo, momento este, segundo Farias (2003),
da entrada e circulação das ideias do Surrealismo; não se pode, ainda, falar de
influências surrealistas na nossa literatura. Para o autor, isso só é possível
a partir de 1928.
Como já mencionei anteriormente, muito se tem
discutido, ao longo dos anos, sobre a presença ou a ausência de um Surrealismo
aqui antes da década de 60. Com efeito, não houve um Movimento organizado no
país antes dessa data, mas esse fato não anula a presença de obras, antes dessa
data estipulada, que dialogassem com os ideais surrealistas ou tivessem certos
traços surrealizantes. O fato de termos publicações com esses aspectos mais
esparsas e menos articuladas entre si desde o início do Modernismo,
diferentemente do que aconteceu na França, não invalida ou anula a presença do
Surrealismo no Brasil antes de 1960.
O nosso Modernismo foi, de certo modo,
ideologicamente fracionário. De um lado, Mário de Andrade e o grupo de autores
e artistas que se ligaram a ele, que defendiam uma obra estritamente nacional,
que valorizasse a cor local e tivesse como principal objetivo a construção de
uma arte, de fato, brasileira, desvinculada, o máximo possível dos padrões
europeus. Das vanguardas, aproveitava-se apenas o que fosse interessante para a
construção de uma produção artística totalmente nossa. Contudo, por outro lado,
temos Oswald de Andrade, que em seu Manifesto
Antropofágico menciona diretamente o Surrealismo e a psicanálise de Freud.
Seu romance Serafim Ponte Grande
(1933) é, inclusive, apontado frequentemente como um romance que possui traços
surrealizantes.
Nada mais alheio à ideia de cor local defendida
por Mário que o Movimento Surrealista, que em essência, independentemente das
diversas posturas políticas que Breton e muitos dos seus seguidores tomaram,
preocupava-se em mostrar o que havia de mais profundo no inconsciente humano.
Para isso, era preferível desvincular-se, o máximo possível, da realidade
material.
Seguindo
uma linha um pouco distinta do Surrealismo francês, que defendia a resistência
a toda e qualquer religião, principalmente a que nasce a partir dos
ensinamentos de Jesus Cristo; Murilo Mendes e, em certo sentido, Jorge de Lima
vinculam-se ao cristianismo e constroem obras que dialogam ao mesmo tempo com a
mística cristã e com ideias surrealistas de valorização do sonho, do delírio e
da construção de imagens, a priori, absurdas. Desse autor, podemos destacar as
obras O Visionário (1941), As Metamorfoses (1944) e Mundo Enigma (1945), escrita em parceria
com Jorge de Lima. A obra deste último não se detém unicamente num estilo ou
movimento, muito pelo contrário, dialoga com temáticas religiosas, com o
Surrealismo, o Expressionismo da obra de Portinari e o Movimento Modernista
brasileiro. Por isso, ao mesmo tempo em que vemos obras dele a exemplo de O Anjo (1934), podemos observar também Essa Nega Fulô (1929), que nada tem a
ver com a linguagem ou o modo de construção literária surrealistas.
Na poesia, assim como na prosa, Jorge de Lima
segue estritamente um modelo formal mais rigoroso. Os aspectos surrealistas de
sua obra estão, no entanto, nas imagens poéticas construídas, na valorização da
imaginação e do mágico. Invenção de Orfeu
(1952), último livro publicado em vida do autor, é uma espécie de epopeia
lírica, dividida em cantos compostos por algumas poesias metrificadas e
rimadas, outras de metro livre e branco e diferentes formas poéticas, como, por
exemplo: sonetos, oitavas camonianas, baladas e poemas de forma mais livre.
Não há um tema específico que acompanhe todo o
desenrolar dos cantos. Talvez o tema central de Invenção de Orfeu seja a própria poesia e suas múltiplas faces. Não
há uma unidade visível entre os dez cantos. Cada um deles é composto por uma
série de poemas que também são fragmentários entre si e poderiam constituir, um
por um, poemas independentes sem grandes perdas de seu significado. De alguns
poemas que compõe Invenção de Orfeu
fica apenas a sensação, a atmosfera mágica e o sentimento de evasão poética.
Dialogando com a Eneida, a Divina Comédia, Os Lusíadas e até com a própria Bíblia, o autor nos convida para
uma viagem que, a princípio, parece ser pelo mar, mas que, na verdade, é pelo
universo mágico da poesia, do encantamento, das sensações, daquilo que há de
mais profundo no próprio homem.
Além de Murilo Mendes e Jorge de Lima, vale a
pena ressaltar aqui também uma das contribuições do romancista e poeta Rosário
Fusco, reconhecido como um importante autor modernista brasileiro. O autor d’O Agressor (1943) fora apontado por
Antonio Candido, em um ensaio para o livro Brigada
Ligeira, como um raro exemplo do Surrealismo no Brasil (CARDOSO, 2008).
Assim como Afrânio Coutinho, muitos críticos ressaltam
que a presença do Surrealismo no Brasil se deu de forma tênue, superficial,
atingindo, apenas, algumas publicações dispersas. Contudo, José Niraldo de
Farias (2007) conclui que, ao se fazer um exame mais detalhado da literatura
brasileira, pode-se constatar que essas afirmações são, até certo ponto,
discutíveis. Segundo ele, desde o lançamento da revista Estética, em1924, por Prudente de Moraes, neto, e Sérgio Buarque de
Holanda, o Surrealismo incutiu-se na cultura brasileira. A partir desse
momento, ainda de acordo com o autor, iniciam-se na nossa produção estética
alguns focos que indicam uma preocupação com o caráter irracional da criação e
com “a liberação dos princípios coercitivos que envolviam a produção literária
até então”:
Estética representou, em menor grau, para o
modernismo heroico, o que o surrealismo representou para o dadaísmo. Uma das
primeiras preocupações da revista foi o anúncio da superação da fase
demolidora, de combate e de invocações puramente formais (Leonel, p. 37). A própria caracterização externa do
periódico, destituída de grandes inovações, relembrará La Révolution
Surréaliste, que, contrariando o espírito
de revolta absoluta presente nas vanguardas anteriores, apresenta uma capa
bastante simplificada. (FARIAS, 2007)
Um aspecto importante do Movimento Surrealista,
de modo geral, é a sua permanente tentativa de não afirmar-se como doutrina ou
escola, mas sim como uma corrente de espírito. Sendo assim, suas ideias
poderiam transitar mais livremente e sem as amarras temporais e formais
impostas pela ideia de escola literária e artística. Desse modo, ele está
aberto tanto aos ditos surrealistas ortodoxos, quantos aos dissidentes.
José
Niraldo Farias (2007) classifica Jorge de Lima como um autor brasileiro que
“abraça o surrealismo sem declarar filiação estilística subserviente aos
pressupostos da poética bretoniana”. Para começar, o Surrealismo nesse autor
dá-se muito menos na forma que no conteúdo. Dono de uma escrita de caráter mais
formal tanto na prosa, quanto na poesia, na qual adota não raramente a
metrificação e formas clássicas, Jorge de Lima cria uma obra de um caráter
surrealizante que se realiza muito mais na liberação da imaginação e na
construção da imagem.
Classificado como novela, O Anjo, de Jorge de Lima, foi publicado pela primeira vez em 1934.
A narrativa contra a história de Herói, que, em meio às suas divagações acerca
da aparência dos seres angelicais, encontra Custódio, a quem atribui o caráter
de anjo. Ao longo do enredo, ele converte-se num verdadeiro anjo da guarda para
Herói, segue-o por toda a parte e cuida de seu bem estar físico e emocional.
Em O Anjo,
Herói sonha com algumas coisas como a aparição de um anjo, encontrar a
Bem-Amada, dentre outras, e elas vão, paulatinamente, realizando-se. Não se
sabe se isso ocorre por mágica ou mero acaso do destino. Não se pode afirmar ao
certo se Custódio é de fato um ser celestial, se a Bem-Amada existe, de fato,
ou se tudo aquilo é verdade apenas na cabeça de Herói:
O Anjo foi compreendendo que aquilo ia dar numa encrenca
roxa, disse no ouvido do Herói:
- Você está louco, não beba mais! Pare de beber!
E depois principiou a operar grandes passes de mágica. Mas
como grande parte da assistência se achava mais ou menos embriagada não
percebeu a formidável técnica do Anjo. O esquisito prestidigitador transformou
num segundo o álcool do pessoal em Rubinat, pôs dois jovens chorando sem
querer, outro catando insetos na roupa, sacou ovos de várias senhoritas e
introduziu camundongos e baratas em senhoras histéricas. Conseguiu coisas mais
extraordinárias mudando o vestuário dos senhores que de repente se viram
trajando combinações, porta-seios e calças rendadas, assim como algumas velhas
foram encerradas com a roupa pelo avesso dentro dos armários do Café. (LIMA,1998)
No trecho citado acima, não se sabe se os
“passes de mágica” de Custódio aconteceram mesmo ou se Herói e os demais
presentes imaginaram aquilo devido ao estado de embriaguez. Esse clima de
incerteza domina muitos trechos da obra. Não se pode afirmar com certeza
absoluta a existência ou inexistência de alguns eventos que supostamente
estariam no campo da magia ou do milagre.
Observa-se que, nessa narrativa, os traços
surrealistas não estão na forma, pois a escrita é tradicional, mas sim no
conteúdo lúdico e no modo como os acontecimentos se desenrolam. Há em O Anjo um recurso muito semelhante ao
utilizado por Breton em Nadja: o
acaso objetivo. Alguns fatos, que pareciam fazer parte de uma simples
causalidade, participam, na verdade, de uma verdadeira rede de associações. Um
aparente acaso desencadeia uma série de ações e uma ação puxa a outra.
Além da incerteza de algumas questões, como, por
exemplo, a natureza de Custódio, há na obra um estado de magia, no qual seres
aparentemente encantados e que fazem parte, em boa parte, do imaginário
cristão, aparecem e influenciam no destino de Herói, que está na narrativa
muito mais para um anti-herói do que para um herói de fato. Uma atmosfera de
sonho, também bastante cultivada pelo Surrealismo bretoniano está presente no
desenrolar da trama. Outro aspecto caro ao movimento presente em O Anjo é a valorização do amor (PAZ,
1983), por meio da busca e idealização da Bem-Amada.
Já Rosário Fusco, louvado pela crítica como o
“menino-prodígio” do Modernismo no Brasil, publica pela primeira vez, em 1943, O Agressor, uma das obras mais
emblemáticas não só dentre suas demais escritas por ele, mas também no âmbito
da literatura brasileira. De início, a leitura desse livro causa um profundo
impacto e estranheza, pois há um descompasso entre o mundo que se apresenta à
volta do protagonista e como ele o percebe. Além de tudo, não raramente, os
delírios do personagem confundem-se no decorrer da narração com a realidade
material.
O Agressor
conta a
história de David, que é contador em uma chapelaria há dez anos. Sua rotina, do
início ao fim da obra, não varia tanto: ele sai da pensão onde mora para ir ao
trabalho e de lá retorna para o local onde reside. Dentre os personagens que se
fazem mais presentes no seu dia-a-dia estão seus patrões – Franz e dona Frederica
–, Amanda – a quarteira que frequentemente leva-lhe comida e visita-o em seu
quarto – o porteiro do prédio vizinho e a proprietária da pensão. Além destes, outra
personagem, de forma mais indireta, circunda o protagonista: Clara. Essa,
casada com um homem que quase nunca se vê, mora no apartamento que se localiza
justamente em frente ao quarto de David.
Dividido entre uma rotina de trabalho repetitivo
e monótono, a observação assídua da rotina de sua vizinha e a preocupação
relativa a certos telefonemas, o protagonista praticamente não observa mais as
demais coisas que acontecem ao seu redor, limitando-se, quase sempre, a
dedicar-se a essas três ações. Durante toda a obra o personagem crê piamente
que está sendo perseguido por muitas pessoas, mas principalmente por seu patrão
e por Nicolau, homem casado que possui algum tipo de envolvimento com Amanda.
Num dia normal de trabalho, David escuta um
barulho que vem do depósito e vai conferir. Acreditando que seriam gatos os
causadores daqueles ruídos, ele chega a perguntar se havia esse tipo de animal
lá e uma voz, por trás da porta responde positivamente. De imediato, o contador
aceita a ideia de que ali se encontravam, de fato, gatos, contudo, pouco tempo
depois, percebe que não é algo próprio dos felinos a fala, mas dos seres
humanos. Começa, nesse momento, um dos grandes conflitos do personagem: aquela
resposta havia sido um delírio seu ou pertencia à sua patroa, que, por ventura,
poderia estar naquele local transando com o marido? Esse é um dos mistérios da
obra que não são resolvidos para o leitor e muito menos para ele. É a partir do
episódio dos gatos que David começa a desconfiar das boas intenções de Franz e
acredita estar sendo perseguido por ele. Desse instante em diante, um profundo
medo de ser morto a qualquer hora toma conta do personagem.
Com o passar do tempo e das observações, David
conclui que sua vizinha Clara possui algum interesse nele e passa a interpretar
suas aparições na janela ou nos locais onde ele também estava como sinais
disso. Até mesmo quando ela envia um bolo com seu nome e cinco velas, o
contador, apesar de saber que havia um garotinho de cinco que essa mulher
conhecia também chamado David que morava muito próximo ao seu quarto,
interpreta esse fato como um indício cabal do desejo de Clara por ele. A partir
desse momento, o protagonista passa a nutrir sentimentos por essa misteriosa
mulher, acreditando ser tudo recíproco, e a acompanhar boa parte dos seus
passos, contando com informações que costumava tirar do porteiro do prédio onde
ela residia.
No caso de Amanda, segunda figura feminina
marcante na obra, sua presença, para David, soa, de certo modo, estranha e
incômoda. Ao que se entende por meio da narração, seus encontros com ele, que
se dão com muito mais frequência no quarto onde o contador reside, são
estranhos para ambos e causa um estranhamento até mesmo para o leitor. Nessas
ocasiões, há pouca ou quase nenhuma conversa e, geralmente, Amanda fica apenas
parada, observando-o.
Mesmo as ocasiões que parecem mais claras ao
leitor, David interpreta-as de maneira invertida, distorcendo palavras e ações
de pessoas ao seu redor. Parece haver um ruído entre o modo como as coisas se
dão e como o personagem as percebe. No momento em que Franz mostra ter
interesse em promovê-lo a sócio, o contador, imaginando ser aquilo mais uma
tentativa do patrão para matá-lo ou desmoralizá-lo, revela em público todas as
suas desconfianças, confessa tê-lo denunciado à polícia e acusa-o de querer
assassiná-lo. Logo em seguida, Franz morre aparentemente de um ataque cardíaco
fulminante. Contudo, ao invés de considerar que as suas palavras teriam causado
aquele tipo de reação no chefe, David reage como se nada tivesse acontecido ali
e toma a morte dele como parte de um plano terrível para prejudicá-lo.
No penúltimo capítulo, intitulado Mudança, o fio de racionalidade que liga
o protagonista ao mundo mostra-se ainda mais comprometido. Ao encontrar,
novamente, Amanda no seu quarto, ele dialoga com a moça, mas além deles
evidentemente não se entenderem, as palavras de David saem entrecortadas e
dirigem-se não à pessoa com a qual o contador está dialogando, mas a outras:
E resmungando:
– Neste... (quarto)... não... (posso)... mas no que
aluguei... (mandarei um automóvel buscá-la)... no lugar combinado... (Porém,
antes que me esqueça)... que espécie de música é essa valsa?
Amanda perguntava:
– Que música?
– A valsa. Não se recorda? (David estava falando com Clara.)
– Não.
David prosseguia:
– Estas... (informações confidenciais que os Bancos
forneceram)... servem... (para provar a tentativa)... de suicídio... Eis aqui:
os negócios dele vão de mal a pior... (Para o seu caso, a melhor solução é o
desquite)... se não morrer... (A senhora Frederica)... deve estar sendo
roubada... (no meu tempo, esses depósitos eram bem mais altos)... quero falar
somente da valsa e das rosas. Ouve?
Amanda, sobressaltando-se, timidamente voltava-se para
David:
– A valsa?
– Não foram rosas, não.
– Como não foram? – Protesta David.
– Ora, senhor David, então não conheço dálias? Pois fui eu
quem as pôs no seu quarto.
– Digamos que as dálias se transformaram em rosas. Tenho
assistido a várias transformações.
– Acredito, fez a outra. (FUSCO, 1976)
No entanto, apesar de claramente não haver uma
comunicação entre ambos, visto que a moça não o entende e ele, muitas vezes,
não se refere a ela, a quarteira age como se compreendesse tudo o que estava
sendo dito e nada fora do normal estivesse acontecendo. Os demais personagens
da narrativa também não parecem perceber tanto os estranhos comportamentos
dele.
Ao longo da narrativa, a onisciência do narrador
confunde-se, muitas vezes, com a percepção de mundo de David, o que dá à obra
um caráter ambíguo. Há sempre uma dúvida que permeia toda a história. Não se
pode afirmar ao certo se determinados fatos tem uma existência real ou se são
apenas delírios do personagem. Por exemplo, ao fim, quando supostamente o
contador, num ataque de fúria, molesta Amanda, essa ação é negada por ele mesmo
e posta em dúvida pelo próprio narrador.
Nesse romance, como o próprio título já sugere,
os acontecimentos se desenrolam para a chegada de um dito agressor. Contudo,
contrariando todas as possíveis expectativas criadas no decorrer da leitura do
texto, esse indivíduo perigoso, previamente anunciado, não é nenhum dos
potenciais “perseguidores” de David, mas ele mesmo que, num aparente estado de
loucura, tira a roupa e agride a proprietária da pensão.
Além
de uma atmosfera ambígua e de profunda estranheza que permeia tanto O Anjo, de Jorge de Lima, quanto O Agressor, de Fusco, o delírio, de
forma mais ou menos velada, também é um fator em comum entre essas duas
narrativas e as aproxima da concepção literária surrealista. Fora isso, a
veneração por uma figura feminina e a mistificação do amor, tal como em Nadja, de Breton, é outro elemento
presente nas obras que são muito caras ao Surrealismo.
No
entanto, um aspecto presente n’O Anjo
e ausente n’O Agressor que aproxima
essa narrativa de Jorge de Lima das bretonianas é o acaso objetivo. De acordo
com as disposições de espírito de Herói, as ações magicamente desenvolvem-se.
No caso de David, há uma tentativa do protagonista, algumas vezes meio forçada,
de estabelecer uma ligação direta entre acontecimentos exteriores a ele e prováveis
futuras ocorrências ou a fatos concretos de sua vida.
É importante ressaltar aqui, mais uma vez, a
grande importância da imaginação surrealista na literatura, pois, ao contrário
do que acreditavam muitos críticos anteriormente, o Surrealismo não está
ausente na arte moderna e modernista, muito pelo contrário. Mesmo não estando manifesto
diretamente em algumas obras literárias, faz-se presente, seja em relação às
técnicas de escrita que propôs, seja na postura ante o fazer literário que
inaugura.
***
Letícia Raiane dos
Santos
(Brasil). Mestranda em Teoria da Literatura pela UFPE. Contato:
le_09876@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Zuca Sardan (Brasil),
artista convidado desta edição de ARC.
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