1. Numa paisagem de sonho, a infância, o amor e a
morte
No princípio
era o desenho. Não o traço lógico da arquitetura de linhas retas. Nem a forma
precisa de quem atendeu às lições acadêmicas. Os riscos se orientam em curvas
as mais diversas. Amontoam-se as figuras, e se espraiam, e se excedem. Como se
imperasse no que se desenha uma muito curiosa desarrumação paradoxalmente cheia
de harmonias. Pessoas, objetos, plantas e animais, em convívio íntimo e constante,
se envolvem numa dança. Por vezes, copulam. Estão sempre em diálogo.
Imbricados. Nada está sozinho. Nesse universo gregário, a vida sorri e brinca,
porque tudo existe como num jogo, grávido de sonho.
Foi assim o
começo da obra do pintor Cícero Dias. Os temas são simples. As técnicas são
simples. Os materiais são simples. O resultado é que nada tem de simples. Na
verdade, aquela grande sinfonia de caos ordenando o mundo é complexa na sua
essência tão composta. Por quê? Porque o mundo que ele dá a ver não é o que se
escancara à frente do olhar. Não é o visto, portanto. É o pensado. O sonhado. O
lembrado. O entrevisto. O imaginado. As figuras são “títeres” da subjetividade.
Desordenar, desconstruir, deformar são as palavras de ordem.
O pintor não
reproduz, representa. Fatias, fragmentos de um tempo. Tudo serve ao seu
arbítrio. Por isso as próprias leis da física estão desprezadas. Gravidade? As
pessoas flutuam como se vivessem no mundo da lua ou se movessem nos sonhos.
Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço? Mais do que isto, os
corpos estão em comunhão plena e formam uma risonha unidade. Colam-se uns nos
outros sem qualquer cerimônia.
Na primeira
fase da pintura de Cícero Dias, as figuras existem para um grande corpo a corpo
com a terra. Estendem-se e, por vezes, se retorcem se dilatam. A proporção –
divina ou não – é sacrificada em benefício de uma outra escala: a do onirismo,
a do ludismo. É uma pintura sem lei nem rei. Um moto perpétuo, uma dinâmica
febril.
Que mundo é
esse que desenhou Cícero Dias nos seus primeiros tempos de artista? O mundo da
infância. Da magia. Do mito. Do sonho. Que tem regras, modos, leis, sentidos
próprios. Essas imagens não são meras imitações ou resultados diretos do
expressionismo ou surrealismo. O único manifesto na pintura do artista são as
suas próprias obras. Ou melhor: mais que o manifesto, a manifestação. Mais do
que a fala, a fábula.
Há uma
geografia e uma história a guiar claramente esses desenhos. Primeiro, a
geografia tão conhecida do artista: as imensas plantações de cana-de-açúcar que
geraram a opulência de Pernambuco, onde ele nasceu. A história é bem conhecida:
do começo da colonização até o final do século XIX ou início do XX, quando os
engenhos são suplantados pelas usinas e se estabelece de vez a decadência de um
modo de vida: a do sistema escravocrata. Ficou, no entanto, toda uma época a
povoar a memória e a imaginação dos filhos e netos dos senhores de engenho –
Cícero Dias é um deles. É o pintor que rememora, mas também satiriza, ironiza
esse passado e, principalmente, o erotiza fortemente. O espaço-tempo que
retrata é o do que viu, viveu, leu e lhe contaram dos engenhos. No entanto, não
recorre para isso ao paisagismo tradicional. As suas figuras se distribuem no
espaço e, estão de tal maneira, integradas que, inevitavelmente, compõem
pequenas narrativas de interesse sociológico.
Apesar da
origem rural e de suas referências do complexo da “zona da mata” salpicadas em
todos esses pequenos “contos” de açúcar e sonho da primeira fase de sua obra, o
espírito que anima o olhar de Cícero Dias é urbano. Talvez ainda melhor: rurbano,
da síntese usada por Gilberto Freyre para algumas cidades.
Na verdade,
a temática dos seus primeiros desenhos e das suas primeiras pinturas está
relacionada diretamente com o mesmo ambiente que motivou a obra de Gilberto
Freyre, José Lins do Rego e Ascenso Ferreira. Em suma, ele plasmou em pintura o
que os seus colegas regionalistas-modernistas realizaram na sociologia, no
romance e na poesia. Mas estes também são urbanos. Essa pintura de interesse
literário, histórico e antropológico de Cícero Dias dialoga remotamente com
outro “menino de engenho”: Joaquim Nabuco. Este compreendeu como ninguém
o ethos fundamental do Brasil, e teve, no engenho Massangana,
experiências semelhantes às experimentadas por Cícero Dias em Jundiá. Ambos
foram meninos de engenho que se urbanizaram. Parecem mais dos sobrados que das
casas-grandes.
Ascenso
Ferreira diz num poema que os engenhos da sua terra já pelos nomes faziam
sonhar. À parte a seiva lírica dessa afirmação pode-se dizer que a motivação ou
o impulso para o sonho não se dá só pelo que há de sugestivo na sonoridade das
palavras, mas também porque o seu universo, após a decadência do sistema
escravocrata e as ruínas dos próprios engenhos com suas casas-grandes,
senzalas, capelas e moitas, ficou sendo algo nostálgico, atávico, telúrico e,
em grande parte, idealizado. No seu caso, o substrato essencial é lírico. O
Jundiá foi a sua Pasárgada.
Que pintura
é a síntese dessa primeira etapa da pintura de Cícero Dias? Obviamente o painel
“Eu vi o mundo... ele começava no Recife”. Todo o horizonte de lembranças e
referências nordestinas se vê ali. É como história em quadrinhos materializando
em 15 metros de comprido algumas das situações comuns aos seus pais e avós e
que se impregnavam na alma de Cícero Dias.
A orientação
do painel é por cenas. Elementos rurais e urbanos se entreveem e se comunicam.
O canavial e o mar não distam muito no seu espaço porque de fato estão próximos
na Escada e no Recife. Isso também se reflete no uso que faz de cores tão
profusamente empregadas, como o verde e o azul. O canavial é menos um mero
retrato da plantação de cana-de-açúcar e mais o esquema, a síntese expressa em
cor. Do mesmo jeito que as personagens aparecem como tipos, não representações
em esforço de exatidão. O elemento vegetal da cana se dilui na cor, se abstrai.
As pessoas também superam o simples status de gente, pois os personagens do
drama são seres humanos em diálogos com animais – sobretudo – e com as plantas
e os objetos. Já é um Cícero Dias abstrato o que se prefigura nessas aquarelas
das décadas de 20 e 30.
A técnica é
menos do pintor e mais do desenhista, do caricaturista, do ilustrador. No
entanto, o efeito dos desenhos é plástico, não gráfico. As representações não
pretendem retratar, mas sugerir, indicar, evocar, invocar. Ele recompõe no
painel “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”, por exemplo, um tempo, mas um
tempo que se cristalizou em espaço, que se configura em coisas vivas no seu
estágio de cultura. Não será a natureza pura nem o encanto selvagem o que se
escancara nas imagens. Entretanto, o que captura da história o olhar não é
distante nem desinteressado. “Eu vi o mundo... ele começava no Recife” parece
autobiográfico até o cerne. É o mise-en-abîme de Cícero Dias.
Como se fosse um conjunto de quadros sem moldura dentro de um imenso panorama
que se move: cosmorama, diorama, cinema.
Como foi a
recepção da pintura de Cícero Dias pelos seus amigos modernistas? Foi, em
geral, muito positiva, obviamente, como comprova Manuel Bandeira na carta a
Mário de Andrade em que noticia a primeira exposição dos seus quadros na
Policlínica, no Rio de Janeiro, com elogios de colegas como Oswaldo Goeldi, Di
Cavalcanti e Ismael Nery. O próprio Bandeira, que enxerga no que faz o seu
conterrâneo uma “arte profundamente sarcástica e deformadora”, opina que há
“muita verve e imaginação nele”.
Deve-se, no
entanto, atentar que a admiração de Manuel Bandeira por Cícero Dias se
restringirá às aquarelas que ele pinta nesse tempo e até à década de 30. Foi o
poeta um dos mais explicitamente críticos quando Cícero Dias passou também a
fazer pintura abstrata, a partir da década de 40. Numa crônica em que rememora
o seu convívio com Jaime Ovalle, lembra a casa deste, e diz:
“A saleta de
entrada, minúscula e entupida por um piano de cauda, fora decorada com painéis
de Cícero Dias, pintados em lona. Uma das melhores coisas do malogrado artista
pernambucano, hoje inteiramente absorvido por interesses comerciais e a caminho
de se tornar um desses ‘capitães de indústria’ celebrados nos editoriais
doutrinários da grande imprensa de opinião. Os painéis da casa do místico davam
a impressão de que neles o menino-de-engenho da pintura brasileira estava se
despedindo daquela infância meio louco que era a alma da sua arte tão longe do
mundanismo em que se atolou depois. Um desses painéis representava o Brasil
abestalhado roncando ao lado de uma mulata nua debaixo dos Arcos da Lapa;
outro, a Virgem da Lapa, vestida de noiva, – e pelo vão da janela se via uma
paisagem lunar com uma dessas igrejas que existem em todo o Largo da Matriz das
cidades do interior. Foi sem dúvida essa figura de Cícero que inspirou o verso
de Schmidt: ‘A lua de Londres roubou meu noivo...’”
Outra vez,
Bandeira, ao criar uma “nova gnomonia”, classificou as pessoas nestes grupos:
Dantas, kernianos, onésimos e mozarlescos. E escolheu um tipo para Cícero Dias:
“O grande
pintor Cícero Dias, apesar de se revoltar com a classificação (pretende ser um
Dantas, embora dê em geral a impressão de Kerniano) é afinal de contas
Mozarlesco, como se depreende bem das suas luas lacrimejantes e da concepção da
morte nos seus quadros.”
Para
satisfazer a curiosidade do leitor, há que se dizer o significado de cada um
desses nomes na classificação proposta por Bandeira, os “principais tipos de
caracteres humanos”:
“Os Dantas
são os bons (toda gente quer ser Dantas), os homens de ânimo puro, nobres e
desprendidos, indiferentes ao sucesso na vida, cordatos e modestos, ainda
quando tenham consciência do próprio valor”; “Os Kernianos são impulsivos por
excelência. Indivíduos de bom coração, capazes de grandes sacrifícios pelos
outros, deixam-se no entanto arrastar às vezes à prática dos atos mais
condenáveis, não por maldade, mas por um impulso irresistível de cólera”.
“Difíceis de definir sem magoar toda a classe,
esses caracteres tão interessantes que são os Mozarlescos. Em primeiro lugar –
porque são assim denominados? Os Mozarlescos são pessoas que se exprimem ou
obras de molde a fornecer aos que os observam uma impressão de coisas
consideráveis, ao que todavia não corresponde o conteúdo das suas palavras ou
das suas ações.”
Numa crônica
intitulada “Notícias de Cícero”, a propósito de uma carta que recebera do
pintor – nessa época já em Paris – Manuel Bandeira trata de fazer considerações
sobre a sua pintura e a defendê-la de forma muito honesta, inclusive quando
aponta o que para ele, o poeta, seriam os defeitos:
“O Rio não
deve ter esquecido aquele estranho rapaz que um dia expôs na sala térrea do
derrubado edifício da Policlínica, à Avenida Rio Branco uma abracadabrante
coleção de aquarelas, diante das quais o visitante incauto era desde logo
tomado por uma impressão de atropelamento. Quase toda a gente passou a
considerar o rapaz como louco, o que até certo ponto justificavam os seus
bastos cabelos revoltos e a expressão meio alucinada dos seus grandes e belos
olhos negros. Creio que o próprio Juliano Moreira tinha para com ele aquele
paternal carinho que dispensava sempre aos que suspeitava iriam acabar no
casarão da Praia Vermelha. Cícero viveu alguns anos no Rio, progrediu muito
dentro da sua técnica absurda e que entrava até a tinta de escrever, e ganhou a
admiração e a amizade todos quantos procuram a poesia na vida e estão se
ninando para tudo o mais. Cícero fez pintando o mesmo que fez José Lins do Rego
escrevendo: desentranhou a poesia assombrosa dos meninos de engenho. Há muita
gente que diz ao olhar as pinturas de Cícero: - Qualquer criança faz isso. É um
engano, erro de quem observa mal os desenhos das crianças. (...) A técnica de
Cícero Dias pode parecer deficiente mesmo a um artista liberto de toda rotina
acadêmica. Mas aqui seguramente não é aquele desequilíbrio a que nos referimos
atrás que gera a profunda impressão das suas criações no espírito dos que olham
sem preconceitos. Essa impressão é a de um lirismo surpreendentemente ágil e
versátil, o qual está constantemente reorganizando a realidade cotidiana com
alguns dados humorísticos ou pressagos que escapam à generalidade dos homens e
no entanto vincam com a agudeza das superstições uma sensibilidade
extraordinária como a de Cícero. O que há de infantil nessa sensibilidade é a
atitude ingênua diante desses aspectos humorísticos e mal-assombrados da vida.”
O restante
da crônica é uma comovida rememoração do que ele chama “o mundo de Cícero”,
“mundo em que tudo é possível”, em que imperam outras leis. Essa crônica é
cheia de empatia com o pintor, aproximando-se ambos no espaço comum a ambos: o
da infância, o dos engenhos de Pernambuco, e de um Rio de Janeiro boêmio e
quase idílico.
Um outro bom
momento de apreciação crítica de Bandeira aparece não numa crônica, mas numa
carta ao sociólogo Souza Barros em que agradece e comenta uma foto de um quadro
de Cícero Dias. A carta é datada de 3 de novembro de 1948:
“Grande
prazer me deu você enviando-me pelo Waldemar Lopes a fotografia do quadro do
Cícero. Não o conhecia (o quadro) e achei-o ótimo. Devo dizer-lhe que esse é o
Cícero que eu prefiro. As cenas que ele faz agora são muito bonitas, sim senhor,
mas todas as terras por esse mundo afora, há dezenas de sujeitos que as fazem
também e tão bem. Mas o Cícero de antes de Paris era único: só no Chagall se
encontrava algo de parecido e o Cícero não se inspirava de Chagall; se
inspirava do nosso Pernambuco e de sua infância cheia de assombrações. Tenho
esperança que esta fase abstracionista passe, depois de lhe ter servido de
escola, de disciplina, e ele volte à velha mina, para extrair o velho ouro com
técnica aperfeiçoada.”
O que
Bandeira profetizou efetivamente aconteceu, mas já na década de 60 ou, no
máximo, nos finais dos anos 50, quando Cícero Dias voltou a pintar figuras,
principalmente de pessoas. Estas já não seguiam mais o espírito anárquico e
sarcástico da década de 20. Mostravam outro tipo de técnica e resultado. Ao se
observar cada um dos quadros pintados a partir dessa década e que o artista
exercitou até quase ao fim da vida, é curioso notar como não há rupturas, mas
lógicas transições de uma fase em outra (não de uma fase para outra),
de uma época em outra, de um tempo a outro tempo.
O pintor Cícero Dias parece seguir em pintura aquilo que o apóstolo
Paulo recomendava aos cristãos: “Quando era criança, falava como criança,
pensava como criança, raciocinava como criança; quando cheguei a ser homem,
deixei as coisas de criança agora inúteis”.
Assim, não
pinta, já maduro, em Paris e em Lisboa, os mesmos motivos dos seus anos de
boêmia radical no Recife e no Rio de Janeiro, ou já não os trata de igual
maneira. Apesar disso, há que se ver grande coerência estética no que pintou.
Não se encontra algo de tão diferente entre cada um dos momentos de sua pintura
de modo a criar um abismo entre essas etapas. O modo de ver o mundo não se
altera nem grandemente o de reapresentá-lo e dá-los a ver.
Quando, após
a Segunda Guerra Mundial, ele começa a pintar uma série de quadros, sobretudo
em Lisboa, e constrói uma etapa de sua obra a que os seus familiares e amigos
vêm chamando de “vegetal”, isso não representa uma ruptura imediata com o
passado nem a apresentação extrema do abstracionismo que terminará por abraçar.
Cícero Dias, na verdade, nunca foi um abstracionista de credo e dogma porque
também não o foi, decerto, de nenhuma escola ou corrente estética. O que pinta
em Lisboa serve como indicador de uma transição que se opera no que faz. Sem,
no entanto, distanciar-se efetivamente no que há de intrínseco na composição. O
que há de novo nessa fase vegetal? Efetivamente não é o vegetal, pois, na
profusão de figuras anárquicas dos seus quadros da década de 20 e 30 há uma
obsessiva presença de árvores, de plantas, de flores. A partir de Lisboa, ele
vai individualizar esses motivos e compô-los menos de um modo a lembrar certo
surrealismo e primitivismo, e mais o cubismo e certo tipo de brutalismo. O mesmo
humor permanece. O humor absoluto (mais até do que o fantástico) é o que
enforma e dá o sentido fundamental da arte de Cícero Dias.
Se fosse
útil comparar os primeiros tempos da pintura de Cícero Dias nutrida do mesmo
húmus de amigos como Gilberto Freyre e José Lins do Rego, seria conveniente
dizer que, na década de 20, predominam os motivos de engenho (das
casas-grandes) e, na de 30, o universo do sobrado é o que surge com maior
destaque.
Claro que
não se afirma com isto que o Rio de Janeiro e o Recife estivessem ausentes das
aquarelas da década de 20 nem que os engenhos rurais já não motivassem os seus
óleos da década de 30. A questão é outra. Se para a pintura se usasse o
vocabulário de cinema, seria adequado dizer que as locações preferidas na década
de 20 são de tomadas externas, e as de 30, as de cenários e interiores.
Há elementos
comuns a ambos os momentos da sua pintura: um deles, talvez o mais importante,
é o que se poderia chamar de eterno feminino, a sexualidade à flor da pele. Nos
sobrados o ritmo é estático: os corpos estão nus, mas observam e são
observados. No erotismo solto dos anos 20 os corpos se penetram, se mesclam,
amam a proximidade inteira.
A cultura
também se faz notar mais na década de 30: a prostituta – quase sempre morena –
se disponibiliza em cenários bem arrumados. Como se o cristianismo
“organizasse” o pecado para torná-lo menos culposo. As cenas são principalmente
de interiores de casas (há mesmo uma pintura intitulada “Interiores”). O espaço
é a casa vista por dentro, por mais que haja uma dialética casa-rua,
dentro-fora. Nas aquarelas de 20, o espaço é a rua, o mundo exterior, seja isto
um cenário da natureza – cana-de-açúcar, rua, mar, rio, plantas, flores, folhas
e o barro em estado puro – ou de uma cidade: as montanhas do Rio de Janeiro, o
bairro de Santa Tereza (a rua Aprazível, onde morava o pintor). A própria morte
é representada com essa lógica: na década de 20, é o cortejo, o enterro quase
como uma festa na rua; na década de 30, é corpo dentro da casa, com a família reunida
a velá-lo.
Nos engenhos
o ritmo é dinâmico – os corpos se conectam sempre. Há paganismo e libertinagem.
Os corpos estão muito próximos de uma naturalidade e de certo estágio selvagem.
O homem se move em intimidade com as plantas, bichos, rios e matas, de tal
maneira que quase não é possível falar de uma formação sexual masculina nos
engenhos de cana-de-açúcar sem falar-se de jovens que copulam com bananeiras e
com vacas. De garotos que espiam moças nuas em banho, ou da própria família nua
em banho. Isso, aliás, foi comum não só num espaço determinado, mas durante
todo um tempo, e neste caso é o tempo que aproxima e torna comuns os espaços.
Um exemplo do ritual de banho é bem explicitado numa passagem de Tollenare.
Tempos
depois da cena contada por esse viajante, o poeta Manuel Bandeira, ainda
criança, no Recife, viu uma cena que rememora quando adulto e ficou tão marcada
que definiu como de “alumbramento”: moças nuas no banho. Os banheiros de palha
tão comuns ajudaram a compor o cenário da Pasárgada, isto é, do mundo mítico
que inventou ou recriou o poeta.
O sexo no
engenho parece mais livre e solto. Numa aquarela da década de 20, Cícero Dias
mostra um homem cujo sexo se crava, se confunde com a própria terra. Já nos
quadros dos anos 30, é cada vez mais comum a cena íntima, o boudoir,
o espaço fechado, uma verdadeira sociologia da alcova se pode tirar do que
retrata desse tempo.
Os tons da
morte também se diferenciam de uma época para outra, ou, de um olhar para
outro. A morte aparece ritualizada em uma atmosfera muito escura, como em
“Família de luto”. Este quadro, aliás, numa morfologia de tons, poderia fazer
par com outros como “O cortejo” (foi, aliás, este quadro que chegou a ser
pensado pelo pintor, ainda com o título de “O enterro” para ser exposto no
Salão Revolucionário, mas terminou substituído por “Eu vi o mundo... ele
começava no Recife”).
Não está
infensa, como se vê, a pintura de Cícero Dias – que tanto se mostra como uma
exaltação extremada da vida – ao grande tema da morte. Se a vida é a expressão
talvez mais bem acabada da transcendência, a morte o é da presença imanente do
mistério. A sua feição mais crua e universal. No culto cristão, um enterro é de
fato um cortejo, e em alguns casos, quase um corso. A procissão que celebra a
vida também soleniza a morte. Com o carnaval se dá o mesmo. E nada disso difere
muito de uma parada militar. Nos quadros de Cícero Dias a morte aparece menos
como a simples exposição de corpos mortos, e mais como uma ritualização, até
nos títulos dos seus quadros.
Junto com os
quadros em que a morte assume valor e características semelhantes devem ser
postos os quadros de temática religiosa católica. “Procissão de ramos” nesta
exposição é um deles. Na verdade, o elemento religioso, de maneira implícita,
está sempre presente em sua obra. Seria mais justo tanto dizer religioso e
místico quanto mítico, porque, se no aspecto puramente descritivo e simples
pode-se contar uma infinidade de pequenas igrejas nos seus quadros iniciais,
também há um quê de magia e mistério, uma aura noctâmbula em vários quadros
desse período – o escuro e não só o luminoso compõe o Cícero Dias desses tempos
de pândega e festa.
As cenas
interiores e paisagens urbanas, do Recife, resultaram em algumas de suas
melhores pinturas. “Visão romântica do porto do Recife” extrema-se em
vermelhos, azuis, amarelos e verdes muito bem distribuídos, quase a lembrar a
motivação de certos quadros de Post do século XVII ou gravuras de diversos
pintores do século XIX.
Há de tudo
nessas crônicas de costumes em forma de pintura, mas as cenas são as
recorrentes: mulheres e flores, barco, música, a arquitetura, o casario, os
telhados, os elementos vegetais, mas todo o horizonte é dominado, num extremo,
pelo casario e o mar, e, no outro, pelo homem fascinado pelo “eterno feminino”.
A dança, o
teatro e o voyeurismo sexual estão em “Três meninas”, que se completa em
“Menina dançando”. Do mesmo grupo ou espírito de interiores, mas com vibração
própria, são os quadros intitulados “Sonoridade da Gamboa do Carmo” e “Gamboa
do Carmo no Recife”. Antes de prosseguir, convém definir o que é gamboa.
Trata-se de um regionalismo do Nordeste: quando a maré está alta, a água
penetra por esse estreito que se chama gamboa, e por ele se esvazia, quando a
maré baixa. Numa cidade de marés, rios e mar como o Recife, fica fácil de
entender a importância de uma gamboa num tempo em que os aterros ainda não
haviam alterado a sua feição.
Gamboa ou,
mais precisamente, o seu sinônimo, Camboa do Carmo é rua do centro – bairro de
Santo Antônio – muito próxima da igreja do Carmo.
Como
entender a atmosfera boêmia e francamente sexual desses interiores da Camboa do
Carmo na pintura de Cícero Dias? Talvez um pouco de biografismo explique melhor
isso: Na década de 20, o escritor Gilberto Freyre chegou a manter uma garçonnière nessa
rua. O apartamento era frequentado por seus amigos como Antiógenes Chaves e,
provavelmente, o próprio Cícero Dias. No livro Tempo morto e outros
tempos, Gilberto Freyre fala da visita do poeta Manuel Bandeira a esse
lugar de encontros. Estas anotações são datadas de 1926:
“Manuel
Bandeira está no Recife e está em nossa casa: na casa do meu irmão Ulisses.
Para Rudiger e Jane é que o ano passado preparamos cômodos um tanto no estilo
dos Greenwich Vilage e do Quartier Latin no terceiro andar da Camboa do Carmo,
onde temos o nosso anexo urbano. Tem-se lá de cima uma vista única de alguns
dos mais velhos telhados do Recife, que Ulisses tem fotografado a meu pedido,
do mesmo modo que vem fotografando aquelas janelas mouriscas, varandas de ferro
trabalhado, interiores de igreja. O Recife está sendo desmanchado pelos
‘progressistas’ mais do que pelo ‘progresso’ e é preciso que fique ao menos em
fotografias e desenhos. (...) Grande farra na garçonnière da
Camboa do Carmo com Bandeira poeta. Bebeu um pouco e ficou tão alegre que deu
para cantar. Voz detestável. Lá estavam Ulisses, meu irmão, José Tasso,
Antiógenes Chaves. Vê-se que o poeta esqueceu-se da tísica e das tristezas e
ficou por toda uma noite quase vinte anos mais moço do que é. Muito feliz entre
mulatas. As mulatas não tão felizes com ele.”
Um outro
aspecto importante a destacar na diferenciação do que pinta Cícero Dias na
década de 20 e na de 30 é quanto à técnica e ao material. Enquanto nos anos 20,
ele se ocupa principalmente de aquarela (e por vezes nanquim) e papel, na de 30
é de óleo e tela principalmente que se serve.
Uma coisa
que parece certa na diferenciação progressiva que ocorre nos óleos da década de
30 em relação às aquarelas da década de 20 é a disposição do quadro: cada vez
mais ordenadas e lógicas são as figuras. Há, no entanto, exceções. Em “Família
debaixo de árvore” (aquarela), “Repressão operária” (aquarela) e “As primeiras
notas” (óleo), atribuídas à década de 20, a orientação das figuras nada tem da
anarquia com que se apresenta quase a totalidade das figuras que Cícero Dias
pinta nos anos 20 e em que o traço, o desenho, a dinâmica dos corpos são mais
importantes do que os contornos e volumes. Com exceção de “As primeiras notas”,
óleo de 1921, um óbvio exercício de pintura (o pintor tinha nessa época 14
anos), as outras duas surpreendem e “destoam” do conjunto não tanto pela
temática – operários, em um, e família pobre em outro – mas pela preocupação
quase acadêmica do desenho, lembrando uma fusão impossível de Di Cavalcanti com
Candido Portinari.
Nas pinturas
ou aquarelas de 30, sim, há uma preocupação maior com a lógica e a arquitetura
das imagens. A arquitetura, aliás, está presente em muitos outros quadros. Há
sempre uma casa, uma janela, uma porta. “Retrato de Manuel Bandeira” é um
exemplo da fusão de dois mundos – o rural (bem apresentado pelo verde e o
quadro idílico de moça nua debaixo de árvore, plantas e animais) e do urbano (o
casario soberano). O poeta retratado medeia os dois mundos, rurbanos.
Na verdade, trata-se quase de uma materialização da sua Pasárgada (cidade real,
da Pérsia, mas reinventada poeticamente como um lugar de liberdade e delícias).
A uni-los há o lúdico (meninas de vermelho – mesma cor da casa – brincam), e as
flores na mão do poeta (as flores em buquê são elementos presentes em
praticamente todas as aquarelas, sejam de 20 ou 30).
Nestas
pinturas que convencionadamente podem ser chamadas de “interiores” há duas
orientações básicas: a paisagem e o retrato. A paisagem é ora urbana, como
“Recife lírica”, e “Visão romântica do porto do Recife” (no fundo um quadro da
mesma inspiração), ora de temática apenas lírica: “Moça na paisagem”, e de
“Moça e marinheiro”, um casal (outro estudo por fazer é dos casais na pintura
de Cícero Dias), o casario e um jarro de flores dão o adorno lírico o encanto
sexual do viajante com a prostituta. E ainda cenas rurais, como “Meninas no
trole de vara”. Outro didatismo aqui é necessário para explicar o regionalismo:
a palavra provém do inglês trolley. Trole, no Nordeste é “pequeno
carro descoberto, ou plataforma sobre rodas, que desliza sobre os trilhos nas
ferrovias, movido a força humana”. Tudo muito diferente do significado que a
palavra assume em algumas cidades do interior do Sul do Brasil, onde significa
um tipo de coche primitivo ou rústico.
Um outro
quadro é “Cavaleiro e moça na janela”. A moça na janela é um topos marcante
da pintura de Cícero Dias. Outro é o da figura que observa. O tema da mulher na
janela é muito constante, e também da mulher sentada a ler no interior de um
quarto. Nesse mesmo esteio rural tem-se um quadro como “Figuras, barco e
canavial”.
Em síntese,
deve-se dizer o que há de comum entre todas essas aquarelas pintadas nas
décadas de 20 e 30, de modo a compor um esboço de morfologia do que pintou
Cícero Dias. Antes de tudo, todas essas pinturas zelam pela deformação (em grau
mais radical as de 20), nenhuma delas é realista, nenhuma procura a semelhança
pura com o real, embora se possa distinguir o elementar em cada uma das cenas
pintadas, como no estágio mais básico do desenho. Todas as aquarelas recriam ou
rememoram três cenários fundamentais: o primeiro é o do Engenho Jundiá (onde
nasceu o pintor), a cidade de Escada, onde está localizado, ou, de modo mais
geral, a zona da mata, onde estiveram os engenhos de cana-de-açúcar de
Pernambuco.
O
segundo cenário é o Recife. Menos o Recife típico e monumental (como pintado,
por exemplo, por um Manoel Bandeira, homônimo do poeta) e mais o Recife da
paisagem (o mar, a praia, sobretudo) e da alcova. O terceiro cenário é o Rio de
Janeiro: aqui se dá a apresentação talvez mais anárquica da perspectiva e do
espaço. Mas é também um Rio bucólico, meio suburbano. Do bairro de Santa
Tereza, onde viveu o pintor, um Rio por assim dizer mágico, em que a poesia faz
com que as coisas mais miúdas e cotidianas assumam certo ar de mitologia.
O erotismo,
o onirismo, o ludismo são comuns a todos esses três cenários. Há uma anarquia
deliberada na escolha e na disposição das imagens. Com tal esquematismo,
entretanto, não se deve deixar de relevar um aspecto muito importante na obra
de Cícero Dias: a sua clara unicidade. Mesmo que por comodidade ou didatismo se
possa dividir a sua produção por década (muitas vezes devido à impossibilidade
de se saber a data precisa de um quadro), não há, no aspecto formal alteração
significativa entre o que pinta na década de 20 e na de 30, por exemplo. Há
gradações, superações, evoluções. O espírito que o anima é o mesmo. No aspecto
temático e formal as primeiras alterações marcantes se darão a partir de sua
estada em Lisboa, durante o período da Segunda Guerra Mundial.
2. Verdes, vermelhos e azuis
A pintura de
Cícero Dias até a época da Segunda Guerra Mundial não sofre mudanças muito
relevantes. O jovem que perturbou até os modernistas do Rio e São Paulo e tanto
feitiço causou nos regionalistas das décadas de 20 e 30 no Brasil, quando se
mudou para Paris, no começo do Estado Novo, procurava novos ares, novas cores,
novos caminhos e novas oportunidades para a sua pintura.
O pintor que
expõe em 1938 em Paris e desenvolve um convívio boêmio e intelectual nos cafés
com espanhóis e franceses, era ainda o mesmo das imagens anárquicas que fizeram
o encanto dos seus amigos no Brasil. Quando um crítico francês diz “os
surrealistas terão com quem falar” é, além do reconhecimento de motivos
surrealistas ainda presentes na sua obra, como, em outros casos, de vários
outros observadores, uma tentativa de indexar uma pintura de difícil
classificação.
Será, no
entanto, na década seguinte e em plena guerra, que a pintura de Cícero Dias
encontrará outras virtudes. Se não estará livre do anedótico, do exótico e do
regionalismo será ou porque assim o verão sempre os seus críticos ou porque
teve os seus motivos para nunca abrir mão do humorístico, do típico, do geográfico,
do literário e, principalmente, do lírico e do lúdico.
“Mulher na
janela” é um quadro emblemático na obra de Cícero Dias. A mulher de azul
seminua contempla uma paisagem tropical. As cores são as básicas e poucas
derivações: azul, verde e um pouco de vermelho. A nitidez do contorno já indica
uma técnica mais apurada, uma preocupação com a estilização dos seus motivos,
uma paleta mais segura, tudo resultado de maior disciplina formal que o artista
vai buscar e encontra na Europa.
No entanto,
o lúdico, que é decisivo no seu estilo, não está descartado em obras desse
desenvolvimento por assim dizer mais formalizante. Ao contrário. Há até um
tímido exercício de metalinguagem, quando o pintor brinca com a ambiguidade de
certas aproximações ou semelhanças visuais dadas muito mais pelo olhar do
observador, perspectiva, ponto de vista ou organização espacial que pelo objeto
em si.
“Guarda-chuva
ou instrumento musical”, “Mamoeiro ou dançarino”, “Galo ou abacaxi” são quadros
que se configuram dos mais lúdicos, na já intensamente lúdica produção do
artista. São pinturas de transição: pode-se afirmar sem receio de erro. Os
próprios títulos com a conjunção alternativa indicam isso. Claro que há uma
ironia marota sem maldade num artista que nunca se notabilizou por fidelidade
ao real. É o anti-mimetismo por excelência. O que se deve sublinhar, no
entanto, é que a ambiguidade acentuada pelas telas “se inspira” nos elementos
cromáticos e não na aparência de cada uma dessas figuras – galo, abacaxi,
mamoeiro, dançarino, guarda-chuva, instrumento musical.
Um
guarda-chuva tem o ângulo habitual mudado, horizontalizado, para forçar uma
mimese com um instrumento de música. Guarda-chuva, aliás, que é um objeto
facilmente apanhado pelos surrealistas ou pré-surrealistas como Lautréamont
para pretextos expressivos. Foi Lautréamont quem definiu a própria beleza como
o encontro fortuito numa mesa de dissecação de um guarda-chuva e uma máquina de
costura.
Em
Pernambuco a associação de guarda-chuva com música ou, até mais, com dança,
nada tem de surrealista. O frevo, o tradicional ritmo do Recife, é muitas vezes
dançado com uma sombrinha – espécie de guarda-chuva de mulheres. Claro que o
termo guarda-sol é muito mais preciso; porém, este é muitíssimo menos usado no
Nordeste que guarda-chuva.
Quanto ao
quadro “Mamoeiro ou dançarino” também é menos surrealista ou bizarro do que se
possa imaginar. No máximo, talvez exótico. Neste caso, a ambiguidade provém não
da forma do fruto, mas do seu desenho, posicionamento no espaço. A forma própria
de certas árvores termina por sugerir uma nova “identidade”. No caso, o
mamoeiro tem o caule que imita as pernas de um magro bailarino. É a forma do
desenho o que sugere. No caso do galo ou abacaxi, o aspecto pitoresco é o que
mais se releva, não só porque a forma de algo que lembra outro algo, mas certos
aspectos geométricos da anatomia de um galo podem lembrar o abacaxi ou
vice-versa? Não. Num e noutro caso, é o lúdico, a ironia o que se tem com a
representação e a percepção da pintura.
Já se sabe a
valer o quanto o público valorizou no decorrer dos tempos a representação, a
exatidão, a mimese como indispensáveis à pintura: os modernos puseram isso em
xeque. Os surrealistas como Magritte de “Isto não é um cachimbo” levaram às
consequências mais radicais questões como essa de representação.
“Na praia” –
óleo de 1942 mostra um casal – mulher seminua: cabeça descoberta; homem de
branco, duplamente de chapéu, pois que leva um guarda-sol. Atentar que nesses
três quadros – “Mulher na janela”, “Guarda-chuva...” e “Na praia”, já não é o
desenho simplesmente o elemento de composição soberano, mas a luz. O uso do
branco e de cores suaves dá a “Na praia” certo frescor tropical, apesar do
calor intrínseco representado pelo sol e pelo mormaço. O branco da roupa de ambos
os personagens se dilui em luz; o chapéu e o guarda-chuva sendo de cor azul é
como se levassem um céu e o mar em si. As figuras de ambos (mulher inscrita em
casa – e o homem – mais próximo da água) estão protegidas do sol, que, aliás,
dissolvido se encontrará talvez nas cores do chão e do cabelo da mulher e em
certo contorno, mas não é representado.
Das pinturas
da década de 40 sobressaem estes elementos: cor e luz. A paleta engrossa, o
contorno se torna mais generoso. É evidente o “aprendizado” cubista na
disposição das formas. Já não se trata mais de tempo e espaço enquanto meios de
representação e figuração, e sim como um esgarçar, um transfigurar. Pela
primeira vez na obra de Cícero Dias é a pintura que dialoga consigo mesma.
O mise-en-abîme não se faz por quadros dentro de quadros, mas
por quadros que incluem cavaletes, e por cores que “conversam” com cores. As
mulheres já não contemplam simplesmente o mundo, como da janela, mas a si
mesmas – em outras – e a si mesmas – em espelho. Há menos autorretratos e mais
retratos da mulher amada. Mulher e pintura parecem ser uma só. E a pintura
estava em plena transição.
Quem
observar atentamente a trajetória de Cícero Dias logo se dá conta de que há
etapas bem marcadas na sua pintura. O primeiro momento e, para muitos, o melhor
e mais autêntico e original, é o das aquarelas. A pintura amplamente erotizada,
“com uma porção de imoralidades”, como disse Mário de Andrade, ou “surnudista”,
como definiu Gilberto Freyre, acompanha o pintor até a sua mudança para Paris. Mesmo
na primeira exposição que ali realiza, em 1938, o espírito ilógico e absurdo
das situações livres que põe em quadros ainda está presente. A primeira mudança
substancial começa a ocorrer no período de transição, que é a sua estadia em
Lisboa, coincidentemente um período de transição, pois durante a Segunda
Guerra.
A decisão de
se fixar em Lisboa nesse tempo e não na Suíça ou nos Estados Unidos (as suas
duas outras opções viáveis) selou o destino da arte de Cícero Dias. Nesse
tempo, que perdura todo o período final da Guerra, Cícero Dias trabalha na
embaixada do Brasil no país que o colonizou e definiu alguns dos traços mais
característicos de suas raízes. O contato com pintores como Almada Negreiros
(companheiro das aventuras vanguardistas de Fernando Pessoa) e Carlos Queiroz e
muitos outros serve de estímulo e apoio ao desenvolvimento de sua obra.
Nos quadros
que pintou nesse tempo se percebe os resultados de sua “pesquisa”, dos estudos
dos seus meios (pensava em organizar nesse tempo um dicionário de cores, que
deixou inconcluso). Percebe-se uma busca de maior sistematização da técnica e
uma inserção mais profissional no circuito das artes. Devido às carências do
tempo de guerra é obrigado muitas vezes a preparar os seus próprios materiais
para as telas e até improvisá-los. Com isto, ele aprimora a intimidade com os
seus materiais.
Assim é que,
quando retorna a Paris, o que se tem é um pintor que já não pinta mais os
mesmos motivos da juventude anárquica de Escada, Recife e Rio de Janeiro. Foram
dois anos apenas em Lisboa, mas de tal modo intensos que ele, ao retornar à
França, estará pronto para novos voos estéticos.
O pintor
maduro – tem, em 1945, quando volta a Paris, 38 anos – não está à procura de
escandalizar ninguém. Nem almeja chocar os salões burgueses, como os
vanguardistas de antes. Termina, entretanto, por surpreender os seus amigos com
a sua guinada para a arte dita abstrata. Ele que já desconstruía e deformava
desde as aquarelas vai ao encontro de um cromatismo intenso. O seu tropicalismo
não fala mais pelas cenas, mas pela atmosfera pictórica que consegue transmitir
com as suas novas cores e formas. É como se o “dibujo” fosse agora “diseño”. O
traço livre cede vez ao projeto. O literário na sua arte fica menos explícito.
Um Cícero
Dias menos primitivo, mas igualmente instintivo, é esse que volta pra sempre a
Paris. Curiosamente, não se pode dizer que o rumo abstrato represente uma
ruptura. Ele continua a fazer o que se sempre fizera. A sua inspiração continua
idêntica. Os valores também. O que muda é a forma, a estrutura.
A verdade é
que, não tendo sido nunca um realista, um acadêmico, nem sequer um modernista
tão canônico a ponto de seguir alguma cartilha à risca, Cícero Dias escolheu,
desde o início de sua carreira, um caminho muito pessoal em arte, por mais que
essas escolhas sempre estejam limitadas ao tempo e às circunstâncias. Em Paris,
foi bem acolhido, e, lá, nunca se afastou das raízes de Pernambuco. Mas, no
Brasil, alguns intelectuais viram na opção pelo abstracionismo algo de simplesmente
internacionalizante, um cosmopolitismo do tipo que muitos consideraram uma
verdadeira enfermidade de Joaquim Nabuco. Os mais críticos julgaram encontrar
no seu abstracionismo uma rima ideal para oportunismo.
Quando é que
nasce o abstracionismo na obra de Cícero Dias? Pode-se que estava latente desde
as aquarelas. A própria fase chamada de “vegetal” não é uma descoberta sua em
Lisboa, mas um aprofundamento do que já vinha fazendo no Brasil. Não é possível
ver uma só de suas aquarelas (ou dos seus primeiros óleos) desprovida de flor,
folha, planta. O que se dá em Portugal é uma melhor sistematização dos seus
meios. A diversificação de certos motivos de um repertório não muito largo, os
seus de sempre.
A geometria
no espaço, por exemplo, que antes se observava quase tão somente num ou noutro
teto dos casarios tão frequentes na sua obra (inclusive na juventude) ou de
modo sutil num piso, num gradil, num jardim, numa praça, num rendilhado de
roupa ou num detalhe de um móvel etc., a partir de Lisboa vai-se despindo cada
vez mais de qualquer vocação (que ele nunca a teve) para a semelhança.
A mudança se
verifica até no modo de batizar os quadros. A palavra “Composição” é a mais
frequente. “Composição” é tanto um guache de 1951 – em que um casario de várias
cores tem como contraponto folhas exuberantes – quanto vários quadros de um
abstracionismo mais ortodoxo. O pintor faz questão de chamar a um determinado
quadro – um óleo sobre placa –, também de 1951, simplesmente de “Abstração”. É
o Cícero Dias da metalinguagem o que aparece a partir da década de 40. Quem
sabe o seu interesse por isso tenha nascido da vocação jamais consubstanciada
em diploma pela arquitetura.
Tudo a
partir das abstrações de 1950 adiante vai se tornando mais e mais geométrico e
decorativo. O que havia de literário cede vez a uma pintura pura. É pintura de
grandes blocos de cores distribuídas na maioria das vezes em figuras planas
como paralelogramos. As cores são as suas características ou
favoritas – com predomínio do vermelho e do azul, e de algumas tonalidades mais
escuras – não muitas. Mas, o verde, ainda tão soberano nas aquarelas, nos
primeiros óleos figurativos e nos seus primeiros abstratos, já não tem o mesmo
protagonismo absoluto.
A abstração
em Cícero Dias mais do que a vitória simplesmente de uma cor ou de uma
determinada tonalidade, representa, sim, o triunfo indiscutível da luz. Claro
que há uma busca de regularidade, de simetria, de constância, e nisso o
abstracionista é o antípoda do boêmio e anárquico dos anos 20 e 30. Equilíbrio
é agora a palavra de ordem. Até em quadros que se chamarão “Entropias”. Os seus
amigos do tempo do modernismo têm saudade de um pintor aparentemente ingênuo,
um meninão. Mas a consciência o guia – sempre guiou – a buscar
variações para a sua arte. A diferença agora é que o caos que antes ordenava o
mundo agora está bem ordenado, como se metrificado.
Que pintor
abstrato é Cícero Dias? Não é certamente o do tipo esotérico, nem
neoplasticista ou suprematista, embora talvez se encontrem fragmentos disso, daquilo
e de outros dos tantos abstracionismos, porventura num ou noutro dos seus
quadros. Há, na verdade, mais de um momento abstrato em Cícero Dias. No
primeiro, tanto existem elementos líricos e musicais como de figuração ainda
não de todo abandonada (aliás, ele nunca vai realmente deixar de pintar
figuras). É um lírico e um orgânico que convivem nele em sintonia e em
harmonia. O que fez nas décadas de 40 até 60 também o aproxima do informalismo
e dentro desse subgrupo o que pintou na sua primeira etapa em Paris, depois da
Segunda Guerra, costuma ser classificado como “Abstração lírica”.
Com a sua
pintura abstrata ocorre o mesmo que com aquela de pessoas e paisagens: os temas
e as suas expressões sofrem uma ou outra variação no decorrer do tempo, mas ser
alterar a sua unidade essencial que é tanto cromática quanto temática. Depois
das etapas prévias, três segmentos principais podem ser detectados nos seus
quadros abstratos: os líricos, os geométricos e os entrópicos.
Afortunadamente,
Cícero Dias nunca foi um dogmático – nem quando pintou pessoas, casas, bichos,
plantas, objetos, mares, rios, sóis e luas nem quando “construiu” com cores
linhas os seus sólidos abstratos e concretos. Nesse campo da linguagem e da
abstração, convém ler o que escreveu Octavio Paz:
“Depois do
classicismo dos primeiros abstracionistas e do romantismo do ‘expressionismo
abstrato’, nos faz falta um maneirismo, o barroco-abstrato”.
Talvez seja
nesse barroco que se deva incluir o abstrato de Cícero Dias. No que pintou não
se encontra nem o silêncio, de Mondrian, nem o gritode
Pollock, referidos por Paz, mas quem sabe um sorriso, um riso, algo de solar e
limpo, mas que não recusa os contrastes. O método para situar bem os seus
quadros abstratos obrigará o observador a, antes de tudo, explicar de modo
convincente o seu trabalho com a cor. A tarefa é mais difícil do que parece,
não somente no seu caso, mas o de uma morfologia da cor em geral, como bem
refletiu Wittgenstein:
“Se houvesse
uma teoria da harmonia da cor, talvez começasse por dividir as cores em grupos,
proibindo certas mesclas ou combinações e permitindo outras. E, como na teoria
da harmonia, suas regras não se justificariam”.
3. La recherche du temp perdu
Se as luzes,
as cores do Nordeste dão um sentido tão original e único às pinturas abstratas
de Cícero Dias, deve-se dizer que a união dos motivos regionais à técnica mais
desenvolvida na Europa resultou numa pintura em que a beleza foi sobrepujando
os motivos simplesmente expressivos. A volúpia e a luxúria das primeiras décadas
de sua pintura cedem vez, passo a passo, a uma calma, de “emoção relembrada em
tranquilidade”. Como num diagrama lógico: o Cícero Dias que estabelecia a tese
com suas figuras sem freios dos primeiros anos de pintor, e definiu a antítese
em figura nenhuma da etapa abstrata, termina por encontrar a síntese, a partir
da década de 60 (ou no final na de 50, dependendo do período em que se date o
seu retorno à figuração).
Quando volta
a pintar pessoas, coisas, plantas, casas e animais, é como se dissesse, como
Castro Alves: “Natureza, eu voltei! Eu sou teu filho!”. Pródigo em imaginação e
memória. O que ele pinta tem de novo motivação explicitamente brasileira,
nordestina, pernambucana. A um grande panorama como “Recife lírica” corresponde
um quadro como “Seresta”. Lá estão a arquitetura (mansões vermelhas, rosas e
azuis), a música (um homem toca violão), barco e rio, a vegetação exuberante,
mulheres – uma delas seminua, outra com espelho. Tudo, no entanto, é muito
discreto e quieto.
Sim, as
flores também voltaram. Estão mais em jarros do que nas mãos das amantes, como
era mais comum nos anos 20 e 30. Ao invés da mulher na janela ou na cama, elas
estão com os seus maridos, em passeio pelas ruas, repousadas num jardim, em
confraternização com os vizinhos, ou diante de espelhos.
Há uma tela
dessa fase intitulada “Nostalgia”. Poderia o nome servir para quase tudo desse
momento de Cícero Dias. Momento de retorno, de evocação. O menino buliçoso cede
vez ao homem bem vestido. Tudo é bem comportado. O clima é familiar e doméstico.
Com todo o
risco do anacronismo quando se usa um termo de significado histórico preciso
para outro contexto, não há dúvida de que esses quadros em que Cícero Dias
retoma a representação e elege cenas familiares como os motivos principais
exprimem um surpreende veio rococó na expressão.
Rococó,
note-se bem, sem nenhuma conotação pejorativa, e sim metafórica (de modo
nenhum, se deseja evocar aqui pinturas suaves, pastel claro etc.). Rococó antes
de tudo pela ênfase decorativa que emana dessas pinturas. Não há ali as
“rochas” (roccaile, de onde se deriva o nome rococó) nem
vários dos aspectos obviamente restritos àquele movimento do século XVIII. Nem
há conchas. Mas os elementos vegetais e os jardins estão em profusão.
Se há um
laivo rococó nessas pinturas idílicas de Cícero Dias é pelo protagonismo da
elegância, que nunca foi uma característica das suas primeiras aquarelas.
Rococó pelo intimismo e pela delicadeza. Também o hedonismo e a sensualidade
estão aí nos seus óleos. Só que, ao invés das festas da corte e do cortejo
erótico, tem-se, por vezes, uma seresta humilde de província, como no já citado
“Nostalgia”, e outro exatamente chamado de “Seresta”.
No primeiro
– “Nostalgia” – há um grupo não muito numeroso de pessoas num cenário bucólico,
um verdadeiro locus amoenus, com música (um homem toca um violão e
se veste formalmente – os trópicos, onde se passa a cena, costumam ser
quentes). Pelas características do vestuário e disposição familiar a cena
repete ao final do século XIX ou começo do XX. Chapéu, bengala, por exemplo,
eram objetos obrigatórios da indumentária pernambucana das classes bem situadas
economicamente nesse período referido, mas caíram em desuso. Note-se também o
detalhe do desenho onde estão postas as flores.
A igrejinha
num plano elevado e o mar ao fundo das casas coloridas complementam a paisagem
com figuras. Há elementos lúdicos a valer: brinquedos de criança, mastros
enfeitados. A mesa está prefigurada quase como uma natureza-morta. O conjunto
colorido é singelo. O casal que parece receber todas aquelas pessoas está
sentado de costas para o observador e de frente para os seus amigos. As figuras
não são “retratadas”, são esquemáticas. Tudo está organizado de modo a sugerir
um tempo mais que um espaço, ou um espaço de tempo que já passou.
Parece uma
volta nostálgica de Cícero Dias às décadas de 20 e 30, como motivação, mas a
figuração rememorada não parece falar do presente dessas décadas. Fala de
antes. Nesses quadros estão a arquitetura, o elemento líquido (dado geralmente
pelo mar ou pelo rio, ou em conotações mais simples, nos barcos brancos e nas
águas verdes), as flores e os frutos (destaque-se o amarelo da cena a sinalizar
ainda mais luz, enfatizada num raro girassol), jarros de flores. O colorido, a
policromia dos mais intensos.
“Seresta”
evoca o mesmo tema do quadro mencionado antes. Há também a arquitetura, o verde
marinho, o céu azul e branco, as flores, os móveis, o violeiro e as figuras
femininas que são as centrais. Mas a temática e o modo de expressão são outros.
A começar da exuberância que substitui a leveza mais ou menos pronunciada da
nostalgia. A paleta se avermelha. A atmosfera é mais frenética e feérica do que
em “Nostalgia”. O modelo para o seresteiro (o que toca o violão) parece o
mesmo, mas o foco é outro: parece que direcionado agora à sedução. Há uma
sexualização mais marcada. Não se trata simplesmente de uma cena familiar. O
alvo é o grupo de mulheres na janela (decorada com o mesmo motivo recorrente de
outros quadros florais do próprio Cícero Dias).
É como se
nessa tela tudo se visse numa certa lente de aumento, em que o elemento de
composição florido, floreado, fosse destacado. A economia de personagens serve
para acentuar o foco na seresta. O que é uma seresta? Uma serenata tipicamente
brasileira, que esteve em voga até à primeira metade do século XX. O repertório
e o tom das músicas se destacam pelo sentimentalismo. Antigamente, a cena da
seresta tinha sempre dois personagens principais: um violeiro e uma mulher na
janela.
O
“resultado” de “Seresta” aparece, por assim dizer, em “Prelúdio”. O escorço
musical aqui é maliciosamente dúbio, pois indica mais do que a música, a
melodia disto em sexo. A figura masculina faz o mesmo que as anteriores e está
vestida também de modo elegante, mas o modelo é outro, mais jovem e
prescindindo do formalismo acrescentado do chapéu. Toca o violão, mas está
quase colado de tão próximo à figura feminina: uma morena inteiramente nua
deitada com ele na cama. A cama está junto a um espelho, discretamente. Do lado
esquerdo, outro esquema de natureza-morta e marinha: as flores protagonistas e
cajus. Lá fora, entrevisto pela janela aberta da casa, o mar verde.
Ainda nessa
mesma época do quadro (anos 60 ou finais dos 50) há outros trabalhos em que o
motivo do músico aparece, a figura típica do sedutor, pelo menos desde os mitos
gregos. Os quadros dessa fase podem ser chamados de líricos certamente não só
pelo seu sentido autobiográfico ou romântico, mas também por certa musicalidade
melodiosa deles. Sejam os quadros urbanos – em maioria – ou rurais, são idílios
em forma de pintura, autênticas buscas do passado.
A figura
masculina musical é um violeiro, como está explicitado no quadro “Moça e
violeiro”. Neste caso, a moça loira quase se veste de flores tal o volume que
assume o jarro de flores na sua frente está num plano não de interação direta
com o violeiro – novamente vestido de modo formal. Distantes um pouco, à
maneira dos namorados do passado.
Em “Figura
no alpendre”, o violeiro aparece metonimicamente: vê-se o violão ao lado esquerdo
das moças (três, como as “graças”?) num alpendre cheio de flores, e com o
gradil característico de outros quadros do pintor, e mais repetidos: a
arquitetura (o casario) junto ao mar.
Se Gilberto
Freyre viu a realidade histórica do Brasil “do alpendre da casa-grande”, como o
acusavam os seus críticos, o mesmo pode ser dito da pintura de Cícero Dias. Há
mesmo um conjunto de pinturas em que o motivo do alpendre é explorado com frequência.
“Figura no alpendre”, já referido, e mais “Moça e casal no alpendre” é outro,
enquanto “Casal no alpendre” é titulo de mais de um quadro.
Na mesma sequência
temática desses quadros, de figuras reunidas num cenário provinciano
(geralmente urbano), o lirismo se dá pela evocação (memória) e não pelo sonho
ou imaginação dos primeiros tempos. No entanto, ambos os conjuntos integram a
mesma “fantasia” essencial do artista, a zona da mata sul de Pernambuco, e as
cidades do Recife e de Olinda, principalmente.
Do mesmo
repertório de que se está tratando são as pinturas “Figuras e casario”, “Cena
do Recife”, “Figura, flores e casario” (mais de uma tela tem esse nome). E mais
“Figuras” (mulher vestida de azul, usando sombrinha com flores nas mãos em
plano principal e diversas outras figuras femininas com sobrinhas do lado
oposto). “Casal e flores” e mais “Cena urbana I” (note-se o cavaleiro em
detalhe acima do casario) e “Cena urbana II” em que as cenas são dispostas
pelas janelas, e mais “Cena do Recife” e “Cena de Olinda”. Outra, de mesmo tema
urbano, se chama simplesmente “Cena”: disposta em vários planos, a mulher está
bem vestida.
Neste último
quadro há inserido também outro motivo repetido – o das situações de mãe e
filha. Esses motivos da maternidade se repetem: “Mãe e filha” (note-se uma
“inspiração” de natureza-morta com a presença do objeto utilitário da casa,
borboletas etc.). Muito azul pela janela e nas roupas da mãe; num outro quadro,
sem título, as figuras femininas muito lânguidas, uma casa diante do mar, e
também em “Figuras e casario”, e é claro, em “Maternidade”. A vegetação (flores
e folhas) toma toda a composição.
Esse último
quadro aponta já para outro tópico – o da flora em si. É assim em: “Vaso de
flores”, “Flora”, em outro “Jarro de flores” (este é posto com vista para o mar
e o outro para o casario), “Flora”, em que as figuras femininas – uma desnuda e
outras (vestidas até o limite do véu e da sombrinha) estão “engolidas” pelo
azul e verde das plantas.
Nesse teatro
estático e nostálgico, há ainda outros tópicos: o do Encontro: “Na praia” (puro
bucolismo do Recife olhando para o farol de Olinda, mas a cena é de tempos
remotos: o casal está demasiadamente vestido), “Casal e vaso de flores” e o
propriamente dito “Encontro”, em que o homem entra em casa, tira o chapéu
diante da noiva, que, como antigamente, não o recebe sozinha, mas acompanhada
de uma provável irmã que organiza as flores.
Há momentos
em que aspectos lúdicos – certamente marcados por filhos e infância –
protagonizam, como em “Composição” (note-se a já marcada geometrização dos
planos que vai marcar os quadros figurativas posteriores) e em que há o
predomínio de cores como o vermelho, o rosa, o azul e o branco. Nesse quadro é
uma menina que empina uma pipa. A cena é urbana. No outro, o evento é o mesmo,
mas é um menino que empina a pipa no mar, e se chama “Infância em Boa Viagem”.
No mesmo
subtema da intimidade, há a presença de um espelho. Às vezes está nas mãos de
uma criada, enquanto a dona da casa repousa em rede, e olha o indefinido, com
os seios – signo de erotismo ou maternidade – nus, e diante dela há outro
espelho. Às vezes essa mulher está sozinha e se olha no espelho, mas lá fora
uma figura masculina se divisa por trás da porta. Em “Figura e flores” é a
mulher solitária – seminua, cercada de flores por todos os lados. Noutra, sem
título, há também uma figura feminina sozinha, diante de flores e frutos, e a
“protegem” véu e sombrinha, e o casario não está ausente.
Assim, a
nova figuração de Cícero Dias iniciada na década de 1960 ou em finais de 1950
pode ser sintetizada pelo uso frequente de determinados motivos todos
evocadores de cenas familiares, em que há destaque para figuras (sós, em dupla,
ou reunidas em maiores grupos), sempre associadas à arquitetura (casario,
alpendre, jardim), e a elementos vegetais (flores, folhas, frutos).
A figuração
lírica de Cícero Dias prossegue na década de 70 em uma nova gradação.
Basicamente, há uma geometrização mais pronunciada e a paleta do pintor se
ilumina mais. As cenas familiares se concentram no casal. O pintor não abandona
o tópico “noivos e flores” e mulher (noiva, namorada, esposa) com seios à
mostra, e homem (bem vestido, de chapéu). A composição busca um maior dinamismo
(as da década de 60 são mais plácidas, quietas) e um acento na simetria. O
movimento está bem evidente num quadro como “Enamorados”, contribuindo para
isso o modo como estão empregadas as linhas e as cores. O mesmo ritmo – só que
verticalizado – se nota em “Casamento”. A simetria está ainda mais viva. O
casal se posiciona no centro da tela. Equilíbrio e colorido definem toda a
composição.
Mas as
pinturas dos anos 70 não se limitam ao velho tema do casal, convencional,
familiar, em ritos sociais de namoro, noivado e casamento. Essas verdadeiras
crônicas de costumes se expressam também em telas compostas com cenas de planos
simultâneos do cotidiano, em que a figura da prostituta por vezes volta com
discrição. “Cabaré” pode ser um bom exemplo.
Em outra
tela como “Rio de Janeiro”, a cena urbana se extrema em planos simultâneos. Os
motivos são os de antes, mas a paisagem se constrói por esquemas. A geografia
tanto quanto as pessoas se geometrizam. É também o Rio de outro tempo, da
nostalgia, da seresta, das sombrinhas, de uma arquitetura eclética ou
neoclássica.
A
geometrização e a distribuição em planos simultâneos das figuras se afirmam
ainda mais em quadros batizados de “Composição”. Num deles, o tópico do casal
com flores se torna mais tropical, seja pelos frutos mais nítidos e
afirmativos, seja pela informalidade (sem exagero) dos trajes de homens e
mulheres.
Em outra
“Composição”, em planos também bem definidos e delineados, “emoldurados” mesmo
pela grossa linha de contornos verticais de modo a construir janelas
individuais e independentes – mas no conjunto interdependentes – apesar das
figuras, o protagonista aqui é a cor, ou melhor, as cores – azul e vermelho, em
mais de uma tonalidade.
O adjetivo
“lírico” foi empregado por Cícero Dias para designar certa visão amena do
Recife. Urbano, mas ainda não vencido pelas grandes construções, o povoamento
desordenado e a tensão social crescente da segunda metade do século XX. Na
década de 70, ele chama de “Cena lírica”. É uma esquematização de pequenos
flagrantes da vida num engenho de cana-de-açúcar. Mesmo sendo o cenário rural,
o motivo humano é o mesmo: a figura feminina idealizada. Cena é
uma palavra que significa muito nessa nova etapa de sua produção, pois, embora
se possa entender com o sentido puramente plástico de vista, panorama,
paisagem, cenário, não se deve ignorar o quanto de teatral – de teatro
bidimensional – há nessas pinturas. São crônicas mais do que contos, porque
destes não herda a tensão e também porque retratam fundamentalmente o dia-a-dia
de lugares que o pintor conheceu bem no Brasil. No caso de “Cena lírica”, o
engenho aparece como um “logotipo”, em que o pequeno morro em que está o
casario e a igreja “dialoga” com a parte de baixo da cidade, com carro de boi,
casario popular e cena de passeio e trabalho.
Dessa mesma
época ainda merecem destaque três quadros: “Figuras na rede” – que retrata a
mesma temática do repouso. Há, entretanto, uma ênfase muito feliz na simetria
de azuis e vermelhos, quanto à técnica, e um preciso emprego dos motivos
tropicais (a rede, as roupas, a arquitetura) quanto à temática.
Os segundo e
terceiro quadros a destacar ampliam o repertório e o vocabulário pictórico do
artista, tanto pelo tema, “O equinócio” e o “Ex-voto”, quanto pelo misto de
abstração lírica e figuração construída apenas de elementos estritamente
essenciais pelo artista. Alguém dirá com razão que a inspiração na astronomia e
o tema do dia e da noite já estiveram antes nas atenções do pintor. E que a
cena que inclui casal, barco e janelas apareceu outras vezes em sua produção.
Mas em quantos outros quadros com tanta leveza e precisão da mão na disposição
das linhas e no cuidadoso emprego de motivos geométricos?
Quanto ao
“Ex-voto”, será fácil lembrar-se alguém de que a religiosidade popular esteve
em outros momentos nas atenções de Cícero Dias. Menos fácil será citar um
quadro tão distinto, em que a geometria é tão presente que talvez fosse mais
adequado incluir esse quadro entre os de sua etapa abstrata, mais até do que na
sua nova figuração.
O aporte
figurativo da década de 80 é um linear desdobramento dos motivos da década de
70. As figuras estão cada vez mais tropicais e numa atmosfera como de férias.
“Canoeiro” tematiza simultaneamente os topoi das “graças” do
“casal”. A paisagem e a vegetação se abrem. Em dois planos, o verde, o vermelho
e o azul se constroem com os mesmos motivos também de natureza (as flores,
onipresentes em quase todas as telas dão lugar a árvores, folhagens e frutos) e
a cultura (o casario, o barco, as roupas).
Se há mesmo
uma característica a individualizar estas telas da década de 80 escolhidas para
esta exposição é que não estão mais sob o signo das flores (mas ainda presentes
de moto convencional em “Languidez” – um jarro, que só decora e dá equilíbrio
ao ambiente) e em “Placidez”, também um ramo luminoso, mas sem protagonizar
pelo volume, nas mãos de uma moça.
No entanto,
o papel menos destacado das flores nessas telas não quer dizer ausência da
motivação vegetal que marca tanto a figuração quanto a abstração de Cícero Dias
– a ponto de ser justo chamá-lo de um pintor com vocações ecológicas,
ambientalistas, paisagísticas sempre. A vegetação está representada em esquemas
de árvores e na estilização da folhagem, seja verticalizada em amarelo e
horizontalizada em verde, amarelo e azul e branco, como em “Olinda e Recife”.
Seja com uma
função realmente floreal, como em “Convento de São Francisco em Olinda”, ou
ainda de modo algo discreto, em “Espera”, e novamente na forma de flor de “Moça
no barco”.
Nenhum
protagonismo tem a vegetação em “Despedida”. Ali, em planos de novo
simultâneos, as cenas de família, todos em trajes tropicais (de volta está a
sombrinha rósea para as mulheres e o chapéu marrom para os homens). Aí são as
cores – verde, azul e vermelho, principalmente – que dominam a cena.
Embora na
década de 80 os velhos motivos musicais e de cenário urbano estejam presentes,
o que talvez melhor defina esses quadros desse período e talvez todos os da
nova figuração de Cícero Dias seja não tanto a forma das figuras e o elemento
de composição, mas a atitude, a atmosfera. Alguns títulos falam bem de tudo
isso, dessa passividade tranquilizadora e paradisíaca, burguesa mesmo, dessas
cenas e paisagens. Duas palavras resumem tudo: placidez e languidez.
Todos esses
movimentos de languidez, placidez e vida em família acentuam tudo o que há de
romântico e lírico no que Cícero Dias pintou na década de 80. Mas nem só de
lirismo vive o homem e muito menos o artista. Um quadro de encomenda leva-o de
volta ao épico e dramático de que já dera mostras em obras como “Eu vi o
mundo... ele começava no Recife”, da juventude. E também, de certa forma, nos
murais abstratos e semi-abstratos que pintou em várias paredes da Secretaria da
Fazenda no Recife, em 1948.
Desta vez,
no começo da década de 1980, é de novo um prédio governamental o que vai
abrigar uma série nova de pinturas. Pinturas do gênero histórico. Pela primeira
vez realiza um trabalho tão diretamente político para um edifício público.
Homenagem a um herói do passado, síntese de certo tipo de nacionalismo e
regionalismo. Não o reconstitui em murais, e sim em tela, que pinta em diversos
conjuntos, no seu próprio atelier, em Paris, e depois são transportados a
Pernambuco.
O tema é o
revolucionário Frei Caneca, que atuou em duas das chamadas revoluções
libertárias que notabilizaram Pernambuco: em 1817 e 1824. Ao fracassar esta
última, foi preso e executado. Os painéis resumem a vida desse religioso e
político, e especialmente os cenários onde atuou em sua luta.
Esses painéis têm podem motivar interesse não só
pictórico, também uma função didática. São pinturas que retratam quase com um
jeito de história em quadrinhos fatos e lugares bem conhecidos dos
pernambucanos cultos. Nenhum outro trabalho em pintura é mais completo do que
este sobre os principais momentos do frade carmelita. É pintura ao mesmo tempo
histórica e biográfica. Há inscritas nos painéis frases como Typhis
Pernambucano (o jornal onde Frei Caneca expôs suas ideias) e engenhos
do Cabo e Utinga, cenários do tempo em que Pernambuco se rebelava. Sendo
reportagem literal de acontecimentos e personagens históricos, um roteiro
didático que acompanhasse as pinturas certamente seria útil à sua compreensão
às gerações mais moças ou aos que tenham um conhecimento limitado da história
das revoluções brasileiras do século XIX e seus principais líderes.
***
Mário Hélio (Brasil, 1965). Jornalista. Autor de livros
como O Brasil de Gilberto Freyre (2000), O Recife
melhor do que Paris (2000), e Cícero Dias - uma vida pela
pintura (2001). Contato: mariohelio@gmail.com.
Agradecimentos especiais a Lucila Nogueira. Agulha Revista de Cultura
# 56. Março de 2007.
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