terça-feira, 15 de setembro de 2015

MÁRIO HÉLIO | Todos os motivos de Cícero Dias


1. Numa paisagem de sonho, a infância, o amor e a morte
No princípio era o desenho. Não o traço lógico da arquitetura de linhas retas. Nem a forma precisa de quem atendeu às lições acadêmicas. Os riscos se orientam em curvas as mais diversas. Amontoam-se as figuras, e se espraiam, e se excedem. Como se imperasse no que se desenha uma muito curiosa desarrumação paradoxalmente cheia de harmonias. Pessoas, objetos, plantas e animais, em convívio íntimo e constante, se envolvem numa dança. Por vezes, copulam. Estão sempre em diálogo. Imbricados. Nada está sozinho. Nesse universo gregário, a vida sorri e brinca, porque tudo existe como num jogo, grávido de sonho.
Foi assim o começo da obra do pintor Cícero Dias. Os temas são simples. As técnicas são simples. Os materiais são simples. O resultado é que nada tem de simples. Na verdade, aquela grande sinfonia de caos ordenando o mundo é complexa na sua essência tão composta. Por quê? Porque o mundo que ele dá a ver não é o que se escancara à frente do olhar. Não é o visto, portanto. É o pensado. O sonhado. O lembrado. O entrevisto. O imaginado. As figuras são “títeres” da subjetividade. Desordenar, desconstruir, deformar são as palavras de ordem.
O pintor não reproduz, representa. Fatias, fragmentos de um tempo. Tudo serve ao seu arbítrio. Por isso as próprias leis da física estão desprezadas. Gravidade? As pessoas flutuam como se vivessem no mundo da lua ou se movessem nos sonhos. Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço? Mais do que isto, os corpos estão em comunhão plena e formam uma risonha unidade. Colam-se uns nos outros sem qualquer cerimônia.
Na primeira fase da pintura de Cícero Dias, as figuras existem para um grande corpo a corpo com a terra. Estendem-se e, por vezes, se retorcem se dilatam. A proporção – divina ou não – é sacrificada em benefício de uma outra escala: a do onirismo, a do ludismo. É uma pintura sem lei nem rei. Um moto perpétuo, uma dinâmica febril.
Que mundo é esse que desenhou Cícero Dias nos seus primeiros tempos de artista? O mundo da infância. Da magia. Do mito. Do sonho. Que tem regras, modos, leis, sentidos próprios. Essas imagens não são meras imitações ou resultados diretos do expressionismo ou surrealismo. O único manifesto na pintura do artista são as suas próprias obras. Ou melhor: mais que o manifesto, a manifestação. Mais do que a fala, a fábula.
Há uma geografia e uma história a guiar claramente esses desenhos. Primeiro, a geografia tão conhecida do artista: as imensas plantações de cana-de-açúcar que geraram a opulência de Pernambuco, onde ele nasceu. A história é bem conhecida: do começo da colonização até o final do século XIX ou início do XX, quando os engenhos são suplantados pelas usinas e se estabelece de vez a decadência de um modo de vida: a do sistema escravocrata. Ficou, no entanto, toda uma época a povoar a memória e a imaginação dos filhos e netos dos senhores de engenho – Cícero Dias é um deles. É o pintor que rememora, mas também satiriza, ironiza esse passado e, principalmente, o erotiza fortemente. O espaço-tempo que retrata é o do que viu, viveu, leu e lhe contaram dos engenhos. No entanto, não recorre para isso ao paisagismo tradicional. As suas figuras se distribuem no espaço e, estão de tal maneira, integradas que, inevitavelmente, compõem pequenas narrativas de interesse sociológico.
Apesar da origem rural e de suas referências do complexo da “zona da mata” salpicadas em todos esses pequenos “contos” de açúcar e sonho da primeira fase de sua obra, o espírito que anima o olhar de Cícero Dias é urbano. Talvez ainda melhor: rurbano, da síntese usada por Gilberto Freyre para algumas cidades.
Na verdade, a temática dos seus primeiros desenhos e das suas primeiras pinturas está relacionada diretamente com o mesmo ambiente que motivou a obra de Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Ascenso Ferreira. Em suma, ele plasmou em pintura o que os seus colegas regionalistas-modernistas realizaram na sociologia, no romance e na poesia. Mas estes também são urbanos. Essa pintura de interesse literário, histórico e antropológico de Cícero Dias dialoga remotamente com outro “menino de engenho”: Joaquim Nabuco. Este compreendeu como ninguém o ethos fundamental do Brasil, e teve, no engenho Massangana, experiências semelhantes às experimentadas por Cícero Dias em Jundiá. Ambos foram meninos de engenho que se urbanizaram. Parecem mais dos sobrados que das casas-grandes.
Ascenso Ferreira diz num poema que os engenhos da sua terra já pelos nomes faziam sonhar. À parte a seiva lírica dessa afirmação pode-se dizer que a motivação ou o impulso para o sonho não se dá só pelo que há de sugestivo na sonoridade das palavras, mas também porque o seu universo, após a decadência do sistema escravocrata e as ruínas dos próprios engenhos com suas casas-grandes, senzalas, capelas e moitas, ficou sendo algo nostálgico, atávico, telúrico e, em grande parte, idealizado. No seu caso, o substrato essencial é lírico. O Jundiá foi a sua Pasárgada.
Que pintura é a síntese dessa primeira etapa da pintura de Cícero Dias? Obviamente o painel “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”. Todo o horizonte de lembranças e referências nordestinas se vê ali. É como história em quadrinhos materializando em 15 metros de comprido algumas das situações comuns aos seus pais e avós e que se impregnavam na alma de Cícero Dias.
A orientação do painel é por cenas. Elementos rurais e urbanos se entreveem e se comunicam. O canavial e o mar não distam muito no seu espaço porque de fato estão próximos na Escada e no Recife. Isso também se reflete no uso que faz de cores tão profusamente empregadas, como o verde e o azul. O canavial é menos um mero retrato da plantação de cana-de-açúcar e mais o esquema, a síntese expressa em cor. Do mesmo jeito que as personagens aparecem como tipos, não representações em esforço de exatidão. O elemento vegetal da cana se dilui na cor, se abstrai. As pessoas também superam o simples status de gente, pois os personagens do drama são seres humanos em diálogos com animais – sobretudo – e com as plantas e os objetos. Já é um Cícero Dias abstrato o que se prefigura nessas aquarelas das décadas de 20 e 30.
A técnica é menos do pintor e mais do desenhista, do caricaturista, do ilustrador. No entanto, o efeito dos desenhos é plástico, não gráfico. As representações não pretendem retratar, mas sugerir, indicar, evocar, invocar. Ele recompõe no painel “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”, por exemplo, um tempo, mas um tempo que se cristalizou em espaço, que se configura em coisas vivas no seu estágio de cultura. Não será a natureza pura nem o encanto selvagem o que se escancara nas imagens. Entretanto, o que captura da história o olhar não é distante nem desinteressado. “Eu vi o mundo... ele começava no Recife” parece autobiográfico até o cerne. É o mise-en-abîme de Cícero Dias. Como se fosse um conjunto de quadros sem moldura dentro de um imenso panorama que se move: cosmorama, diorama, cinema.
Como foi a recepção da pintura de Cícero Dias pelos seus amigos modernistas? Foi, em geral, muito positiva, obviamente, como comprova Manuel Bandeira na carta a Mário de Andrade em que noticia a primeira exposição dos seus quadros na Policlínica, no Rio de Janeiro, com elogios de colegas como Oswaldo Goeldi, Di Cavalcanti e Ismael Nery. O próprio Bandeira, que enxerga no que faz o seu conterrâneo uma “arte profundamente sarcástica e deformadora”, opina que há “muita verve e imaginação nele”.
Deve-se, no entanto, atentar que a admiração de Manuel Bandeira por Cícero Dias se restringirá às aquarelas que ele pinta nesse tempo e até à década de 30. Foi o poeta um dos mais explicitamente críticos quando Cícero Dias passou também a fazer pintura abstrata, a partir da década de 40. Numa crônica em que rememora o seu convívio com Jaime Ovalle, lembra a casa deste, e diz:
“A saleta de entrada, minúscula e entupida por um piano de cauda, fora decorada com painéis de Cícero Dias, pintados em lona. Uma das melhores coisas do malogrado artista pernambucano, hoje inteiramente absorvido por interesses comerciais e a caminho de se tornar um desses ‘capitães de indústria’ celebrados nos editoriais doutrinários da grande imprensa de opinião. Os painéis da casa do místico davam a impressão de que neles o menino-de-engenho da pintura brasileira estava se despedindo daquela infância meio louco que era a alma da sua arte tão longe do mundanismo em que se atolou depois. Um desses painéis representava o Brasil abestalhado roncando ao lado de uma mulata nua debaixo dos Arcos da Lapa; outro, a Virgem da Lapa, vestida de noiva, – e pelo vão da janela se via uma paisagem lunar com uma dessas igrejas que existem em todo o Largo da Matriz das cidades do interior. Foi sem dúvida essa figura de Cícero que inspirou o verso de Schmidt: ‘A lua de Londres roubou meu noivo...’”
Outra vez, Bandeira, ao criar uma “nova gnomonia”, classificou as pessoas nestes grupos: Dantas, kernianos, onésimos e mozarlescos. E escolheu um tipo para Cícero Dias:
“O grande pintor Cícero Dias, apesar de se revoltar com a classificação (pretende ser um Dantas, embora dê em geral a impressão de Kerniano) é afinal de contas Mozarlesco, como se depreende bem das suas luas lacrimejantes e da concepção da morte nos seus quadros.”
Para satisfazer a curiosidade do leitor, há que se dizer o significado de cada um desses nomes na classificação proposta por Bandeira, os “principais tipos de caracteres humanos”:
“Os Dantas são os bons (toda gente quer ser Dantas), os homens de ânimo puro, nobres e desprendidos, indiferentes ao sucesso na vida, cordatos e modestos, ainda quando tenham consciência do próprio valor”; “Os Kernianos são impulsivos por excelência. Indivíduos de bom coração, capazes de grandes sacrifícios pelos outros, deixam-se no entanto arrastar às vezes à prática dos atos mais condenáveis, não por maldade, mas por um impulso irresistível de cólera”.
 “Difíceis de definir sem magoar toda a classe, esses caracteres tão interessantes que são os Mozarlescos. Em primeiro lugar – porque são assim denominados? Os Mozarlescos são pessoas que se exprimem ou obras de molde a fornecer aos que os observam uma impressão de coisas consideráveis, ao que todavia não corresponde o conteúdo das suas palavras ou das suas ações.”
Numa crônica intitulada “Notícias de Cícero”, a propósito de uma carta que recebera do pintor – nessa época já em Paris – Manuel Bandeira trata de fazer considerações sobre a sua pintura e a defendê-la de forma muito honesta, inclusive quando aponta o que para ele, o poeta, seriam os defeitos:
“O Rio não deve ter esquecido aquele estranho rapaz que um dia expôs na sala térrea do derrubado edifício da Policlínica, à Avenida Rio Branco uma abracadabrante coleção de aquarelas, diante das quais o visitante incauto era desde logo tomado por uma impressão de atropelamento. Quase toda a gente passou a considerar o rapaz como louco, o que até certo ponto justificavam os seus bastos cabelos revoltos e a expressão meio alucinada dos seus grandes e belos olhos negros. Creio que o próprio Juliano Moreira tinha para com ele aquele paternal carinho que dispensava sempre aos que suspeitava iriam acabar no casarão da Praia Vermelha. Cícero viveu alguns anos no Rio, progrediu muito dentro da sua técnica absurda e que entrava até a tinta de escrever, e ganhou a admiração e a amizade todos quantos procuram a poesia na vida e estão se ninando para tudo o mais. Cícero fez pintando o mesmo que fez José Lins do Rego escrevendo: desentranhou a poesia assombrosa dos meninos de engenho. Há muita gente que diz ao olhar as pinturas de Cícero: - Qualquer criança faz isso. É um engano, erro de quem observa mal os desenhos das crianças. (...) A técnica de Cícero Dias pode parecer deficiente mesmo a um artista liberto de toda rotina acadêmica. Mas aqui seguramente não é aquele desequilíbrio a que nos referimos atrás que gera a profunda impressão das suas criações no espírito dos que olham sem preconceitos. Essa impressão é a de um lirismo surpreendentemente ágil e versátil, o qual está constantemente reorganizando a realidade cotidiana com alguns dados humorísticos ou pressagos que escapam à generalidade dos homens e no entanto vincam com a agudeza das superstições uma sensibilidade extraordinária como a de Cícero. O que há de infantil nessa sensibilidade é a atitude ingênua diante desses aspectos humorísticos e mal-assombrados da vida.”
O restante da crônica é uma comovida rememoração do que ele chama “o mundo de Cícero”, “mundo em que tudo é possível”, em que imperam outras leis. Essa crônica é cheia de empatia com o pintor, aproximando-se ambos no espaço comum a ambos: o da infância, o dos engenhos de Pernambuco, e de um Rio de Janeiro boêmio e quase idílico.
Um outro bom momento de apreciação crítica de Bandeira aparece não numa crônica, mas numa carta ao sociólogo Souza Barros em que agradece e comenta uma foto de um quadro de Cícero Dias. A carta é datada de 3 de novembro de 1948:
“Grande prazer me deu você enviando-me pelo Waldemar Lopes a fotografia do quadro do Cícero. Não o conhecia (o quadro) e achei-o ótimo. Devo dizer-lhe que esse é o Cícero que eu prefiro. As cenas que ele faz agora são muito bonitas, sim senhor, mas todas as terras por esse mundo afora, há dezenas de sujeitos que as fazem também e tão bem. Mas o Cícero de antes de Paris era único: só no Chagall se encontrava algo de parecido e o Cícero não se inspirava de Chagall; se inspirava do nosso Pernambuco e de sua infância cheia de assombrações. Tenho esperança que esta fase abstracionista passe, depois de lhe ter servido de escola, de disciplina, e ele volte à velha mina, para extrair o velho ouro com técnica aperfeiçoada.”
O que Bandeira profetizou efetivamente aconteceu, mas já na década de 60 ou, no máximo, nos finais dos anos 50, quando Cícero Dias voltou a pintar figuras, principalmente de pessoas. Estas já não seguiam mais o espírito anárquico e sarcástico da década de 20. Mostravam outro tipo de técnica e resultado. Ao se observar cada um dos quadros pintados a partir dessa década e que o artista exercitou até quase ao fim da vida, é curioso notar como não há rupturas, mas lógicas transições de uma fase em outra (não de uma fase para outra), de uma época em outra, de um tempo a outro tempo.
O pintor Cícero Dias parece seguir em pintura aquilo que o apóstolo Paulo recomendava aos cristãos: “Quando era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança; quando cheguei a ser homem, deixei as coisas de criança agora inúteis”.
Assim, não pinta, já maduro, em Paris e em Lisboa, os mesmos motivos dos seus anos de boêmia radical no Recife e no Rio de Janeiro, ou já não os trata de igual maneira. Apesar disso, há que se ver grande coerência estética no que pintou. Não se encontra algo de tão diferente entre cada um dos momentos de sua pintura de modo a criar um abismo entre essas etapas. O modo de ver o mundo não se altera nem grandemente o de reapresentá-lo e dá-los a ver.
Quando, após a Segunda Guerra Mundial, ele começa a pintar uma série de quadros, sobretudo em Lisboa, e constrói uma etapa de sua obra a que os seus familiares e amigos vêm chamando de “vegetal”, isso não representa uma ruptura imediata com o passado nem a apresentação extrema do abstracionismo que terminará por abraçar. Cícero Dias, na verdade, nunca foi um abstracionista de credo e dogma porque também não o foi, decerto, de nenhuma escola ou corrente estética. O que pinta em Lisboa serve como indicador de uma transição que se opera no que faz. Sem, no entanto, distanciar-se efetivamente no que há de intrínseco na composição. O que há de novo nessa fase vegetal? Efetivamente não é o vegetal, pois, na profusão de figuras anárquicas dos seus quadros da década de 20 e 30 há uma obsessiva presença de árvores, de plantas, de flores. A partir de Lisboa, ele vai individualizar esses motivos e compô-los menos de um modo a lembrar certo surrealismo e primitivismo, e mais o cubismo e certo tipo de brutalismo. O mesmo humor permanece. O humor absoluto (mais até do que o fantástico) é o que enforma e dá o sentido fundamental da arte de Cícero Dias.
Se fosse útil comparar os primeiros tempos da pintura de Cícero Dias nutrida do mesmo húmus de amigos como Gilberto Freyre e José Lins do Rego, seria conveniente dizer que, na década de 20, predominam os motivos de engenho (das casas-grandes) e, na de 30, o universo do sobrado é o que surge com maior destaque.
Claro que não se afirma com isto que o Rio de Janeiro e o Recife estivessem ausentes das aquarelas da década de 20 nem que os engenhos rurais já não motivassem os seus óleos da década de 30. A questão é outra. Se para a pintura se usasse o vocabulário de cinema, seria adequado dizer que as locações preferidas na década de 20 são de tomadas externas, e as de 30, as de cenários e interiores.
Há elementos comuns a ambos os momentos da sua pintura: um deles, talvez o mais importante, é o que se poderia chamar de eterno feminino, a sexualidade à flor da pele. Nos sobrados o ritmo é estático: os corpos estão nus, mas observam e são observados. No erotismo solto dos anos 20 os corpos se penetram, se mesclam, amam a proximidade inteira.
A cultura também se faz notar mais na década de 30: a prostituta – quase sempre morena – se disponibiliza em cenários bem arrumados. Como se o cristianismo “organizasse” o pecado para torná-lo menos culposo. As cenas são principalmente de interiores de casas (há mesmo uma pintura intitulada “Interiores”). O espaço é a casa vista por dentro, por mais que haja uma dialética casa-rua, dentro-fora. Nas aquarelas de 20, o espaço é a rua, o mundo exterior, seja isto um cenário da natureza – cana-de-açúcar, rua, mar, rio, plantas, flores, folhas e o barro em estado puro – ou de uma cidade: as montanhas do Rio de Janeiro, o bairro de Santa Tereza (a rua Aprazível, onde morava o pintor). A própria morte é representada com essa lógica: na década de 20, é o cortejo, o enterro quase como uma festa na rua; na década de 30, é corpo dentro da casa, com a família reunida a velá-lo.
Nos engenhos o ritmo é dinâmico – os corpos se conectam sempre. Há paganismo e libertinagem. Os corpos estão muito próximos de uma naturalidade e de certo estágio selvagem. O homem se move em intimidade com as plantas, bichos, rios e matas, de tal maneira que quase não é possível falar de uma formação sexual masculina nos engenhos de cana-de-açúcar sem falar-se de jovens que copulam com bananeiras e com vacas. De garotos que espiam moças nuas em banho, ou da própria família nua em banho. Isso, aliás, foi comum não só num espaço determinado, mas durante todo um tempo, e neste caso é o tempo que aproxima e torna comuns os espaços. Um exemplo do ritual de banho é bem explicitado numa passagem de Tollenare.
Tempos depois da cena contada por esse viajante, o poeta Manuel Bandeira, ainda criança, no Recife, viu uma cena que rememora quando adulto e ficou tão marcada que definiu como de “alumbramento”: moças nuas no banho. Os banheiros de palha tão comuns ajudaram a compor o cenário da Pasárgada, isto é, do mundo mítico que inventou ou recriou o poeta.
O sexo no engenho parece mais livre e solto. Numa aquarela da década de 20, Cícero Dias mostra um homem cujo sexo se crava, se confunde com a própria terra. Já nos quadros dos anos 30, é cada vez mais comum a cena íntima, o boudoir, o espaço fechado, uma verdadeira sociologia da alcova se pode tirar do que retrata desse tempo.
Os tons da morte também se diferenciam de uma época para outra, ou, de um olhar para outro. A morte aparece ritualizada em uma atmosfera muito escura, como em “Família de luto”. Este quadro, aliás, numa morfologia de tons, poderia fazer par com outros como “O cortejo” (foi, aliás, este quadro que chegou a ser pensado pelo pintor, ainda com o título de “O enterro” para ser exposto no Salão Revolucionário, mas terminou substituído por “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”).
Não está infensa, como se vê, a pintura de Cícero Dias – que tanto se mostra como uma exaltação extremada da vida – ao grande tema da morte. Se a vida é a expressão talvez mais bem acabada da transcendência, a morte o é da presença imanente do mistério. A sua feição mais crua e universal. No culto cristão, um enterro é de fato um cortejo, e em alguns casos, quase um corso. A procissão que celebra a vida também soleniza a morte. Com o carnaval se dá o mesmo. E nada disso difere muito de uma parada militar. Nos quadros de Cícero Dias a morte aparece menos como a simples exposição de corpos mortos, e mais como uma ritualização, até nos títulos dos seus quadros.
Junto com os quadros em que a morte assume valor e características semelhantes devem ser postos os quadros de temática religiosa católica. “Procissão de ramos” nesta exposição é um deles. Na verdade, o elemento religioso, de maneira implícita, está sempre presente em sua obra. Seria mais justo tanto dizer religioso e místico quanto mítico, porque, se no aspecto puramente descritivo e simples pode-se contar uma infinidade de pequenas igrejas nos seus quadros iniciais, também há um quê de magia e mistério, uma aura noctâmbula em vários quadros desse período – o escuro e não só o luminoso compõe o Cícero Dias desses tempos de pândega e festa.
As cenas interiores e paisagens urbanas, do Recife, resultaram em algumas de suas melhores pinturas. “Visão romântica do porto do Recife” extrema-se em vermelhos, azuis, amarelos e verdes muito bem distribuídos, quase a lembrar a motivação de certos quadros de Post do século XVII ou gravuras de diversos pintores do século XIX.
Há de tudo nessas crônicas de costumes em forma de pintura, mas as cenas são as recorrentes: mulheres e flores, barco, música, a arquitetura, o casario, os telhados, os elementos vegetais, mas todo o horizonte é dominado, num extremo, pelo casario e o mar, e, no outro, pelo homem fascinado pelo “eterno feminino”.
A dança, o teatro e o voyeurismo sexual estão em “Três meninas”, que se completa em “Menina dançando”. Do mesmo grupo ou espírito de interiores, mas com vibração própria, são os quadros intitulados “Sonoridade da Gamboa do Carmo” e “Gamboa do Carmo no Recife”. Antes de prosseguir, convém definir o que é gamboa. Trata-se de um regionalismo do Nordeste: quando a maré está alta, a água penetra por esse estreito que se chama gamboa, e por ele se esvazia, quando a maré baixa. Numa cidade de marés, rios e mar como o Recife, fica fácil de entender a importância de uma gamboa num tempo em que os aterros ainda não haviam alterado a sua feição.
Gamboa ou, mais precisamente, o seu sinônimo, Camboa do Carmo é rua do centro – bairro de Santo Antônio – muito próxima da igreja do Carmo.
Como entender a atmosfera boêmia e francamente sexual desses interiores da Camboa do Carmo na pintura de Cícero Dias? Talvez um pouco de biografismo explique melhor isso: Na década de 20, o escritor Gilberto Freyre chegou a manter uma garçonnière nessa rua. O apartamento era frequentado por seus amigos como Antiógenes Chaves e, provavelmente, o próprio Cícero Dias. No livro Tempo morto e outros tempos, Gilberto Freyre fala da visita do poeta Manuel Bandeira a esse lugar de encontros. Estas anotações são datadas de 1926:
“Manuel Bandeira está no Recife e está em nossa casa: na casa do meu irmão Ulisses. Para Rudiger e Jane é que o ano passado preparamos cômodos um tanto no estilo dos Greenwich Vilage e do Quartier Latin no terceiro andar da Camboa do Carmo, onde temos o nosso anexo urbano. Tem-se lá de cima uma vista única de alguns dos mais velhos telhados do Recife, que Ulisses tem fotografado a meu pedido, do mesmo modo que vem fotografando aquelas janelas mouriscas, varandas de ferro trabalhado, interiores de igreja. O Recife está sendo desmanchado pelos ‘progressistas’ mais do que pelo ‘progresso’ e é preciso que fique ao menos em fotografias e desenhos. (...) Grande farra na garçonnière da Camboa do Carmo com Bandeira poeta. Bebeu um pouco e ficou tão alegre que deu para cantar. Voz detestável. Lá estavam Ulisses, meu irmão, José Tasso, Antiógenes Chaves. Vê-se que o poeta esqueceu-se da tísica e das tristezas e ficou por toda uma noite quase vinte anos mais moço do que é. Muito feliz entre mulatas. As mulatas não tão felizes com ele.”
Um outro aspecto importante a destacar na diferenciação do que pinta Cícero Dias na década de 20 e na de 30 é quanto à técnica e ao material. Enquanto nos anos 20, ele se ocupa principalmente de aquarela (e por vezes nanquim) e papel, na de 30 é de óleo e tela principalmente que se serve.
Uma coisa que parece certa na diferenciação progressiva que ocorre nos óleos da década de 30 em relação às aquarelas da década de 20 é a disposição do quadro: cada vez mais ordenadas e lógicas são as figuras. Há, no entanto, exceções. Em “Família debaixo de árvore” (aquarela), “Repressão operária” (aquarela) e “As primeiras notas” (óleo), atribuídas à década de 20, a orientação das figuras nada tem da anarquia com que se apresenta quase a totalidade das figuras que Cícero Dias pinta nos anos 20 e em que o traço, o desenho, a dinâmica dos corpos são mais importantes do que os contornos e volumes. Com exceção de “As primeiras notas”, óleo de 1921, um óbvio exercício de pintura (o pintor tinha nessa época 14 anos), as outras duas surpreendem e “destoam” do conjunto não tanto pela temática – operários, em um, e família pobre em outro – mas pela preocupação quase acadêmica do desenho, lembrando uma fusão impossível de Di Cavalcanti com Candido Portinari.
Nas pinturas ou aquarelas de 30, sim, há uma preocupação maior com a lógica e a arquitetura das imagens. A arquitetura, aliás, está presente em muitos outros quadros. Há sempre uma casa, uma janela, uma porta. “Retrato de Manuel Bandeira” é um exemplo da fusão de dois mundos – o rural (bem apresentado pelo verde e o quadro idílico de moça nua debaixo de árvore, plantas e animais) e do urbano (o casario soberano). O poeta retratado medeia os dois mundos, rurbanos. Na verdade, trata-se quase de uma materialização da sua Pasárgada (cidade real, da Pérsia, mas reinventada poeticamente como um lugar de liberdade e delícias). A uni-los há o lúdico (meninas de vermelho – mesma cor da casa – brincam), e as flores na mão do poeta (as flores em buquê são elementos presentes em praticamente todas as aquarelas, sejam de 20 ou 30).
Nestas pinturas que convencionadamente podem ser chamadas de “interiores” há duas orientações básicas: a paisagem e o retrato. A paisagem é ora urbana, como “Recife lírica”, e “Visão romântica do porto do Recife” (no fundo um quadro da mesma inspiração), ora de temática apenas lírica: “Moça na paisagem”, e de “Moça e marinheiro”, um casal (outro estudo por fazer é dos casais na pintura de Cícero Dias), o casario e um jarro de flores dão o adorno lírico o encanto sexual do viajante com a prostituta. E ainda cenas rurais, como “Meninas no trole de vara”. Outro didatismo aqui é necessário para explicar o regionalismo: a palavra provém do inglês trolley. Trole, no Nordeste é “pequeno carro descoberto, ou plataforma sobre rodas, que desliza sobre os trilhos nas ferrovias, movido a força humana”. Tudo muito diferente do significado que a palavra assume em algumas cidades do interior do Sul do Brasil, onde significa um tipo de coche primitivo ou rústico.
Um outro quadro é “Cavaleiro e moça na janela”. A moça na janela é um topos marcante da pintura de Cícero Dias. Outro é o da figura que observa. O tema da mulher na janela é muito constante, e também da mulher sentada a ler no interior de um quarto. Nesse mesmo esteio rural tem-se um quadro como “Figuras, barco e canavial”.
Em síntese, deve-se dizer o que há de comum entre todas essas aquarelas pintadas nas décadas de 20 e 30, de modo a compor um esboço de morfologia do que pintou Cícero Dias. Antes de tudo, todas essas pinturas zelam pela deformação (em grau mais radical as de 20), nenhuma delas é realista, nenhuma procura a semelhança pura com o real, embora se possa distinguir o elementar em cada uma das cenas pintadas, como no estágio mais básico do desenho. Todas as aquarelas recriam ou rememoram três cenários fundamentais: o primeiro é o do Engenho Jundiá (onde nasceu o pintor), a cidade de Escada, onde está localizado, ou, de modo mais geral, a zona da mata, onde estiveram os engenhos de cana-de-açúcar de Pernambuco.
 O segundo cenário é o Recife. Menos o Recife típico e monumental (como pintado, por exemplo, por um Manoel Bandeira, homônimo do poeta) e mais o Recife da paisagem (o mar, a praia, sobretudo) e da alcova. O terceiro cenário é o Rio de Janeiro: aqui se dá a apresentação talvez mais anárquica da perspectiva e do espaço. Mas é também um Rio bucólico, meio suburbano. Do bairro de Santa Tereza, onde viveu o pintor, um Rio por assim dizer mágico, em que a poesia faz com que as coisas mais miúdas e cotidianas assumam certo ar de mitologia.
O erotismo, o onirismo, o ludismo são comuns a todos esses três cenários. Há uma anarquia deliberada na escolha e na disposição das imagens. Com tal esquematismo, entretanto, não se deve deixar de relevar um aspecto muito importante na obra de Cícero Dias: a sua clara unicidade. Mesmo que por comodidade ou didatismo se possa dividir a sua produção por década (muitas vezes devido à impossibilidade de se saber a data precisa de um quadro), não há, no aspecto formal alteração significativa entre o que pinta na década de 20 e na de 30, por exemplo. Há gradações, superações, evoluções. O espírito que o anima é o mesmo. No aspecto temático e formal as primeiras alterações marcantes se darão a partir de sua estada em Lisboa, durante o período da Segunda Guerra Mundial.

2. Verdes, vermelhos e azuis
A pintura de Cícero Dias até a época da Segunda Guerra Mundial não sofre mudanças muito relevantes. O jovem que perturbou até os modernistas do Rio e São Paulo e tanto feitiço causou nos regionalistas das décadas de 20 e 30 no Brasil, quando se mudou para Paris, no começo do Estado Novo, procurava novos ares, novas cores, novos caminhos e novas oportunidades para a sua pintura.
O pintor que expõe em 1938 em Paris e desenvolve um convívio boêmio e intelectual nos cafés com espanhóis e franceses, era ainda o mesmo das imagens anárquicas que fizeram o encanto dos seus amigos no Brasil. Quando um crítico francês diz “os surrealistas terão com quem falar” é, além do reconhecimento de motivos surrealistas ainda presentes na sua obra, como, em outros casos, de vários outros observadores, uma tentativa de indexar uma pintura de difícil classificação.
Será, no entanto, na década seguinte e em plena guerra, que a pintura de Cícero Dias encontrará outras virtudes. Se não estará livre do anedótico, do exótico e do regionalismo será ou porque assim o verão sempre os seus críticos ou porque teve os seus motivos para nunca abrir mão do humorístico, do típico, do geográfico, do literário e, principalmente, do lírico e do lúdico.
“Mulher na janela” é um quadro emblemático na obra de Cícero Dias. A mulher de azul seminua contempla uma paisagem tropical. As cores são as básicas e poucas derivações: azul, verde e um pouco de vermelho. A nitidez do contorno já indica uma técnica mais apurada, uma preocupação com a estilização dos seus motivos, uma paleta mais segura, tudo resultado de maior disciplina formal que o artista vai buscar e encontra na Europa.
No entanto, o lúdico, que é decisivo no seu estilo, não está descartado em obras desse desenvolvimento por assim dizer mais formalizante. Ao contrário. Há até um tímido exercício de metalinguagem, quando o pintor brinca com a ambiguidade de certas aproximações ou semelhanças visuais dadas muito mais pelo olhar do observador, perspectiva, ponto de vista ou organização espacial que pelo objeto em si.
“Guarda-chuva ou instrumento musical”, “Mamoeiro ou dançarino”, “Galo ou abacaxi” são quadros que se configuram dos mais lúdicos, na já intensamente lúdica produção do artista. São pinturas de transição: pode-se afirmar sem receio de erro. Os próprios títulos com a conjunção alternativa indicam isso. Claro que há uma ironia marota sem maldade num artista que nunca se notabilizou por fidelidade ao real. É o anti-mimetismo por excelência. O que se deve sublinhar, no entanto, é que a ambiguidade acentuada pelas telas “se inspira” nos elementos cromáticos e não na aparência de cada uma dessas figuras – galo, abacaxi, mamoeiro, dançarino, guarda-chuva, instrumento musical.
Um guarda-chuva tem o ângulo habitual mudado, horizontalizado, para forçar uma mimese com um instrumento de música. Guarda-chuva, aliás, que é um objeto facilmente apanhado pelos surrealistas ou pré-surrealistas como Lautréamont para pretextos expressivos. Foi Lautréamont quem definiu a própria beleza como o encontro fortuito numa mesa de dissecação de um guarda-chuva e uma máquina de costura.
Em Pernambuco a associação de guarda-chuva com música ou, até mais, com dança, nada tem de surrealista. O frevo, o tradicional ritmo do Recife, é muitas vezes dançado com uma sombrinha – espécie de guarda-chuva de mulheres. Claro que o termo guarda-sol é muito mais preciso; porém, este é muitíssimo menos usado no Nordeste que guarda-chuva.
Quanto ao quadro “Mamoeiro ou dançarino” também é menos surrealista ou bizarro do que se possa imaginar. No máximo, talvez exótico. Neste caso, a ambiguidade provém não da forma do fruto, mas do seu desenho, posicionamento no espaço. A forma própria de certas árvores termina por sugerir uma nova “identidade”. No caso, o mamoeiro tem o caule que imita as pernas de um magro bailarino. É a forma do desenho o que sugere. No caso do galo ou abacaxi, o aspecto pitoresco é o que mais se releva, não só porque a forma de algo que lembra outro algo, mas certos aspectos geométricos da anatomia de um galo podem lembrar o abacaxi ou vice-versa? Não. Num e noutro caso, é o lúdico, a ironia o que se tem com a representação e a percepção da pintura.
Já se sabe a valer o quanto o público valorizou no decorrer dos tempos a representação, a exatidão, a mimese como indispensáveis à pintura: os modernos puseram isso em xeque. Os surrealistas como Magritte de “Isto não é um cachimbo” levaram às consequências mais radicais questões como essa de representação.
“Na praia” – óleo de 1942 mostra um casal – mulher seminua: cabeça descoberta; homem de branco, duplamente de chapéu, pois que leva um guarda-sol. Atentar que nesses três quadros – “Mulher na janela”, “Guarda-chuva...” e “Na praia”, já não é o desenho simplesmente o elemento de composição soberano, mas a luz. O uso do branco e de cores suaves dá a “Na praia” certo frescor tropical, apesar do calor intrínseco representado pelo sol e pelo mormaço. O branco da roupa de ambos os personagens se dilui em luz; o chapéu e o guarda-chuva sendo de cor azul é como se levassem um céu e o mar em si. As figuras de ambos (mulher inscrita em casa – e o homem – mais próximo da água) estão protegidas do sol, que, aliás, dissolvido se encontrará talvez nas cores do chão e do cabelo da mulher e em certo contorno, mas não é representado.
Das pinturas da década de 40 sobressaem estes elementos: cor e luz. A paleta engrossa, o contorno se torna mais generoso. É evidente o “aprendizado” cubista na disposição das formas. Já não se trata mais de tempo e espaço enquanto meios de representação e figuração, e sim como um esgarçar, um transfigurar. Pela primeira vez na obra de Cícero Dias é a pintura que dialoga consigo mesma. O mise-en-abîme não se faz por quadros dentro de quadros, mas por quadros que incluem cavaletes, e por cores que “conversam” com cores. As mulheres já não contemplam simplesmente o mundo, como da janela, mas a si mesmas – em outras – e a si mesmas – em espelho. Há menos autorretratos e mais retratos da mulher amada. Mulher e pintura parecem ser uma só. E a pintura estava em plena transição.
Quem observar atentamente a trajetória de Cícero Dias logo se dá conta de que há etapas bem marcadas na sua pintura. O primeiro momento e, para muitos, o melhor e mais autêntico e original, é o das aquarelas. A pintura amplamente erotizada, “com uma porção de imoralidades”, como disse Mário de Andrade, ou “surnudista”, como definiu Gilberto Freyre, acompanha o pintor até a sua mudança para Paris. Mesmo na primeira exposição que ali realiza, em 1938, o espírito ilógico e absurdo das situações livres que põe em quadros ainda está presente. A primeira mudança substancial começa a ocorrer no período de transição, que é a sua estadia em Lisboa, coincidentemente um período de transição, pois durante a Segunda Guerra.
A decisão de se fixar em Lisboa nesse tempo e não na Suíça ou nos Estados Unidos (as suas duas outras opções viáveis) selou o destino da arte de Cícero Dias. Nesse tempo, que perdura todo o período final da Guerra, Cícero Dias trabalha na embaixada do Brasil no país que o colonizou e definiu alguns dos traços mais característicos de suas raízes. O contato com pintores como Almada Negreiros (companheiro das aventuras vanguardistas de Fernando Pessoa) e Carlos Queiroz e muitos outros serve de estímulo e apoio ao desenvolvimento de sua obra.
Nos quadros que pintou nesse tempo se percebe os resultados de sua “pesquisa”, dos estudos dos seus meios (pensava em organizar nesse tempo um dicionário de cores, que deixou inconcluso). Percebe-se uma busca de maior sistematização da técnica e uma inserção mais profissional no circuito das artes. Devido às carências do tempo de guerra é obrigado muitas vezes a preparar os seus próprios materiais para as telas e até improvisá-los. Com isto, ele aprimora a intimidade com os seus materiais.
Assim é que, quando retorna a Paris, o que se tem é um pintor que já não pinta mais os mesmos motivos da juventude anárquica de Escada, Recife e Rio de Janeiro. Foram dois anos apenas em Lisboa, mas de tal modo intensos que ele, ao retornar à França, estará pronto para novos voos estéticos.
O pintor maduro – tem, em 1945, quando volta a Paris, 38 anos – não está à procura de escandalizar ninguém. Nem almeja chocar os salões burgueses, como os vanguardistas de antes. Termina, entretanto, por surpreender os seus amigos com a sua guinada para a arte dita abstrata. Ele que já desconstruía e deformava desde as aquarelas vai ao encontro de um cromatismo intenso. O seu tropicalismo não fala mais pelas cenas, mas pela atmosfera pictórica que consegue transmitir com as suas novas cores e formas. É como se o “dibujo” fosse agora “diseño”. O traço livre cede vez ao projeto. O literário na sua arte fica menos explícito.
Um Cícero Dias menos primitivo, mas igualmente instintivo, é esse que volta pra sempre a Paris. Curiosamente, não se pode dizer que o rumo abstrato represente uma ruptura. Ele continua a fazer o que se sempre fizera. A sua inspiração continua idêntica. Os valores também. O que muda é a forma, a estrutura.
A verdade é que, não tendo sido nunca um realista, um acadêmico, nem sequer um modernista tão canônico a ponto de seguir alguma cartilha à risca, Cícero Dias escolheu, desde o início de sua carreira, um caminho muito pessoal em arte, por mais que essas escolhas sempre estejam limitadas ao tempo e às circunstâncias. Em Paris, foi bem acolhido, e, lá, nunca se afastou das raízes de Pernambuco. Mas, no Brasil, alguns intelectuais viram na opção pelo abstracionismo algo de simplesmente internacionalizante, um cosmopolitismo do tipo que muitos consideraram uma verdadeira enfermidade de Joaquim Nabuco. Os mais críticos julgaram encontrar no seu abstracionismo uma rima ideal para oportunismo.
Quando é que nasce o abstracionismo na obra de Cícero Dias? Pode-se que estava latente desde as aquarelas. A própria fase chamada de “vegetal” não é uma descoberta sua em Lisboa, mas um aprofundamento do que já vinha fazendo no Brasil. Não é possível ver uma só de suas aquarelas (ou dos seus primeiros óleos) desprovida de flor, folha, planta. O que se dá em Portugal é uma melhor sistematização dos seus meios. A diversificação de certos motivos de um repertório não muito largo, os seus de sempre.
A geometria no espaço, por exemplo, que antes se observava quase tão somente num ou noutro teto dos casarios tão frequentes na sua obra (inclusive na juventude) ou de modo sutil num piso, num gradil, num jardim, numa praça, num rendilhado de roupa ou num detalhe de um móvel etc., a partir de Lisboa vai-se despindo cada vez mais de qualquer vocação (que ele nunca a teve) para a semelhança.
A mudança se verifica até no modo de batizar os quadros. A palavra “Composição” é a mais frequente. “Composição” é tanto um guache de 1951 – em que um casario de várias cores tem como contraponto folhas exuberantes – quanto vários quadros de um abstracionismo mais ortodoxo. O pintor faz questão de chamar a um determinado quadro – um óleo sobre placa –, também de 1951, simplesmente de “Abstração”. É o Cícero Dias da metalinguagem o que aparece a partir da década de 40. Quem sabe o seu interesse por isso tenha nascido da vocação jamais consubstanciada em diploma pela arquitetura.
Tudo a partir das abstrações de 1950 adiante vai se tornando mais e mais geométrico e decorativo. O que havia de literário cede vez a uma pintura pura. É pintura de grandes blocos de cores distribuídas na maioria das vezes em figuras planas como paralelogramos. As cores são as suas características ou favoritas – com predomínio do vermelho e do azul, e de algumas tonalidades mais escuras – não muitas. Mas, o verde, ainda tão soberano nas aquarelas, nos primeiros óleos figurativos e nos seus primeiros abstratos, já não tem o mesmo protagonismo absoluto.
A abstração em Cícero Dias mais do que a vitória simplesmente de uma cor ou de uma determinada tonalidade, representa, sim, o triunfo indiscutível da luz. Claro que há uma busca de regularidade, de simetria, de constância, e nisso o abstracionista é o antípoda do boêmio e anárquico dos anos 20 e 30. Equilíbrio é agora a palavra de ordem. Até em quadros que se chamarão “Entropias”. Os seus amigos do tempo do modernismo têm saudade de um pintor aparentemente ingênuo, um meninão. Mas a consciência o guia – sempre guiou – a buscar variações para a sua arte. A diferença agora é que o caos que antes ordenava o mundo agora está bem ordenado, como se metrificado.
Que pintor abstrato é Cícero Dias? Não é certamente o do tipo esotérico, nem neoplasticista ou suprematista, embora talvez se encontrem fragmentos disso, daquilo e de outros dos tantos abstracionismos, porventura num ou noutro dos seus quadros. Há, na verdade, mais de um momento abstrato em Cícero Dias. No primeiro, tanto existem elementos líricos e musicais como de figuração ainda não de todo abandonada (aliás, ele nunca vai realmente deixar de pintar figuras). É um lírico e um orgânico que convivem nele em sintonia e em harmonia. O que fez nas décadas de 40 até 60 também o aproxima do informalismo e dentro desse subgrupo o que pintou na sua primeira etapa em Paris, depois da Segunda Guerra, costuma ser classificado como “Abstração lírica”.
Com a sua pintura abstrata ocorre o mesmo que com aquela de pessoas e paisagens: os temas e as suas expressões sofrem uma ou outra variação no decorrer do tempo, mas ser alterar a sua unidade essencial que é tanto cromática quanto temática. Depois das etapas prévias, três segmentos principais podem ser detectados nos seus quadros abstratos: os líricos, os geométricos e os entrópicos.
Afortunadamente, Cícero Dias nunca foi um dogmático – nem quando pintou pessoas, casas, bichos, plantas, objetos, mares, rios, sóis e luas nem quando “construiu” com cores linhas os seus sólidos abstratos e concretos. Nesse campo da linguagem e da abstração, convém ler o que escreveu Octavio Paz:
“Depois do classicismo dos primeiros abstracionistas e do romantismo do ‘expressionismo abstrato’, nos faz falta um maneirismo, o barroco-abstrato”.
Talvez seja nesse barroco que se deva incluir o abstrato de Cícero Dias. No que pintou não se encontra nem o silêncio, de Mondrian, nem o gritode Pollock, referidos por Paz, mas quem sabe um sorriso, um riso, algo de solar e limpo, mas que não recusa os contrastes. O método para situar bem os seus quadros abstratos obrigará o observador a, antes de tudo, explicar de modo convincente o seu trabalho com a cor. A tarefa é mais difícil do que parece, não somente no seu caso, mas o de uma morfologia da cor em geral, como bem refletiu Wittgenstein:
“Se houvesse uma teoria da harmonia da cor, talvez começasse por dividir as cores em grupos, proibindo certas mesclas ou combinações e permitindo outras. E, como na teoria da harmonia, suas regras não se justificariam”.

3. La recherche du temp perdu
Se as luzes, as cores do Nordeste dão um sentido tão original e único às pinturas abstratas de Cícero Dias, deve-se dizer que a união dos motivos regionais à técnica mais desenvolvida na Europa resultou numa pintura em que a beleza foi sobrepujando os motivos simplesmente expressivos. A volúpia e a luxúria das primeiras décadas de sua pintura cedem vez, passo a passo, a uma calma, de “emoção relembrada em tranquilidade”. Como num diagrama lógico: o Cícero Dias que estabelecia a tese com suas figuras sem freios dos primeiros anos de pintor, e definiu a antítese em figura nenhuma da etapa abstrata, termina por encontrar a síntese, a partir da década de 60 (ou no final na de 50, dependendo do período em que se date o seu retorno à figuração).
Quando volta a pintar pessoas, coisas, plantas, casas e animais, é como se dissesse, como Castro Alves: “Natureza, eu voltei! Eu sou teu filho!”. Pródigo em imaginação e memória. O que ele pinta tem de novo motivação explicitamente brasileira, nordestina, pernambucana. A um grande panorama como “Recife lírica” corresponde um quadro como “Seresta”. Lá estão a arquitetura (mansões vermelhas, rosas e azuis), a música (um homem toca violão), barco e rio, a vegetação exuberante, mulheres – uma delas seminua, outra com espelho. Tudo, no entanto, é muito discreto e quieto.
Sim, as flores também voltaram. Estão mais em jarros do que nas mãos das amantes, como era mais comum nos anos 20 e 30. Ao invés da mulher na janela ou na cama, elas estão com os seus maridos, em passeio pelas ruas, repousadas num jardim, em confraternização com os vizinhos, ou diante de espelhos.
Há uma tela dessa fase intitulada “Nostalgia”. Poderia o nome servir para quase tudo desse momento de Cícero Dias. Momento de retorno, de evocação. O menino buliçoso cede vez ao homem bem vestido. Tudo é bem comportado. O clima é familiar e doméstico.
Com todo o risco do anacronismo quando se usa um termo de significado histórico preciso para outro contexto, não há dúvida de que esses quadros em que Cícero Dias retoma a representação e elege cenas familiares como os motivos principais exprimem um surpreende veio rococó na expressão.
Rococó, note-se bem, sem nenhuma conotação pejorativa, e sim metafórica (de modo nenhum, se deseja evocar aqui pinturas suaves, pastel claro etc.). Rococó antes de tudo pela ênfase decorativa que emana dessas pinturas. Não há ali as “rochas” (roccaile, de onde se deriva o nome rococó) nem vários dos aspectos obviamente restritos àquele movimento do século XVIII. Nem há conchas. Mas os elementos vegetais e os jardins estão em profusão.
Se há um laivo rococó nessas pinturas idílicas de Cícero Dias é pelo protagonismo da elegância, que nunca foi uma característica das suas primeiras aquarelas. Rococó pelo intimismo e pela delicadeza. Também o hedonismo e a sensualidade estão aí nos seus óleos. Só que, ao invés das festas da corte e do cortejo erótico, tem-se, por vezes, uma seresta humilde de província, como no já citado “Nostalgia”, e outro exatamente chamado de “Seresta”.
No primeiro – “Nostalgia” – há um grupo não muito numeroso de pessoas num cenário bucólico, um verdadeiro locus amoenus, com música (um homem toca um violão e se veste formalmente – os trópicos, onde se passa a cena, costumam ser quentes). Pelas características do vestuário e disposição familiar a cena repete ao final do século XIX ou começo do XX. Chapéu, bengala, por exemplo, eram objetos obrigatórios da indumentária pernambucana das classes bem situadas economicamente nesse período referido, mas caíram em desuso. Note-se também o detalhe do desenho onde estão postas as flores.
A igrejinha num plano elevado e o mar ao fundo das casas coloridas complementam a paisagem com figuras. Há elementos lúdicos a valer: brinquedos de criança, mastros enfeitados. A mesa está prefigurada quase como uma natureza-morta. O conjunto colorido é singelo. O casal que parece receber todas aquelas pessoas está sentado de costas para o observador e de frente para os seus amigos. As figuras não são “retratadas”, são esquemáticas. Tudo está organizado de modo a sugerir um tempo mais que um espaço, ou um espaço de tempo que já passou.
Parece uma volta nostálgica de Cícero Dias às décadas de 20 e 30, como motivação, mas a figuração rememorada não parece falar do presente dessas décadas. Fala de antes. Nesses quadros estão a arquitetura, o elemento líquido (dado geralmente pelo mar ou pelo rio, ou em conotações mais simples, nos barcos brancos e nas águas verdes), as flores e os frutos (destaque-se o amarelo da cena a sinalizar ainda mais luz, enfatizada num raro girassol), jarros de flores. O colorido, a policromia dos mais intensos.
“Seresta” evoca o mesmo tema do quadro mencionado antes. Há também a arquitetura, o verde marinho, o céu azul e branco, as flores, os móveis, o violeiro e as figuras femininas que são as centrais. Mas a temática e o modo de expressão são outros. A começar da exuberância que substitui a leveza mais ou menos pronunciada da nostalgia. A paleta se avermelha. A atmosfera é mais frenética e feérica do que em “Nostalgia”. O modelo para o seresteiro (o que toca o violão) parece o mesmo, mas o foco é outro: parece que direcionado agora à sedução. Há uma sexualização mais marcada. Não se trata simplesmente de uma cena familiar. O alvo é o grupo de mulheres na janela (decorada com o mesmo motivo recorrente de outros quadros florais do próprio Cícero Dias).
É como se nessa tela tudo se visse numa certa lente de aumento, em que o elemento de composição florido, floreado, fosse destacado. A economia de personagens serve para acentuar o foco na seresta. O que é uma seresta? Uma serenata tipicamente brasileira, que esteve em voga até à primeira metade do século XX. O repertório e o tom das músicas se destacam pelo sentimentalismo. Antigamente, a cena da seresta tinha sempre dois personagens principais: um violeiro e uma mulher na janela.
 O “resultado” de “Seresta” aparece, por assim dizer, em “Prelúdio”. O escorço musical aqui é maliciosamente dúbio, pois indica mais do que a música, a melodia disto em sexo. A figura masculina faz o mesmo que as anteriores e está vestida também de modo elegante, mas o modelo é outro, mais jovem e prescindindo do formalismo acrescentado do chapéu. Toca o violão, mas está quase colado de tão próximo à figura feminina: uma morena inteiramente nua deitada com ele na cama. A cama está junto a um espelho, discretamente. Do lado esquerdo, outro esquema de natureza-morta e marinha: as flores protagonistas e cajus. Lá fora, entrevisto pela janela aberta da casa, o mar verde.
Ainda nessa mesma época do quadro (anos 60 ou finais dos 50) há outros trabalhos em que o motivo do músico aparece, a figura típica do sedutor, pelo menos desde os mitos gregos. Os quadros dessa fase podem ser chamados de líricos certamente não só pelo seu sentido autobiográfico ou romântico, mas também por certa musicalidade melodiosa deles. Sejam os quadros urbanos – em maioria – ou rurais, são idílios em forma de pintura, autênticas buscas do passado.
A figura masculina musical é um violeiro, como está explicitado no quadro “Moça e violeiro”. Neste caso, a moça loira quase se veste de flores tal o volume que assume o jarro de flores na sua frente está num plano não de interação direta com o violeiro – novamente vestido de modo formal. Distantes um pouco, à maneira dos namorados do passado.
Em “Figura no alpendre”, o violeiro aparece metonimicamente: vê-se o violão ao lado esquerdo das moças (três, como as “graças”?) num alpendre cheio de flores, e com o gradil característico de outros quadros do pintor, e mais repetidos: a arquitetura (o casario) junto ao mar.
Se Gilberto Freyre viu a realidade histórica do Brasil “do alpendre da casa-grande”, como o acusavam os seus críticos, o mesmo pode ser dito da pintura de Cícero Dias. Há mesmo um conjunto de pinturas em que o motivo do alpendre é explorado com frequência. “Figura no alpendre”, já referido, e mais “Moça e casal no alpendre” é outro, enquanto “Casal no alpendre” é titulo de mais de um quadro.
Na mesma sequência temática desses quadros, de figuras reunidas num cenário provinciano (geralmente urbano), o lirismo se dá pela evocação (memória) e não pelo sonho ou imaginação dos primeiros tempos. No entanto, ambos os conjuntos integram a mesma “fantasia” essencial do artista, a zona da mata sul de Pernambuco, e as cidades do Recife e de Olinda, principalmente.
Do mesmo repertório de que se está tratando são as pinturas “Figuras e casario”, “Cena do Recife”, “Figura, flores e casario” (mais de uma tela tem esse nome). E mais “Figuras” (mulher vestida de azul, usando sombrinha com flores nas mãos em plano principal e diversas outras figuras femininas com sobrinhas do lado oposto). “Casal e flores” e mais “Cena urbana I” (note-se o cavaleiro em detalhe acima do casario) e “Cena urbana II” em que as cenas são dispostas pelas janelas, e mais “Cena do Recife” e “Cena de Olinda”. Outra, de mesmo tema urbano, se chama simplesmente “Cena”: disposta em vários planos, a mulher está bem vestida.
Neste último quadro há inserido também outro motivo repetido – o das situações de mãe e filha. Esses motivos da maternidade se repetem: “Mãe e filha” (note-se uma “inspiração” de natureza-morta com a presença do objeto utilitário da casa, borboletas etc.). Muito azul pela janela e nas roupas da mãe; num outro quadro, sem título, as figuras femininas muito lânguidas, uma casa diante do mar, e também em “Figuras e casario”, e é claro, em “Maternidade”. A vegetação (flores e folhas) toma toda a composição.
Esse último quadro aponta já para outro tópico – o da flora em si. É assim em: “Vaso de flores”, “Flora”, em outro “Jarro de flores” (este é posto com vista para o mar e o outro para o casario), “Flora”, em que as figuras femininas – uma desnuda e outras (vestidas até o limite do véu e da sombrinha) estão “engolidas” pelo azul e verde das plantas.
Nesse teatro estático e nostálgico, há ainda outros tópicos: o do Encontro: “Na praia” (puro bucolismo do Recife olhando para o farol de Olinda, mas a cena é de tempos remotos: o casal está demasiadamente vestido), “Casal e vaso de flores” e o propriamente dito “Encontro”, em que o homem entra em casa, tira o chapéu diante da noiva, que, como antigamente, não o recebe sozinha, mas acompanhada de uma provável irmã que organiza as flores.
Há momentos em que aspectos lúdicos – certamente marcados por filhos e infância – protagonizam, como em “Composição” (note-se a já marcada geometrização dos planos que vai marcar os quadros figurativas posteriores) e em que há o predomínio de cores como o vermelho, o rosa, o azul e o branco. Nesse quadro é uma menina que empina uma pipa. A cena é urbana. No outro, o evento é o mesmo, mas é um menino que empina a pipa no mar, e se chama “Infância em Boa Viagem”.
No mesmo subtema da intimidade, há a presença de um espelho. Às vezes está nas mãos de uma criada, enquanto a dona da casa repousa em rede, e olha o indefinido, com os seios – signo de erotismo ou maternidade – nus, e diante dela há outro espelho. Às vezes essa mulher está sozinha e se olha no espelho, mas lá fora uma figura masculina se divisa por trás da porta. Em “Figura e flores” é a mulher solitária – seminua, cercada de flores por todos os lados. Noutra, sem título, há também uma figura feminina sozinha, diante de flores e frutos, e a “protegem” véu e sombrinha, e o casario não está ausente.
Assim, a nova figuração de Cícero Dias iniciada na década de 1960 ou em finais de 1950 pode ser sintetizada pelo uso frequente de determinados motivos todos evocadores de cenas familiares, em que há destaque para figuras (sós, em dupla, ou reunidas em maiores grupos), sempre associadas à arquitetura (casario, alpendre, jardim), e a elementos vegetais (flores, folhas, frutos).
A figuração lírica de Cícero Dias prossegue na década de 70 em uma nova gradação. Basicamente, há uma geometrização mais pronunciada e a paleta do pintor se ilumina mais. As cenas familiares se concentram no casal. O pintor não abandona o tópico “noivos e flores” e mulher (noiva, namorada, esposa) com seios à mostra, e homem (bem vestido, de chapéu). A composição busca um maior dinamismo (as da década de 60 são mais plácidas, quietas) e um acento na simetria. O movimento está bem evidente num quadro como “Enamorados”, contribuindo para isso o modo como estão empregadas as linhas e as cores. O mesmo ritmo – só que verticalizado – se nota em “Casamento”. A simetria está ainda mais viva. O casal se posiciona no centro da tela. Equilíbrio e colorido definem toda a composição.
Mas as pinturas dos anos 70 não se limitam ao velho tema do casal, convencional, familiar, em ritos sociais de namoro, noivado e casamento. Essas verdadeiras crônicas de costumes se expressam também em telas compostas com cenas de planos simultâneos do cotidiano, em que a figura da prostituta por vezes volta com discrição. “Cabaré” pode ser um bom exemplo.
Em outra tela como “Rio de Janeiro”, a cena urbana se extrema em planos simultâneos. Os motivos são os de antes, mas a paisagem se constrói por esquemas. A geografia tanto quanto as pessoas se geometrizam. É também o Rio de outro tempo, da nostalgia, da seresta, das sombrinhas, de uma arquitetura eclética ou neoclássica.
A geometrização e a distribuição em planos simultâneos das figuras se afirmam ainda mais em quadros batizados de “Composição”. Num deles, o tópico do casal com flores se torna mais tropical, seja pelos frutos mais nítidos e afirmativos, seja pela informalidade (sem exagero) dos trajes de homens e mulheres.
Em outra “Composição”, em planos também bem definidos e delineados, “emoldurados” mesmo pela grossa linha de contornos verticais de modo a construir janelas individuais e independentes – mas no conjunto interdependentes – apesar das figuras, o protagonista aqui é a cor, ou melhor, as cores – azul e vermelho, em mais de uma tonalidade.
O adjetivo “lírico” foi empregado por Cícero Dias para designar certa visão amena do Recife. Urbano, mas ainda não vencido pelas grandes construções, o povoamento desordenado e a tensão social crescente da segunda metade do século XX. Na década de 70, ele chama de “Cena lírica”. É uma esquematização de pequenos flagrantes da vida num engenho de cana-de-açúcar. Mesmo sendo o cenário rural, o motivo humano é o mesmo: a figura feminina idealizada. Cena é uma palavra que significa muito nessa nova etapa de sua produção, pois, embora se possa entender com o sentido puramente plástico de vista, panorama, paisagem, cenário, não se deve ignorar o quanto de teatral – de teatro bidimensional – há nessas pinturas. São crônicas mais do que contos, porque destes não herda a tensão e também porque retratam fundamentalmente o dia-a-dia de lugares que o pintor conheceu bem no Brasil. No caso de “Cena lírica”, o engenho aparece como um “logotipo”, em que o pequeno morro em que está o casario e a igreja “dialoga” com a parte de baixo da cidade, com carro de boi, casario popular e cena de passeio e trabalho.
Dessa mesma época ainda merecem destaque três quadros: “Figuras na rede” – que retrata a mesma temática do repouso. Há, entretanto, uma ênfase muito feliz na simetria de azuis e vermelhos, quanto à técnica, e um preciso emprego dos motivos tropicais (a rede, as roupas, a arquitetura) quanto à temática.
Os segundo e terceiro quadros a destacar ampliam o repertório e o vocabulário pictórico do artista, tanto pelo tema, “O equinócio” e o “Ex-voto”, quanto pelo misto de abstração lírica e figuração construída apenas de elementos estritamente essenciais pelo artista. Alguém dirá com razão que a inspiração na astronomia e o tema do dia e da noite já estiveram antes nas atenções do pintor. E que a cena que inclui casal, barco e janelas apareceu outras vezes em sua produção. Mas em quantos outros quadros com tanta leveza e precisão da mão na disposição das linhas e no cuidadoso emprego de motivos geométricos?
Quanto ao “Ex-voto”, será fácil lembrar-se alguém de que a religiosidade popular esteve em outros momentos nas atenções de Cícero Dias. Menos fácil será citar um quadro tão distinto, em que a geometria é tão presente que talvez fosse mais adequado incluir esse quadro entre os de sua etapa abstrata, mais até do que na sua nova figuração.
O aporte figurativo da década de 80 é um linear desdobramento dos motivos da década de 70. As figuras estão cada vez mais tropicais e numa atmosfera como de férias. “Canoeiro” tematiza simultaneamente os topoi das “graças” do “casal”. A paisagem e a vegetação se abrem. Em dois planos, o verde, o vermelho e o azul se constroem com os mesmos motivos também de natureza (as flores, onipresentes em quase todas as telas dão lugar a árvores, folhagens e frutos) e a cultura (o casario, o barco, as roupas).
Se há mesmo uma característica a individualizar estas telas da década de 80 escolhidas para esta exposição é que não estão mais sob o signo das flores (mas ainda presentes de moto convencional em “Languidez” – um jarro, que só decora e dá equilíbrio ao ambiente) e em “Placidez”, também um ramo luminoso, mas sem protagonizar pelo volume, nas mãos de uma moça.
No entanto, o papel menos destacado das flores nessas telas não quer dizer ausência da motivação vegetal que marca tanto a figuração quanto a abstração de Cícero Dias – a ponto de ser justo chamá-lo de um pintor com vocações ecológicas, ambientalistas, paisagísticas sempre. A vegetação está representada em esquemas de árvores e na estilização da folhagem, seja verticalizada em amarelo e horizontalizada em verde, amarelo e azul e branco, como em “Olinda e Recife”.
Seja com uma função realmente floreal, como em “Convento de São Francisco em Olinda”, ou ainda de modo algo discreto, em “Espera”, e novamente na forma de flor de “Moça no barco”.
Nenhum protagonismo tem a vegetação em “Despedida”. Ali, em planos de novo simultâneos, as cenas de família, todos em trajes tropicais (de volta está a sombrinha rósea para as mulheres e o chapéu marrom para os homens). Aí são as cores – verde, azul e vermelho, principalmente – que dominam a cena.
Embora na década de 80 os velhos motivos musicais e de cenário urbano estejam presentes, o que talvez melhor defina esses quadros desse período e talvez todos os da nova figuração de Cícero Dias seja não tanto a forma das figuras e o elemento de composição, mas a atitude, a atmosfera. Alguns títulos falam bem de tudo isso, dessa passividade tranquilizadora e paradisíaca, burguesa mesmo, dessas cenas e paisagens. Duas palavras resumem tudo: placidez e languidez.
Todos esses movimentos de languidez, placidez e vida em família acentuam tudo o que há de romântico e lírico no que Cícero Dias pintou na década de 80. Mas nem só de lirismo vive o homem e muito menos o artista. Um quadro de encomenda leva-o de volta ao épico e dramático de que já dera mostras em obras como “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”, da juventude. E também, de certa forma, nos murais abstratos e semi-abstratos que pintou em várias paredes da Secretaria da Fazenda no Recife, em 1948.
Desta vez, no começo da década de 1980, é de novo um prédio governamental o que vai abrigar uma série nova de pinturas. Pinturas do gênero histórico. Pela primeira vez realiza um trabalho tão diretamente político para um edifício público. Homenagem a um herói do passado, síntese de certo tipo de nacionalismo e regionalismo. Não o reconstitui em murais, e sim em tela, que pinta em diversos conjuntos, no seu próprio atelier, em Paris, e depois são transportados a Pernambuco.
O tema é o revolucionário Frei Caneca, que atuou em duas das chamadas revoluções libertárias que notabilizaram Pernambuco: em 1817 e 1824. Ao fracassar esta última, foi preso e executado. Os painéis resumem a vida desse religioso e político, e especialmente os cenários onde atuou em sua luta.
Esses painéis têm podem motivar interesse não só pictórico, também uma função didática. São pinturas que retratam quase com um jeito de história em quadrinhos fatos e lugares bem conhecidos dos pernambucanos cultos. Nenhum outro trabalho em pintura é mais completo do que este sobre os principais momentos do frade carmelita. É pintura ao mesmo tempo histórica e biográfica. Há inscritas nos painéis frases como Typhis Pernambucano (o jornal onde Frei Caneca expôs suas ideias) e engenhos do Cabo e Utinga, cenários do tempo em que Pernambuco se rebelava. Sendo reportagem literal de acontecimentos e personagens históricos, um roteiro didático que acompanhasse as pinturas certamente seria útil à sua compreensão às gerações mais moças ou aos que tenham um conhecimento limitado da história das revoluções brasileiras do século XIX e seus principais líderes. 




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Mário Hélio (Brasil, 1965). Jornalista. Autor de livros como O Brasil de Gilberto Freyre (2000), O Recife melhor do que Paris (2000), e Cícero Dias - uma vida pela pintura (2001). Contato: mariohelio@gmail.com. Agradecimentos especiais a Lucila Nogueira. Agulha Revista de Cultura # 56. Março de 2007.








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