Escrever
sobre Fernando Arrabal pode significar ao mesmo tempo um desafio e um
atrevimento. Primeiramente, considero um desafio porque o volume, a
complexidade e a abrangência de sua obra inviabilizam a possibilidade de
abordá-lo num mero ensaio e, ao mesmo tempo, garantir devida fidelidade.
Ademais, acredito ser um atrevimento porque falar de um gênio é incorrer alguns
perigos. Mas mesmo levando em conta todos estes riscos, aceitei o desafio e
assumi meu atrevimento, embora tenha optado por apenas comentar alguns aspectos
do romance La Vierge Rouge que, apesar de não ser uma obra de
teatro como o espaço que costumo mais frequentemente transitar, traz alguns dos
muitos elementos que definem a linguagem arrabaliana que, diga-se de passagem,
foi o que muito me impressionou.
Se realmente
ocorreu, na metade do século XX, na Espanha, um fato que inspirou Fernando
Arrabal a escrever La vierge rouge, isso já não tem qualquer
importância. Para a genialidade de Arrabal, a história torna-se um mero
pretexto para a criação, pois se a história é verdadeira ou não pouco importa,
porque a verdade se dá em perspectiva, onde existir e não-existir passa a ser o
mesmo. Assim, se é possível estabelecer paralelismos e diferenças, colocando de
um lado o fato histórico e do outro o fato artístico, a realidade da história é
menos real que La Vierge Rouge, considerando que a única semelhança
entre o que aconteceu e a sua literatura é que alguém premeditou uma criação,
mas a riqueza e a realidade de Arrabal são terrivelmente superiores. A terrível
superioridade da obra de Arrabal sobre o chamado fato histórico é que, quando
ele escreve, a vida se dá como ela é, ou seja, como algo impossível de se
compreender. Mas a impossibilidade de se compreender a vida é justamente o que
nos enriquece de conhecimentos, tendo em vista que tais conhecimentos são
resultados da busca, da intencionalidade, mesmo que não se chegue a lugar
nenhum, conforme o caráter utilitarista de nosso modelo civilizatório. A busca
é o seu próprio processo.
Mas e o que
isso tem a ver com Arrabal? Tudo, pois Arrabal é a busca de si mesmo e do outro
e não é por acaso que sua linguagem se esgota e se renova, se torna
auto-suficiente e insuficiente ao mesmo tempo, para dizer que um discurso morre
de seu próprio veneno. É dizer que a importância da linguagem em Arrabal,
tendo La Vierge Rouge como alvo dessa observação, se dá como
uma espécie de tauromaquia, pois o meneio de seus vocábulos faz com que as
categorias ou os juízos de valor se construam espontânea e dinamicamente. Na
obra em questão, não interessa ou acrescenta muito a existência de uma idéia de
ordem ou desordem, pois cada capítulo é independente, tem vida própria e diz
por si mesmo. É claro que no conjunto estabelece um enredo, mas este enredo
necessita sempre ser montado como um quebra-cabeça, numa espécie de
fenomenologia onde o objeto-Arrabal determina o sujeito-leitor apenas no
momento que informa algo através de seu formato, de sua textura, de seu peso,
de sua substância, mas que deixa ao sujeito a tarefa de dar sentido ao objeto.
É dizer que, numa determinada parte do romance, a mãe - recordando algumas
coisas para sustentar a sua condição materna - pode até afirmar que um dia terá
uma boneca de verdade de carne e osso, mas tanto a boneca quanto a carne e o
osso são apenas possibilidades. Assim se realiza a poesia de sua obra.
Na escrita
de Arrabal há algo de pictórico, como uma tela de Hieronymus Bosch : "O
Jardim das Delícias". Assim como essa pintura que traz em si mesma o
significado como um todo, ao mesmo tempo em que de um pequeno ponto pode-se
fazer uma leitura de algo independente, La Vierge Rouge é um
livro que pode ser aberto em qualquer página. É como cortar um pedaço do tronco
da árvore e saber que neste pequeno pedaço já se encontra a árvore com a força
de suas raízes, o poder de sustentação de seu tronco, a flexibilidade de seus
galhos, a despreocupação de suas folhas, a beleza de suas flores e a suculência
de seus frutos, sem esquecer da vida e da morte que perpassam todos os seus
estágios. Não existe nem passado nem futuro. O que há é um presente que se
apresenta com todos os elementos do passado e do futuro, sempiternos. Não
existe nem começo e nem fim. O que existe é um deixar ser, quando a velha e
abominável questão entre o ser e o não-ser é apenas uma outra forma de estar no
mundo, afirmando e negando. Em alguns momentos, julgo ouvir Arrabal gritando: -
Abaixo o maniqueismo!
Não existem
grandes segredos, ou talvez nenhum, pois a impossibilidade de compreensão da
vida não se resume na simples ignorância, mas na aceitação de um código de
valores que - mesmo sem a nossa permissão - nos conduzem o sonho e ao sonho. E
não é por acaso que a Mãe justifica sua programada gravidez na compreensão de
que "se o verbo se fez carne para habitar entre nós, a carne pode ser
verbo para surgir em minhas (suas) entranhas". Mas o sonho não é
uma inovação de nada, considerando que trata-se apenas de uma organização
lógica e formal daquilo que está dado: a coerência dentro daquilo que não dá
conta de sua coerência. A mãe mata a filha que nasceu morta enquanto
possibilidade de concretizar-se humana a partir de sua própria liberdade, a
morte mata o morto com a própria morte. Uma espécie de Kali, mulher de Xiva,
deus da morte. Mas apesar de Kali, conhecida como a mãe que come os próprios
filhos, aqui parece que se comete uma espécie de autofagia, ou seja, a mãe - ao
comer a filha - come-se a si mesma, pois matando o fruto daquilo que idealizou
como a sua continuidade ou superação de sua fantasiosa e fantasiada existência,
está matando a si mesma. Dai, os imbróglios nos quais se metem as suas
personagens a bordo de seu rimbaudiano bateau-ivre, num exercício
do périplo, ou seja, uma navegação em torno de um mar, de um país. Mas este mar
e este país não se tratam de uma geografia consentida pelo senso comum.
Trata-se de um espaço poético, onde pouco e nada importa de onde se sai ou para
onde se vai. É uma negação das causas primeiras e das causas finais.
O jogo permanente
entre o belo e o sublime, o aparente e o velado, a vida e a morte, o sonho e a
realidade é a característica de Fernando Arrabal, não como a camisa-de-força do
maniqueísmo, mas como a possibilidade de estabelecer que o próprio
reconhecimento destas referências significa dizer que entre as mesmas existe um
abismo: a verdade da qual não sabemos. Neste jogo, onde Arrabal faz da
linguagem a sua morada, os sonhos são um detalhe e os personagens - Vulcasaïs,
a Mãe-narradora, Chevalier, Abélard, Benjamin e tantos outros que compõem a
trama - funcionam como uma espécie de elementos das coisas, os átomos da
Natureza, como as mônadas de Leibniz, ou seja, apesar de participarem de um
mesmo Universo, estão como unidades diferentes umas da outras, são bem definidas
e possuem um princípio de unidade interior.
Enfim,
justificando a minha escrita, faço uma paráfrase do autor de La Vierge
Rouge para afirmar que este texto inspirado em sua obra não fui quem
criou, mas o próprio Fernando Arrabal, como no abricó o caroço gera a fruta.
***
Wilson Coêlho (Espírito Santo, 1959). Poeta, dramaturgo e
diretor de teatro. 18 peças teatrais suas foram montadas pelo Grupo
Tarahumaras. Contato: wilsoncoelho@hotmail.com. Agulha
Revista de Cultura # 35. Agosto de 2003.
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