Marcello Gama, cujo nome de registro era
Possidônio Cezimbra Machado, nasceu no dia 3 de março de 1878, em Mostardas, no
Rio Grande do Sul. Com 17 anos foi para Cachoeira do Sul e mais tarde para
Porto Alegre, onde publicou os livros: Via sacra (1902, poesia), Avatar
(1905, teatro), Noite de insomnia (1907, poema), além de poesias e
textos variados dispersos em jornais e revistas. No Correio do Povo,
jornal de Porto Alegre, publicou muitas crônicas e crítica literária. Fundou a
revista Artes e letras (1898) e A lua (1900), esta última em
Cachoeira do Sul. Com Zeferino Brasil criou também a revista teatral A peste
bubônica. Suas obras completas, reunidas e publicadas pela Sociedade
Felippe D’Oliveira com o título Via sacra e outros poemas (Rio de
Janeiro, 1944), trazem os três livros mencionados acima mais poemas inéditos,
copilados com o título de “Dispersos”.
Era seu companheiro de
boemia, além de Zeferino Brasil e outros escritores riograndenses, Felippe
D’Oliveira, com quem mais tarde seguiria trabalhando junto no Rio de Janeiro,
aonde ambos foram viver.
É interessante a amizade
entre eles, pois se encontram em Gama certos aspectos proto-surrealistas e
Felippe D’Oliveira será quem, no Brasil, publicará o primeiro livro de poesia
surrealista: Lanterna verde, em 1926. Parentescos estéticos com Gama, na
obra de D’Oliveira, nota-se em seu primeiro livro, Vida extincta, de
1911, bem como em versos de Alguns poemas, livro póstumo de 1937. Fato,
aliás, bastante natural, considerando a amizade e o comum convívio no meio
ambiente simbolista da Porto Alegre do início do século passado.
Pouco há sobre Gama na
historiografia crítica brasileira. E quando sobre ele se diz alguma coisa,
costuma-se ligar seu nome ao de Cesário Verde, talvez por conta de Andrade
Muricy, que o incluiu no Panorama do movimento simbolista brasileiro,
dando-lhe um lugar no limbo de nossa literatura e fazendo menção à
poesia do cotidiano de Cesário Verde e Mário Pederneiras. O que os posteriores
repetem até hoje (esquecendo-se, no entanto, de Pederneiras). Afirmações como a
de Massaud Moisés, por exemplo, de que “Marcello Gama filiou-se, mais do que
outros simbolistas, à poesia do cotidiano de Cesário Verde” (1984, p.97)
parecem-me ter mais motivos lusófonos do que consistência. Gama não era
‘filiado’ a ninguém, como também é duvidosa a ‘filiação’ desses “outros
simbolistas”. O simples fato de um poeta ler outro não significa que se possa,
menos ainda que se deva, reduzi-lo a uma sombra poética, ou a uma ‘filiação’.
O que não significa que não tenha, obviamente, alguns traços de Cesário em sua
poesia. Sabe-se que Cesário, Antonio Nobre e, pouco depois, Sá-Carneiro e
Fernando Pessoa, cá deixaram reflexos, sobretudo na segunda geração simbolista,
à qual Gama pertenceu. Mas nada mais do que reflexos.
Por outro lado,
“legítimo precursor do Modernismo” é um tipo de afirmação de quem procura
aproximar forçadamente (sempre!) poetas do início do século XX ao “movimento
revolucionário de 1922”
(sic), como faz Moisés (1984, p.100). Quando o contrário é o que parece ser
mais coerente: os ‘modernistas’ é que são pós-(simbolistas), já que em toda e
qualquer parte a modernidade literária, pós-romântica, nasce com decadentes e
simbolistas.
***
Marcello Gama, que dentre muitos poetas é só
mais um decadente por natureza e simbolista, talvez, por opção, criou uma obra,
assim como uma vida, movimentada inteiramente pela poesia. Não apenas isso tem
alguma transparência em seus versos — “nasci para ser poeta... E que querem que
eu faça?” (GAMA, 2010, p.28) —, [01]
como também em sua vida: “integralmente poeta, queria viver no sonho e no mundo
da poesia”, observou Andrade Muricy (1973, p.714). O que significa, aliado ao
espírito ácrata de muitos de seus versos, que ele vivia a poesia em
movimento.
“Esse notável poeta,
escreveu ainda Muricy, nunca se submeteu às obrigações duma vida regular, à
burocracia, nem buscou sinecuras. Foi jornalista e conferencista e, por fim,
empregado de escritório comercial. Tinha horror à vida do quotidiano, à vida do
profissional”. Nem mesmo fez os tais “estudos regulares” (1973, p.714), o que é
de se supor que era autodidata.
Não deixa de ser curioso
então, e contraditório, que um poeta que tinha “horror à vida do quotidiano” seja
mencionado como tendo “pendor para os temas do cotidiano” (MOISÉS, 1984, p.99).
Gama, sem ser um boêmio
radical como o andarilho Fagundes Varella ou o festeiro Bernardino Lopes, era,
no entanto, um boêmio; e isso se nota em sua poesia, onde aparece por vezes
referências à vida noturna. Em Noite de insomnia há menção a um passado
em que na “quietação da rua (...) Eis-me então a vagar, sem canto onde
pernoite,/ discutindo commigo o sonho, a fome e a noite.” (p.27). No poema “Eu”
há esta pergunta: “Que fiz eu nestes vinte e tres annos?”, seguida desta
resposta: “Nada fiz!... Nada sou!...”, e ainda: “nem sempre ando limpo...”
(p.46). O que lhe dá um caráter de poeta maldito que não esconde seu
comportamento.
Assim o aspecto mais
evidente de sua poesia, parece-me, é a sua intimidade que aí se revela. Pois
ele é um poeta intimista, um lírico intimista. A figura de seus familiares (a
mãe falecida, as irmãs, etc.), suas crendices caseiras (o “agoiro”) e a sua
lida diária com a poesia, carregada de certezas e dúvidas — “Sono un poeta o
sono un imbecille” (GAMA, p.50) —, são uma constante nos seus versos. Por
outro lado, além de uma freqüente referência a si mesmo, há o humor e certa
rebeldia ético-política de caráter anarquista.
E vale dizer, Gama não é
um poeta de vocábulos raros, como foram muitos de seus contemporâneos
aparentados, como ele, do Simbolismo. Sua linguagem é de fácil acesso, e sua
poesia, mesmo que colorida pelo humor, muitas vezes sarcástica, ou por vezes
indignada com a vida e com os viventes, é sombreada pela constante presença da
morte. O que lhe permite um lugar entre os poetas do Decadentismo brasileiro.
Mesmo Massaud Moisés o aceita como de “respiração decadente e simbolista”
(1984, p.98). E o seu principal poema, Noite de insomnia, com aquele “E
zás! derramo a tinta!” (p.42), seguido de um ato de excessiva crendice popular,
leva-nos a pensar em uma exacerbada sinceridade artística, não numa poesia do
cotidiano.
Marcello Gama não canta
o cotidiano, não poetiza o cotidiano, não tematiza o cotidiano. Ele insere no
cotidiano a magna magia da poesia. Seu cenário caseiro e familiar é sempre
distorcido por um olhar mágico, supersticioso muitas vezes, mas nunca faz a
descrição desse cotidiano por si mesmo. O cotidiano surge na sua poesia como
ambiente, não como tema. Seu tema é ele próprio.
Dentro dessa sua
intimidade temática, detenho-me aqui sobre três aspectos que me parecem
bastante evidentes em sua poesia: o decadente, o supersticioso e
o anárquico.
1 O decadente | Creio que não seria
trabalho fácil encontrar seus semelhantes na literatura. Por mais que seu nome
permaneça no limbo, sua poesia, que é pouca, move-se e blasfema originalidade.
Tem uma inquietação agressiva, sente-se nela o pulsar de uma alma inquieta, um
intimismo e um movimento sui generis. Além de que, inúmeras imagens,
como a do álamo que “está a convalescer, no hospital da paizagem” (p.23) ou “O
silencio rezava. Era como si houvesse/ romarias no espaço. A tarde tinha somno”
(p.56), são de matizes tão surreais que não seria de todo exagero considerá-lo
um proto-surrealista (lembrando que o surrealismo não se reduz à
“escrita-automática”). O que significa pensá-lo como um poeta avant-garde.
Algumas de suas imagens,
no entanto, lembram às vezes o tom insano e decadente de Francisco Mangabeira e
Augusto dos Anjos, além de outros. Em Gama: “Já então o senhor maestro
Pensamento/ começara a reger a opera — Tormento” (p.58), em dos Anjos , no poema “Os
doentes”: “Sómente, na metrópole vasia,/
Minha cabeça autónoma pensava!” (p.101).
Ou ainda, quando entram
versos de sinestesias, como nestes de Noite de insomnia:
Tenho allucinações auditivas: escuto
um longinquo rumor continuo de engrenagens.
Nas brumas do meu ser vão-se esgueirando imagens
sensoriais: obcessões de amarguras enormes;
perturbações mentaes quasi epileptiformes. (p.29)
que lembram plásticas
semelhantes de dos Anjos, como, por exemplo, no poema “O caixão phantastico”: “Hoffmannicas visagens/ Enchiam meu encéphalo de
imagens/ As mais contradictorias e confusas!”. (p.96)
Mas
uma imagem de Gama, a dos corvos que devoram as carnes do poeta num sonho,
ainda em Noite de Insomnia, leva-nos a outras aproximações:
Eis que então verifico:
Sangra um naco de carne espendurado ao bico
de um corvo, e um outro corvo investe, e em alvoroço,
todo o bando faminto, acurvando o pescoço,
esposteja-me rins, nuca, espadua, cintura. (p.33)
pois
tais versos tem uma impressionante semelhança com outros de Mangabeira, do
“Canto VI” de “Dona Leonor” de Hostiário, obra de 1898:
Cambaleando, caio por terra...
E um grande corvo,
Hediondo e torvo
Em mim as suas garras enterra.
Tira-me o craneo, leva-me os braços,
Rasga-me
o peito
Magoado
e estreito,
Crocita nelle, fal-o em pedaços.
(p.63)
E aqui, mais por curiosa
coincidência do que por aproximação, vale lembrar ainda os versos finais de um
soneto de Pedro Kilkerry, “Amor volat”, transcrito por Jackson de Figueiredo em
Humilhados e luminosos:
E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse passaro voar, largamente, um boccado
De musculos pingando a levar-me no bico! (1921, p.87)
Tais semelhanças imagéticas
me parecem ser efeitos do mesmo ‘ar’ decadente respirado por nossos poetas na
virada do século XIX para o XX. E a presença desse corvo, nos três poetas e em
muitos decadentes, sabemos, provém de Edgar Allan Poe, aliás, citado por Gama
no início de Noite de insomnia — “...desta noite que foi de illustrações
aos poemas/ do tenebroso Poe” (p.21) —. Daí que, se há alguma semelhança entre
a poesia de Gama e a de C. Verde, também há com outros poetas, sobretudo brasileiros,
mas o fato de haver alguma semelhança não significa que haja ‘filiação’.
Fora essa semelhança
‘plástica’ com dos Anjos, Mangabeira e Kilkerry, creio que sua temática,
frequentemente subjetiva, é muito próxima do primeiro. Dos Anjos intitulou seu
livro de Eu, Gama tem apenas um poema com este mesmo título (“Eu”, em Via
sacra), no entanto, fala de si com tanta sinceridade e freqüência que é
impossível não perceber certa obsessão consigo mesmo, própria do Decadentismo,
cuja subjetividade provinda do Romantismo era exacerbada.
Em Noite de insomnia,
seu maior poema, há a ocorrência da palavra (“eu”) dezenove vezes e o mesmo
pronome aparece várias vezes, mesmo que oculto, entre outros poemas, em
“Taedium vitae” — “Dias de tedio, amargurados dias,/ são os que arrasto á
espera de melhores!” (p.49) —, “Horas pardas” — “Olho dentro de mim e fico com
pavor” (p.55) —, “Sugestões do ocaso” — “E estavamos nós dois: eu e minh’alma,
ali;/ eu sentado, ella em frente; e puz-me a interrogal-a...” (p.56) — e
“Versos de um convalescente” — “E por onde eu andava escutava este aviso:/ —
‘Marcello, é tempo já de tomares juizo!’” (p.59).
Além disso, a menção ao
próprio nome “Marcello” ocorre não só em “Versos de um convalescente”, mas
também em Noite de insomnia e em “Como estudar?”, o que demonstra, uma
vez mais, que sua temática é muito mais centrada em si mesmo do que no
“cotidiano”.
Por fim, independente da proximidade estética com Mangabeira
e dos Anjos, o decadentismo na poesia de Gama fala por si:
Por detraz da colina, entre balsas de mangue,
um sol tisico morre, em um lago de sangue.
Toda a paizagem tem lassidões de abandono...
A tarde semicerra as palpebras, com somno.
Contornos anulando, ergue-se um pó vermelho.
E na tristura do ar, como se num espelho,
reflectem-se feições e gestos de minh’alma:
― Os tons quentes de luz que o sol,
morrendo, espalma,
e a sombria expressão, parada, dos cyprestes... (p.67)
E é dentro deste ‘eu’
decadente que se encontram os outros dois aspectos que me parecem interessante
dar algum relevo: o supersticioso e o anárquico. Aspectos que são
contraditórios apenas em aparência.
2 O supersticioso | A localidade onde Gama
nasceu, Mostardas, pertencente na época ao município de São José do Norte,
encontra-se numa extensa faixa de terra entre a Lagoa dos Patos e o Atlântico.
Tal região, ainda que não muito distante da capital gaúcha, é de se imaginar
que devia ser bastante isolada, sobretudo culturalmente, quando de lá o poeta
saiu, por volta de 1895, aos 17 anos de idade. Não se deve estranhar, então,
que em sua poesia estejam presentes elementos da crendice popular da pacata
cidade e de seus familiares.
Em toda a sua poesia
encontramos versos “supersticiosos”. Já no seu primeiro livro, Via sacra,
e no primeiro poema, “Eu”: “Nasci á beira mar, numa noite aziaga” (p.45), e em
“Sugestões do ocaso”: “Depois, risquei no chão uns signaes cabalisticos...”
(p.57), em “Rua da Azenha” de “Dispersos”: “São de tristissimo augurio/ as
impressões que tenho em meu novo tugurio” (p.65). E em Noite de insomnia
são inúmeras as passagens: “Graças que agosto finda, agosto de mau signo/ que
em meus nervos influe aziago e maligno” (p.22), “Um genio familiar que aos meus
males assiste,/ acerca-se do leito: — Ó Marcello, estás triste...” (p.24), e
entre outras passagens, ao fim do poema: “E para que desminta/ o azar, e em meu
destino o agoiro não influa,/ corro á janella e atiro um jarro d’agua á rua”
(p.42).
Referências do tipo são
comuns em muitos poetas, principalmente em simbolistas e decadentes, mas a
constância em que surgem essas referências em Gama vai um pouco além dos
outros, pois não sendo um poeta místico, a superstição nele transparece como
adendo do ambiente familiar.
Tais ocorrências fazem
parte da sinceridade poética de Gama, que não esconde, de sua origem humilde,
as ingênuas crenças populares. Por outro lado, que essas crenças se unam a
certos rompantes anárquicos não é de todo contraditório, já que historicamente
tais uniões são comuns, e alguns versos de Noite de insomnia nos levam a
isso:
Visiono um outro mundo: — Harmonias preclaras,
culto alegre do Sol, das arvores, das searas,
vida de amor e luz, com a bondade por norma:
cousas que adivinhei e a que depois dei fórma
lendo o Reclus, o Hamon e o belga Vandervelde. (p.27)
Émile Vandervelde
(1866-1938) foi um político socialista belga, mas também um fervoroso maçom;
Jean-Jacques Élisée Reclus (1830-1905) foi geógrafo e anarquista; e o Conde
Louis Hamon (1866-1936), vulgo “Cheiro”, é o nome maior da quiromancia moderna.
Daí não haver contradição em Gama, a menos que se queira ver contradição também
nesses autores, assim como em todos os místicos anárquicos e em muitos
simbolistas que mesclaram sonho e anarquia.
3 O anárquico | Andrade Muricy diz que
Gama “era um revolucionário social meramente lírico” e, logo em seguida, que
“em Noite de insomnia há um breve manifesto de um socialismo simplista”
(1973, p.714). Tal ingenuidade de interpretação é repetida por Moisés (1984,
p.99) (“socialismo incipiente e ingênuo”). Talvez esperassem que um poeta com
versos anárquicos devesse lançar bombas (aliás, como alhures alguns poetas na
época o fizeram).
Dário Vellozo, figura
maior da poesia mística, neo-pitagórica, no Brasil, teve uma aproximação
com o anarquismo (Conf. WILLER, 2007, p.356), mas nem por isso Muricy (1973,
p.389) ou Moisés (1984, p.93), ao tocarem no assunto, falam em “socialismo
simplista” ou “ingênuo” neste poeta.
Alvaro Moreyra em um texto intitulado “Lembranças”, que
consta ao final da edição das obras completas de Gama de 1944, menciona os livros
anarquistas vindo de Lisboa e de Madri que: “Os grandes liam. Os pequenos liam.
Anarquistas e anticlericais. Odiavam com muito amor” (1944, p.150). Gama entre
eles.
Jovem poeta vindo do
interior, pobre, autoditada, lutando pela sobrevivência na Porto Alegre do
início do século XX, “discutindo commigo o sonho, a fome e a noite” (p.27), não
é difícil compreender que as leituras anarquistas, aliás simpatizadas por
muitos simbolistas, e talvez o contato com socialistas da capital, se
refletissem no seu espírito e conseqüentemente tomassem corpo em sua poesia:
Deslocado na vida! Exilado no mundo!
Eis tudo! E mais: — Votando um sincero e profundo
horror a convenções, guerra, leis, patriotismo,
governo, capital... (p.27)
Não há aí propriamente
“socialismo”, o que se nota é a intimidade do poeta se expressando com o
vocabulário de suas leituras, e, claro, com a sinceridade de qualquer poeta que
não seja parnasiano:
Impor que eu abasteça o espirito rebelde
com regras de moral, quando eu de outras o suppro!...
Pois isso não será mais bestial que um estupro?! (p.27)
Não penso que seja
necessário ser anarquista para pensar dessa forma, ainda que seja dessa forma
que todo anarquista pense. Por outro lado, o comportamento de um boêmio “mal
vestido” (p.47) não era, e continua não sendo, bem visto socialmente. E um
boêmio leitor de anarquistas pode muito bem, às vezes, mostrar-se irritado:
“Hoje sinto-me assim, cheio de desalentos,/ e abafo impetos vis de proferir
insultos...” (p.55), principalmente com o burguês, odiado e desprezado
unanimemente pelos poetas decadentes e simbolistas: “Ou, si inveja não é, esses
cães que me mordem/ que tem que eu, nos cafés, leve vida sem ordem?”. (p.47)
Assim, não há
“socialismo simplista” ou “incipiente” em Gama. Há sim, uma sinceridade muito grande, que
faz parte de toda e qualquer poesia intimista, herdeira do Romantismo, e que,
aliado ao espírito de decadência provindo do meio ambiente cultural da capital
gaúcha na época e as leituras anarquistas, lhe permitem metáforas sui
generis, como esta, onde transparece seu inconformismo e rebeldia individuais:
“Melhor é não pensar... Sinto, se me concentro,/ que a alma de Ravachol
tumultua cá dentro” (p.27). Não há aí pregação política. O anarquismo em
Gama aparece como metáfora poética e como expressão sentimental, daí sim um
revolucionário “lírico”, mas não “ingênuo”.
François Claudius
Koënigstein (1859-1892), dito Ravachol, é o mais conhecido dos anarquistas
defensores da ação direta, ou seja, que usam da violência em prol da liberdade.
No caso de Ravachol, deram-lhe fama, sobretudo, as muitas bombas que explodiu
com o objetivo de matar burgueses e policiais. Quando Gama diz que “a alma de
Ravachol tumultua cá dentro”, está expressando numa imagem, muito forte é
verdade, três coisas que aqui interessam: seu sentimento mais íntimo, o
sentimento de “dentro”, um espiritualismo, ao evocar a “alma” de
Ravachol, e, por último, o ideário mais radical de liberdade de que temos
notícia no mundo: o anarquismo. Esta evocação da alma de um anarquista parece
nos remeter novamente à aparente contradição anarquia/superstição. No entanto,
Gama é um poeta, e aos poetas tudo é permitido. Principalmente na evocação
máxima da liberdade.
Conclusão | Junto a esses elementos, encontra-se em
Gama também o humor, característica que nele toma muitas vezes alguma acidez,
própria do escárnio: “Oh! que bom se eu ficasse/ mais tranquillo, sereno, e
dormisse, e sonhasse/ que era o papa, ou uma besta, ou um politico insigne!”
(p.28). Característica esta que aponta para outras direções, mas que permite
entrever um poeta que se torna mais e mais complexo na medida em que tentamos
entendê-lo. Um poeta que, apesar da simplicidade das palavras, leva-nos para
distintos caminhos que se cruzam em determinados pontos de convergência, para
em seguida separarem-se e nos fazer calar:
Illuminado ou verme,
que se dirá de mim quando eu putrefizer-me?
Que fui mau? Que fui bom? Mas, bom ou
mau, que importa
ás miserias do mundo uma dor que está morta? (p.30)
Por fim, vale lembrar
que este decadente, supersticioso e anárquico boêmio teve um fim nada poético:
Marcello Gama faleceu, após uma vida irregular e boêmia, em
7 de março de 1915, no Rio de Janeiro, em conseqüência dum acidente, quando,
depois das 4 horas da manhã, viajando de bonde, com destino à sua residência,
na Rua Castro Alves no. 123, no Méier, ao passar, adormecido,
pelo viaduto do Engenho Novo, foi arremessado à via férrea, de vinte metros de
altura, por um movimento brusco do veículo. (MURICY, 1973, p.714)
Tinha então 37 anos.
Deixou três livros publicados e um longo poema, talvez inacabado segundo
Muricy, com o título de O violoncelo do Diabo — que só Deus sabe onde
foi parar.
NOTA
01. Todas as citações de Marcello Gama são da edição de Noite
de insomnia / Avatar e outros poemas (2010), portanto, nas próximas
citações menciono apenas o número da página.
Referências
DOS ANJOS, Augusto. Eu e outras poesias.
[8ª. edição] Rio de Janeiro: Bedeschi, s/d.
FIGUEIREDO, Jackson. Humilhados e luminosos.
Rio de Janeiro: Annuario do Brasil/ Porto: Renascença Portuguesa, 1921.
GAMA, Marcello. Noite de insomnia/ Avatar e
outros poemas. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
MANGABEIRA, Francisco. Poesias. Rio de
Janeiro: Annuario do Brasil, s/d.
MOISÉS, Massaud. História da literatura
brasileira: simbolismo. São Paulo: Cultrix, 1984.
MOREYRA,
Alvaro. Lembranças, In GAMA, Marcello. Via sacra e outros poemas.
Rio de Janeiro: Sociedade Felippe D’Oliveira, 1944. p. 149 – 152.
MURICY, Andrade. Panorama do movimento
simbolista brasileiro – vol. 2. [2ª. edição]. Brasília: MEC/INL, 1973.
WILLER, Claudio Jorge. Um obscuro encanto:
gnose, gnosticismo e a poesia moderna. 2007. 402fls. Tese (Doutorado em
Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
*****
CAMILO
PRADO (1969)
nasceu no litoral da província de Santa
Catarina. É tradutor, editor, autor de
Nefas (2004), Uma Velha Casa Submarina (2005), Pulcritude
(2006), Apologia e prazer de Jhenifer Heloizy (2012) e de alguns textos variados publicados em revistas
acadêmicas e de cultura. Organiza a coleção
Arquivo Decadente (Edições Nephelibata), na qual se inclui o livro Noite de
insomnia/ Avatar e outros poemas (2010) de Marcello Gama. O presente texto,
com algumas modificações, foi publicado em Letrônica:
Revista Digital do PPGL, Vol. 3, No 1, em 2010. Página ilustrada
com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 14 | Janeiro
de 2016
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design
| FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
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