(Em colaboração com Antonella Emina)
A recepção de
Léon-Gontran Damas, dentro do célebre trio da Negritude de língua francesa -
Césaire, Senghor e Damas -, não deixa de ser problemática e paradoxal não só
entre nós brasileiros como nas Américas de um modo geral, na Europa e até mesmo
em África.
Damas
nasceu a 28 de março de 1912, numa família mulata da pequena burguesia que
ambicionava marcar a sua diferença em relação aos "negros", em Caiena, capital da
Guiana francesa e a cidade mais próxima da fronteira Norte do Brasil.
Damas
foi o primeiro dos três autores a publicar um volume de poemas, com o título
revelador de Pigments (1937), antes mesmo da primeira versão do Cahier d’un retour au pays natal de
Césaire, [2] de 1939; foi o primeiro
a editar uma antologia sobre poetas negros, um ano antes (em 1947) da conhecida
e celebrada antologia de Senghor de 1948 com o prefácio de Sartre, Orfeu negro; foi o primeiro ainda a publicar, muitos anos
antes, poetas (negros, no seu caso) em diferentes línguas, anunciando à
distância o que Édouard Glissant buscaria fazer de certa forma na sua antologia
de fim de vida. [3] Por outras
palavras: Damas foi o precursor, o São João Batista do movimento da Negritude,
[4] sem que isso seja reconhecido de
um modo geral.
Do
trio de poetas, foi ainda provavelmente o que melhor conheceu o Brasil, onde viveu
por longos períodos, sobretudo depois do seu casamento com uma brasileira,
Marieta Campos; fez viagens de estudo e de intercâmbio através da África e das
Américas negras; teve uma breve carreira política e ensinou durante anos em
universidades americanas.
Entretanto,
apesar da sua importância evidente, nunca teve uma só das suas obras traduzida
para o português a não ser episodicamente: alguns poemas esparsos. Tentaremos
aqui abordar a sua poética a partir do seu primeiro livro de poemas, Pigments.
O
mais estranho ainda nesse ocultamento que corresponde de certo modo à lua negra
é o fato de que Damas é sem dúvida nenhuma o poeta que mais marcou, difundiu e
provocou poetas: Léopold Sedar Senghor dialoga com o guianense no seu conhecido
poema "Les tirailleurs sénégalais", Aimé Césaire dedica-lhe um poema-túmulo
por ocasião do seu falecimento em Nova York e Edouard Glissant destaca, em
vários dos seus ensaios, a sua importância não só na apreensão e expressão de
um certo ritmo próximo da fala coloquial, como na reescritura literária da
oralidade tradicional. Enfim, a realizadora Sarah Maldoror, no seu
filme-documentário, [5] apresenta os
depoimentos entusiastas e reverentes do martinicano Césaire e do senegalês
Senghor sobre o guianense.
Dois textos exemplares do poeta Daniel Maximin. [6]
Damas e a fé do quilombola.
Um outro poeta
francófono antilhano, nascido na Guadalupe, Daniel Maximin (1947), de outra
geração mais jovem, saúda e evoca Damas em dois textos, ambos reveladores: o
primeiro em versos livres; o segundo em prosa poética. Creio não haver melhor
ponto de partida para nós do que essas duas codas de variações.
DAMAS, FOI DE MARRON
Vieux-corps sec
ta bouche pirogue en silence vers la septième enfance
outre mère et
forêt vierges à ton désir malade
pour accoucher
ta voix afro-amérindienne
beau cœur limbé
de racines cambriolé
puis
l’arme blanche
des nuits de Seine
pigmente ton
masque nègre
ton cœur de chauffe
trop mal flambé
se distille entre jadis et aujourd’hui
entre la faim et la nausée
entre le sang et l’eau
en black-out et Black-label
et mine de rien
la clé de ta tendresse
sous le
paillasson des départs névralgiques
tes graffiti
griffent les murs sans oreilles d’amour et de révolte
foudroyant mot à
mot à coups de rêves sauvages
la mort au
téléphone dans ta langue bagnarde
Damas
étoile marronneuse des voies lactées
tu fréquentes ce soir les quartiers mal
famés de la lune
rebelle à ton exil
en ELLE
fille des minuits de sangs mêlés
et l’avenir barque indécise
au fil d’un seul vrai rêve recréé jusqu’au bout du sien propre
remonte les trois fleuves
entre la mer et l’Amazone
loin de tout rivage
prématuré.
O
poema de Maximin cria, como perceberá imediatamente o leitor, variações não só em
torno dos principais temas de Damas, como traça a geografia sentimental do guianense
recitando os principais títulos das suas obras (Pigments, Black-label, Graffiti, Mine de riens). Apresentamos
abaixo uma tradução que ajudará o leitor na sua primeira leitura:
DAMAS, FÉ DE QUILOMBOLA
Velho corpo seco
a tua boca
piroga em silêncio para a sétima infância
além-mãe e
floresta virgens ao teu desejo
doente
de fazer nascer
a tua voz afro-ameríndia
belo coração dorido
de raízes roubado
depois
a arma branca
das noites do Sena
pigmenta a tua
máscara negra
o teu coração de
calor mal flambado
distila-se entre
ontem e hoje
entre fome e
náusea
entre sangue e
água
em black-out e
Black-label
e como quem não
quer nada
a chave da tua
ternura
sob o tapete das
partidas nevrálgicas
os teus grafitis
arranham as paredes mudas de amor e de revolta
fulminando
palavra por palavra a golpes de sonhos selvagens
a morte ao
telefone na tua língua de condenado
Damas
estrela fugitiva
das vias lácteas
frequentas à
noite os quartos mal afamados da lua
rebelde ao teu
exílio
nELA
filha das
meias-noites de sangues misturados
e o porvir barca
indecisa
ao longo de um
só verdadeiro sonho recriado até ao fim do seu próprio
sobe os três
rios
entre o mar e o
Amazonas
longe de toda
margem prematura. [tradução de LPA]
Damas, fogo sempre sombrio.
O
segundo texto de Daniel Maximin, aparentemente bem mais simples, mas igualmente
revelador, resume em prosa poética os principais acontecimentos de uma vida,
evocando a trajetória trágica e patética de um órfão de mãe e de irmã gêmea,
que se fecha durante anos num mutismo radical como recusa de uma sociedade
colonial e diglóssica. E no entanto, para Damas, a língua será a fonte da vida
e da sua morte.
Esse resumo nos servirá de ponto de partida para
a análise da poética de Damas. No seu título, Daniel Maximin, fiel uma vez mais
à intertextualidade antilhana, recita o título do poema-tumular de Césaire:
LÉON-GONTRAN DAMAS, Feu
sombre toujours
Léon-Gontran DAMAS est né le 28 mars 1912 à Cayenne, en Guyane. Longtemps
muet dans son enfance, il est décédé à
New York le 22 janvier 1978, des suites d’un cancer de la langue.
Entre ces deux mutismes s’est élaborée son œuvre: bégaiements de poésie
crayonnés sur les murs du silence, de l’oppression et de l’indifférence.
Sève noire, sel noir, suc et sueur nègres, de la mort à la vie, sur la
terre des parias, trois fleuves, Afrique, Europe, Amériques: trois fleuves
coulent dans mes veines. Trois continents, additionnés de soustractions: pas
d’origine, pas de généalogie, pas d’ancêtres reconnus: l’abondance d’origines
perdues sous la nudité originelle d’une table rasée des traces sûres du passé.
Et le petit-bourgeois crépu s’embarque
en quête de la vraie vie avec: âme d’emprunt, corps emmailloté, cœur un long
soupir.
Aussi son action s’exercera-t-elle jusqu’à sa mort à travers toutes les
activités disparates qu’il mènera de front avec un mélange de fougue, de
dilettantisme, de détachement et de passion, porté toujours par la ferveur mise
à collecter sans relâche les paroles de beauté et de révolte du monde noir tour
entier, de ces cultures d’Afrique et d’Amérique qu’il voulait toutes embrasser,
défendre et répandre, de Paris à Dakar, de Harlem à Rio, de Fort-de-France à
Cayenne.
Homme fantasque et pathétique, sarcastique et tendre, blessé et
sentimental, amoureux de l’amour, tourmenté à tire d’elles, il fut tout au long
de sa vie un médiateur de poésie, la sienne et celle de tous les
autres. Certain qu’il faut, que le poète garde la parole, l’urgente, la
fragile, la nécessaire, en graffiti jetés contre les murs des égoïsmes
collectifs et singuliers.
La force vive de sa parole créatrice
éclate de tous ses droits de survivre à la mort tant rêvée, et que nous
écoutons lui survivre, en souvenir de tant et tant de souvenirs et de son avenir pérenne parmi nous.
Eis uma primeira tradução do texto inédito de
Daniel Maximin:
LÉON-GONTRAN DAMAS, Fogo sempre sombrio…
Léon-Gontran
DAMAS nasceu no dia 28 de março de 1912 em Caiena, na Guiana. Mudo por muito
tempo na sua infância, faleceu em Nova Iorque no dia 22 de janeiro de 1978, de
um câncer na língua.
Entre esses dois
mutismos, elaborou a sua obra: soluços de poesia rabiscados a giz sobre os
muros do silêncio, da opressão e da indiferença.
Seiva negra, sal
negro, sumo e suor negros, de morte em vida, na terra dos párias, três rios,
África, Europa, Américas: correm três rios nas minhas veias. Três continentes,
adicionados de substrações: sem origem, sem genealogia, sem antepassados
reconhecidos: abundância de origens perdidas sob a nudez original de uma tábua
tornada rasa de traços seguros do passado. E o pequeno burguês de carapinha
embarca em busca da verdadeira vida com: alma de empréstimo, corpo enfaixado,
coração um longo suspiro.
Assim a sua ação
se exercerá até à morte através de muitas atividades disparatadas que levará a
cabo com uma mistura de ardor, de diletantismo, de distância e de paixão,
sempre impulsionado pelo fervor em recolher sem descanso as palavras de beleza
e de revolta de todo o mundo negro, dessas culturas da África e da América que
desejava abraçar a todas, defendê-las e difundi-las, de Paris a Dakar, de
Harlem ao Rio, de Fort-de-France a Caiena.
Homem fantasioso
e patético, sarcástico e terno, magoado e sentimental, amante do amor,
rapidamente atormentando-se por elas, foi durante toda a sua vida um mediador
de poesia, a sua e a de todos os outros. Acreditando fortemente que ao poeta
cabe conservar a palavra, a urgente, a frágil, a necessária, em graffitis
lançados contra as muralhas dos egoísmos coletivos e singulares.
A força viva da sua palavra criadora explode
com todos os seus direitos de sobreviver à morte tão sonhada e que ouvimos a
ele sobreviver, em lembrança de tantas e tantas lembranças e do seu porvir
perene entre nós. (Tradução de LPA)
A
recepção de Pigments posta em perspectiva ao longo do tempo.
Como foi recebido
o primeiro volume da poesia da Negritude?
Para
responder à pergunta, consideremos por um momento os sucessivos prefácios redigidos
para Pigments: cada um deles põe em perspectiva a sua recepção em diferentes momentos,
desde a sua primeira edição, anterior, repetimos, ao poema manifesto da
Negritude.
Em 1937, no momento do
lançamento do livro, em edição de autor, por uma pequena editora parisiense, [7] a apresentação do
volume de Damas é assinada por um surrealista francês, o poeta Robert Desnos
(1900-1945).
Oito anos mais tarde, Robert
Desnos morre de fome e de tifo no campo de concentração de Theresienstadt, na
antiga Tchecoslováquia, dias depois do stalag ser libertado pelo avanço do
exército russo.
Autodidata e apaixonado
por poesia, Robert Desnos aderira ao movimento surrealista muito cedo, com
pouco mais de vinte anos, desde a década anterior, mais precisamente desde
1922. Nos anos 1924-29, Desnos é o principal redator da revista Révolution
surréaliste mas rompe com o movimento quando André Breton (1896-1966) pretende
orientá-lo em direção ao Comunismo. Depois das eleições em França de maio de
1936, que leva ao governo o socialista Léon Blum (1872-1950), Desnos faz parte
do "Comitê de vigilância dos intelectuais antifascistas". Resistente
contra a Ocupação alemã desde 1940, Robert Desnos é preso pela Gestapo, em
Paris, em 22 de fevereiro de 1944 e deportado. Não conseguirá sobreviver ao fim
da guerra.
Seu curto prefácio ao
volume, com apenas seis breves parágrafos, é uma declaração de guerra contra o
burguês e o fascista. "Damas é um negro e reivindica a sua qualidade e o
seu estado de negro".
Na apresentação de
Desnos, publicada - não esqueçamos disso - durante o governo do "Front populaire",
os poemas de Damas são vistos como uma dádiva generosa feita à Europa por
alguém que vem do outro lado do mundo, das periferias do continente americano:
Esses
poemas são também um canto de amizade oferecido, em nome de toda a sua raça,
pelo meu amigo, o negro Damas, a todos os seus irmãos brancos. Um dom da savana
à fábrica, da plantação à quinta, do banguê ao atelier europeu. [8]
Em
1962, dezessete anos depois do fim da II Guerra, na edição de Présence Africaine, considerada
definitiva
[9] de Pigments, o prefácio é assinado por um
intelectual e ativista belga, conhecido especialista de jazz, Robert Goffin
(1898 -1984). O que é destacado agora é a presença da África e do gênio negro.
A primeira frase do prefácio de Goffin é a seguinte: "O que me emociona é o bater do coração da ÁFRICA desenraizada que, com
o final da escravidão, afirma mais do que nunca a sua profunda vitalidade
criadora !" E mais adiante:
Afirmando
a perenidade da Terra-Mãe no sentimento de raça, que nada tem a ver com o
racismo, com a vaidade, constitui una espécie de revanche e de justificação
sobre a bestialidade e a vulgaridade dos povos carniceiros e exploradores que
desprezo.
Muito
cedo, tive a revelação da escultura negra, essa arte que vem direto do coração
e do instrumento cortante; e me alegrava quando o grande Apollinaire voltava a
Auteuil para "dormir entre os seus fetiches da Oceania e da Guiné",
esses deuses de uma nova esperança.
Robert
Goffin articula ainda, no seu prefácio, o guianense Damas ao poeta americano
Langston Hughes (1902- 1967) e aos "gênios" do jazz, Louis Armstrong
(1901-1971), Duke Ellington (1899-1974), Bessie Smith (1894-1937) ou Billie
Holliday (1915-1959), exemplos do "sangue
fértil" africano que "inspirou"
igualmente o poeta popular cubano Plácido, [10] o russo Alexandre Pouchkine
(1789-1838), o francês Alexandre Dumas (1802-1870) ou o brasileiro Machado de
Assis (sic) (1839-1908).
No
parágrafo seguinte, são evocados mais três escritores contemporâneos das
Antilhas: o cubano Nicolas Guillén (1902-1989), o haitiano Jacques Roumain
(1907-1944) e o martinicano Aimé Césaire (1913-2008). Falta talvez ao prefácio
de Robert Goffin o sentido propriamente histórico. A negritude seria, segundo
ele, uma essência que se transmite, no espaço e no tempo, pelo e graças ao
sangue negro.
Nessa edição de Présence
Africaine assim como na seguinte, em 1962 e em 1972, o texto da quarta capa do
volume, de autoria de Jacques Howlett (1919-1982), é provavelmente mais interessante.
Tem como título: "En poésie, comme dans la vie". A negritude de Damas
é vista então claramente não mais como uma "essência" mas como um existencialismo ligado a uma experiência
de mundo e uma poética do quotidiano que incorpora ainda a distância crítica do
humor:
Próxima
das quotidianas, das muito humanas palavras de revolta e de dádiva, essa poesia
aberta escapa a todo cálculo e à complacência, conhece a distância do humor e
dispensa as garantias quase oficiais das escolas. L.-G. Damas por alguns
aspectos lembra os funâmbulos de Laforgue, o Sportin’Life de Porgy
and Bess, mas o irônico mau rapaz é
também um militante - um dos primeiros - da negritude. Há uma solidão de Damas,
que não é apenas literária, é também a do clamor negro no mundo da opressão. Há
o calor humano de Damas, que não é apenas mundano, mas o dos homens negros
impondo a sua humanidade face à frieza branca dos antigos senhores.
Consideremos por fim os
dois textos que nos ofereceu o poeta Daniel Maximin (1947),
ambos bastante recentes: o poema em versos livres faz parte do seu livro de
poemas L’invention des Désirades [11]
(Seuil, 2009) e o poema em prosa é inédito. Os dois textos estabelecem algo de
novo e importante na recepção de Damas: uma verdadeira intertextualidade
antilhana francófona e o que Antônio Cândido chamaria, entre nós, o início de
uma coerência interna numa literatura recente.
O primeiro poema "Damas,
fé de quilombola" ("Damas, foi de marron", em francês) retoma,
em filigrana, um importante debate poético entre Césaire e o poeta haitiano
René Depestre (1926) sobre a poesia como "arma miraculosa" [12] e meio de escapar à
servidão moral ou intelectual. Por outro lado, o texto de Maximin não só joga
com os diferentes títulos da produção damasiana (títulos de poemas como "Limbé"
ou títulos de volumes como Pigments, Black-label, Graffiti, mines de rien [13] etc.) como enraíza
Damas no espaço geográfico que é o seu, o da Guiana francesa mestiça, entre o Amapá brasileiro e a Guiana holandesa
(hoje Suriname) na extensão gigantesca do continente americano, com as suas
muitas raças e sangues confundidos numa história de repressão/escravidão (não
apenas negra) ou de servidão e sentimento de inferioridade introjectado pela
educação oficial (Escola e Igreja), e sobretudo de anseio pela liberdade.
O segundo texto, o poema
em prosa de Daniel Maximin, inédito ainda, resume a trajetória humana de Damas
entre dois mutismos e a sua poética, só aparentemente simples, na realidade
extremamente sofisticada e sutil. Aponta ainda o seu papel fundamental de
go-between incansável entre as culturas das Américas e da África. Nenhum dos
outros poetas fundadores da poesia da Negritude se interessou tanto, como
Damas, em recolher e difundir a produção de outros poetas em antologias que
anunciam à distância até mesmo o movimento da "crioulidade" ("la
créolité") de Glissant (1928-2011) e seus sucessores, Patrick Chamoiseau
(1953) e Raphaël Confiant (1951), por exemplo. [14]
Daniel Maximin sugeriu-nos,
um dia, em conversa que fosse mudado o título do seu poema em prosa "Léon-Gontran
Damas, feu toujours sombre…" para " Léon-Gontran Damas,
colporteur de feu…". Hesitamos em aceitar a sugestão porque ambos os
títulos nos permitem compreender e explorar duas coisas diferentes: por um
lado, a filiação do seu texto que reescreve um poema-túmulo de Césaire dedicado
justamente a Damas [15]
e por outro lado, a significativa carga mítica do elemento fogo no imaginário e
na literatura antilhana.
Existem dois grandes
mitos coletivos na zona das Caraíbas, o do fogo [16] e o do sal. O poeta haitiano René Depestre (1926),
numa frase muito elíptica, captou de forma brilhante a originalidade do
Prometeu caribenho, chamando-o "voleur de sel " (ladrão de sal)
mais do que ladrão do fogo, por amor dos homens (daí o seu outro nome em grego,
o Filantropo, literalmente: o que ama os homens). Em Haiti, do ponto de vista
popular, o sal é o alimento que pode resgatar o zombi (o morto-vivo) e o
transforma de novo num homem. O sal é assim um mediador para a liberdade.
Daniel Maximin o sabe muito bem quando saúda Damas no seu segundo parágrafo
como "Seiva negra, sal negro, sumo e suor negros, da morte em vida".
Essa saudação evoca a obra de Damas como "arma miraculosa" contra a
zombificação.
Mas o outro título sugerido por Maximin para o seu poema em prosa também
é revelador e nos permite compreender um mecanismo corrente, do ponto de vista
antropológico, do imaginário antilhano, a inversão da inversão: "colporteur de feu". Uma tradução
possível para a expressão seria mercador ou mascate de fogo.
Façamos um pequeno desvio ("détour"). Colporteur, na França do Antigo Regime, era o mercador ambulante de
pequenas mercadorias e de quinquilharias, que ia de aldeia em aldeia, vendendo-as. [17] Daí o seu sentido pejorativo atual de divulgador de falsas notícias, de
espalhador de boatos. Mais uma vez, encontramos a inversão da inversão no universo
cultural e no imaginário da Negritude: reivindica-se um sentido que se tornou
negativo transformando-o radicalmente em positivo. O mesmo sucedeu com a
palavra negro, por muito tempo claramente ofensiva, com a qual e a partir da
qual Césaire cunhou Négritude em
francês.
Haveria assim dois tipos de fogo: o fogo destruidor (o fogo da natureza:
o do vulcão ameaçador,
[18] por exemplo) e o fogo que funda a
cultura, transmitido de homem a homem, que coze a comida e aquece a casa.
Damas, "colporteur du feu"
(o que carrega o fogo, o difusor do fogo), é o novo Prometeu, o Filantropo, que
carrega, preserva e distribui a chama da palavra libertadora. Ele é ao mesmo
tempo o que traz o sal que liberta o
zombi da sua servidão obscena em vida e o que difunde o fogo da palavra que resgata.
Uma das revistas culturais da Guiana francesa se intitula La Torche. O tema prende-se, na verdade,
à tocha de resina levada de braço em braço e que aparece num poema inédito de
Damas, escolhido como seu epitáfio e transcrito sobre o seu túmulo no cemitério
de Caiena. [19] Daniel Maximin, também ele editor
de poetas e de escritores, ao saudar Damas, incorpora, no fecho do seu poema em
prosa, o epitáfio do Outro.
Negritude
senghoriana, negritude americana.
A transmissão de valores culturais comuns através da
participação de uma determinada biologia, segundo a ideia presente no prefácio
de Goffin, fecha e simplifica a negritude no âmbito estreito de uma conexão
direta entre três conceitos, no fundo, díspares: raça, civilização e cultura. O
primeiro liga-se a parâmetros puramente genéticos; o segundo apresenta já um
conteúdo de elaboração psicológica, sociológica e cultural, e o terceiro, o
mais complexo, pode, em parte, compreender o conceito de civilização, mas
remete ainda a algo mais, que diz respeito especificamente ao indivíduo,
indicando aquele conjunto de conhecimentos que concorrem para formar a sua personalidade,
refinando as suas capacidades racionais.
O conceito de negritude
surge, no entanto, melhor articulado do que aquele resumido na introdução entusiasmada
de Goffin, seja pela contribuição original de individualidades distintas, seja
pela substantiva incongruência entre o dato genético e a-histórico de raça e
civilização, historicizando-se num determinado espaço geográfico pelo termo
cultura.
Segundo a visão
etno-biológica, a negritude seria como uma ideia-agente que existe a priori, inscrita
na carne e no sangue de quem é negro; no entanto, desde as suas primeiras
conceituações teóricas, apresenta-se mais como simples e concreto princípio
federativo, aplicado a posteriori sobre grupos humanos muito diversos, mas
ligados por um objetivo comum. É o que se pode depreender da afirmação de Damas
ao apresentar l’Étudiant noir (1935), revista que pode ser vista como elemento
inicial do futuro movimento:
l’Étudiant
noir, diário corporativo e de combate, tinha por objetivo o fim da
tribalização, do sistema de clãs em vigor no Quartier Latin. Deixava-se de ser
estudante essencialmente martinicano, guadalupeano, guianense, africano,
malgache, para ser apenas e somente estudante negro. Fim da vida em círculo
fechado.
[20]
O ano de 1935 vê assim,
em Paris, reunidos os três maiores expoentes do futuro movimento da Negritude -
Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor - empenhados no que
Césaire definiria como "a busca do homem negro", [21] saídos do horizonte rígido e fechado do domínio
colonial francês que legitima a dependência politica e econômica graças à
teoria da tabula rasa, presente sobretudo em África.
Também no espaço da
América das Plantações (que se estende, no Novo Mundo, do Sul dos Estados
Unidos até o Sul do Brasil, incorporando igualmente todo o arco antilhano das
ilhas grandes e pequenas) os homens de cor, descendentes do tráfico atlântico
de escravos que durou pelo menos três séculos, considerados não como cidadãos
de segunda classe mas como objetos animados, sofriam os reflexos da mesma ideia
fornecendo mão de obra barata.
Assim, muitos americanos
(não esquecer que Césaire e Damas nasceram, ambos, em terras da América e só
vêm a conhecer a Europa no final da adolescência), descobrem a África através
do contacto com estudantes africanos em Paris.
O inverso também é
verdadeiro: os senegalenses, por exemplo, descobrem-se africanos com os negros
que vêm das Américas. Inspiram-se, todos, uns aos outros: descobrem, lêem e
comentam não só escritores negros americanos que, nos anos 20, proclamaram o
advento do New Negro e deram vida ao movimento da Negro Renaissance do Harlem,
como os ensaios de etnólogos e antropólogos africanistas: cunham aos poucos o
conceito e a palavra Negritude que celebram as tradições africanas ou, em
alguns casos, a imagem ideal que fazem dessas tradições e culturas ancestrais.
A repetição encantatória
de "Devolvam-me as minhas bonecas negras", no poema "No limbo" [22] de Damas, publicado,
pela primeira vez, no nº 3 da revista l’Étudiant
noir, em março de 1935, cujo refrão será intensificado em versões
sucessivas do poema, põe a questão de fundo da inversão dos valores: os cânones
clássicos ocidentais, de beleza e de moral, são desqualificados até ao desprezo
(catins blêmes) enquanto são celebrados todos os aspectos da vida quotidiana e
da expressão cultural, denegridos pelo colonizador.
la coutume, les jours, la vie,
la chanson, le rythme, l’effort,
le sentier, l’eau, la case,
la terre enfumée grise, la nuit, le ciel,
la sagesse, les mots, les
palabres, les
vieux,
la cadence, les mains, la mesure, les mains,
le
piétinement, le sol. [23]
Quanto ao termo "negritude"
propriamente dito, Senghor atribui explicitamente a invenção ao amigo Aimé
Césaire,
[24] enquanto este
afirmará que o conceito foi fruto de criação coletiva. Ambos, no entanto,
reconhecem a sua primeira e plena realização no volume de Pigments, de Damas,
publicado em 1937. A palavra aparece, pela primeira vez, na primeira versão do Cahier d’un retour au pays natal, de
1939 numa revista que virá a desparecer, Volontés.
Até o fim dos anos 60,
os três poetas tomam a palavra para dizer o que entendem por negritude. Senghor
é o que mais frequentemente se explica em textos de ensaios literários e/ou
políticos; Damas o faz em particular na sua segunda antologia e Césaire
responde a inúmeras entrevistas que se repetirão até o final da sua vida.
Senghor o faz inicialmente de forma sintética: "Maneira de exprimir-se do Negro. Caráter negro. O mundo, a civilização
negra".
[25]
Entretanto algumas
diferenças fundamentais são evidentes entre a concepção africana da negritude,
ontológica e culturalista, e a americana, baseada na concretude da vida e na
adaptação progressiva e inovadora dos escravos africanos ao Novo Mundo. Uma
concepção, a africana de Senghor, tende para o essencialismo, a outra, a
americana, enraíza-se na carne de uma coletiva e dolorosa, criativa e
progressiva experiência de migrante forçado e nu que reconstrói e recria seus
valores culturais através do sincretismo e de novos e inéditos encontros
culturais. Note-se enfim que o tráfico e a escravidão não só aproximou e
misturou, por vezes, nas plantações americanas, etnias e culturas diferentes e
afastadas de África, como propiciou inclusive o contato e a mestiçagem com os
diferentes grupos indígenas americanos.
Para Senghor a negritude
é "o conjunto dos valores culturais
da África negra", [26]
ao qual no entanto reconhece um aspecto dinâmico que se explicita na
constatação de uma evolução da "Negritude
das fontes" (Négritude des sources), isto é, a que precede a chegada
dos brancos em África, em direção a uma Negritude "instrumento eficaz de libertação", fundada na realidade dos
estudantes africanos em Paris, no século XX. Essa dimensão histórica não é,
entretanto, claramente analisada, enquanto é teorizada a ideia de uma
particular atitude afetiva em confronto com o mundo, nascida da emoção, o
caráter mais evidente da negritude, segundo Senghor. A emoção é determinada pelo
ritmo cósmico ao mesmo tempo que o determina, fazendo surgir a "encantação que faz ascender à verdade das
coisas: as Forças do Cosmos". [27]
Para Damas e para
Césaire, através da Negritude, recompõe-se o puzzle disperso da sua história
coletiva, recuperando o passado brutalmente rasurado, o espaço ancestral da
África, ao mesmo tempo, mãe e madrasta. O terceiro anel vai remodelar a relação
dual entre dominador (França) e dominado (escravo e colonizado nas Américas das
plantações).
A negritude permite
empreender um percurso de verdade: retira ao fenômeno da servidão/inferioridade
o seu caráter inelutável no qual a haviam posto as ideologias coloniais,
restituindo-lhe a sua plena dimensão histórica, feita de determinações econômicas
e politicas mais do que o primado de uma cultura sobre as outras. Para os dois
poetas "americanos" o percurso exige a tomada de consciência do
advento do negro à História. Assumir a escravidão e o estatuto de migrante
forçado e nu, com tudo o que isso implica em termos de aviltamento da pessoa
humana, não é senão o início da sua história na América, abrindo espaço na
História do mundo para assumir o seu futuro.
Destruir a imagem
negativa do negro implica igualmente afirmar as suas qualidades próprias que,
para Césaire, podem corresponder à sua maneira de acolher o mundo, [28] tal como aparece no
final do seu poema Diário de um retorno
ao país natal, [29]
enquanto que, no que diz respeito a Damas, é-nos mais difícil fornecer uma
definição precisa. Falta-lhe, de fato, uma visão unívoca, como se a sua procura
incessante da expressão de uma negritude englobante fizesse emergir muitos e
muitos modos diferentes, não só no tempo como no espaço, de ser negro. Embora
permanecendo de um modo geral e durante toda a sua vida, fiel ao conceito
forjado na sua juventude, Damas parece estar mais próximo ao mundo
contemporâneo porque as diversas histórias que encontra e contra as quais se
embate, adquirem todas dignidade e não buscam uma síntese num pré-tempo, mas
são oferecidas ao leitor para a elaboração da História futura.
Enfim, na trajetória
intelectual de Damas, o conhecimento do Brasil com as suas ambiguidades e sua
complexidade em massa folhada (a expressão é de Lévi-Strauss), parece ainda
matizar as suas ideias sobre a negritude. [30]
O estudo das suas diferentes antologias confirma igualmente essa instabilidade
do conceito em Damas: a instabilidade corresponde, na verdade, a uma atenção
especial às situações particulares e à diversidade das mestiçagens e dos
encontros culturais imprevistos e imprevisíveis. O testemunho de Marieta Campos
Damas, depois da morte do marido, confirma, de certa forma, a disposição do
poeta de não se fechar em dogmas nem em conceitos definitivos.
Numa magnífica
entrevista realizada por Valentin Y. Mundibe, [31] em outubro de 1973, cinco anos antes da morte do
poeta, Damas, lançando um olhar para trás, evoca as três diferentes
personalidades que criaram a negritude:
A negritude foi
um projeto, um projeto espontâneo: foi a reação de uma categoria dada de
indivíduos, num determinado meio, num momento preciso da história. Quando digo
que foi a reação de uma categoria de indivíduos, é preciso também observar a
diferença entre esses indivíduos: vinham todos de países diferentes. Assim,
quanto a mim, nada tenho de insular. É preciso, na realidade, considerar a
geografia. Nasci na Guiana francesa, integrado no meu continente como uma
pepita na sua ganga. Césaire vem de uma ilha vulcânica onde o problema
geográfico é real: o Martinicano pertence a um grupo que se dispersa e que, por
causa disso, traz consigo uma dupla nostalgia: o homem das ilhas quando está na
sua ilha sonha em partir; no exterior, sonha com a sua ilha. O que dá
nascimento ao Cahier d’un retour au pays natal. Quanto a Senghor, ele é filho
de um continente. Mas esse continente, ele só o descobrirá plenamente ao nosso
contacto, em Paris. Nascido no Senegal, Senghor não podia, como outros Senegaleses,
sentir-se plenamente integrado no Senegal que, na época, era a única colônia
francesa cujos nacionais eram considerados cidadãos franceses desde que fossem
originários de quatro comunas: Saint-Louis, Gorée, Rufisque, Dakar. Nascido em
Joal, em Casamância, cerca de 50 quilômetros de uma dessas comunas, Senghor não
pertence nem mesmo à etnia que, do ponto de vista numérico, religioso e tribal,
é a mais importante: a dos Wolofs. Ele é Serere, uma raça à parte, como os
Sarakolés, os Bambaras… Enviado a Dakar, por pouco não se fez padre. Em suma, é
em Paris que ele vai descobrir-se Africano, plenamente Africano. É em Paris
também que encontra um meio muito mais liberal do que o meio de Dakar, que lhe
permitirá ser ele próprio: um meio laico onde será fácil falar e ouvir falar
livremente.
[32]
Apresentando
Pigments/Pigmentos.
O
título do primeiro volume de Damas, Pigments/Pigmentos, coloca de saída a obra
no âmbito da literatura militante e da Negritude. Entretanto, se bem que o tom
de poesia de luta seja incontestável, as modalidades com que se apresenta são
totalmente originais, não esgotando o sentido global da obra.
De certo modo, não deixa de ser problemático
comparar um longo poema de sopro claramente épico-dramático, com sequências e
episódios que se articulam uns aos outros, caso do Cahier de Césaire, com uma
coletânea variada de três dezenas de curtos poemas, mais incisivos e nervosos,
por vezes líricos ou irônicos, escritos e reescritos em diferentes momentos.
Diferentemente, por exemplo, do Cahier/Diário, de Césaire (primeira edição:
Volontés, 1939), onde prevaleceria, pelo
menos nos primeiros grandes movimentos do texto, a preocupação com o
negro-denegrido-dominado-colonizado-explorado, o leitor tem imediatamente, em
Damas, a percepção da preeminência do olhar que se observa como indivíduo mais
do que membro de uma coletividade. Não que o nível de atenção de Damas diante
da situação do homem de cor e da relação dominante-dominado seja menor, mas seu
enfoque passa pela experiência pessoal, seu pensamento e seu corpo. Em suma,
Damas é sobretudo lírico: seu ponto de vista parte sempre do seu eu.
A nota pessoal estava já inserida no título
inicial previsto para o livro, - Névralgies
(Nevralgias) - segundo contrato assinado no dia 17 de março de 1937, com o
editor Guy Lévis Mano, título que será rapidamente substituído, como se pode
deduzir de uma série de elementos. A consulta dos manuscritos e dos "tapuscrits" [33] revela-nos as diferentes etapas do processo: em carta do dia
precedente (16 de março), o autor pede que o volume saia nos primeiros dias de
abril; a 17 assina o contrato substituindo a data datilografada de término de
redação (presumivelmente 5 ou 8 de junho de 1936: não se lê bem o dia embora o
ano e o mês estejam bem claros) [34]
mas ainda não modifica o título; o imprimatur é dado no dia 20 de abril e o
título no frontispício é agora Pigments. [35]
Não sabemos quando se deu exatamente a mudança do título, mas é muito provável
que ele surja de uma discussão entre editor e autor, à qual se juntou a voz do
Robert Desnos cujo prefácio versava sobre o tema do renascimento negro. [36]
A orientação original do poeta era portanto uma "narrativa"
pessoal, não propriamente articulada num longo texto contínuo mas através de
notações soltas que se acumulam, com a qual, talvez, outros pudessem
identificar-se inferindo assim um significado coletivo. O projeto individual de
Damas provoca grande impacto e ganha significado político – aumentado
evidentemente pelo prefácio exaltado e "engajado" de Robert Desnos –
num período em que a França tem ainda bem firmes as rédeas do seu império
colonial. O surrealista Desnos, com o seu prefácio, realça no volume uma
leitura ideológica, pertinente evidentemente mas não única.
A
negritude é, com efeito, um dos temas principais de Pigments articulando-se em
duas linhas principais: a recuperação da ascendência e do passado africanos, e
a evocação da situação concreta do homem de cor na França e na sua colônia
americana da Guiana francesa. [37]
A revalorização da África perdida e das suas
culturas ancestrais é particularmente significativa naqueles anos em que
descendentes longínquos de escravos das Plantações americanas, sobretudo os que
já pertenciam à burguesia mestiça (não só da Guiana francesa como de outras
Antilhas negras), reencontram e restauram os elos rasurados com aquela parte
ocultada de si próprios que os tinham relegado a uma condição de inferioridade.
Inferioridade inclusive introjectada num doloroso processo em que o mulato se
considera superior ao negro porque feliz e ironicamente embranquecido física e
culturalmente. O percurso de Damas é um verdadeiro caminho de Damasco [38] que reintegra o seu ser física e
espiritualmente dentro da História, a sua história de mestiço americano.
Para o autor franco-americano-antilhano que
cresce em contexto de diglossia (ou seja entre duas línguas, - francês e
crioulo - , línguas com hierarquização que separam, de modo oculto mas efetivo,
afeto e razão, sensibilidade e possibilidade de ascensão social) e que
reivindica a sua tríplice ascendência (americana, europeia, africana) – "três rios correm nas minhas veias",
como dirá em "Black-Label", de 1956 – a explicitação desses valores corresponde
a uma operação de verdade totalmente original naquele contexto.
Quanto à reescritura da oralitura (para empregar
o termo cunhado pelos críticos haitianos), Pigments não recorre voluntariamente
a expressões do crioulo [39] nem introduz personagens do folclore
tradicional como ocorrerá mais tarde nos seus contos (Veillées noires, 1943) e
em Black-Label, mas utiliza, sem nunca cair no exotismo fácil da "literatura
de rede", [40] uma linguagem
popular e alusiva por vezes bastante hermética para quem não conheça a Guiana.
Damas recorre sobretudo a um ritmo muito
particular, que o poeta aperfeiçoará progressivamente em sucessivas variantes. Esse
ritmo corresponde por um lado, ao dinamismo da palavra oral e por outro lado, à
segmentação da palavra daquele que balbucia ou mesmo gagueja, retornando ainda
uma vez à experiência pessoal de um poeta que conheceu sérios problemas de
afasia, totalmente incapaz de falar na primeira infância.
O despertar da consciência negra relaciona-se
assim à própria origem do horror da escravidão e da proclamação da dignidade de
todos os que dela foram vítimas, embora essa proclamação não assuma a forma de
uma declaração solene, passando antes através do concreto quotidiano da vida
individual e coletiva, até mesmo através da gestualidade característica de cada
grupo social.
O poema "Solde" põe em evidência, por
exemplo, o embaraço e o desconforto do colonizado, vindo de um país quente da
floresta amazônica, quando se veste à europeia, encena o ridículo e revela
verdadeiro sofrimento físico. Nenhuma motivação transcendente, mas o absurdo
surge, evidente, do próprio fato. Diz-se então o contraste entre o absurdo de
uma roupa que tolhe os movimentos e a beleza do corpo nu, jovem e musculoso,
como o representado na xilogravura de Masereel no frontispício da edição de
1937.
A vestimenta faz parte integrante da norma que
rege as relações inter-individuais: vestir-se à francesa ou à europeia quando
se vive nos trópicos ou perto do Equador, cercado pela humidade da floresta
amazônica, não é estranho à adesão a um cânone ocidental, equivale à assunção
de um estilo de vida. É isso que o poeta adulto censura ao severo ambiente em
que fora educado, menino, no meio da burguesia mulata de Caiena. A educação
recebida induz a dissimular o corpo e as suas funções: uma risada deve ser
discreta, um eventual bocejo escondido pela mão, o pão não será cortado ou
mordido como expressão de voracidade animal mas paciente e delicadamente
partido em pequenos pedaços, sons físicos como o arroto ao comer devem desaparecer
etc.
Em Pigments, o protesto se ergue essencialmente
contra a família que o educou para modos e comportamentos rígida e estritamente
franceses; em outras obras poéticas, Damas revela-se contra a Igreja e a escola
igualmente marcadas por lembranças de censura e controle permanentes.
Do outro lado dos mulatos e em oposição a estes,
estão os negros e os marrons (= quilombolas). [41] Os primeiros são essencialmente os incultos/analfabetos que não
frequentaram a escola, nem fazem parte da burguesia mestiça que se imagina/se
crê branca; os segundos são os descendentes dos que afrontaram os perigos da
fuga à escravidão e vivem, de um modo geral, em grupos mais ou menos isolados, em igarapés ou ao pé
dos rios amazônicos. Os dois grupos são emblemáticos da dignidade originária
dos africanos que chegaram ao Novo Mundo.
A sociedade colonial se desenvolve buscando até
o controle das funções orgânicas do corpo, submetido a múltiplas regras de
ordem sócio-cultural, suprimindo não só qualquer liberdade de expressão mas
sobretudo o conhecimento do que se é e do que se foi ("Ils ont…").
Por outro lado, o volume de Pigments começa a
usar o corpo como lugar e instrumento da própria reivindicação. O erotismo, que
surgirá ainda mais a descoberto em outros volumes de Damas, provoca aqui a
aparente compostura da capital francesa num poema como "Dans ton attente",
cujos subterfúgios e jogos sibilinos serão descodificados mais adiante nas
notas à tradução. Encontram-se aqui acenos de ordem diversa, desde o apelo às "bonecas
negras" do poema "Limbé", em oposição às "marafonas pálidas",
contraponto que parece mais uma declaração ideológica que um real impulso erótico-sensual,
até a indiferença de uma mulher que remete o narrador para uma partida de
sonho, em resumo uma negação do sonho ("Captation"). Ou ainda da
alusão à "pornografia" da cultura que se presume superior ("Shine")
até a evocação dissimulada do mundo dos amores tarifados, de hotéis perto da
Gare du Nord com horas marcadas e com a promiscuidade das paredes finas do
poema "Dans son attente", onde o episódio da inocência de "donzelos"
abre uma série de indagações sobre a verdadeira natureza daquelas relações.
O ódio ("la haine") da primeira versão
do poema "Il est des nuits", transformado depois em "a dor"
("la peine"), são variantes alternativas do mesmo sentimento de
frustração e encontram a sua causa profunda igualmente nas relações difíceis e
indefinidas determinações de gênero, do qual o verso "cortar o sexo dos
negros/ para fazer velas para as suas igrejas" ("SOS") é a
brutal e áspera expressão de um sentimento de expulsão do humano que toca todos
os aspectos da pessoa. O corpo humilhado e acorrentado, ofendido e marcado,
vendido e comprado, é pois o Leitimotif do volume, a partir do corpo do escravo
que perde, na travessia do Oceano Atlântico, toda e qualquer referência geográfica
e física, afetiva e cultural, e que dormirá no final da viagem numa senzala
onde nada mais lhe pertence, isso se não for jogado pela murada dos negreiros
para pasto de tubarões.
O volume de Pigments se inicia pelo poema "Ils
sont venus ce soir" que evoca a chegada, no tempo passado, dos mercadores
para depredar a África dos seus filhos e continua com a tomada de consciência que
o presente da colônia perpetua o tempo da servidão com o emprego de mortos
vivos ("zombies"), o "bom
negro" que "deita na sua enxerga dez a quinze horas de fábrica"
("Rappel").
A lembrança das
deportações de outrora e do travessia do Atlântico, tema central igualmente de
Black-Label, é seguido pela denúncia das difíceis condições de vida no tempo
presente na colônia. Daí deriva a decisão de recusar, politica e
ideologicamente, a assimilação não só porque Damas rejeita a ideia da superioridade
da cultura francesa sobre a dos povos que domina, mas ainda porque o direito de
cidadania não é "plaidorie
sentimentale", [42]
mas um conjunto de atos concretos, de
reais possibilidades de construir a sua própria vida. Isso é mostrado através de
uma pequena cena quase teatral em que um personagem, sem nome, de
norte-americano dialoga com o jovem viajante de Retour de Guyane no terraço do
Hotel dos Palmistes [43]
de Caiena:
-
Vocês têm o ouro, [44] a terra, o mar, os lugares, os
homens… Destes vocês fazem cidadãos. Nós teríamos feito milionários.
O caráter concreto do
olhar desse estrangeiro, vindo da América anglo-saxônica, se contrapõe à
melíflua e ineficiente compaixão pós-escravagista da França que, em nome da
República, relegava, de fato, os povos das suas colônias para posições
subalternas. É interessante também o diálogo que se segue:
-
Há milionários, lhe disse eu.
-
Cod-fish aristocracy, me respondeu ele como expressão de desprezo, retomando o
seu whisky que não levam um centavo à comunidade: são mais negros que o boy que
me serviu o Canadian Club…
O norte-americano de
passagem por Caiena identifica e reconhece, ao primeiro olhar, a posição ao
mesmo tempo gregária e subalterna da burguesia local, incapaz de imaginar e
impulsionar o desenvolvimento do território que ainda não é um pais. Falsa
burguesia, no fundo, preocupada só em parecer, formada de funcionários e
clientes da administração francesa, cujo esboço será retomado e desenvolvido
mais tarde por Frantz Fanon no seu livro capital Pele negra, máscaras brancas. [45]
Numa poesia que abandona
o tom exótico e regionalista dos seus predecessores antilhanos, Damas põe em
cena os temas que assinalam a via da descolonização e da independência de
muitas regiões do mundo. A Guiana, no entretanto, em 1946, no imediato
pós-guerra, liga-se ainda mais estreitamente à França, ao tornar-se, por lei, [46] um DOM ("Département
d’Outre-mer", Departamento de além-mar, exatamente como a Seine ou a
Garonne) sem empreender primeiro qualquer iniciativa para quebrar a cadeia da
assimilação, então preocupação constante do poeta: "Tudo o que me chateia
em grandes letras/colonização/ assimilação/ e o que se segue" ("Pour
sûr").
O volume se fecha sobre um último tema: a lúcida
evocação da França dos anos 30, à sombra da guerra civil espanhola e da subida,
em 1936, do primeiro governo socialista da III República, chefiado por Léon
Blum. A paisagem humana, os ecos das greves, o canto da Marselhesa e da
Internacional, a população que se angustia e até os ventos da guerra que se
anunciam no horizonte são observados por um olhar ao mesmo tempo de dentro e de
fora, observador atento ao mesmo tempo partícipe.
Em suma, a poesia damasiana é um testemunho
excepcional sobre o ambiente em que vivem os jovens estudantes de cor em Paris,
nos anos 30, sobretudo dos que vêm das colônias do ainda imenso Império
colonial francês. Constitui uma leitura original dos anos que precederam à II
Guerra Mundial, é uma auto-análise capaz de fazer emergir histórias, pulsões e
sentimentos não-ditos, propõe, melhor: sugere a transferência da tomada de
consciência de um indivíduo para o coletivo. Assim a obra se conclui
convidando, com ironia devastadora, os Artilheiros senegaleses – tropas
coloniais formadas sobretudo de soldados negros de origem africana a que se
juntam magrebinos – a invadirem e libertarem o Senegal.
Não se trata de um discurso geral e abstrato mas, para além do apelo à tomada
de consciência, da sua participação na repressão de porções inteiras do
planeta, um convite específico de invasão do seu próprio país para o refazerem,
como artífices da sua história.
Por fim, segundo Daniel
Maximin que reivindica não só uma "conivência" com Damas mas também o
propósito consciente de dialogar com a sua obra, o Guianense é o grande poeta
do amor (infeliz, é claro):
[Damas] é um dos menos conhecidos, um dos maiores poetas deste século no nosso
Terceiro Mundo e na nossa poesia caribenha, o companheiro de Césaire, de
Senghor. Ele é para mim o poeta da sinceridade absoluta, do desnudamento, com o
qual tento dialogar. O único que ousou falar de amor no meio da descolonização… [47]
Traduzindo
Pigments/Pigmentos ou a descoberta de
uma poética entre oralidade e reescritura.
O volume de poemas Pigmentos de Damas tem uma história. É
composto por um conjunto de poemas (32 ao todo), escritos e reescritos,
em alguns casos, ao longo de anos: o número de correções não é, no entanto,
muito alto se consideramos, por exemplo, a passagem do volume de Graffiti a
Névralgies. O volume de 1937, reeditado em 1962, com um novo prefácio de Robert
Goffin, constitui uma obra precursora de temáticas e de formas de linguagem
inovadoras, que explicam até certo ponto a censura e a interdição impostas pelo
governo francês. Como vertê-lo para uma outra língua, igualmente enraizada nas
Américas, continente de grande e radical mestiçagem cultural?
Alguns poemas esparsos de Damas já
foram apresentados em revistas ou encontros brasileiros, traduzidos por Marieta
Damas
[48] e
por mim; [49] mais recentemente, a excelente revista digital Agulha,
[50] de
Fortaleza, propõe uma introdução à poesia do guianense aos seus leitores. De um
modo geral, a escolha recai sempre sobre os mesmos poemas, os mais musicais e
os mais explícitos. Em suma: os mais acessíveis e os menos polêmicos.
Traduzir um poema é procurar ler
um determinado texto literário e avaliar a pluralidade de textos que nele se
refletem e se respondem. Por outras palavras: é lançar sobre a obra poética um
olhar que descobre e recria sentidos. Por outras palavras: tentar ainda
compreender o projeto do autor, o conjunto em geral e o contexto em particular,
perceber as estruturas imaginárias que o informam e nas condições de
historicidade do tradutor (isto é, sua participação em um determinado universo
cultural outro) reconstruir, em outra
língua, um sentido ou uma teia de sentidos.
Relacionando-se com essas duas
noções complementares de leitura e reescritura, surge ainda a alteridade. Esta
se impõe a cada momento ao tradutor nos textos aparentemente mais simples ou
transparentes, na passagem, por exemplo, de uma língua com apenas dois verbos
auxiliares para uma outra com maior número de auxiliares que permitem novas ou
outras conotações.
Note-se ainda que as noções do eu
e do Outro, de maneira subjacente, ocupam um lugar central na obra de
Léon-Gontran Damas; por outras palavras: o problema do eu (gêmeo frágil que
sobrevive no entanto à morte precoce da irmã gêmea, órfão muito cedo de mãe,
descendente de três "raças", nascido e criado na família materna da
burguesia mulata de Caiena, com uma infância caótica, vivendo em regime de
diglossia, colonizado, residindo por longos períodos em outros países, grande
frequentador dos cabarés antilhanos ou afro-americanos [51] em Paris etc.) e do Outro. A
alteridade dá conta das mais variadas formas de diálogo e enfrentamento, de
ambiguidade e recusa, de assimilação e distinção radical, de sofrimento e
revolta, de amor e ódio que fazem parte do texto de Pigmentos. E o país natal
de certo modo ainda informe – ligado ao mesmo tempo ao arco marítimo das
Antilhas (francesas) e fortemente encravado no espaço sem limites e amazônico
ao Norte do Brasil, colônia penal até os meados do século XX [52] e
território ainda não totalmente explorado, [53] surge como uma das formas da alteridade.
País-alteridade, outro coletivo, tanto do ponto de vista temporal como
espacial, para o qual o poeta sonha descobrir, através da sua poesia e da sua
obra em prosa, um corpo imaginário e fundador, um contorno mais preciso e mais
verdadeiro e, sobretudo, uma coerência interna. Ao ler pela primeira vez
o volume de Damas, antes mesmo de conhecer a Guiana, a tradutora projetou sobre
o espaço ainda desconhecido o que vira antes, em várias viagens às Antilhas
francesas, na Martinica ou na Guadalupe. A presença do continente na sua
imensidão e na pujança da sua natureza [54]
foi uma grande surpresa: não era mais o espaço circunscrito e fechado de uma
ilha pequena, surgida do mar provavelmente de uma grande erupção vulcânica em
tempos imemoriais. [55] Dizer-se a si próprio e dizer o seu país, foi o desejo
mais profundo de Damas.
Mas traduzir é também, para o
tradutor, assumir a sua diferença, como indivíduo e membro de outra cultura. É
verdade que somos, todos, enquanto leitores, estranhos ao texto uma vez que ler
de verdade supõe a apreensão de uma certa linguagem, melhor: de uma poética. Mas leitor e
estrangeiro, o tradutor o é duplamente pela sua língua e diferença cultural;
ele o sente como desafio e dificuldade, riqueza e limitação. Enfim, o tradutor
escreve para outro ainda mais estrangeiro porque sem acesso ao texto na sua
língua de origem: daí a sua função de mediador, de go-between diriam os
antropólogos. A mediação, na presente edição bilingue, quer ser avaliada e
apreciada.
Há na
verdade dois tipos de tradução: a que implica em esforço de adaptação da obra à
cultura do tradutor e do leitor potencial; a que sustenta, em outra língua, o
estranhamento do original. Transparência e adaptação, estranhamento e
opacidade: privilegiar o sentido (e portanto a simples informação) ou recriar o
original a partir de um trabalho sobre a própria língua do tradutor/leitor. A
tendência geral na versão para o português dos poemas de Damas foi manter e
explorar o estranhamento, sem condescendência para com o leitor, nunca desejado
ou imaginado como simplório, passivo ou superficial.
A poesia de Damas, aparentemente
muito mais simples e direta do que a de Césaire, coloca problemas de tradução, totalmente
imprevistos à primeira leitura. Problemas que exigem negociação entre duas
línguas (francês e português), entre duas oralidades e duas culturas mestiças
porque enraizadas em terras do Novo Mundo. Vejamos inicialmente o problema a
partir de um único exemplo. A seguir abordaremos outros temas em conjunto.
Inicialmente, lembramos ainda ao
nosso leitor que cada língua tem um limite diferente entre o que é conveniente
ou inconveniente. Por outras palavras: a linha da censura interna é flutuante,
desloca-se de um universo cultural para outro. Depois de viver vinte anos em
Lisboa, apreende-se isso ao longo do tempo, mesmo quando se trata de variantes
semânticas menores da mesma língua materna. Palavras tão simples e corriqueiras
como puto, moço/moça, tio/tia têm conotações muito diferentes, em português,
dos dois lados do oceano.
Um puto brinca na rua: o lisboeta
ou qualquer português emprega a palavra no sentido latino que também existe no
italiano (un putto), inclusive na pintura (i putti, ou seja, os anjinhos que
cercam a Virgem em quadros religiosos); puto é apenas uma criança pequena do
sexo masculino, nada tem a ver, na vida corrente, com a mulher de má vida. Em
suma, para um português, puto não é, hoje, o masculino de puta.
Um dos mais belos romances da
velhice de Machado de Assis, Memorial de Aires, começa por uma cena em que uma
menina pequena diz "olha aquele moço que está rindo para nós" e o
velho conselheiro Aires que retorna enfim ao Rio de Janeiro, depois de uma carreira
diplomática, comenta longamente com bonomia a palavra moço: [56] a mesma
palavra, em Portugal, tanto no masculino como no feminino, guarda ainda a
conotação, vinda dos tempos medievais ou quinhentistas de "criado"/ "criada"
do paço, inexistente para os falantes brasileiros, inclusive para o nosso
Machado.
O que dizer então do uso atual de
tio / tia anteposto ao primeiro nome de quem não é nem tio nem tia de verdade,
o que, no Brasil, é sempre sinal de familiaridade, de gente que veio da
periferia ou da favela, ou então de crianças muito pequenas no Jardim de
Infância,
[57]
enquanto em Lisboa, as "tias" da linha de Cascais corresponderiam às "grã-finas",
gente bem e endinheirada, da Barra da Tijuca? Senhoras que frequentam as
páginas de revistas femininas de Portugal sentem-se honradas com essa
denominação, inconveniente no Rio de Janeiro.
O que se passa no interior de uma
mesma língua que se espalha por dois ou três continentes diferentes,
complica-se quando se trata de traduzir de uma língua (o francês) para o
português. O limite da conveniência ou inconveniência, da pertinência ou
impertinência, se desloca, sobretudo no que diz respeito à linguagem familiar
ou popular. E a poesia de Damas reescreve literariamente a oralidade de forma
quase invisível. Ela se embebe no ritmo e na dicção do coloquial, e dos jogos
de palavras.
Essa breve digressão serve de
introdução à tradução de um poema de Damas, sutil e particularmente opaco, que
não pode ser traduzido ao pé da letra de modo nenhum. O poema intitulado "Dans
son attente", traduzido por "Enquanto te espero", com cinco
estrofes, do ponto de vista semântico tem apenas uma ou duas palavras que
seriam estranhas para um brasileiro: java (termo que pode ser encontrado em
dicionários correntes) e oeillardes (uma gralha?, pensa logo o leitor apressado
que corrige automaticamente oeillades). O poema, no entanto, só fará sentido
se, recusando a solução fácil da "gralha", procurarmos um
correspondente em português e explicitarmos discretamente o contexto cultural
de um espaço em Paris, só percebido através de pequenos indícios quase invisíveis
para o leitor apressado. O poema é uma transposição irônica e "canaille" [58] sobre
temas tão graves como amor e sexo, política e repressão.
Daniel Maximin comentou uma vez em
conversa que o leitor não deveria ser autorizado a supor um engano gráfico (uma
gralha) no poema. Apelar sempre para uma gralha é solução de facilidade. Biringanine
Ndagano, autor de um livro importante e recente sobre Damas, [59] busca
explicar a palavra como o resultado de uma operação de tipo gíria, no que tem
certamente razão, mas a sua hipótese de uma possível origem portuguesa parece
inverosímil: sua frase "dans cette langue nuit se traduit par tarde"
(p. 155) não corresponde à realidade. Nessa língua misteriosa, "última
flor do Lácio", a correspondência apontada só pode fazer sorrir um falante
nativo de português. Por outro lado, Damas conhece muito melhor o inglês
[60] do
que o português, o que reforça, de certa maneira, a nossa hipótese de jogo
verbal com outra língua.
O texto pode ser compreendido
muito sucintamente assim: o narrador espera a mulher amada num hotel de
encontros mais ou menos clandestinos numa rua perto da Bastilha; ela está muito
atrasada. Enquanto espera, ele se diverte imaginando um poema: ouve os sons da
rua e dos quartos vizinhos num quarteirão popular. Cada estrofe parte de um
desses sons. O poeta brinca com uma interpretação voluntariamente "canaille":
a "java" [61] num rádio alto, as prostitutas que deambulam à procura
de clientes, a iniciação ao prazer de rapazes ainda virgens (puceaux =
donzelos), [62] as experiências eróticas de um fetichista de pés, estes
têm aliás a forma de balas de açúcar cândi para chupar etc. Os ruídos são
aqueles de um bairro popular com fábricas ao longe ("fumaças cilíndricas"),
desempregados que protestam, hotéis de encontros rápidos ou clandestinos, a
presença da polícia nas ruas. Em suma: o amor e a greve com o canto da
Internacional [63] ao fundo, reprimida pelas forças da ordem.
Para essa leitura do poema,
parte-se da palavra enigma oeillarde (com r), que pode ser explicada de duas
maneiras, aliás não excludentes. No primeiro caso, ela transforma uma expressão
de gíria, corrente e documentada em textos literários; no segundo caso, é um
jogo de palavras com uma língua estrangeira, no caso o inglês.
A palavra misteriosa relaciona-se com oeil e o
seu derivado oeillade (olho; olhadela, piscadela) evidentemente. Qualquer bom
dicionário francês (o Larousse ou o Robert, ou ainda o Littré para textos
clássicos) apresenta um longo verbete sobre oeil. Para oeillade, duas notações
interessantes no Larousse: olhar furtivo indicando ternura ou conivência. Em
muitos usos, oeil se relaciona com orifício, buraco (oeil d’un marteau, o
orifício de um martelo; o olho de um ciclone etc.) OEillard, palavra técnica e
masculina, é o orifício quadrado feito na pedra da mó para receber um haste
metálica. Até aqui nada que possa orientar o leitor. Procuremos do ponto de
vista literário e aí há coisas interessantes.
OEil, como se vê, cobre uma área semântica muito
vasta. Raymond Queneau [64] (1903-1976),
no seu romance Zazie dans le métro (1959), narrativa de tom burlesco, cria uma
personagem famosíssima, [65] uma
menina de 9-10 anos que emprega indiferentemente "mon oeil" e "mon
cul" (literalmente, meu cu ou ainda melhor: meu traseiro, minha bunda),
sempre como expressão de incredulidade, de dúvida, de desacordo insolente. "Mon
cul" e "mon oeil" são, nesse caso preciso, sinônimos, um ainda
mais vulgar do que o outro. No caso de "mon oeil", a expressão
acompanha-se, no filme do mesmo nome de Louis Malle, de um gesto que existe,
aliás, na cultura brasileira: colocar o indicador na pálpebra inferior de um
dos olhos para indicar a dúvida. Diz-se ou dizia-se então: "este aqui é irmão
desse". De qualquer jeito, cul ou oeil correspondem a dois orifícios por
onde se desconfia da verdade, da mentira que quer passar por verdade. Sente-se
que, a partir desse contexto cultural, em oeillarde, há sugestão forte de
erotismo e de contestação.
O outro caminho para explicar a palavra
oeillarde seria um jogo de palavras, já anteriormente sugerido, com uma língua
estrangeira, no caso o inglês. Freud, no seu livro Le mot d’esprit et ses
rapports avec l’inconscient, [66]
analisa o procedimento e dá vários exemplos. Assim, oeillarde seria a conjunção
de oeillade+hard. O leitor reencontra o
estilo "canaille" , popular
na zona da Bastilha em Paris, nas vizinhanças da rua de Lappe.
A tradução poderia ser feita de duas maneiras
diferentes: uma, mais vulgar e brutal, explícita: oeillardes = traseiros ou
bundas que se oferecem a passantes indiferentes; outra, menos contundente,
implícita: oeillardes = olhares insistentes, olhares que buscam clientes.
A primeira solução soa meio pornográfica, uma
vez que o limite da inconveniência em português é diferente, no caso, do limite
em francês. Preferiu-se a segunda solução uma vez que o poema parece já
suficientemente "canaille" com a leitura da expressão "en
ambulance" como "que deambulam", sugerindo o ir e vir das
prostitutas numa avenida à procura de clientes: do lat. ambulare, passear. As
luvas brancas indiferentes, por metonímia, sugerem, ao mesmo tempo, burgueses
e/ou policiais, ambos figuras ou agentes da ordem. Uns procuram sexo fácil numa
zona de prostituição, outros reprimem manifestações de grevistas ou
desempregados.
O vadio no final do poema comenta irônico a
primeira relação barulhenta e sôfrega de uma recém casada e o objeto inanimado
que marca o tempo (o relógio) – símbolo tão importante na poesia ocidental
desde o Barroco até Baudelaire – parece escandalizar-se com o atraso já de três
horas da mulher amada. A intertextualidade do poema que parecia um simples
amontoado de frases e imagens desconexas, quase uma colagem, ganha em coerência
e ironia, em distanciamento e crítica. Creio que esse rápido exemplo dá a
medida da dificuldade em traduzir e as armadilhas da poética de Damas sob a
aparente simplicidade.
Traduzir textos literários supõe quase sempre
uma negociação nunca explicitada em que o tradutor tem diante de si duas
opções: facilitar a leitura ou manter a opacidade, quando ela existe, do
original. De forma evidente também ele deve preparar-se para perdas de
conotações nessa translação entre duas línguas o que poderá buscar compensar,
num jogo secreto de equilíbrio só possível de ser percebido numa edição
bilingue como esta, explorando a riqueza da língua para a qual ele traduz. Esse
jogo do equilíbrio em que ora se retira / atenua, ora se acrescenta conotação é
perceptível no texto de "Enquanto te espero".
Assim, em outro poema, criou-se deliberadamente
uma variação, ausente do original, para introduzir uma distinção que a língua
portuguesa permite, mas não a francesa. Como se sabe, o sintagma muito simples
il est malade pode ser traduzido por "ele está doente" (estado
temporário de febre, de mal-estar passageiro) ou por "ele é doente"
(estado permanente, de doença crônica ou de doente imaginário obsessivo). No
poema em que o poeta se diz ridículo ("Saldo/ Soldo"), joga-se com
essa dualidade na expressão do tempo e estabelece-se uma gradação, inexistente
no original em francês, entre estar e ser ridículo, do exterior para o
interior, indo do que lhe cobre o corpo para o desejo secreto de
embranquecimento. O poeta está inicialmente ridículo em roupas que não lhe
convêm, descobrindo progressivamente depois que é ridículo enquanto assimilado,
visto pelo olhar do Outro. Enfim, quase todos os jogos de desconstrução de
palavras encontraram correspondências em português: num único caso, no muito
conhecido poema "Soluço", para traduzir gui/tare optou-se por uma
solução gráfica gui/ta(r)ra uma vez que tara em português não soa com duplo rr.
Outro problema interessante: o ritmo e a repetição.
A repetição em Damas não é sempre a da ladainha, repetição quase de imobilidade
e encantamento amorosos, que acrescenta novos louvores e invocações ao que se
ama. Algumas vezes o é, e nesse caso a sua poética lembra, como o negativo de
uma foto, a repetição de um outro poeta (religioso e católico), apreciado
inclusive pelo jovem Césaire, Charles Péguy nas suas Tapisseries. [67] A ladainha em Damas é ainda a
transposição mecânica e irônica do código de comportamento da burguesia mulata
de Caiena que se quer mais autenticamente "gaulesa" do que os
franceses de França: nesse caso lembra mais o lenga-lenga insuportável da
lavagem de cérebro. Em outros casos, enfim, a sua repetição lembra um ritmo
circular, de valsa que ao girar volta sempre ao ponto de partida: é o caso da
poema sobre uma torneira a pingar, metáfora de uma enxaqueca lancinante (que um
leitor brasileiro relaciona quase imediatamente com o poema "Num monumento
à aspirina" de João Cabral de Melo Neto)
ou a ronda irônica dos alemães e dos franceses querendo ambos a pele do
outro para fazer um tapete.
Damas apresenta ainda algo de muito estimulante
para os nossos tempos de inconformismo conformista, melhor: de inconformismo
aparente e teatral, de cartas marcadas, consciente dos limites impostos pelas
regras do "bem pensar" ou do "bem sentir". Damas não é
nunca, mas nunca mesmo, politicamente correto. A escolha da epígrafe inicial de
Claude Mac Kay o sugere: que ninguém espere de mim o que se convencionou dever
ser esperado de um negro (nem de um mulato, acrescentamos nós); não sou filho
da África. Com Damas, acabam-se as máscaras e as poses, as ilusões e a retórica
grandiloquente. Isso explica por um lado, a adesão até certo ponto superficial
de certos leitores à sua poética e por outro lado, a importância capital que
lhe atribui Frantz Fanon em particular no seu livro Peau noire, masques blancs
(1952). [68] Fanon percebeu que a
força de Damas é a força da desmistificação e da dessacralização. Damas ousa
dizer o seu ódio e o seu ressentimento raciais e ao dizê-los ultrapassa o simples
ruminar do ódio e do ressentimento. Ousa atacar ex-combatentes negros
senegaleses, os famosos "Tirailleurs sénégalais" (os batalhões
coloniais das tropas francesas que combateram não só na I como na II Guerra
Mundial e que, entre as duas conflagrações, foram enviados para conter a
agitação política no Império colonial francês, inclusive nas Antilhas). Damas,
pela ironia devastadora, quebra a identificação do militante, afasta a mesmice
das ideologias e impede o tolo orgulho nacionalista.
Damas é, enfim, no trio da negritude, o grande
lírico, que exprime ao mesmo tempo as dores e as dificuldades do amor assim
como o erotismo, no jogo ambíguo de imagens da memória, do momento presente e
da imaginação. Assim, uma mulher desconhecida entrevista na rua funde-se, de
forma imprevista, com a mulher amada e ausente, no poema "Captação".
Uma última nota sobre o que não foi traduzido. O
título de um poema dedicado a Louis Armstrong e algumas palavras não foram
traduzidas: camembert ("É certo"), savoir-vivre (título de um poema),
pernod fils ("Num cartão postal" ), plastron e melon ("Saldo/Soldo")
ou o pejorativo Boches ("Et caetera"). Manteve-se também o
estranhamento do original no caso do inglês shine. [69] No caso do francês, as
palavras citadas são bastante conhecidas como tipo de queijo de pasta mole da
Normandia (camembert) ou aperitivo forte, tradicionalmente de absinto [70] (pernod fils), ou fazem parte do
contexto de francofilia cultural da época, inclusive no vestir. Chamar os
soldados alemães de Boches é algo que ficou da I Guerra Mundial e que se pode,
inclusive, encontrar no jornalismo de língua portuguesa da época e o termo por
vezes volta, ainda hoje, em alguns críticos (que deveriam ler Damas) da atual política
alemã na União Europeia. No poema "Fichas para a roleta", manteve-se
a oposição entre Creusot e Schneiders facilmente apreendida como fábricas
francesas de produção bélica e empresários alemães da indústria para a guerra.
No caso francês, usa-se o topónimo (Creusot, grande centro metalúrgico perto de
Paris, que rima aliás com Maginot) e no caso alemão, o nome de uma família que
se espalhou por toda Europa, ganha conotação de grande burguesia industrial.
Enfim, num caso, o do poema "Lembrete",
acreditou-se que o sintagma bastante neutro, quase sem conotação especial "des
airs d’esclaves" (= cantos de escravos) ganharia força como "velhos
lundus", exemplo de adaptação a um outro contexto cultural mestiço das
Américas negras, onde esse tipo de canto dos morros perdurou, entre nós, na
bela voz grave de Clementina de Jesus. O poema, na versão em português,
tornou-se mais sintético sem a pesada repetição da locução "pendant que".
A negociação implícita, no caso, optou pela contenção elíptica. Nesse mesmo
poema, a palavra "flûte" repetida (veja-se: "et flûte/ flûte ")
constitui um nó intrincado de significações que desafia toda e qualquer tradução.
Quando aparece pela primeira vez é uma interjeição (embora o original não
apresente o sinal gráfico correspondente): trata-se, uma vez mais, de uma
expressão familiar, bastante usada, que marca a impaciência e a decepção do
narrador que recorda o passado, primeiro como indivíduo, depois como membro de
uma coletividade de descendentes de escravos.
Infelizmente, como sabe qualquer brasileiro, a
palavra flauta em português não é usada como interjeição e o jogo entre a
primeira e a segunda flauta (esta de caniço) ressoando nos morros perdeu-se
irremediavelmente na passagem do francês para o português. Não foi encontrada
uma solução satisfatória. [71] Que
chato para a primeira ocorrência (embora seja esse o sentido) seria banal
demais e quebraria o lirismo do canto que vem dos morros, certamente em
crioulo. Traduzir poesia implica também uma certa frustração. Ainda nesse mesmo
poema, o leitor atento observará a sutileza oculta da expressão "brimades
de bambou" que transforma a expressão familiar corrente "coup de
bambou": esta significa propriamente cansaço extremo e repentino. (J’ai eu
un coup de bambou = de repente senti muito cansaço). A expressão no poema é, e
não é, aquela esperada pelo leitor que tem o francês como sua língua. A estrofe
torna-se ambígua e polissêmica: cansaço do menino que estudou à força a
História de França e castigo físico do menino por não aprender a mesma
História. A simplicidade de Damas esconde inúmeras e imprevistas armadilhas
assim como jogos discretos que podem passar desapercebidos.
Há ainda diferenças radicais, não evidentes,
entre França e Brasil do ponto de vista do viver quotidiano: a concierge,
figura emblemática e feminina em todo o espaço francês, não corresponde ao
porteiro, sempre homem no Brasil. Alguém já viu uma porteira no Rio ou em S.
Paulo? embora ela exista frequentemente em Lisboa e nas grandes cidades de
Portugal. A porteira entre nós brasileiros constitui uma atividade improvável:
ela aparece no poema "Nevralgia" mas soa, para nós, algo exótica.
Traduzir por zeladora traria alguma vantagem? Não me parece.
Aliás, a discussão sobre a "tradusibilidade"
é muito antiga e muito atual. Derrida comenta sobre a impossibilidade de
traduzir em particular os nomes próprios a partir de um trecho bíblico
claramente ambíguo sobre a torre de Babel:
Assim Deus, na
sua rivalidade com a tribo dos Shems, dá-lhes, de uma certa maneira, a ordem
absolutamente dupla: […] traduzam-me e […] não me traduzam, desejo que me
traduzam, que traduzam o nome que lhes imponho e, ao mesmo tempo, sobretudo,
não o traduzam, não o devem traduzir. Eu diria que todo nome próprio é
trabalhado por esse desejo: traduza-me, não me traduza. [72]
Um outro título problemático dentro de Pigmentos
brinca com uma terceira língua, esta ainda mais oculta, o crioulo: "limbé" em crioulo da
Guiana significa "sofrimento ou dor de amor". Como traduzi-lo para o
português sem perda significativa de conotação? Traduzir por tristonho,
entristecido, doído, dolorido, cheio de dor, saudoso? Depois de alguma
hesitação, escolheu-se "No limbo" por causa da semelhança fônica, o
termo limbo (do lat. Limbus: orla, margem, franja) carregando as conotações de
afastamento, de lugar marginal, de privação da visão de Deus. No caso
substituiu-se a conotação de tipo sentimental por outra de cunho escatológico.
O poema em questão exprimiria a carência profunda da África? Ou seria
simplesmente uma postura ideológica? Creio que a ausência de uma identidade
puramente africana marcou fundo Damas.
Até os simples títulos dos poemas ocultam outras
pequenas armadilhas. Já aludimos rapidamente
a um ou a outro título. "Trégua", por exemplo, reúne em
francês duas ideias diferentes: o substantivo trêve é a cessação temporária de
hostilidades (trégua portanto, exatamente como em português) mas trêve de
significa "deixemos disso, chega, acabou". A negociação inerente à
tradução não pode manter, infelizmente, uma só única palavra na versão em português
para as duas acepções.
O que dizer então do título do poema de Damas
dedicado a Césaire? "Solde" em francês é ao mesmo tempo "saldo"
ou seja, o que restou no inventário final, mas também "soldo, paga,
salário", o que poderia igualmente ser a opção uma vez que, de forma
pejorativa, "être à la solde de quelqu’un" significa ser pago para
defender os interesses de outrem. No fim desse poema, o narrador se descobre e
se acusa "cúmplice e "rufião". Recusando uma opção única,
empobrecedora, decidimos reduplicar o título por nossa conta: "Saldo/
Soldo", uma vez que as duas palavras cabem perfeitamente como título. Ler
Damas é explorar os jogos de palavras da oralidade, sob a banalidade ou
simplicidade, só aparentes. [73]
Uma derradeira palavra sobre as dedicatórias e
os contextos evocados. os poemas de Pigmentos cobrem e sugerem contextos e
espaços diferentes: o Deep South americano; as plantações das Américas negras
(a expressão é de Roger Bastide); o Paris "des folles années 30"; a
Guiana dividida entre mulatos e negros; a tentação da assimilação e do
embranquecimento na Guiana, na França e em África; a África sonhada e perdida;
a memória trágica do trajeto dos barcos tumbeiros [74] através do oceano, na noite escura dos porões fechados etc.
As dedicatórias (treze ao todo) traçam a rede
das relações de Damas com o meio intelectual em que viveu:
a) o poema "Eles
vieram aquela noite" dedicado ao senegalês Léopold Sedar Senghor, o "Africano"
do trio da negritude, evoca a cena que
viria a fundar América das Plantações: o rapto brutal de negros que dançam,
distraídos, numa aldeia para serem levados ao negreiro e à escravidão do outro
lado do oceano:
b) o poema "Há
noites" a Alejo Carpentier (1904-1980), o grande intelectual cubano, filho
de um arquiteto francês instalado em Cuba, autor de El reino de este mundo
(1949) sobre a revolução haitiana;
c) o poema "O
vento" ao casal Henriette e Jean-Louis Baghio’o, ele nascido na Martinica
(1910- 1994), outro conhecido exemplar da burguesia mulata das Antilhas
francesas;
[75]
d) o poema "Soluço",
um dos mais conhecidos de Pigmentos, dedicado ao casal Vashti e Mercer Cook,
ele professor negro-americano (1903-1987), autor de inúmeros ensaios, diplomata
do seu país em África (Gâmbia, Senegal e Nigéria);
e) o poema "Saldo/Soldo"
dedicado a Aimé Césaire (1913-2008), o antigo condiscípulo do Liceu Schoelcher
de Fort-de-France, o amigo reencontrado em Paris, o criador da palavra "negritude"; [76]
f) o poema "No
limbo" dedicado a Robert Romain, amigo do autor, também da Guiana;
g) o poema "O
lamento do negro" dedicado a Robert Goffin (1898-1984), advogado e poeta
belga, militante "wallon" (ou seja da Bélgica francófona), autor do
primeiro livro importante em francês sobre o jazz: Jazz-Band, com prefácio de Jules
Romains (Bruxelles,
Écrits du Nord, 1922): é Goffin que assina o prefácio da edição dita
definitiva de Pigmentos em 1962 por Présence Africaine;
h) o poema "Noite
em claro", dedicado ao casal Sônia e Gorges Gavarry ( - 1987), criadores
de um clube em Paris onde a cada semana eram debatidos assuntos de atualidade;
i) o poema "Embranquecido"
dedicado ao casal senegalês Christiane (1925 -) e Alioune Diop (1910-1980), ele
criador da revista e da casa de edição Présence Africaine; ela, sua
continuadora, depois da morte do marido;
j) o poema "Lembrança"
dedicado a Richard Danglemont, também da Guiana;
k) o poema "Shine"
dedicado a Louis Armstrong (Nova Orleans, 1901-Nova Iorque, 1971), o grande
cantor, compositor, trompetista nascido no Deep South dos Estados Unidos;
l) o poema "Savoir-vivre"
dedicado a Etienne Zabulon, técnico de Minas que deixa o posto em 1960, segundo
um decreto publicado no Diário Oficial, de funcionário em Caiena;
m) o poema "Olhar"
dedicado a Jacques Howlett (1919-1982) professor de filosofia, membro da equipe
de Présence Africaine, autor Un temps pour rien (1953) e Le Théâtre des
opérations (1959): é Howlett que assina a quarta capa das edições de Pigments
de 1962 e 1972.
Em
resumo, a obra de Damas, precursora e inovadora sob tantos aspectos, discreta e
decididamente moderna, lírica e crítica, esconde a sua novidade sob a aparente
simplicidade da reescritura da oralidade quotidiana, de uma musicalidade
evidente. É no momento em que se busca traduzi-la para uma outra língua, até
mesmo aparentada ao francês do original, como o português, que ela revela as
suas inumeráveis dobras e os seus jogos por vezes irredutíveis ou
incontornáveis, ou seja, as suas sutilezas. Sem o lirismo majestoso de Senghor,
sem as imagens inéditas que jorram sem cessar de Césaire, ela representa a
terceira voz da negritude no seu lirismo e na sua ironia, tanto do ponto de
vista individual como coletivo. Damas é sem dúvida nenhuma o mais decididamente
americano dos três e por isso mesmo deveria interessar ao público leitor
brasileiro.
NOTAS
1. Parte desta
apresentação crítica sobre a poesia de Damas foi discutida com a especialista
italiana Antonella Emina, em particular os itens 2, 3 e 4.
2. A primeira versão do Cahier
d’un retour au pays natal sai na revista Volontés, pouco antes do
início da guerra.
3. Faz-se alusão ao
volume La terre le feu l’eau et les
vents. Une anthologie de la
poésie du Tout-Monde. Paris, Galaade, 2010.
4. Ocupa, assim, a posição equivalente à de Manuel Bandeira, no
Modernismo brasileiro.
5. Guyane, Léon-Gontran Damas, 1995, 23
min. O
filme recebeu vários prêmios (Milão, 1995; Québec, 1996; Cairo, 1996).
6. Poeta, romancista e ensaísta nascido na Guadalupe em abril de 1947.
Como ensaísta publicou, em particular; Les
fruits du cyclone: une géopolitique de la Caraïbe. Seuil, 2006 e Aimé Césaire, frère volcan. Seuil, 2013.
7. Pigments.
Paris, Guy Lévis-Mano, 1937. Lembrar que, em 1937, a Guerra civil de Espanha já
começou.
8. O prefácio
agressivo e decididamente político de Robert Desnos explica, de certa maneira,
a decisão de censurar as duas primeiras obras de Damas, em verso e em prosa,
Pigments e Retour de Guyane. O volume de poemas foi censurado pelo governo
francês e o ensaio, pela administração colonial da Guiana.
9. Pigments,
Paris, Présence Africaine, 1962, p. 7-8. O mesmo prefácio aparece na edição de Pigments de
1972.
10. Trata-se de
Gabriel de la Concepción Valdés ou "Plácido" (1809-1844), poeta
cubano de grande aceitação popular na primeira metade do século XIX. Segundo
Lezama Lima, "fué la alegria de la casa, de la fiesta, de la guitarra y de
la noche melancólica". José
Lezama Lima. "Gabriel de la Concepción Valdés (Plácido)", in Antología de la poesía cubana. Tomo
II. Siglo XIX. La Habana, Consejo Nacional de Cultura, 1965, pp. 276-279. A
citação está nas páginas 277-278.
11. As "Désirades",
ou seja, as ilhas do desejo, correspondem às ilhas maravilhosas, já presentes
no final do Cahier d’un retour au pays natal, de Césaire e retomam um tema que
vem da Antiguidade, desde os Gregos.
12.
Les armes
miraculeuses é o título de um volume de poemas de Césaire. Gallimard, 1946.
13. Título de um
volume de poemas de Damas durante muito tempo inédito. Titulo estranho aliás
que vem de Desnos, significando "figuras, imagens, aparências de pouco
valor": a forma transforma a expressão corrente mine de rien, que
significa "sem parecer". Anuncia tema importante em Black-Label:
NOUS LES GUEUXNÓS
OS ESFARRAPADOS
nous les peunós os pouco
nous les riennós os nada
nous les chiensnós os cachorros
nous les maigresnós os magros
nous les Nègresnós os Negros
Note-se que o
plural é muito pertinente com o estilo do inédito de Damas.
14. A primeira
antologia de Damas (Seuil, 1947) precede a de Senghor (1948) e a sua segunda
(Présence Africaine, 1966) reúne, décadas antes da Anthologie du Tout Monde,
elaborada sob a inspiração de Édouard Glissant, poetas produzindo em línguas
diferentes.
15. Ver a análise dos "poemas-túmulo"
de Césaire in ALMEIDA, Lilian Pestre de,
Mémoire et métamorphose. Aimé Césaire entre l’oral et l’écrit, Würzburg,
Königshausen & Neumann, 2010, 434 p. ou ainda "Les
hommages croisés aux frères de la négritude: Damas, Césaire, Senghor et Fanon",
in Léon-Gontran Damas, poète moderne. Direction Biringanine Ndagano et G.
Chiharhalwirna (Direction). Ibis, Rouge, 2009.
16. É claro ainda
que o tema do fogo liga-se, nos poetas e prosadores oriundos da Martinica (como
Césaire, Glissant ou Chamoiseau) e da Guadalupe (como Daniel Maximin, Guy
Tirolien, Simone Schartz-Bart ou ainda Maryse Condé), ao tema do vulcão,
presença física marcante nas duas ilhas francesas, graças à Montagne Pelée e à
La Soufrière. Os dois vulcões são ainda ativos. A erupção de 8 de maio de 1902
da Montagne Pelée matou 26 mil pessoas, queimou dezenas de barcos no porto e
destruiu a cidade de Saint-Pierre, antiga capital econômica da ilha, a noroeste
da Martinica. A tragédia ainda está bem presente no imaginário coletivo.
17. Corresponde, de certa forma, ao libanês (melhor: ao "turco")
dos romances de Jorge Amado.
18. O vulcão é
uma presença constante na poesia de Césaire e de Maximin: a Montagne Pelée e a
Soufrière, respectivamente na Martinica e na Guadalupe, marcam a paisagem.
Assim se explica o título do último ensaio de Maximin: Césaire, mon frère volcan. Seuil, 2013.
19. O texto do poema escolhido como epitáfio de Damas
é o seguinte:
La
torche de résine | A tocha de resina
portée
à bras d’homm | elevada por braço de homem
ouvrant la marche | abrindo
a marcha
dans la nuit du
marronnage
| na noite dos quilombos
n’a
jamais cessé | nunca cessou
à
dire | para dizer
vraia
| verdade
d’être
| de ser
ce
flambeau | essa chama
transmis
d’âge en âge | transmitida ao longo do tempo
et
que chacun | e que cada um
se
fit fort de rallumer | esforçou-se por reacender
en souvenir de tant et tant de souvenirs. | em lembrança de tantas e tantas lembranças.
20. Léon-Gontran
Damas, Notre génération (inédito), citado in Lilyan kesteloot, Histoire de la
Littérature Négro Africaine, Paris, Karthala – AUF, 2001, p. 95 ; e in "Le Groupe de l’Étudiant
noir", capítulo Les écrivains noirs de langue française: naissance d’une
littérature, Bruxelles, éditions de l’Institut de sociologie, Université libre
de Bruxelles, 1963, p. 91.
21. "Le long cri d’Aimé Césaire", Le Nouvel Observateur,
n°1528, 17 - 23 février 1994, p. 80-83 (Propos recueillis par Gilles Anquetil, sobre La Poésie , de Aimé Césaire, edição realizada por Daniel Maximin e
Gilles Carpentier, Seuil, 546 pages.)
22. "Limbé ", l’Étudiant noir, 3 (mars 1935), p. 6. A estrutura da
estrofe sofre diversas revisões pelo autor, até a definitiva em que se dá a
cada grupo nominal a dignidade de verso, tendo como resultado atrair a atenção
do leitor sobre cada detalhe.
23. Essa estrofe
da versão inicial do poema "Limbé" ("No limbo") deveria ser
comparada com a versão definitiva. O trabalho de Damas é praticamente quase
todo sobre o ritmo.
24. "Négrerie: jeunesse noire et assimilation", l’Étudiant
noir, 1 (mars 1935). Na realidade, a palavra "négritude" aparece
impressa, pela primeira vez, no poema Cahier d’un retour au pays natal, de
Césaire, desde a sua primeira versão (Volontés, 1939).
25. Léopold
Sédar Senghor Liberté III. Négritude et civilisation de l’universel, Paris,
Seuil, 1977, p. 269-270.
26. Léopold
Sédar Senghor, Introduction à Liberté 1. Négritude et Humanisme, p. 9.
27. Léopold
Sédar Senghor "Comme les lamentins vont boire à la source", in Poésie
complète, édition critique, coordenação de Pierre Brunel, Paris, CNRS éditions,
2007, p. 275 (Planète libre, 1).
28. Cf. Romuald Fonkoua, "Aimé Césaire", in Cahiers
d’études africaines [Em linha], 191 (2008), posto em linha em 29 setembro de
2008, consultado em 27 dezembro de 2012.
URL: http://etudesafricaines.revues.org/11722
29. Consultar a edição bilingue do poema fundador de
Aimé Césaire, Cahier d’un retour au pays natal/ Diário de um retorno ao país
natal, publicada pela EDUSP, 2012.
30. Ver ALMEIDA, Lilian Pestre
de. "Damas et les nouvelles littératures des Amériques: entre l’oral et
l’écrit" in EMINA, Antonella
(sous la direction de). Léon-Gontran
Damas. Cent ans en noir et blanc. CNRS Éditions, 2014, p. 177 – 214.
31. Valentin Y. Mundibe é um filósofo, escritor e
poeta africano, nascido a 8 de dezembro de 1941 em Jadotville (Likasi), antigo Congo
Belga, hoje República Democrática do Congo (RDC). Também designado Zaire ou
ainda Congo -Kinshasa para distinguir do Congo-Brazzaville (antigo Congo
francês).
32. A entrevista de Léon Gontran
Damas realizada por V.Y. Mudimbe teve lugar em Howard University (Washington
D.C.) nos dias 1 e 2 de outubro de 1973. O texto foi publicado pela primeira
vez in Carnets d'Amérique de V.Y. Mudimbe em 1976 (Paris:
Saint-Germain-des-Prés / Kinshasa: Centre des Recherches Pédagogiques du R.P.
Détienne) e na revista Poésie 43-44-45 (janvier-juin 1976, p. 47-58), com o
titulo "Faut-il liquider les pères ?"
33. Diz-se em francês tapuscrit um
documento datilografado com correções feitas à mão.
34. As duas
obras inaugurais da poesia da negritude, Pigments e o Cahier, são elaboradas no
mesmo período. Senghor refere um período de "parturição" do poema de
Césaire de três anos, o que nos leva ao ano de 1936.
35. Damas
não abandona o título Névralgies que reaparece em volume posterior de poemas.
Présence Africaine, 1966.
36. Agradecemos à
grande especialista ttaliana, Antonella Emina, a precisão dessa análise dos
manuscritos.
37. Essa colônia
tem ainda o impacto, extremamente negativo na longa duração, de lugar para
condenados a trabalhos forçados de todo o império francês.
38. O poeta
faz muitas vezes um jogo de palavras com o
nome da sua família (Damas) e a cidade do Oriente a caminho da qual
Paulo de Tarso tem a revelação da sua missão, Damasco (Damas, em francês). O
jogo de palavras entre o patronímico e o topônimo se perde em português
evidentemente.
39. Talvez a
única exceção seja o emprego de "Limbé" com o sentido de tristonho,
acabrunhado, melancólico, como título de um dos poemas. Consultar a respeito as
notas sobre a tradução.
40. "Littérature de hamac": a expressão aparece em Suzanne e Aimé Césaire
na revista Tropiques que o casal, mais o amigo Georges Ménil, fundam na Martinica em 1939 e que permanece,
ainda hoje, um documento fundamental para o conhecimento da negritude antilhana.
41. O fenômeno
dos quilombos foi importante tanto na Guiana francesa como na Guiana holandesa,
hoje Suriname: os escravos que conseguem fugir à escravidão adaptam-se à vida
dos indígenas. Ainda hoje, sobretudo perto do rio Maroni, vêem-se comunidades
negras ribeirinhas que vivem como indígenas (tipos de malocas, uso de redes
etc.), exemplo particularmente interessante de mestiçagem cultural.
42. Léon
Gontran Damas, Retour de Guyane, Paris, Corti, 1938, p. 202.
43. A principal
praça de Caiena, toda plantada de grandes palmeiras imperiais, se denomina
Place des Palmistes.
44. Um dos temas
mais constantes de Retour de Guyane é o da riqueza, inexplorada, do território
guianense.
45. O livro de
Fanon foi traduzido para o português: ver Pele
negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador, EDUFBA,
2008.
46. No momento da
chamada "departamentalização" ("départementalisation") das
antigas colônias francesas na América e no oceano Índico, os três poetas
fundadores da Negritude – Césaire, Damas e Senghor – são deputados na
Assembleia Nacional, em Paris. A questão é muito vasta e escapa ao nosso
propósito aqui. Consultar a biografia de Damas e a bibliografia. A carreira política de Césaire (deputado e "maire"
de Fort de France, fundador de um partido político, o PPM, Partido Progressista
Martinicano, depois da sua ruptura, em 1956, com o PCF de Maurice Thorez) e a
de Senghor (inicialmente deputado no parlamento francês e a seguir presidente
eleito do seu Senegal, após a Independência do país) são muito mais longas e
complexas do que a de Damas. Cesaire e Senghor tem influência política, real e
duradoura; Damas teve uma curta experiência política e parlamentar de uns
poucos anos.
47.
Citado in Christiane Chaulet-Achour, "Sous le signe du colibri. Traces et
transferts autobiographiques dans la trilogie de Daniel Maximin".
Postcolonialisme et Autobiographie. Albert Memmi, Assia Djebar, Daniel Maximin.
Hornung & Ruhe, éds. NY/Amsterdam: Rodopi, 1998, p. 214-215. O tema do
amor, já presente em alguns poemas de Pigments, ganhará maior desenvolvimento
nos volumes posteriores Névralgies e Black-Label.
48. As traduções de Marietta Damas circularam entre
amigos ou foram apresentadas em palestras, não foram objeto de publicação
formal, ao que eu saiba pelo menos.
49. ALMEIDA, Lilian Pestre de. "O poeta Léon-Gontran
Damas e a negritude", in Exu. Publicação Casa Jorge Amado. Salvador, nº 4,
maio-junho 1988, p. 29 - 35.
50. Agulha Revista de Cultura,
Fortaleza, janeiro de 2012: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2014/11/laurine-rousselet-leon-gontran-damas.html. O artigo muito interessante, assinado por Laurina Rousselet, publicado em
três línguas diferentes (francês, português e espanhol), apresenta citações de
vários livros de Damas e a tradução de trechos dos seus poemas. A revista Agulha possui uma equipe de tradução.
Teríamos inúmeros reparos a fazer sobre a tradução dos poemas em português. O
problema central, como sempre com Damas, é a tradução da oralidade: "souteneur"
em contexto de prostituição deveria ser traduzido por cafetão ou rufião e nunca
por defensor; commnandeur não é comandante mas feitor numa plantação de
escravos, por exemplo.
51. Os anos 20-40 do século passado são o período áureo
inicialmente dos cabarés antilhanos e depois dos bares afro-americanos em
Paris: La canne à sucre, o Jockey Club
em Montparnasse, Passage de Dantzig, da rue Blomet exclusivo para antilhanos de cor onde cantam
e se exibem figuras míticas: a maior de todas, Josephine Becker (Saint Louis,
1906 - Paris, 1975), mas igualmente Moune de Rivel. Outros locais frequentados
por Damas: La Cabane cubaine (42, rue Fontaine, em Montmartre, citada e
descrita no seu livro de poemas Black-label) e ainda os bares do Boulevard
Saint Germain, chamados "rhumeries", em particular 166, Boulevard
Saint Germain. Essa boemia noturna de Damas dá ao guianense uma imagem bem
diferente daquela dos seus dois outros companheiros, Senghor e Césaire, todos
os três fundadores da revista l’Étudiant noir. O álcool, o vinho, o rum, todas
as bebidas fortes estão presentes na poesia de Damas.
52. O regime de colônia penal (em francês le bagne) só
será extinto, muito tardiamente, depois da II Guerra, em junho de 1946. A figura
do bagnard (o condenado a trabalhos forçados, vindo da Metrópole mas igualmente
de todo o Império francês) marca profundamente a sociedade guianense, tanto no
interior como no exterior do pais. Damas, adolescente, no liceu em França,
responde ao diretor do colégio dizendo-lhe que se ele, como guianense, fosse
filho de "bagnard" teria a
mesma cor de pele do outro. O bagnard, mesmo depois de cumprir a sua pena, está
proibido de deixar a Guiana. O ensaio de Damas, Retour de Guyane (Paris, José
Corti, 1938) descreve longamente o impacto negativo da colônia penal na
sociedade guianense. O ensaio será proibido, como Pigments: as duas obras, em prosa e em verso, são
praticamente contemporâneas, melhor: seguem-se uma à outra, em 1937 e 1938.
53. Ao longo do rio Maroni, que separa a Guiana francesa
do Suriname, vivem os Aluku e os Djuka, descendentes de escravos "marrons"
(= quilombolas) que escaparam à colonização holandesa e falam um crioulo
diferente.
54. Um único exemplo: um barco afundado no meio rio
Maroni, na fronteira com a Guiana
holandesa e perto da sua foz, tornou-se uma ilha flutuante com árvores
frondosas.
55. Dois vulcões ativos, la Montagne Pelée e La
Soufrière, marcam não só a paisagem da Martinica e da Guadalupe como o
imaginário dos seus escritores (de Césaire a Glissant; de Maryse Conde ou
Daniel Maximin a Simone Schwarz-Bart). A Guiana não tem vulcões, faz parte do
continente americano e boa parte do seu território é coberta pela floresta
amazônica. Suas costas assemelham-se às costas dos Estados do Amapá e do Pará.
56. Lembro a
passagem deliciosa de Machado de Assis, logo na abertura do livro, sobre a
frase de uma menina:
Vindo agora pela Rua da Glória, dei com sete crianças,
meninos e meninas, de vário tamanho, que iam em linha, presas pelas mãos. A
idade, o riso e a viveza chamaram-me a atenção, e eu parei na calçada, a
fitá-las. Eram tão graciosas todas, e pareciam tão amigas que entrei a rir de
gosto. Nisto ficaria a narração, caso chegasse a escrevê-la, se não fosse o dito
de uma delas, uma menina, que me viu rir parado, e disse às suas companheiras:
- Olha aquele moço que está rindo para nós.
Esta palavra me mostrou o que são olhos de crianças. A
mim, com estes bigodes brancos e cabelos grisalhos, chamaram-me moço! Provavelmente
dão este nome à estatura da pessoa, sem lhe pedir certidão de idade.
57. Uma
amiga, a profª Sónia Oliveira Almeida, da UFF, me observa que chamar as
professoras de tia sem mais, difunde-se atualmente no ensino primário e
secundário por todo o Brasil. Seria quase o equivalente ao velho termo
português, menos afetivo e mais respeitoso, "sotora" (= senhora
doutora).
58. A
etimologia da palavra "canaille" ajuda a compreender o sentido da
palavra: do it. canaglia, de cane, cão: 1. indivíduo desonesto, desprezível,
canalha. 2. Vx: a ralé. Adj. De honestidade duvidosa; de vulgaridade um pouco
estudada. O estilo canaille corresponde
ao contexto de vulgaridade meio teatral que fez sucesso em Paris em particular,
em dois bairros de grande vida noturna, em torno da praça Pigalle em Montmartre
ou nos cabarés de Montparnasse.
59. Léon-Gontran Damas, poète moderne. Essai. Organisé
par Ndagano Biringanine et Gervais Chirhalwirwa. Ibis rouge, 2009.
60. Damas é um "anglicista"
que viveu, inclusive, durante longos anos nos Estados Unidos como professor
universitário. Em comparação, Senghor é muito mais um "latinista". Césaire, igualmente "anglicista"
(ver o seu trabalho final na Ecole Normale Supérieure sobre poesia negra americana)
é também um excelente latinista.
61. A "java" é a dança mais típica do
repertório chamado "musette": de origem popular, apareceu nos anos 30
em Paris graças aos acordeonistas da rua de Lappe. Segundo o Dictionnaire
étymologique et historique, e o Trésor de la langue française, a palava java é
derivada da ilha de Java. O Dictionnaire culturel en langue française indica: "1922,
argot. faire la java (1901) danse en remuant les épaules; d’origine inconnue.
Sans rapport avec l’île de Java ou avec une corruption supposée auvergnate de
ça va en cha va, java." A palavra espalhou-se no uso popular com o sentido
de astúcia, manobra (1935), connaître java = connaître la musique (= saber o
que está implícito, conhecer a música).
62. Existe,
é claro, um outro jogo oculto, impossível de traduzir em português uma vez que,
em francês, o termo irônico de puceaux (= donzelos) , masculino pouco usado de
pucelle (= donzela), lembra pourceaux (= porcos). Cf. a expressão jeter des
perles aux pourceaux (= jogar pérolas aos porcos) que faz parte do Sermão da
Montanha (Mt, VII, 1-6).
63. A Internacional é um canto
revolucionário cujas palavras foram escritas em 1871 por Eugène Pottier e a
música composta por Pierre Degeyter em 1888.
Canta-se, na época e ainda recentemente, a Internacional nas marchas de
protesto que saem da Bastilha em direção à Place de la Republique, trajeto
ainda hoje canônico da esquerda francesa.
64. Queneau é co-fundador, em 1960, de "Oulipo" , exploração
de obras "potenciais" através de jogos de palavras.
65. Louis
Malle fez, no ano seguinte, em 1960, um filme de comédia burlesca intitulado
Zazie dans le métro, com Philippe Noiret (o tio) e Catherine Demageot (a menina
Zazie). O filme teve pouco sucesso no estrangeiro. No entanto, alguns artistas
como Truffaut, Ionesco e próprio Chaplin o elogiaram com entusiasmo. Raymond
Queneau declarou: "ao mesmo tempo em que reconheço Zazie dans le métro enquanto livro, vejo no filme uma obra original
cujo autor se chama Louis Malle, uma obra insólita e poética a que sou sensível".
66. Preferimos
indicar a versão em francês do estudo de Freud porque a tradução foi revista
pelo próprio autor.
67. Consultar artigo publicado na revista Tropiques.
68. Para
apreciar a "marca" de Damas no texto de Frantz Fanon (1925 – 1961),
consultar em particular o capítulo VI e a conclusão de Peau noire masques
blancs (o volume foi publicado em português com o título Pele negra máscaras
brancas. Tradução de Renato da Silveira. Prefácio de Lewia R. Gordon. Salvador,
EDUFBA, 2008). Fanon cita explicitamente o poema "Saldo/Soldo" como a
"experiência vivida do negro" num artigo publicado inicialmente na
revista Esprit em maio de 1951 e que figura no seu livro: o dilaceramento
constante entre o aqui e o além (e esses lugares podem trocar de posição), a
quase obrigação do "mimetismo" e sobretudo a necessidade de guardar
os seus desejos "comprimidos" (Black-label, 1956).
69. Shine
poderia ser traduzido em português por lustre, brilho, mas preferiu-se manter o
termo inglês que pode ser, aliás, ao mesmo tempo verbo e substantivo, o que
implica tratar o leitor de língua portuguesa da mesma forma que o leitor
francófono. Cabe ao leitor perceber em que medida shine liga-se ao
trompetista/cantor e ao texto propriamente dito. Manteve-se igualmente, no
poema "Trégua", a palavra swing, perfeitamente transparente nos dias
de hoje.
70. O
absinto Pernod Fils foi produzido durante mais de um século em França (1805 -
1914). Depois da proibição legal do absinto (16 de março de 1915), o nome
próprio ficou como sinônimo de álcool forte.
71. Note-se
que, na linguagem familiar em Portugal, usa-se um outro instrumento musical
para marcar a impaciência: "gaita". Entretanto não só a expressão não
é corrente no Brasil (embora apareça no Aurélio enquanto "expressão de
irritação") como também a junção de "gaita" e "flauta",
na linha seguinte, soaria confuso, quase uma cacofonia. Que chato ou mesmo que
pena, por demais vago, decididamente não convinham. Preferiu-se então repetir a
palavra flauta/flauta embora com perda evidente de conotação. Exemplo de
sutileza da poética damasiana: a repetição de uma só palavra com valores e
significados diferentes ("et flûte / flûte") faz a transição entre a
memória nefasta da indigestão do ensino da História de França e o contexto
popular lírico da flauta de bambu que ressoa nos morros de Caiena.
72. L’Oreille de l’autre… Textes et débats avec
Jacques Derrida sous la direction de Claude Lévesque et Christie V. Mcdonald,
Montréal, VLB, 1982, p. 136-137.
73. Agradeço a Sónia Oliveira Almeida ter discutido
comigo os problemas de tradução de Damas.
74. A
palavra tumbeiro em português é muito expressiva: em tumbeiro, há tumba,
túmulo. Jorge de Lima (1893-1953) a emprega como sinônimo/metáfora de barco
negreiro: cf. o poema "História",
in Poemas negros (1947).
75. A irmã
de Jean-Louis Baghio’o, Cécile Jean-Louis, nascida em Bordéus, fez carreira
como cantora de biguine sob o pseudónimo de Moune de Rivel, sobretudo no
cabaret La canne à sucre, clube antilhano de Paris, em Montparnasse, a partir
de 1945. Ela é
ainda a única mulher presente na foto famosa reunindo os participantes do
Primeiro Congresso de artistas e escritores negros, no pátio da Sorbonne.
76. Césaire
escreverá sobre Damas um poema em sua homenagem por ocasião da morte do amigo: "Léon-Gontran
Damas, feu toujours sombre…", in moi, laminaire… (Seuil, 1982)
*****
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA. Doutora por Paris IV, professora de Língua e Literatura francesa da
UFRJ e da UFF, vive em Lisboa há 20 anos. Pioneira dos estudos francófonos no
Brasil, trabalhou, como docente convidada, em Paris III (França) e Laval
(Canadá), e como docente titular, na Universidade Independente (Lisboa).
Publica sobre Literaturas francófonas (Antilhas e Québec), Literatura
comparada (relações entre artes visuais e literatura, entre Lusofonia e
Francofonia), Marranos e cativos no Mediterrâneo. Autora de Aimé Césaire: Une saison en Haïti (2010),
Césaire hors frontières. Poétique,
intertextualité et littérature comparée (2015). Publicou
ainda a tradução bilingue do Cahier
d’un retour au pays natal/Diário de um retorno ao país natal (2012). | ANTONELLA EMINA. Diretora do Istituto di Storia dell’Europa
Mediterranea (Italia), especialista de literaturas francófonas. Publicou
recentemente: Damas. Cent ans en noir et blanc. Dirige RIMe, Rivista dell'Istituto di Storia dell'Europa Mediterranea. em Totirno. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado
desta edição de ARC.
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 14 |
Janeiro de 2016
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design
| FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
os artigos assinados não
refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se
responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Você precisa de um empréstimo urgente para financiar seu negócio ou para qualquer finalidade? Somos credores de empréstimos licenciados e legítimos e internacionais Oferecemos empréstimos a empresas, empresas e indivíduos a uma taxa de juros acessível de 2%, pode ser um empréstimo de curto ou longo prazo ou mesmo se você tiver crédito pobre, processaremos seu empréstimo assim que recebermos o seu pedido. Somos uma instituição financeira independente. Construímos uma excelente reputação ao longo dos anos no fornecimento de vários tipos de empréstimos a milhares de nossos clientes. Oferecemos serviços de empréstimos garantidos de qualquer montante para cidadãos e não cidadãos, oferecemos empréstimos pessoais fáceis, empréstimos comerciais / empresariais, empréstimos para automóveis, financiamento de leasing / equipamento, empréstimos de consolidação da dívida, empréstimos para habitação, etc.para todos os cidadãos e não cidadãos. um histórico de crédito bom ou ruim. Se você está precisando de nossa
ResponderExcluire-mail da empresa (lindamooreloans@gmail.com) você pode enviar-nos um e-mail com suas informações. Envie-me um e-mail hoje e você ficará feliz por ter feito isso. E-mail: lindamooreloans@gmail.com ou Whatsapp: +19292227999
O investimento em Bitcoin mudou minha vida porque investi meu bitcoin com o Sr. Anderson Carl. Ele é um trader profissional e me ajuda a negociar meu bitcoin e também pode ajudá-lo. Meu primeiro investimento com Anderson Carl, lucrei até $ 2.600 com meu investimento de $ 200 em 7 dias. Olhando para esta semana também, o que você planeja alcançar? Por que não dar esse passo agora e entrar em contato com Anderson Carl no whatsapp: +1(252)285-2093 Email:(andersoncarlassettrade@gmail.com) Eu aconselho você a não hesitar Ele é ótimo.
ResponderExcluir