Olhar bem. Viajar.
Cair na desmedida condição do flâneur. Anunciar as regras do jogo.
Exercitar–se. Entrar no sonho que leva ao gozo: o real. Participar do mundo
afetivo, indiferente às armadilhas da paixão: ser ausente, estando próximo.
Descortinar o doce perigo das simulações, inverter a lógica da razão:
subjetivar o concreto. Partir. Mergulhar no furor do silêncio e abalar cada
milimétrica estrutura do estabelecido universo das certezas. Anular a
passividade, construir seduções por meio da fome contínua do ilimitado. Devorar
o caos, dissimulando sombras: embaralhar as cartas. Chegar. Lançar-se aos
abismos, verticalizando a beleza. Escalar imagens. Desenhar no espelho o
cristal e a chama e com isso reparar que toda inocência jaz estilhaçada num mar
de palavras. Com a cidade, propor vôos. Assim faz Italo Calvino em seu livro As
cidades invisíveis.
A obra, de enredo aparentemente simples, é na realidade a síntese de uma
produção literária elaborada com extremo rigor e total domínio do processo
narratorial. O autor realiza a confluência do clássico com o moderno,
configurando um estilo requintado, dando vazão a uma biografia
lírico-sentimental, porém jamais piegas, da cidade. Através do narrador-memorialista
Marco Polo, explorador veneziano que dialoga com o imperador tártaro Kublai
Khan – em determinados momentos do romance, também narrador –, Italo Calvino
multiplica as vozes que tecem o imaginário das maravilhas da cidade. Com o
relato ambientado no Extremo Oriente (século XIII), podemos acompanhar a
densidade e a precisão com que o escritor-viajante opera as suas fabulações,
esta miragem sedutora e sensual: a palavra-cidade.
No nosso breve ensaio, procuraremos ler com olhos livres o
texto-invenção da cidade, percebendo, acima de tudo, que a escritura
calviniana, propõe-se a acentuar as diferenças de estilo, apresentando os seus
intrincados enredos como verdadeiros relatos labirínticos do ato de
narrar. Para nós, um tipo de narrativa que busca redefinir os espaços que
aproximam os diferentes gêneros textuais, no instante em que percorre a
fantasia, reduplica a realidade e instaura um registro ficcional centrado na
desestabilização de perspectivas e, principalmente, na instabilidade de
sentidos que gera um novo mundo, em que a verdade será alvo de ataques
constantes. Tudo é visto de viés, cada relato constitui desdobramentos
discursivos e toda ação está enquadrada na voz lírica e ficcional do narrador.
As estratégias narrativas operacionalizadas por este narrador projetam uma
preocupação com o estabelecimento ontológico em aberta oposição ao meramente
epistemológico. O conhecimento é, a partir de então, algo que está sempre à
deriva e sujeito às intempéries do narrador.
O dar a conhecer em As cidades invisíveis plasma a percepção e a
concepção das coisas: o amor e o desamor, o tempo e a eternidade, a perdição e
a salvação, a carne e o espírito, entre outras, são substratos mágicos e
míticos que permeiam o mundo lírico-subjetivo que, por não obedecer a uma
hierarquia de sentidos, multiplica a matéria a ser narrada. A matéria com a
qual Italo Calvino trabalha está plenamente ajustada às cinco qualidades do seu
ideário escritural: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade.
Na feitura de uma escrita literária, a cidadela do artista necessita, de
imediato, esvaziar o peso do mundo e da linguagem. [1]
De fato, a visão que lançamos do livro que tem Marco Polo como narrador,
é a de um verdadeiro exercício metafórico, procura-se ajustar o significado do
passado, todo ele absolutamente traçado com recursos metonímicos, a evocação de
dezenas de cidades, para a indicação de apenas uma, Veneza, resultado da
leitura alegórica feita pelo autor. Italo Calvino certamente pensa o
humano como realidade de grande complexidade, cercado por imagens, as mais
diversas. Daí, saber do perigo manipulador da própria linguagem, que se quer
absoluta.
A idéia alegórica, aqui, tem a clara intenção de apresentar a
alteridade, a ruptura normativa, a fragmentação do discurso feito por um
sujeito cindindo em sua eventual identidade e a própria tensão enunciativa
expressa na busca infrutífera de uma unidade já de toda perdida. O narrador contemporâneo passa a vivenciar,
nesse intercurso narrativo uma espécie de dialética do reconhecimento, onde o
sujeito-objeto-narrador postula retratar a sua imagem, problematizando os
recursos temáticos e ideológicos que ele mesmo dispõe para compor suas
histórias. Estabelece, desse modo, uma história do pensamento, do sentimento e
da emoção captada pelo rito do espelho. Sabedor de que “sem imagens corremos o
risco de perder o caminho”, [2] Italo Calvino via Marco Polo, embrenha-se nas
malhas do labirinto escrito e perde-se, achando-se a si próprio no interior da
cidade (o outro). É este desenho de recordações, disperso em cada um de nós,
que fornece sentidos para o movimento além-razão, ritmo explícito das procuras,
universo de difícil articulação: o maior mistério está em nós, rasgar os
esquecimentos, apoderar-se das vertigens (a memória). Nossos olhos, num
ziquezague de prazer, penetram na geometria imaginária de Italo Calvino,
observando as sombras de Walter Benjamin e suas fecundas emboscadas, ruínas do flâneur.
A narrativa de Italo Calvino acena para os perigos na cidade. Cidade
onde se vive, se ama, se espera, se crê, se deseja, se busca, se aspira, se
desespera, se sofre, se consola e se obtém os derradeiros resquícios de utopia.
Toda cidade perpetua as indiferenças e distribui suas contradições, por isso
implode a si mesma e explode na contramão das ideologias contemporâneas. A
escritura calviniana põe a nu quaisquer fronteiras de gênero, sua ficção
transita pelos meandros da poesia, da prosa e do ensaio. Sua literatura é um
inventário de incertezas, onde as representações individuais e coletivas são
problematizadas, nada é puro, tudo é escavação de experiências. Marco Polo é um
experimentador do olho, é um observador da matéria que anda com os sentidos
espatifados pelo chão da lucidez, fazendo a desmontagem dos enredos fixos. As
cidades invisíveis é uma aventura, este ensaio é tentação – trilhas
poéticas de uma época inscrita nos princípios da recriação.
A OFERENDA DO OUTRO:
MIGRAÇÕES DE LETRAS | Na busca do outro, a memória é
sempre legível. É a inexorável aventura do escrito. A vida em permanente
ebulição. A cidade – oferenda explícita das emoções – engendra o caminho por
onde se pode aprender os fragmentos de inefáveis verdades; a memória da cidade
desvenda a travessia de excessos na velha ponte de prazeres expostos. Toda
cidade é montagem, representação de viajantes, distinta percepção dos fenômenos
urbanos, a cidade fervilhante e os seus mil signos de robustos mistérios. Toda
cidade é linguagem, visão de sonhadores, pontilhada manifestação dos desejos, a
cidade-linguagem e as suas mil dobras de esboços inacabados. O outro é a
seleção de máscaras, letras que migram para o interior do homem, conhecimento e
poesia operacionalizando as dimensões do possível. Migração de palavras que se
ocupam em decifrar as rotas das narrativas.
No encalço da palavra-coisa, parte o andarilho. Seu mundo assume as
regras de um perigoso jogo de esconde-esconde, neste instante, a armadura deste
caçador fixa exercícios de luta, demarcados pelo diálogo daquilo que se quer
mais próximo: a articulação de signos e textos como elementos cruciais da
narrativa. Combinando inúmeras categorias de pensar e de representar a multidão
e a cidade, percebe-se a competência de Italo Calvino ao penetrar na pele de
Marco Polo e descrever fisicamente ao imperador Kublai Khan, as cidades
visitadas, imaginadas, amadas, inesquecíveis e invisíveis de um vasto e
encantador reino. Os relatórios do jovem veneziano dão conta da grandeza, bem
como da própria ruína que ameaça as terras do sábio líder dos tártaros. Calvino
registra em As cidades invisíveis, as paisagens, os singulares detalhes,
as proliferantes descrições, as abstratas sensações, os receios, as esperanças,
enfim, o infinitamente mínimo de Marco Polo, presente em O livro das
maravilhas. [3] Refazer cada
leitura, deixar as marcas nas malhas do outro, eis a missão a que se propõe o
romancista.
A voz narrativa de Marco Polo perpassa todo o romance, de forma a
corporificar os mais remotos pensamentos do caminhante. Na visão do passeador,
a cidade multiplica-se no imaginário, de tal maneira que as sombras e as luzes
de suas vastas regiões são a todo momento decifradas. De fato, a realidade
flutua no espaço-tempo da existência humana, exprimindo o emaranhado de
sentidos presentes no campo criativo das palavras. O corpo significativo da cidade
reveste-se das diferenças e semelhanças que habitam a trama alegórica de Marco
Polo, agora um personagem calviniano, traduzido no pleno desnudamento do gozo.
Cabe assinalar que o termo passeador ou caminhante é empregado no atual
contexto como referência direta à figura do flâneur, na medida em que o
próprio Calvino, ao travestir-se de Marco Polo, expressa através da
reconstrução imaginária do viajante, sua própria experiência como homem do
mundo. O passeador indica um modo de andar flanando pelas cidades
‘civilizadas’, pelas suas ruas, praças e jardins. Passear < de passar <
passare < passu, leva-nos a dizer que Calvino não apenas passa e atravessa
as narrativas de Marco Polo, mas também, transpõe e busca exceder as histórias
do viajante veneziano que a despeito de possuir finalidades comerciais
caminhando pelas cidades orientais, consegue com a argamassa da imaginação
enredar o ouvinte num mundo de fabulações.
Com As cidades invisíveis, Calvino lança ao homem, as diversas
possibilidades de amar o indefinido na cidade, a atitude de descrever
minuciosamente cada faceta dos seus passeios, deixa-nos a sensação de
embriaguez, o escritor forja o seu discurso projetando despudoradamente as mais
recônditas armadilhas do objeto-texto: a cidade. Assim, as implicações da ação cartográfica
são a senha para a penetração nessa rede-texto que é a sensibilidade do
narrador. Marco Polo adentra o labirinto sem receios, importa-lhe compreender
as identidades perdidas e os percursos prodigiosos que o levam a uma geometria
paradoxal do indefinido traçado por novas rotas. Ele agarra-se aos nomes com a
ânsia voraz de abrir caminhos, de não se deixar aniquilar pela mesmice,
recusando as meias-verdades, seu projeto é puro engenho da mente, despojamento
do devir.
Sob esse prisma, podemos analisar a obra de Calvino, como uma grande alegoria
[4] do humano. Por isso ao
longo do nosso texto, apresentaremos a migração de letras que proporciona ao
contador de histórias, no caso Marco Polo, razões para uma reflexão mais detida
do que vem a ser sua trajetória, entendida como a mutação cultural de uma época
repleta de incertezas e temores. Em princípio, os fenômenos temporais delimitam
os movimentos anunciadores de uma vida por vir – o conhecimento da cidade
dimensiona o olhar do narrador, não esgotando jamais a sua aventura: como
colecionador de impressões (estímulos), ele fabrica imagens depuradas pela sua
frenética procura. Sua forma de intervir sobre a realidade é deveras poética,
pois só assim conseguirá reverter os princípios apocalípticos reservados à
humanidade, já que um pouco de esperança não faz mal a ninguém e, trabalhar tal
sentimento artisticamente é melhor ainda, afinal, “a arte continua sendo um
caminho aberto para sair desse destino civilizatório da destruição e do nada”.
[5] O narrador é um indivíduo em fuga, um jogador
que tenta desesperadamente escapar da morte, do luto, eis a primeira marcação
do discurso calviniano, o nada será uma conseqüência concreta transcrita na
afirmação histórica de que é preciso resistir.
Existem incontáveis maneiras de resistir, a de Calvino é narrar, desfiar
o fio da memória, extraindo os segredos de cada passo dado; escancarando as
portas da cidade, ele condensa as vozes díspares da grande aventura: flanar
buscando a felicidade no outro. O Outro, aqui, remete-nos a Marco Polo, uma
espécie de heterônimo de Calvino, já que ele (Polo) narra na prisão as suas
viagens comerciais. Narrar torna-se, então, entretenimento, resistência, grito
de ‘liberdade no cárcere. Os nove segmentos de As cidades invisíveis
elaboram o sensível como categoria ímpar do espelhamento, a unicidade da
cidade é vista na proporção de suas múltiplas realizações, as características
urbanas são re-colhidas na razão direta da transformação operada no interior
das cenas. O próprio Calvino afirma que “em Le città invisibili cada
conceito e cada valor se apresenta dúplice – até mesmo a exatidão”. [6]
O grande Khan, com a sua tendência
racionalizante-geometrizante-algebrizante do intelecto, propõe uma combinatória
do conhecimento, quer dizer, uma matemática das sensações representada por uma
partida de xadrez. Nesse sentido, os relatos do veneziano emblematizam o
nada; a conquista do outro, confere um estatuto de veracidade às fabulações
inerentes à fala do narrador.
As cidades são para Calvino como uma perigosa esfinge, que necessita
urgentemente ser traduzida. Portanto, os limites estanques das interpretações
rompem-se, permitindo uma concentração nítida, o sentido das coisas está
sempre à deriva; ciente desta assertiva, o narrador trafega na sucessão de
imagens que a sua memória é capaz de construir. A quantidade de viagens é uma
incógnita, o viajante traz um mapa-múndi consigo, conhece o desconhecido,
re-elabora as cores do conhecido e empresta nova moldura às fantasias. Ele
renega a clausura, atravessa as ilhas, lê as fachadas do poético, contorna o
pátio da escrita-natureza e finge acreditar na continuação do eterno
momento.
Suas cidades-fêmeas, distribuídas pelas nove seções do livro, são
amadas diferentemente. Agrupam-se em quintetos, num total de onze combinações,
formando 55 partidas de um jogo envolvente e inebriante que resultará na sua
desvairada paixão por Veneza, sua mulher-fatal. Numa panorâmica, até onde a
vista alcança, as letras e os nomes das cidades: da memória: Diomira,
Isadora, Zaira, Zora, Maurília; do desejo: Dorotéia, Anastácia, Despina,
Fedora, Zobeide; dos símbolos: Tamara, Zirma, Zoé, Ipásia, Olívia; das
trocas: Eufêmia, Cloé, Eutrópia, Ercília, Esmeraldina; dos olhos:
Valdrada, Zemrude, Bauci, Filide, Moriana; do nome: Aglaura, Leandra,
Pirra, Clarisse, Irene; dos mortos: Melânia, Adelma, Eusápia, Argia,
Laudômia; do céu: Eudóxia, Bersabéia, Tecla, Perínzia, Ândria; as
delgadas: Isaura, Zenóbia, Armila, Sofrônia, Otávia; as contínuas:
Leônia, Trude, Procópia, Cecília, Pentesiléia e as ocultas: Olinda,
Raissa, Marósia, Teodora, Berenice; como um rock titânico, a poemática
dos nomes, refúgio da solitária e distante Veneza.
A desambição do Marco Polo calviniano prende-se, entre outras coisas, à
nomeação das regiões vistoriadas, todavia, aquelas que aparecem através dos
sonhos são, também, traçadas com precisão de detalhes. Já, em O livro das
maravilhas, a infinidade de locais percorridos pelo viajante impressiona
pela revelação de costumes legendários dos chineses, mongóis e persas. São
relatos labirínticos, que atingem a alta expressão do maravilhoso no
imbricamento com a realidade. Atrevemo-nos a pensar O livro das maravilhas,
no mesmo plano das cidades de Calvino, ambos recheados por muita ficção: o que
se vive para ser contado perde o seu caráter de objetividade, passando a
ser uma mescla do real com o sonho; quantas maravilhas (não) foram sonhadas por
Marco Polo em seu livro! Périplos do flanador. Borges acertadamente escreveu: “Marco Polo
sabía que lo que imaginan los hombres no es menos real do que llaman
realidad. Su livro abunda en
maravillas”. [7]
Calvino declara seu amor a Borges ao fazer de suas cidades invisíveis
o fabuloso e alegórico embate da literatura. É um tributo à arte de contar, uma
oferenda ao outro. Benjamin, por enquanto, apenas espia ao lado de Guattari,
Virilio, Osman e Campos. Continuemos nosso itinerário.
QUANTAS COISAS: OS
SUBTERRÂNEOS DO LIVRO | Dizer o indizível (ver),
espreitar as sombras silenciosas, traçar círculos de giz, abrandar as
cicatrizes abertas, singrar o corpo familiar – o livro das imagens – ilha
submersa, território temporal das casas úmidas: o (in)visível. A vertigem “do
detalhe do detalhe do detalhe” [8]
apodera-se de Calvino e o transforma num insigne fisiognomonista da
cidade-texto, levando seu personagem (Marco Polo) ao infinitesimal ,
deixando-o oscilante entre a extravagância do mínimo e a incompletude do vasto;
não é à toa que o grande Khan cumpre a sua sina, tocado pelas reviravoltas da
dúvida e da crença. Nesse contexto é importante reter a passagem do tempo, as
fontes de luz, vigiar o viço das coisas, sem petrificar as lembranças, investir
o olho de memória.
Aqui, em Isidora e todas as cidades da memória, o viajante
sabe que “os desejos agora são recordações”. (CI,1990:12). Esta é a cidade de
seus sonhos, o passeador, sentado ao lado dos velhos, contempla a juventude que
passa, a possessão da espera consumindo os dias, o fulgor dos jovens
alimentando a chama; Diomira com sessenta cúpulas de prata, o
teatro de cristal e o seu galo de ouro (cantor matinal), raras belezas que
variam com as estações, setembro chega e os dias mais curtos exibem um outro
colorido ao lugar, é possível imaginar a felicidade de tais momentos; Zaira
dos altos bastiões onde:
A cidade se embebe como uma
esponja dessa onda que reflui de recordações e se dilata. Uma descrição de
Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade
não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos
ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas
antenas dos pará-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por
arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CI, 1990: 14)
Os acontecimentos passados estão relacionados às medidas de espaços da
comunidade, às formas alternadas de respeitar a tradição não caindo no puro
imobilismo, o cristal que seduz e mata. O passado é um texto em desalinho, um
manuscrito que atravessa a tradição, é em derradeira instância, um palimpsesto
– raspagens e colagens de outros textos. Zora – para sabê-la de cor, só
com muita sabedoria, porém Zora definhou, ao permanecer imóvel e imutável, a
memória precisa de movimentos, de sopros revitalizadores do presente, por isso
a cidade foi esquecida, perdeu o vigor da chama, desapareceu. Maurília –
a do presente (a metrópole) com os seus atrativos e a provinciana (do passado)
– só pode ser observada com a ajuda dos velhos cartões postais ilustrados
(arcabouço da memória), fragmentos da sedutora saudade com suas páginas arrancadas
do mesmo livro: a nostalgia do estrangeiro, exilado em suas próprias
fabulações. Portanto, prenhe de sonhos.
Em cada uma delas, reside a gigantesca memória incrustada no pequenino
véu das recordações: Veneza é a clandestinidade da chama e do cristal.
Como diz Benjamin: “a memória é a mais épica de todas as faculdades” [9] quebra os limites das fronteiras,
sintetiza o ato narrativo, prolonga o eco das vozes, assegura as
particularidades, invoca a necessidade da tradição aliada aos ventos da modernidade.
Mnemosyne demonstra a articulação das falas, aproximando ocidente e
oriente – Marco Polo/Kublai Khan – como musa da narração consagra a
peregrinação do herói em constante desarmonia; entre lágrimas e sorrisos, a
musa domina as cenas da cidade. Com efeito, Calvino esbarra na figura do
narrador benjaminiano, os dois tipos arcaicos de contadores de histórias: o
camponês sedentário e o marinheiro comerciante, ambos tomados pelas
experiências vividas evocam o diálogo: o ontem e o hoje. Suas vivências possibilitam
o resgate do próprio paisagismo, atitude magistralmente desencadeada pelo
romancista italiano.
Em Todas as cidades, a cidade, [10] de Roberto Cordeiro Gomes, o ensaísta faz uma aproximação dos
primeiros mestres da arte de narrar (o camponês e o viajante-marinheiro, na
perspectiva de Benjamin) com o personagem calviniano:
O escritor italiano redita este tipo de
narrador, na figura de um viajante contumaz, Marco Polo, que retira da
experiência de suas andanças o que narra a Kublai Khan que, por sua vez,
incorpora ao império – sua própria experiência – aquilo que ouve. A relação de
diálogo entre eles patenteia o jogo narrativo que faz as falas circularem. (1994: 43)
Depura-se, dessa feita, a cumplicidade entre os protagonistas – seres
expostos às aventuras do verbo: colecionadores de imagens, sonhos, espantos, de
lendas, luas, céus, estrelas, a vida rastreada pela memória poética das
excursões.
Na realidade, examinando de esguelha, o Polo de Calvino, encontramos
marcas do camponês e do marinheiro (como sedentário e andarilho que viveram
inúmeras experiências). Ele derrama-se em palavras, converte-se em lâminas,
rabiscando as páginas em branco do livro, aberto pela natureza: por outro lado,
uma outra marcação narrativa se impõe, a do flâneur – que solitário e
angustiado enxerga o inusitado das horas, os defeitos da natureza, as
intempéries da vida e multiplica os seus
sentidos, é o alegorista visitando dezenas de cidades e o seu sagrado e
profanado chão (Baudelaire em Paris), ornamentando os desejos implícitos e
explícitos, enfim, decodificando roteiros. Apenas relembrando, a figura do flâneur
está relacionada a da ociosidade do poeta na cidade grande. Ele passeia
para passar o tempo, visto que é um desocupado e não há trabalho para ele no
capitalismo.
Ad nutum, avistamos Dorotéia, com trilhas e
informações plantadas no passado, presente e futuro, os lados desfraldados da
escritura humana; do desejo, também desponta Anastácia, cidade enganosa,
de poder ambíguo onde o mal e o bem seguem entrelaçados: “Banhada por canais
concêntricos e sobrevoada por pipas” (CI, 1990: 16), lá, o gozo é súpero e os
desejos são saciados. Vamos a Despina, de paredes caiadas, pátios
azulejados “cidade de confim entre dois desertos”. (CI, 1990: 21)
Encontramos a metrópole de pedra cinzenta, com as suas miniaturas da
cidade ideal, esta é a Fedora, jogo anagramático de fedra, com
outras pequeninas Fedoras das esferas de vidro; fazendo um retorno ao desejo,
ainda, caímos na feiúra, na armadilha, Zobeide – branca, exposta
à luz, ruas enoveladas, um mistério para os recém-chegados. Sim, todo desejo é
enigma, extravio das tensões, desmonte das perguntas, sendo assim, diante da
expectativa do Khan, Marco Polo declara:
As cidades, como os sonhos, são
construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja
secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e
que todas as coisas escondam uma outra coisa. (CI, 1990:
44)
Seduzido por seu inarticulado informante, Kublai rodopia na sala de espelhos
que é o seu império. As metáforas e imagens descrevem-lhe as maravilhas
imaginárias conquistadas pela força das batalhas, a mente e o corpo irmanados
pela euforia das idéias, luminosa construção do texto. O narrador – flâneur
e a dinâmica das ruas; o marinheiro e o significado das ondas, dos portos e
suas viagens; o camponês e a fogueira (chama pulsante), pessoas à sua volta.
Calvino – Marco Polo, Benjamin – narradores arcaicos e modernos na sucessão
espelhada das páginas por escrever. Os subterrâneos da alma ratificando cada
gesto a ser escrito. Quantas coisas sob o manto da multidão, farejadas pela
leitura do outro, sujeito e objeto inflamados por suas deliberadas vontades:
Fomos aqui confiscados
aqui
nossa memória tornou-se
alegoria [11]
Episódios longamente descritos com discrição, minudências e surpresas do
outro, basta ter paciência e coragem para romper as portas do ilusório e
apreender com acuidade crítica a alegoria [12]
do flâneur, nos mares-campos do marinheiro-camponês.
Quando a visão nostálgica, referida anteriormente, nasce com As
cidades invisíveis, Calvino, alegoricamente, re-trabalha as variantes
expressas nas condições de permuta e reformulação de conceitos. Re-vê o tom
de passadismo de algumas passagens do livro. O narrador calviniano não é
prisioneiro de uma tradição, não se satisfaz somente com o rememorar, não se
realiza apenas com as lembranças. Pelo contrário, ao incorporar a unidade do
passado, o escritor esmiuça o seu olhar, aplicando-o nas figuras do presente e
do futuro. Por esta razão, sua tática narrativa vale-se das viagens, das
conversas e dos passeios pelo interior da cidade, todos os seus jogos
explicitam-se sem o peso dos psicologismos e filosofismos. As referências estão
nas coisas mais recônditas. Resta-nos sentir o sabor da existência, presente no
âmago dos desejos (ir)realizados.
Tudo isso somado recupera a inquieta contemplação da Poesia. A proposta
de Calvino é o reordenamento das cidades. Um pensador-poeta, como Félix
Guattari, reflete em Caosmose, [13]
na Restauração da cidade subjetiva, questões que envolvem economia,
ecologia, política, sociedade e cultura e discute ao mesmo tempo a reconstrução
dos processos ético-políticos (a cultura política) voltada para a valorização
do homem. Guattari se embrenha nas megamáquinas (expressão tomada de empréstimo
a Lewis Mumford), as imensas cidades com a sua inesgotável capacidade para
produzir subjetividades, para elaborar e propor uma mudança global da vida,
“uma mutação das mentalidades” (p.174) e de alguma maneira re-territorializar o
ser humano, hoje fundamentalmente desterritorializado.
A subjetividade é o reino para a operacionalização de toda e qualquer
mudança. Enfatizando o direito à subjetividade, Guattari aspira a “uma ordem
objetiva mutante” (p.175) que nasceria do caos atual. A lógica do caos,
traduziria uma nova poesia, uma nova arte de viver. Tanto Calvino quanto
Guattari aplicam suas emoções nas cidades invisíveis; pois subjetivas e
subjetivas porque invisíveis. As atividades humanas reinventando o próprio
devir urbano, desde priscas eras – Marco Polo/Kublai Khan e as maravilhas do
mundo. Os procedimentos singulares de narradores especiais como Benjamin,
Calvino e Guattari constituem uma arquitetura poética alicerçada na produção da
subjetividade que deflagra sempre algo por fazer: um olhar, uma cidade, uma
escritura.
A CIDADE : UM OLHAR
POR FAZER | A fotografia da cidade atada aos nomes corresponde
à febre estimulante, à plenitude e rasura das unidades instauradoras do
pensamento. Trabalho e parto extinguindo a melancolia, o tempo fixado na
palavra, no chamado perturbador do dizer. Além do sensível, a ordem é
desembarcar no abrigo que recorta as praças, as ruas, o comércio, as fábricas…
a cidadezinha e a metrópole lado a lado,
aparências narcísicas subordinando máquinas e pessoas, os meios concentrados
nos fins, miséria e esplendor circulando a esmo, enquanto a vida fervilha.
As cidades invisíveis lembram uma escritura
azulada, tessitura de bilro, labirinto, garrafas coloridas, renda, ladrilhos de
uma época kitsch, azulejos de um passado longínquo, casarão de fantasmas
manifestos. A obra realiza o trabalho de
ligação entre os problemas, visto sob a ótica das diferenças: o viajante conta
as suas distantes andanças atreladas à natureza que move os dias atuais,
imagens reproduzindo imagens, a ilusão da fotografia, malabarismos do olhar e o
abismo sem sentido que as energias absurdas da destruição suscitam. A versão de
Calvino protege a cidade do aniquilamento total, valorizando
(urbanizando) o afeto, que lentamente pode ser capturado com um mínimo de
contemplação: a leveza associada à precisão e à determinação, nunca ao que é
vago ou aleatório, nas suas próprias palavras.
Extraordinária narração onde o vento é sempre respeitado, onde tudo
principia com o olhar: invenção e
passagem igualmente amadurecidas. Desenhos leves, rápidos, exatos, visíveis e
múltiplos da cidade. Estamos circulando no espírito e na poeira das palavras –
nomes, interrogações cúmplices do gosto, pois, a obra é a expressão nominal e amorosa
dessa ira narrativa –, o mundo ensandecido pela geometria de uma grande herança
agressiva: o romance como arte. As cidades e os símbolos: Tamara e o
reconhecimento das figuras; Zirma, cidade redundante; Zoé, em
todos os pontos, “o lugar da existência indivisível” (CI, 1990: 35); Ipásia
e a sua misteriosa língua, presente nas coisas, não nas palavras, a linguagem
sempre enganosa e Olívia com as suas metáforas de fuligem: “A mentira
não está no discurso, mas nas coisas” (CI, 1990: 60). Não nos esqueçamos jamais
de Olívia e o discurso que a descreve.
As aparências ilusórias dos símbolos escondem cidades governadas pela
sede das lembranças, alternativas seguras para determinação dos próximos
passos. Perder-se nas cidades delgadas: Isaura e o seu movimento celeste,
seus mil poços; Zenóbia erguida sobre altíssimas palafitas, embora em
terreno seco, com suas casas de bambu e zinco; Armila, cidade
inacabada/demolida, caprichosa e enfeitiçante; Sofrônia e as duas meias
cidades, uma fixa (de pedra, mármore e cimento), outra provisória
(cidade-circo-espetáculo) e Otávia – teia-de-aranha. Achar-se no flagrar
das trocas: Eufêmia, onde é possível alternar a memória, Cloé,
cidade grande, casta e luxuriosa e Eutrópia:
Os habitantes voltam a recitar as
mesmas cenas com atores diferentes, contam as mesmas anedotas com diferentes
combinações de palavras; escancaram as bocas alternadamente com bocejos iguais.
Única entre todas as cidades do império, Eutrópia permanece idêntica a si
mesma. Mercúrio, deus dos volúveis, patrono da cidade, cumpriu esse ambíguo
milagre. (CI, 1990: 63)
Eutrópia < Eu + Tropos é, provavelmente, no conjunto das
cidades invisíveis a que remete com mais propriedade para uma topografia do eu
– o tropos, a figura da cidade calviniana, raridade escorregadia das
identidades. E mais adiante, enroscadas aparecem Ercília, com as suas
teias de aranha à procura de uma forma e Esmeraldina, cidade aquática,
lá, nada se repete. Em Calvino tudo transita, há um êxtase contemplativo, as
cidades são (f)olh(e)adas no seu dualismo: sombra-luz,
fora-dentro, ordem-tumulto, seco-molhado, diferença-identidade, voz-silêncio.
Cada coisa tem o seu duplo e os rumos, aparentemente díspares e desencontrados,
armam superfícies fictícias arrebatadoras.
De repente, o Marco Polo de Calvino na sua flânerie [14] atravessa, como bom marinheiro e
camponês que é (o homem e o seu duplo, triplo …. n encenações ), as
cidades de Anneliese Roos, encantadora personagem do não menos fabuloso Avalovara
de Osman Lins. Como Polo, ela geme atingida pelo febrão dos nomes,
depressa, lança seu olhar na movimentada história de encontros, percursos,
revelações, espirais, quadrados, nascimentos, leões e relógios figurativos.
Abel em busca do paraíso e o rosto de Roos – tecido pela imensidão das cores e
dos nomes, amplas descobertas de um amor descompassado: Roos e as muitas,
muitas, muitas cidades oriundas das circunstâncias coléricas das megamáquinas:
Um deserto quase igual ao das
cidades de Roos. Reno, Riga, Roma, Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem
todas. Único ser humano: o que me segue sombra. Sagres, Salônia, Sena,
Salamanca, Samotrácia, Sodoma, Saragoça, Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. [15]
O narrador confabulando com o silêncio, espécie de Kublai Khan cego
diante do esplendor alfabético das cidades. Olhando de viés, a estreita
distância que nasce da sombra tardia e da luz que orquestra suas vinganças.
Anneliese Roos/Abel na invisibilidade imperial do mercador veneziano. As
cidades parideiras de Calvino beijando o infinito e ofertando-nos uma realidade
pontilhada pela poesia.
Concomitantemente, à geografia atrativa dos símbolos compartilhados,
surge o entusiasmo pela versão plausível e verossímil de que os lugares são
fragmentos de viagens imaginárias. Eis o risco da perdição. O escritor italiano
realiza a literatura como um sonho dirigido, preceito borgeano para o
acabamento das pequenas (grandes) obras-primas, como é o caso de As cidades
invisíveis. Contar a história da cidade no mesmo instante em que caminhamos
por ela – ecos pretéritos, invenção das horas. De acordo com Hillman: “Há
sempre um perigo para a alma se estamos indo apenas para cima, ou seja, se
enfatizamos vistas panorâmicas, arranha-céus, e não mantemos as alturas em
relação às profundidades”. [16]
Calvino, a todo momento, (des)centra seu olhar na tentativa de aprender a
cidade alegórica e invisível, em oposição ao absolutamente visível e racional,
assim poderá formular novas maneiras para fugir dos labirintos, se assim o
quiser.
Por isso as cidades são contínuas: Leônia que se refaz todos os
dias, onde os lixeiros são acolhidos como anjos, a metrópole vestida de novo, a
excessiva preocupação com o acúmulo, o perigo do lixo, há um frêmito prazer
pelo novo; Trude, de casas amarelinhas e verdinhas, um mundo recoberto
por uma única Trude, sem começo, nem fim; Procópia e a alegoria
dos arranha-céus, homens acavalam-se nos ombros dos outros, fazendo o
céu desaparecer; Cecília, ilustre cidade, de espaços misturados, assim
diz o pastor de cabras – ela está em todos os lugares e Pentesiléia –uma
periferia de si mesma, onde “as malhas da cidade se restringem” (CI, 1990:
142).
Fios contínuos escorrem das cidades ocultas: Olinda, como os
troncos das árvores, cresce em círculos concêntricos, aqui se pretende atingir
“o coração da cidade” (CI, 1990: 120); Raíssa, onde a vida não é feliz,
porém a cidade infeliz contém uma outra feliz que ninguém imagina que exista; Marósia,
a cidade dos ratos e das andorinhas, quiçá a grande alegoria do livro, pois,
para Marco Polo de Calvino, ambas se transformam com o tempo, há o tempo dos
ratos (talvez o nosso) e quem sabe o tempo das andorinhas (a esperança de dias
melhores). Na verdade, a liberdade das andorinhas depende exclusivamente dos
ratos, um diz o outro e vice-versa. Teodora, depois de enfrentar repetidas
invasões e tenebrosas pestes, os homens a humanizaram novamente, a peste dos
ratos querendo impor mais um século de sombras e Berenice, cidade
injusta, a cidade dos justos está oculta. As relações entre dominadores e
dominados são sempre desiguais e cruéis,
o trabalho escravo, sem sentido – germes das futuras metrópoles, as Berenices
justa e injusta propõem a alegoria da justiça – ler, de muitas maneiras, o
outro-oculto.
Como postula Calvino, o importante é a cautela do jogo, o paciente
exercício do olhar e a postura ética do
narrador que deve desconfiar das técnicas meramente racionais impostas pelos
homens. Enfim, interessa-lhe averiguar os procedimentos fictícios construídos
pela ‘imaginação’ aqui e além e, perseverar na produção de vários sentidos
sempre mais generosos para a vida. E, por fim, compreender a cidade
superexposta como tão bem o fez Paul Virilio. A superexposição da cidade
aflora de sua própria (in)visibilidade. Analisar a cidade-mundo, as
metrópoles contínuas e ocultas ultrapassando os limites capengas de uma
rendição à máquina. Em O espaço crítico, [17] Virilio capta as simples e complexas aparências da
cidade, atentando para as reproduções técnicas das imagens que pecam pela falta
de tempo, não duram, não mobilizam o pensamento, arrebentam com o sensível,
proíbem os sonhos, aniquilam as emoções, fingem confraternizar, mas impedem o
gesto mais elementar do abraço, explodem a visão e esquecem do olhar profundo –
humano e ético. A seriação das imagens e sua avalanche de cores não conservam
os sentimentos, perdem a historicidade, renegam o passado (o anacronismo
nostálgico) – miram-se no futuro, que também é vago-nulo pela própria
representação do presente.
Em suma, na cidade superexposta as imagens são despoetizadas, cultuam a
rapidez e nesse ritual esquecem de ‘reverenciar’ a sua alma gêmea, a lentidão.
Até aonde vai o tempo das imagens contemporâneas? Calvino, Guattari, Virilio …
há uma saída, ainda: restaurar a subjetividade das cidades superexpostas e
invisíveis. Anneliese Roos e as ruínas do olhar, Abel entre as nuvens:
em silêncio a Cidade deixa de existir e não me
diz seu Nome. Dissolve-se a visão, sim, não me revela seu Nome, sim, mas a
procura de seis ou sete anos afinal se define, sei por fim o que devo buscar e
contemplar, sendo indispensável que o intente. Vai, Abel, buscar a Cidade: eis
incumbência. [18]
Os nomes: Aglaura, cidade apagada-despersonalizada; Leandra
com os seus Lares e Penates, deuses protetores; Pirra, cidade imaginada
a partir do nome; Clarisse – borboleta saída da mísera Clarisse-crisálida,
cidade gloriosa de história atribulada e Irene, “talvez eu só tenha
falado de Irene” (CI, 1990:115), quanto mais nos aproximamos dela, mais ela se
modifica; e os olhos: Valdrada e as cidades gêmeas vivendo uma para outra;
Zemrude e sua forma flexível, que varia segundo o humor de quem a olha; Bauci,
cidade aérea com pouquíssimo contato com a terra, a cidade está plantada nas
longas pernas do flamingo; Fílide e as suas inúmeras pontes, com seus
habitantes andando por linhas em ziguezague e Moriana, “cidades como
esta tem um avesso” (CI, 1990: 97). Toda escritura tem o seu avesso, e muitas
vezes ele vem sob o signo do silêncio.
Nos aproximamos do fim ou do começo? Não sei, tudo é espiral, estamos
entre os mortos e o céu, o primeiro grupo com: Melânia, de inveterados
dialogadores, uma cidade-palco de indivíduos atores; Adelma, onde o
narrador encontra-se com seus mortos, vê-se como parte deles. As imprevisíveis
visões o assustam, tudo lhe mete medo; Eusápia, a que aproveita e evita
aflições, a que possui no subsolo uma cópia idêntica a sua cidade dos vivos; Argia,
onde no lugar do ar existe terra e Laudômia, mais do que dupla, Laudômia
é tripla – uma dos vivos, uma dos mortos e outra dos não-nascidos (a cidade do
futuro) das multidões invisíveis.
No segundo bloco, admiramos: Eudóxia, com a sua
urdidura-atapetada (seus detalhes estão no desenho do tapete), a relação entre
o tapete de feitura divina (o céu) e a cidade, reflexo do primeiro, como as
obras humanas; Bersabéia, uma terrena e outra celeste (cidade-jóia),
inferno e céu confrontados; Tecla, a cidade em permanente construção,
única saída para se evitar a destruição; Perínzia, que segundo os
astrônomos “espelha a harmonia do firmamento” (CI, 1990: 130) e as deformidades
humanas trancadas a sete-chaves, a cidade dos monstros, sempre às esconsas e Ândria,
construída com tal arte que suas ruas seguem a órbita dos planetas: “Os dias na
terra e as noites no céu se espelham” (CI, 1990: 136), cidade e céu desiguais,
Ândria permanece imóvel no tempo e os seus habitantes confiam em si mesmos e
são prudentes.
Calvino com o seu Marco Polo aperfeiçoa, ao longo de infinitos passeios,
sua adorada Veneza. Kublai Khan e seu império em ruínas, a ordem invisível dita
os destinos da cidade. Calvino, nessa composição enxadrística, aplica um
xeque-mate no puro racionalismo, faz do insignificante peão, a peça sublime tão
almejada pelo rei (majestade em frangalhos). Oh Veneza, as outras em você!
Calvino e as suas cidades, um olhar por fazer.
Italo Calvino, em
momento algum, perde de vista a cidade e os seres humanos, lança mão de um
estilo fabular, alegórico, ao recriar histórias com o clássico sabor das
antigas aventuras. Marco Polo, em suas missões diplomatas, enumera suas
conquistas – num diálogo rápido, certeiro e conseqüente com Kublai Khan
(ouvinte-leitor-autor). O Marco Polo de Calvino re-faz a viagem pelo vácuo absoluto
do tempo, cada nome é Veneza e Veneza está em todos os olhares: “Para
distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que
permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza” (CI, 1990: 82). O
aventureiro arrisca, ao traçar narrativas precisas e minuciosas, a linguagem
evocativa de outras trilhas, a mente e corpo direcionando as imagens, ao mesmo
tempo, que são delineados pelos (re)toques daquilo que concentra o meramente
visível.
No fundo, os gestos, as sombras, as luzes, os rostos, as paisagens, as
trocas impressas na retina, exploram um modo especial de ver. Calvino retoca a
capacidade de escrever através de “uma ética do olhar”, [19] as imagens que se movimentam com a dignidade e a postura de um
mundo futuro, à procura do sublime. Benjamin – flâneur – refletindo a
Paris de Baudelaire, do mesmo modo que aprecia as imagens do pensamento – da
infância em Berlim, até Nápoles, Moscou … Paris – cidade espelho, outra vez
Veneza.
A cidade – escrita (migrações de letras, subterrâneos do livro, um olhar
por fazer) é banhada pelas coisas do outro, a cidade onde os enredos são peças
vivas da poemática respiração. Nessa viagem, quanto ficou por dizer! Porém,
entre a partida e a chegada, há sempre os enigmáticos meandros dos espelhos –
arredores projetados por um deus profano, chamado amor. As feições da natureza
superexposta e da outra invisível compensam a restauração do canto, posto na
cidade quando os arquivos mortos se tornam vivos e a sede dos ancestrais devora
o universo mágico do presente.
A alegoria calviniana é, basicamente, se assim podemos resumir, a
momentânea crueldade dos nomes, o castigo do automatismo e a supremacia
prepotente da máquina, observada sob o ângulo emblemático do cristal, a
urdidura da chama como raiz da memória, sopro vital para o amanhã. Pois, a
chama transforma em cinzas a memória que ressurge como Fênix. Veneza encarna o
futuro e o presente de cada cidade que trazemos adormecida em nosso alforje; a
ternura da lembrança, a retirada das máscaras, o aparecimento de novas figuras
sobre o ser; nas ilhas do outro, somos navegantes de diferentes imagens; nas
ilhas do outro, somos navegantes, sonhamos a pátria através de um nome, um
nome-abrigo, um ar (in)visível, um vinho que inebria e salva, um nome-brinde à
beleza, um sinal silencioso de que:
Toda cidade / nasce grávida e
estéril
criança arquetípica / que se dá e
nega
pátio de encontros / e de
dispersões
…… um bilhete singelo / ao nada [20]
Sim, a cidade é constituída de ruínas e com o frescor das paixões. As
cidades invisíveis de Calvino realiza a viagem da incertitude quando
embaralha os indícios das verdades pré-concebidas e dos enredos lineares e
prontamente inteligíveis. Pode-se afirmar que:
Sua narrativa opera uma negação
da lógica positivista, segundo a qual os fatos falam por si revelando
significados unívocos e determinados (lógica subjacente à estrutura dos
romances policiais) e desconstrói o esquema de pensamento racional que, em nome
da verdade e da certeza, reprime a diversidade de sentido. [21]
Dito isso, seguimos o itinerário lacunoso e fragmentário, não dizível das
cidades invisíveis na tentativa de enxergar o outro como prolongamento do
nosso olhar – num contínuo processo alegórico –, necessário e imprescindível
como o próprio ato de respirar.
Dentre as inúmeras maneiras de se falar de uma cidade, esta é apenas
uma. Certamente muitas outras existem, mais alegóricas, metafóricas, auráticas
e até mesmo científicas, que se mostrem.
BIBLIOGRAFIA
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 5 ed. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia.
das Letras, 1990.
___. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo
Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
CAMPOS, Sérgio. As iras do dia. Nova Friburgo/RJ: Mundo Manual
Edições, 1990.
___. Leitura de cinzas. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições,
1993.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 6 ed. Tradução
de Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras Escolhidas, Vol.
I).
BORGES, Jorge Luis. Biblioteca personal (Prólogos). Madrid: Alianza Editorial, 1988.
___. Ficcionario – una
antologia de sus textos. (Edición, Introdución, prólogos, notas de Emir
Rodrígues Monegal. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.
FRANCO, Renato. Itinenário político do romance pós-64: A Festa.
São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
GAGNEBIN, Jeane Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva/ Campinas, FAPESP: Editora da
UNICAMP, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro. Toda as cidades, a cidade: literatura e
experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
GUATARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de
Ana Lúcia de Oliveira e Claúdia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
GUELFI, Maria Lúcia Fernandes. O Delfim: uma leitura pós-moderna da
história. In Veredas 2. Porto/Portugal: Fundação Eng. António de
Almeida, 2000. (p.
253-269)
HILLMAN, James. Cidade & alma. Tradução de Gustavo Bacellos e
Lúcia Rosenberg. São Paulo, Nobel, 1993.
LINS, Osman. Avalovara. 5 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Ver o invisível: a ética das imagens. In Ética. 3 ed. Organização de Adauto Novaes. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
POLO, Marco. O livro das maravilhas: a descrição do mundo. 4 ed.
(Tradução de Elói Braga Júnior. Porto Alegre: L&PM, 1994.
SUBIRATS, Eduardo. Vanguarda, mídia, metrópoles. Tradução de
Nilson Moulim. São Paulo: Nobel, 1993.
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Tradução de Paulo Roberto Pires.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
NOTAS
1. Referência a CALVINO, Italo. Seis
propostas para o próximo milênio. Em sua primeira conferência, sobre a
Leveza, Calvino afirma em forma de quase confissão: “esforcei-me por retirar
peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades;
esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem.”
P. 15.
2. HILLMAN, 1993:40.
3. Cf. POLO, 1994.
4. Jeanne Marie Gagnebin trabalha
o conceito do alegórico em oposição ao simbólico: “Enquanto o símbolo, como seu
nome indica, tende à unicidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua
não identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa
(all-agorein) que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa
fuga perpétua de um sentido último”. Simultaneamente, a autora detalha as duas
fontes de onde a linguagem alegórica extrai sua exuberância: a tristeza (o
luto) e a liberdade lúdica (o jogo). Cf. História e narração em W. Benjamin. São Paulo,
Perspectiva/Campinas, FAPESP – Editora da UNICAMP, 1994, p. 45-46).
5. SUBIRATS, 1993: 34.
6. CALVINO, op. cit. p. 86.
7. BORGES, 1988: 68-69.
8. CALVINO, op. cit. p. 83.
9. BENJAMIN, 1993: 210.
10. Neste roteiro poético das
cidades, o autor desmonta pedaço por pedaço as histórias dos possíveis
territórios imagináveis do homem. Divido em duas partes: I – O Cristal e a
Chama (com a presença de Calvino, Benjamin, Borges, Paz e outros) ele realiza
um passeio pelas maravilhas da cidade-escrita; II – Suíte Carioca – o Rio de
Janeiro é repartido em colantes fragmentos amorosos, a cidade maravilhosa e as
cenas mutantes de uma paixão; por ela passeiam Marques Rebelo, João do Rio,
Lima Barreto, Mário e Oswaldo de Andrade, Rubem Fonseca, entre tantos. O Rio é
uma cidade-espelho-labirinto de signos. O trabalho de Renato Cordeiro Gomes
redesenha o espaço urbano através das vivências literárias. Múltipla leitura de
um ensaísta bem aparelhado e, sobretudo, sensível ao jogo textual.
11. CAMPOS, 1990: 50.
12. A propósito é importante
conferir, A alegoria na modernidade (p. 147-150), um dos tópicos do 5º
capítulo, ou como registra o autor, 5º Movimento – as ruínas estão em toda
parte. Neste item de sua tese, Renato Franco discute com propriedade e acuidade
crítica os significados e a importância da representação alegórica na
modernidade, partindo de Benjamin. Rebate e nega, inclusive, abordagens
ligeiras e tacanhas emprestadas corriqueiramente ao termo alegoria, visto
grosseiramente apenas e, sobretudo, como um despiste político-ideológico. Algo
bastante redutor, pois que a alegoria é muito mais do que isso. É um processo e
um método de composição dos mais importantes da arte moderna. In Itinerário
político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
13. Veja-se GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma
estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
14. A flânerie é a maneira
encontrada por Calvino de andar pelas narrativas. Como um passeante
metropolitano, ele volta no tempo e vê passar diante de seus olhos as cenas das
cidades percorridas por Marco Polo.
15. LINS, 1995: 259.
16. HILLMAN, op. cit. 39.
17. veja-se VIRILIO, Paul. O espaço crítico, 1993.
18. LINS, op. cit, 336.
19. PEIXOTO, 1994: 309.
20. CAMPOS, 1993: 24-25.
21. Cf. O ensaio O Delfim:
uma leitura pós-moderna da história, de Maria Lúcia Fernandes Guelfi, 1999:255.
*****
LEONTINO FILHO (Brasil, 1961). Poeta e Professor de Teoria da
Literatura e Literatura Brasileira, na Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte/UERN. Publicou os seguintes livros de poemas: Cidade Íntima (1987/1991/1999), Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993). Autor do ensaio de crítica literária –
inédito em livro, intitulado: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia
de Sérgio Campos (1997). Doutor em Estudos
Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o
narrador solto no meio do mundo
(2005). Contato: leontinofilho@uol.com.br. Página ilustrada com obras de
Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 14 |
Janeiro de 2016
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design
| FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
os artigos assinados não
refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se
responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário