sábado, 9 de janeiro de 2016

LEONTINO FILHO | As esquinas alegóricas da cidade: um olhar


Olhar bem. Viajar. Cair na desmedida condição do flâneur. Anunciar as regras do jogo. Exercitar–se. Entrar no sonho que leva ao gozo: o real. Participar do mundo afetivo, indiferente às armadilhas da paixão: ser ausente, estando próximo. Descortinar o doce perigo das simulações, inverter a lógica da razão: subjetivar o concreto. Partir. Mergulhar no furor do silêncio e abalar cada milimétrica estrutura do estabelecido universo das certezas. Anular a passividade, construir seduções por meio da fome contínua do ilimitado. Devorar o caos, dissimulando sombras: embaralhar as cartas. Chegar. Lançar-se aos abismos, verticalizando a beleza. Escalar imagens. Desenhar no espelho o cristal e a chama e com isso reparar que toda inocência jaz estilhaçada num mar de palavras. Com a cidade, propor vôos. Assim faz Italo Calvino em seu livro As cidades invisíveis.
A obra, de enredo aparentemente simples, é na realidade a síntese de uma produção literária elaborada com extremo rigor e total domínio do processo narratorial. O autor realiza a confluência do clássico com o moderno, configurando um estilo requintado, dando vazão a uma biografia lírico-sentimental, porém jamais piegas, da cidade. Através do narrador-memorialista Marco Polo, explorador veneziano que dialoga com o imperador tártaro Kublai Khan – em determinados momentos do romance, também narrador –, Italo Calvino multiplica as vozes que tecem o imaginário das maravilhas da cidade. Com o relato ambientado no Extremo Oriente (século XIII), podemos acompanhar a densidade e a precisão com que o escritor-viajante opera as suas fabulações, esta miragem sedutora e sensual: a palavra-cidade.
No nosso breve ensaio, procuraremos ler com olhos livres o texto-invenção da cidade, percebendo, acima de tudo, que a escritura calviniana, propõe-se a acentuar as diferenças de estilo, apresentando os seus intrincados enredos como verdadeiros relatos labirínticos do ato de narrar. Para nós, um tipo de narrativa que busca redefinir os espaços que aproximam os diferentes gêneros textuais, no instante em que percorre a fantasia, reduplica a realidade e instaura um registro ficcional centrado na desestabilização de perspectivas e, principalmente, na instabilidade de sentidos que gera um novo mundo, em que a verdade será alvo de ataques constantes. Tudo é visto de viés, cada relato constitui desdobramentos discursivos e toda ação está enquadrada na voz lírica e ficcional do narrador. As estratégias narrativas operacionalizadas por este narrador projetam uma preocupação com o estabelecimento ontológico em aberta oposição ao meramente epistemológico. O conhecimento é, a partir de então, algo que está sempre à deriva e sujeito às intempéries do narrador.
O dar a conhecer em As cidades invisíveis plasma a percepção e a concepção das coisas: o amor e o desamor, o tempo e a eternidade, a perdição e a salvação, a carne e o espírito, entre outras, são substratos mágicos e míticos que permeiam o mundo lírico-subjetivo que, por não obedecer a uma hierarquia de sentidos, multiplica a matéria a ser narrada. A matéria com a qual Italo Calvino trabalha está plenamente ajustada às cinco qualidades do seu ideário escritural: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Na feitura de uma escrita literária, a cidadela do artista necessita, de imediato, esvaziar o peso do mundo e da linguagem. [1]
De fato, a visão que lançamos do livro que tem Marco Polo como narrador, é a de um verdadeiro exercício metafórico, procura-se ajustar o significado do passado, todo ele absolutamente traçado com recursos metonímicos, a evocação de dezenas de cidades, para a indicação de apenas uma, Veneza, resultado da leitura alegórica feita pelo autor. Italo Calvino certamente pensa o humano como realidade de grande complexidade, cercado por imagens, as mais diversas. Daí, saber do perigo manipulador da própria linguagem, que se quer absoluta.
A idéia alegórica, aqui, tem a clara intenção de apresentar a alteridade, a ruptura normativa, a fragmentação do discurso feito por um sujeito cindindo em sua eventual identidade e a própria tensão enunciativa expressa na busca infrutífera de uma unidade já de toda perdida.   O narrador contemporâneo passa a vivenciar, nesse intercurso narrativo uma espécie de dialética do reconhecimento, onde o sujeito-objeto-narrador postula retratar a sua imagem, problematizando os recursos temáticos e ideológicos que ele mesmo dispõe para compor suas histórias. Estabelece, desse modo, uma história do pensamento, do sentimento e da emoção captada pelo rito do espelho. Sabedor de que “sem imagens corremos o risco de perder o caminho”, [2]  Italo Calvino via Marco Polo, embrenha-se nas malhas do labirinto escrito e perde-se, achando-se a si próprio no interior da cidade (o outro). É este desenho de recordações, disperso em cada um de nós, que fornece sentidos para o movimento além-razão, ritmo explícito das procuras, universo de difícil articulação: o maior mistério está em nós, rasgar os esquecimentos, apoderar-se das vertigens (a memória). Nossos olhos, num ziquezague de prazer, penetram na geometria imaginária de Italo Calvino, observando as sombras de Walter Benjamin e suas fecundas emboscadas, ruínas do flâneur.
A narrativa de Italo Calvino acena para os perigos na cidade. Cidade onde se vive, se ama, se espera, se crê, se deseja, se busca, se aspira, se desespera, se sofre, se consola e se obtém os derradeiros resquícios de utopia. Toda cidade perpetua as indiferenças e distribui suas contradições, por isso implode a si mesma e explode na contramão das ideologias contemporâneas. A escritura calviniana põe a nu quaisquer fronteiras de gênero, sua ficção transita pelos meandros da poesia, da prosa e do ensaio. Sua literatura é um inventário de incertezas, onde as representações individuais e coletivas são problematizadas, nada é puro, tudo é escavação de experiências. Marco Polo é um experimentador do olho, é um observador da matéria que anda com os sentidos espatifados pelo chão da lucidez, fazendo a desmontagem dos enredos fixos. As cidades invisíveis é uma aventura, este ensaio é tentação – trilhas poéticas de uma época inscrita nos princípios da recriação.

A OFERENDA DO OUTRO: MIGRAÇÕES DE LETRAS | Na busca do outro, a memória é sempre legível. É a inexorável aventura do escrito. A vida em permanente ebulição. A cidade – oferenda explícita das emoções – engendra o caminho por onde se pode aprender os fragmentos de inefáveis verdades; a memória da cidade desvenda a travessia de excessos na velha ponte de prazeres expostos. Toda cidade é montagem, representação de viajantes, distinta percepção dos fenômenos urbanos, a cidade fervilhante e os seus mil signos de robustos mistérios. Toda cidade é linguagem, visão de sonhadores, pontilhada manifestação dos desejos, a cidade-linguagem e as suas mil dobras de esboços inacabados. O outro é a seleção de máscaras, letras que migram para o interior do homem, conhecimento e poesia operacionalizando as dimensões do possível. Migração de palavras que se ocupam em decifrar as rotas das narrativas.
No encalço da palavra-coisa, parte o andarilho. Seu mundo assume as regras de um perigoso jogo de esconde-esconde, neste instante, a armadura deste caçador fixa exercícios de luta, demarcados pelo diálogo daquilo que se quer mais próximo: a articulação de signos e textos como elementos cruciais da narrativa. Combinando inúmeras categorias de pensar e de representar a multidão e a cidade, percebe-se a competência de Italo Calvino ao penetrar na pele de Marco Polo e descrever fisicamente ao imperador Kublai Khan, as cidades visitadas, imaginadas, amadas, inesquecíveis e invisíveis de um vasto e encantador reino. Os relatórios do jovem veneziano dão conta da grandeza, bem como da própria ruína que ameaça as terras do sábio líder dos tártaros. Calvino registra em As cidades invisíveis, as paisagens, os singulares detalhes, as proliferantes descrições, as abstratas sensações, os receios, as esperanças, enfim, o infinitamente mínimo de Marco Polo, presente em O livro das maravilhas. [3] Refazer cada leitura, deixar as marcas nas malhas do outro, eis a missão a que se propõe o romancista.
A voz narrativa de Marco Polo perpassa todo o romance, de forma a corporificar os mais remotos pensamentos do caminhante. Na visão do passeador, a cidade multiplica-se no imaginário, de tal maneira que as sombras e as luzes de suas vastas regiões são a todo momento decifradas. De fato, a realidade flutua no espaço-tempo da existência humana, exprimindo o emaranhado de sentidos presentes no campo criativo das palavras. O corpo significativo da cidade reveste-se das diferenças e semelhanças que habitam a trama alegórica de Marco Polo, agora um personagem calviniano, traduzido no pleno desnudamento do gozo. Cabe assinalar que o termo passeador ou caminhante é empregado no atual contexto como referência direta à figura do flâneur, na medida em que o próprio Calvino, ao travestir-se de Marco Polo, expressa através da reconstrução imaginária do viajante, sua própria experiência como homem do mundo. O passeador indica um modo de andar flanando pelas cidades ‘civilizadas’, pelas suas ruas, praças e jardins. Passear < de passar < passare < passu, leva-nos a dizer que Calvino não apenas passa e atravessa as narrativas de Marco Polo, mas também, transpõe e busca exceder as histórias do viajante veneziano que a despeito de possuir finalidades comerciais caminhando pelas cidades orientais, consegue com a argamassa da imaginação enredar o ouvinte num mundo de fabulações.
Com As cidades invisíveis, Calvino lança ao homem, as diversas possibilidades de amar o indefinido na cidade, a atitude de descrever minuciosamente cada faceta dos seus passeios, deixa-nos a sensação de embriaguez, o escritor forja o seu discurso projetando despudoradamente as mais recônditas armadilhas do objeto-texto: a cidade.  Assim, as implicações da ação cartográfica são a senha para a penetração nessa rede-texto que é a sensibilidade do narrador. Marco Polo adentra o labirinto sem receios, importa-lhe compreender as identidades perdidas e os percursos prodigiosos que o levam a uma geometria paradoxal do indefinido traçado por novas rotas. Ele agarra-se aos nomes com a ânsia voraz de abrir caminhos, de não se deixar aniquilar pela mesmice, recusando as meias-verdades, seu projeto é puro engenho da mente, despojamento do devir.
Sob esse prisma, podemos analisar a obra de Calvino, como uma grande alegoria [4] do humano. Por isso ao longo do nosso texto, apresentaremos a migração de letras que proporciona ao contador de histórias, no caso Marco Polo, razões para uma reflexão mais detida do que vem a ser sua trajetória, entendida como a mutação cultural de uma época repleta de incertezas e temores. Em princípio, os fenômenos temporais delimitam os movimentos anunciadores de uma vida por vir – o conhecimento da cidade dimensiona o olhar do narrador, não esgotando jamais a sua aventura: como colecionador de impressões (estímulos), ele fabrica imagens depuradas pela sua frenética procura. Sua forma de intervir sobre a realidade é deveras poética, pois só assim conseguirá reverter os princípios apocalípticos reservados à humanidade, já que um pouco de esperança não faz mal a ninguém e, trabalhar tal sentimento artisticamente é melhor ainda, afinal, “a arte continua sendo um caminho aberto para sair desse destino civilizatório da destruição e do nada”. [5]  O narrador é um indivíduo em fuga, um jogador que tenta desesperadamente escapar da morte, do luto, eis a primeira marcação do discurso calviniano, o nada será uma conseqüência concreta transcrita na afirmação histórica de que é preciso resistir.
Existem incontáveis maneiras de resistir, a de Calvino é narrar, desfiar o fio da memória, extraindo os segredos de cada passo dado; escancarando as portas da cidade, ele condensa as vozes díspares da grande aventura: flanar buscando a felicidade no outro. O Outro, aqui, remete-nos a Marco Polo, uma espécie de heterônimo de Calvino, já que ele (Polo) narra na prisão as suas viagens comerciais. Narrar torna-se, então, entretenimento, resistência, grito de ‘liberdade no cárcere. Os nove segmentos de As cidades invisíveis elaboram o sensível como categoria ímpar do espelhamento, a unicidade da cidade é vista na proporção de suas múltiplas realizações, as características urbanas são re-colhidas na razão direta da transformação operada no interior das cenas. O próprio Calvino afirma que “em Le città invisibili cada conceito e cada valor se apresenta dúplice – até mesmo a exatidão”. [6]
O grande Khan, com a sua tendência racionalizante-geometrizante-algebrizante do intelecto, propõe uma combinatória do conhecimento, quer dizer, uma matemática das sensações representada por uma partida de xadrez. Nesse sentido, os relatos do veneziano emblematizam o nada; a conquista do outro, confere um estatuto de veracidade às fabulações inerentes à fala do narrador.
As cidades são para Calvino como uma perigosa esfinge, que necessita urgentemente ser traduzida. Portanto, os limites estanques das interpretações rompem-se, permitindo uma concentração nítida, o sentido das coisas está sempre à deriva; ciente desta assertiva, o narrador trafega na sucessão de imagens que a sua memória é capaz de construir. A quantidade de viagens é uma incógnita, o viajante traz um mapa-múndi consigo, conhece o desconhecido, re-elabora as cores do conhecido e empresta nova moldura às fantasias. Ele renega a clausura, atravessa as ilhas, lê as fachadas do poético, contorna o pátio da escrita-natureza e finge acreditar na continuação do eterno momento. 
Suas cidades-fêmeas, distribuídas pelas nove seções do livro, são amadas diferentemente. Agrupam-se em quintetos, num total de onze combinações, formando 55 partidas de um jogo envolvente e inebriante que resultará na sua desvairada paixão por Veneza, sua mulher-fatal. Numa panorâmica, até onde a vista alcança, as letras e os nomes das cidades: da memória: Diomira, Isadora, Zaira, Zora, Maurília; do desejo: Dorotéia, Anastácia, Despina, Fedora, Zobeide; dos símbolos: Tamara, Zirma, Zoé, Ipásia, Olívia; das trocas: Eufêmia, Cloé, Eutrópia, Ercília, Esmeraldina; dos olhos: Valdrada, Zemrude, Bauci, Filide, Moriana; do nome: Aglaura, Leandra, Pirra, Clarisse, Irene; dos mortos: Melânia, Adelma, Eusápia, Argia, Laudômia; do céu: Eudóxia, Bersabéia, Tecla, Perínzia, Ândria; as delgadas: Isaura, Zenóbia, Armila, Sofrônia, Otávia; as contínuas: Leônia, Trude, Procópia, Cecília, Pentesiléia e as ocultas: Olinda, Raissa, Marósia, Teodora, Berenice; como um rock titânico, a poemática dos nomes, refúgio da solitária e distante Veneza.
A desambição do Marco Polo calviniano prende-se, entre outras coisas, à nomeação das regiões vistoriadas, todavia, aquelas que aparecem através dos sonhos são, também, traçadas com precisão de detalhes. Já, em O livro das maravilhas, a infinidade de locais percorridos pelo viajante impressiona pela revelação de costumes legendários dos chineses, mongóis e persas. São relatos labirínticos, que atingem a alta expressão do maravilhoso no imbricamento com a realidade. Atrevemo-nos a pensar O livro das maravilhas, no mesmo plano das cidades de Calvino, ambos recheados por muita ficção: o que se vive para ser contado perde o seu caráter de objetividade, passando a ser uma mescla do real com o sonho; quantas maravilhas (não) foram sonhadas por Marco Polo em seu livro! Périplos do flanador. Borges acertadamente escreveu: “Marco Polo sabía que lo que imaginan los hombres no es menos real do que llaman realidad.  Su livro abunda en maravillas”. [7]
Calvino declara seu amor a Borges ao fazer de suas cidades invisíveis o fabuloso e alegórico embate da literatura. É um tributo à arte de contar, uma oferenda ao outro. Benjamin, por enquanto, apenas espia ao lado de Guattari, Virilio, Osman e Campos. Continuemos nosso itinerário.

QUANTAS COISAS: OS SUBTERRÂNEOS DO LIVRO | Dizer o indizível (ver), espreitar as sombras silenciosas, traçar círculos de giz, abrandar as cicatrizes abertas, singrar o corpo familiar – o livro das imagens – ilha submersa, território temporal das casas úmidas: o (in)visível. A vertigem “do detalhe do detalhe do detalhe” [8] apodera-se de Calvino e o transforma num insigne fisiognomonista  da  cidade-texto, levando seu personagem (Marco Polo) ao infinitesimal , deixando-o oscilante entre a extravagância do mínimo e a incompletude do vasto; não é à toa que o grande Khan cumpre a sua sina, tocado pelas reviravoltas da dúvida e da crença. Nesse contexto é importante reter a passagem do tempo, as fontes de luz, vigiar o viço das coisas, sem petrificar as lembranças, investir o olho de memória.
Aqui, em Isidora e todas as cidades da memória, o viajante sabe que “os desejos agora são recordações”. (CI,1990:12). Esta é a cidade de seus sonhos, o passeador, sentado ao lado dos velhos, contempla a juventude que passa, a possessão da espera consumindo os dias, o fulgor dos jovens alimentando a chama; Diomira com sessenta cúpulas de prata, o teatro de cristal e o seu galo de ouro (cantor matinal), raras belezas que variam com as estações, setembro chega e os dias mais curtos exibem um outro colorido ao lugar, é possível imaginar a felicidade de tais momentos; Zaira dos altos bastiões onde:

A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui de recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pará-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CI, 1990: 14)

Os acontecimentos passados estão relacionados às medidas de espaços da comunidade, às formas alternadas de respeitar a tradição não caindo no puro imobilismo, o cristal que seduz e mata. O passado é um texto em desalinho, um manuscrito que atravessa a tradição, é em derradeira instância, um palimpsesto – raspagens e colagens de outros textos. Zora – para sabê-la de cor, só com muita sabedoria, porém Zora definhou, ao permanecer imóvel e imutável, a memória precisa de movimentos, de sopros revitalizadores do presente, por isso a cidade foi esquecida, perdeu o vigor da chama, desapareceu. Maurília – a do presente (a metrópole) com os seus atrativos e a provinciana (do passado) – só pode ser observada com a ajuda dos velhos cartões postais ilustrados (arcabouço da memória), fragmentos da sedutora saudade com suas páginas arrancadas do mesmo livro: a nostalgia do estrangeiro, exilado em suas próprias fabulações. Portanto, prenhe de sonhos. 
Em cada uma delas, reside a gigantesca memória incrustada no pequenino véu das recordações: Veneza é a clandestinidade da chama e do cristal. Como diz Benjamin: “a memória é a mais épica de todas as faculdades” [9] quebra os limites das fronteiras, sintetiza o ato narrativo, prolonga o eco das vozes, assegura as particularidades, invoca a necessidade da tradição aliada aos ventos da modernidade. Mnemosyne demonstra a articulação das falas, aproximando ocidente e oriente – Marco Polo/Kublai Khan – como musa da narração consagra a peregrinação do herói em constante desarmonia; entre lágrimas e sorrisos, a musa domina as cenas da cidade. Com efeito, Calvino esbarra na figura do narrador benjaminiano, os dois tipos arcaicos de contadores de histórias: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante, ambos tomados pelas experiências vividas evocam o diálogo: o ontem e o hoje. Suas vivências possibilitam o resgate do próprio paisagismo, atitude magistralmente desencadeada pelo romancista italiano.
Em Todas as cidades, a cidade, [10] de Roberto Cordeiro Gomes, o ensaísta faz uma aproximação dos primeiros mestres da arte de narrar (o camponês e o viajante-marinheiro, na perspectiva de Benjamin) com o personagem calviniano:

 O escritor italiano redita este tipo de narrador, na figura de um viajante contumaz, Marco Polo, que retira da experiência de suas andanças o que narra a Kublai Khan que, por sua vez, incorpora ao império – sua própria experiência – aquilo que ouve. A relação de diálogo entre eles patenteia o jogo narrativo que faz as falas circularem. (1994: 43)

Depura-se, dessa feita, a cumplicidade entre os protagonistas – seres expostos às aventuras do verbo: colecionadores de imagens, sonhos, espantos, de lendas, luas, céus, estrelas, a vida rastreada pela memória poética das excursões.
Na realidade, examinando de esguelha, o Polo de Calvino, encontramos marcas do camponês e do marinheiro (como sedentário e andarilho que viveram inúmeras experiências). Ele derrama-se em palavras, converte-se em lâminas, rabiscando as páginas em branco do livro, aberto pela natureza: por outro lado, uma outra marcação narrativa se impõe, a do flâneur – que solitário e angustiado enxerga o inusitado das horas, os defeitos da natureza, as intempéries da vida e multiplica os  seus sentidos, é o alegorista visitando dezenas de cidades e o seu sagrado e profanado chão (Baudelaire em Paris), ornamentando os desejos implícitos e explícitos, enfim, decodificando roteiros. Apenas relembrando, a figura do flâneur está relacionada a da ociosidade do poeta na cidade grande. Ele passeia para passar o tempo, visto que é um desocupado e não há trabalho para ele no capitalismo.
Ad nutum, avistamos Dorotéia, com trilhas e informações plantadas no passado, presente e futuro, os lados desfraldados da escritura humana; do desejo, também desponta Anastácia, cidade enganosa, de poder ambíguo onde o mal e o bem seguem entrelaçados: “Banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas” (CI, 1990: 16), lá, o gozo é súpero e os desejos são saciados. Vamos a Despina, de paredes caiadas, pátios azulejados “cidade de confim entre dois desertos”. (CI, 1990: 21)
Encontramos a metrópole de pedra cinzenta, com as suas miniaturas da cidade ideal, esta é a Fedora, jogo anagramático de fedra, com outras pequeninas Fedoras das esferas de vidro; fazendo um retorno ao desejo, ainda, caímos na feiúra, na armadilha, Zobeide – branca, exposta à luz, ruas enoveladas, um mistério para os recém-chegados. Sim, todo desejo é enigma, extravio das tensões, desmonte das perguntas, sendo assim, diante da expectativa do Khan, Marco Polo declara:

As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa. (CI, 1990: 44)

Seduzido por seu inarticulado informante, Kublai rodopia na sala de espelhos que é o seu império. As metáforas e imagens descrevem-lhe as maravilhas imaginárias conquistadas pela força das batalhas, a mente e o corpo irmanados pela euforia das idéias, luminosa construção do texto. O narrador – flâneur e a dinâmica das ruas; o marinheiro e o significado das ondas, dos portos e suas viagens; o camponês e a fogueira (chama pulsante), pessoas à sua volta. Calvino – Marco Polo, Benjamin – narradores arcaicos e modernos na sucessão espelhada das páginas por escrever. Os subterrâneos da alma ratificando cada gesto a ser escrito. Quantas coisas sob o manto da multidão, farejadas pela leitura do outro, sujeito e objeto inflamados por suas deliberadas vontades:

Fomos aqui confiscados      
aqui
nossa memória tornou-se
alegoria [11]

Episódios longamente descritos com discrição, minudências e surpresas do outro, basta ter paciência e coragem para romper as portas do ilusório e apreender com acuidade crítica a alegoria [12] do flâneur, nos mares-campos do marinheiro-camponês.
Quando a visão nostálgica, referida anteriormente, nasce com As cidades invisíveis, Calvino, alegoricamente, re-trabalha as variantes expressas nas condições de permuta e reformulação de conceitos. Re-vê o tom de passadismo de algumas passagens do livro. O narrador calviniano não é prisioneiro de uma tradição, não se satisfaz somente com o rememorar, não se realiza apenas com as lembranças. Pelo contrário, ao incorporar a unidade do passado, o escritor esmiuça o seu olhar, aplicando-o nas figuras do presente e do futuro. Por esta razão, sua tática narrativa vale-se das viagens, das conversas e dos passeios pelo interior da cidade, todos os seus jogos explicitam-se sem o peso dos psicologismos e filosofismos. As referências estão nas coisas mais recônditas. Resta-nos sentir o sabor da existência, presente no âmago dos desejos (ir)realizados.
Tudo isso somado recupera a inquieta contemplação da Poesia. A proposta de Calvino é o reordenamento das cidades. Um pensador-poeta, como Félix Guattari, reflete em Caosmose, [13] na Restauração da cidade subjetiva, questões que envolvem economia, ecologia, política, sociedade e cultura e discute ao mesmo tempo a reconstrução dos processos ético-políticos (a cultura política) voltada para a valorização do homem. Guattari se embrenha nas megamáquinas (expressão tomada de empréstimo a Lewis Mumford), as imensas cidades com a sua inesgotável capacidade para produzir subjetividades, para elaborar e propor uma mudança global da vida, “uma mutação das mentalidades” (p.174) e de alguma maneira re-territorializar o ser humano, hoje fundamentalmente desterritorializado.
A subjetividade é o reino para a operacionalização de toda e qualquer mudança. Enfatizando o direito à subjetividade, Guattari aspira a “uma ordem objetiva mutante” (p.175) que nasceria do caos atual. A lógica do caos, traduziria uma nova poesia, uma nova arte de viver. Tanto Calvino quanto Guattari aplicam suas emoções nas cidades invisíveis; pois subjetivas e subjetivas porque invisíveis. As atividades humanas reinventando o próprio devir urbano, desde priscas eras – Marco Polo/Kublai Khan e as maravilhas do mundo. Os procedimentos singulares de narradores especiais como Benjamin, Calvino e Guattari constituem uma arquitetura poética alicerçada na produção da subjetividade que deflagra sempre algo por fazer: um olhar, uma cidade, uma escritura.

A CIDADE : UM OLHAR POR FAZER | A fotografia da cidade atada aos nomes corresponde à febre estimulante, à plenitude e rasura das unidades instauradoras do pensamento. Trabalho e parto extinguindo a melancolia, o tempo fixado na palavra, no chamado perturbador do dizer. Além do sensível, a ordem é desembarcar no abrigo que recorta as praças, as ruas, o comércio, as fábricas… a cidadezinha e a metrópole  lado a lado, aparências narcísicas subordinando máquinas e pessoas, os meios concentrados nos fins, miséria e esplendor circulando a esmo, enquanto a vida fervilha.
As cidades invisíveis lembram uma escritura azulada, tessitura de bilro, labirinto, garrafas coloridas, renda, ladrilhos de uma época kitsch, azulejos de um passado longínquo, casarão de fantasmas manifestos.  A obra realiza o trabalho de ligação entre os problemas, visto sob a ótica das diferenças: o viajante conta as suas distantes andanças atreladas à natureza que move os dias atuais, imagens reproduzindo imagens, a ilusão da fotografia, malabarismos do olhar e o abismo sem sentido que as energias absurdas da destruição suscitam. A versão de Calvino protege a cidade do aniquilamento total, valorizando (urbanizando) o afeto, que lentamente pode ser capturado com um mínimo de contemplação: a leveza associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório, nas suas próprias palavras.
Extraordinária narração onde o vento é sempre respeitado, onde tudo principia  com o olhar: invenção e passagem igualmente amadurecidas. Desenhos leves, rápidos, exatos, visíveis e múltiplos da cidade. Estamos circulando no espírito e na poeira das palavras – nomes, interrogações cúmplices do gosto, pois, a obra é a expressão nominal e amorosa dessa ira narrativa –, o mundo ensandecido pela geometria de uma grande herança agressiva: o romance como arte. As cidades e os símbolos: Tamara e o reconhecimento das figuras; Zirma, cidade redundante; Zoé, em todos os pontos, “o lugar da existência indivisível” (CI, 1990: 35); Ipásia e a sua misteriosa língua, presente nas coisas, não nas palavras, a linguagem sempre enganosa e Olívia com as suas metáforas de fuligem: “A mentira não está no discurso, mas nas coisas” (CI, 1990: 60). Não nos esqueçamos jamais de Olívia e o discurso que a descreve.
As aparências ilusórias dos símbolos escondem cidades governadas pela sede das lembranças, alternativas seguras para determinação dos próximos passos. Perder-se nas cidades delgadas: Isaura e o seu movimento celeste, seus mil poços; Zenóbia erguida sobre altíssimas palafitas, embora em terreno seco, com suas casas de bambu e zinco; Armila, cidade inacabada/demolida, caprichosa e enfeitiçante; Sofrônia e as duas meias cidades, uma fixa (de pedra, mármore e cimento), outra provisória (cidade-circo-espetáculo) e Otávia – teia-de-aranha. Achar-se no flagrar das trocas: Eufêmia, onde é possível alternar a memória, Cloé, cidade grande, casta e luxuriosa e Eutrópia:

Os habitantes voltam a recitar as mesmas cenas com atores diferentes, contam as mesmas anedotas com diferentes combinações de palavras; escancaram as bocas alternadamente com bocejos iguais. Única entre todas as cidades do império, Eutrópia permanece idêntica a si mesma. Mercúrio, deus dos volúveis, patrono da cidade, cumpriu esse ambíguo milagre. (CI, 1990: 63)

Eutrópia < Eu + Tropos é, provavelmente, no conjunto das cidades invisíveis a que remete com mais propriedade para uma topografia do eu – o tropos, a figura da cidade calviniana, raridade escorregadia das identidades. E mais adiante, enroscadas aparecem Ercília, com as suas teias de aranha à procura de uma forma e Esmeraldina, cidade aquática, lá, nada se repete. Em Calvino tudo transita, há um êxtase contemplativo, as cidades são (f)olh(e)adas no seu dualismo: sombra-luz, fora-dentro, ordem-tumulto, seco-molhado, diferença-identidade, voz-silêncio. Cada coisa tem o seu duplo e os rumos, aparentemente díspares e desencontrados, armam superfícies fictícias arrebatadoras.
De repente, o Marco Polo de Calvino na sua flânerie [14] atravessa, como bom marinheiro e camponês que é (o homem e o seu duplo, triplo …. n encenações ), as cidades de Anneliese Roos, encantadora personagem do não menos fabuloso Avalovara de Osman Lins. Como Polo, ela geme atingida pelo febrão dos nomes, depressa, lança seu olhar na movimentada história de encontros, percursos, revelações, espirais, quadrados, nascimentos, leões e relógios figurativos. Abel em busca do paraíso e o rosto de Roos – tecido pela imensidão das cores e dos nomes, amplas descobertas de um amor descompassado: Roos e as muitas, muitas, muitas cidades oriundas das circunstâncias coléricas das megamáquinas:

Um deserto quase igual ao das cidades de Roos. Reno, Riga, Roma, Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem todas. Único ser humano: o que me segue sombra. Sagres, Salônia, Sena, Salamanca, Samotrácia, Sodoma, Saragoça, Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. [15]

O narrador confabulando com o silêncio, espécie de Kublai Khan cego diante do esplendor alfabético das cidades. Olhando de viés, a estreita distância que nasce da sombra tardia e da luz que orquestra suas vinganças. Anneliese Roos/Abel na invisibilidade imperial do mercador veneziano. As cidades parideiras de Calvino beijando o infinito e ofertando-nos uma realidade pontilhada pela poesia.
Concomitantemente, à geografia atrativa dos símbolos compartilhados, surge o entusiasmo pela versão plausível e verossímil de que os lugares são fragmentos de viagens imaginárias. Eis o risco da perdição. O escritor italiano realiza a literatura como um sonho dirigido, preceito borgeano para o acabamento das pequenas (grandes) obras-primas, como é o caso de As cidades invisíveis. Contar a história da cidade no mesmo instante em que caminhamos por ela – ecos pretéritos, invenção das horas. De acordo com Hillman: “Há sempre um perigo para a alma se estamos indo apenas para cima, ou seja, se enfatizamos vistas panorâmicas, arranha-céus, e não mantemos as alturas em relação às profundidades”. [16] Calvino, a todo momento, (des)centra seu olhar na tentativa de aprender a cidade alegórica e invisível, em oposição ao absolutamente visível e racional, assim poderá formular novas maneiras para fugir dos labirintos, se assim o quiser.
Por isso as cidades são contínuas: Leônia que se refaz todos os dias, onde os lixeiros são acolhidos como anjos, a metrópole vestida de novo, a excessiva preocupação com o acúmulo, o perigo do lixo, há um frêmito prazer pelo novo; Trude, de casas amarelinhas e verdinhas, um mundo recoberto por uma única Trude, sem começo, nem fim; Procópia e a alegoria dos arranha-céus, homens acavalam-se nos ombros dos outros, fazendo o céu desaparecer; Cecília, ilustre cidade, de espaços misturados, assim diz o pastor de cabras – ela está em todos os lugares e Pentesiléia –uma periferia de si mesma, onde “as malhas da cidade se restringem” (CI, 1990: 142).
Fios contínuos escorrem das cidades ocultas: Olinda, como os troncos das árvores, cresce em círculos concêntricos, aqui se pretende atingir “o coração da cidade” (CI, 1990: 120); Raíssa, onde a vida não é feliz, porém a cidade infeliz contém uma outra feliz que ninguém imagina que exista; Marósia, a cidade dos ratos e das andorinhas, quiçá a grande alegoria do livro, pois, para Marco Polo de Calvino, ambas se transformam com o tempo, há o tempo dos ratos (talvez o nosso) e quem sabe o tempo das andorinhas (a esperança de dias melhores). Na verdade, a liberdade das andorinhas depende exclusivamente dos ratos, um diz o outro e vice-versa. Teodora, depois de enfrentar repetidas invasões e tenebrosas pestes, os homens a humanizaram novamente, a peste dos ratos querendo impor mais um século de sombras e Berenice, cidade injusta, a cidade dos justos está oculta. As relações entre dominadores e dominados são sempre desiguais  e cruéis, o trabalho escravo, sem sentido – germes das futuras metrópoles, as Berenices justa e injusta propõem a alegoria da justiça – ler, de muitas maneiras, o outro-oculto.
Como postula Calvino, o importante é a cautela do jogo, o paciente exercício  do olhar e a postura ética do narrador que deve desconfiar das técnicas meramente racionais impostas pelos homens. Enfim, interessa-lhe averiguar os procedimentos fictícios construídos pela ‘imaginação’ aqui e além e, perseverar na produção de vários sentidos sempre mais generosos para a vida. E, por fim, compreender a cidade superexposta como tão bem o fez Paul Virilio. A superexposição da cidade aflora de sua própria (in)visibilidade. Analisar a cidade-mundo, as metrópoles contínuas e ocultas ultrapassando os limites capengas de uma rendição à máquina. Em O espaço crítico, [17] Virilio capta as simples e complexas aparências da cidade, atentando para as reproduções técnicas das imagens que pecam pela falta de tempo, não duram, não mobilizam o pensamento, arrebentam com o sensível, proíbem os sonhos, aniquilam as emoções, fingem confraternizar, mas impedem o gesto mais elementar do abraço, explodem a visão e esquecem do olhar profundo – humano e ético. A seriação das imagens e sua avalanche de cores não conservam os sentimentos, perdem a historicidade, renegam o passado (o anacronismo nostálgico) – miram-se no futuro, que também é vago-nulo pela própria representação do presente.
Em suma, na cidade superexposta as imagens são despoetizadas, cultuam a rapidez e nesse ritual esquecem de ‘reverenciar’ a sua alma gêmea, a lentidão. Até aonde vai o tempo das imagens contemporâneas? Calvino, Guattari, Virilio … há uma saída, ainda: restaurar a subjetividade das cidades superexpostas e invisíveis. Anneliese Roos e as ruínas do olhar, Abel entre as nuvens:

 em silêncio a Cidade deixa de existir e não me diz seu Nome. Dissolve-se a visão, sim, não me revela seu Nome, sim, mas a procura de seis ou sete anos afinal se define, sei por fim o que devo buscar e contemplar, sendo indispensável que o intente. Vai, Abel, buscar a Cidade: eis incumbência. [18]

Os nomes: Aglaura, cidade apagada-despersonalizada; Leandra com os seus Lares e Penates, deuses protetores; Pirra, cidade imaginada a partir do nome; Clarisse – borboleta saída da mísera Clarisse-crisálida, cidade gloriosa de história atribulada e Irene, “talvez eu só tenha falado de Irene” (CI, 1990:115), quanto mais nos aproximamos dela, mais ela se modifica; e os olhos: Valdrada e as cidades gêmeas vivendo uma para outra; Zemrude e sua forma flexível, que varia segundo o humor de quem a olha; Bauci, cidade aérea com pouquíssimo contato com a terra, a cidade está plantada nas longas pernas do flamingo; Fílide e as suas inúmeras pontes, com seus habitantes andando por linhas em ziguezague e Moriana, “cidades como esta tem um avesso” (CI, 1990: 97). Toda escritura tem o seu avesso, e muitas vezes ele vem sob o signo do silêncio.
Nos aproximamos do fim ou do começo? Não sei, tudo é espiral, estamos entre os mortos e o céu, o primeiro grupo com: Melânia, de inveterados dialogadores, uma cidade-palco de indivíduos atores; Adelma, onde o narrador encontra-se com seus mortos, vê-se como parte deles. As imprevisíveis visões o assustam, tudo lhe mete medo; Eusápia, a que aproveita e evita aflições, a que possui no subsolo uma cópia idêntica a sua cidade dos vivos; Argia, onde no lugar do ar existe terra e Laudômia, mais do que dupla, Laudômia é tripla – uma dos vivos, uma dos mortos e outra dos não-nascidos (a cidade do futuro) das multidões invisíveis. 
No segundo bloco, admiramos: Eudóxia, com a sua urdidura-atapetada (seus detalhes estão no desenho do tapete), a relação entre o tapete de feitura divina (o céu) e a cidade, reflexo do primeiro, como as obras humanas; Bersabéia, uma terrena e outra celeste (cidade-jóia), inferno e céu confrontados; Tecla, a cidade em permanente construção, única saída para se evitar a destruição; Perínzia, que segundo os astrônomos “espelha a harmonia do firmamento” (CI, 1990: 130) e as deformidades humanas trancadas a sete-chaves, a cidade dos monstros, sempre às esconsas e Ândria, construída com tal arte que suas ruas seguem a órbita dos planetas: “Os dias na terra e as noites no céu se espelham” (CI, 1990: 136), cidade e céu desiguais, Ândria permanece imóvel no tempo e os seus habitantes confiam em si mesmos e são prudentes.
Calvino com o seu Marco Polo aperfeiçoa, ao longo de infinitos passeios, sua adorada Veneza. Kublai Khan e seu império em ruínas, a ordem invisível dita os destinos da cidade. Calvino, nessa composição enxadrística, aplica um xeque-mate no puro racionalismo, faz do insignificante peão, a peça sublime tão almejada pelo rei (majestade em frangalhos). Oh Veneza, as outras em você! Calvino e as suas cidades, um olhar por fazer.

Italo Calvino, em momento algum, perde de vista a cidade e os seres humanos, lança mão de um estilo fabular, alegórico, ao recriar histórias com o clássico sabor das antigas aventuras. Marco Polo, em suas missões diplomatas, enumera suas conquistas – num diálogo rápido, certeiro e conseqüente com Kublai Khan (ouvinte-leitor-autor). O Marco Polo de Calvino re-faz a viagem pelo vácuo absoluto do tempo, cada nome é Veneza e Veneza está em todos os olhares: “Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza” (CI, 1990: 82). O aventureiro arrisca, ao traçar narrativas precisas e minuciosas, a linguagem evocativa de outras trilhas, a mente e corpo direcionando as imagens, ao mesmo tempo, que são delineados pelos (re)toques daquilo que concentra o meramente visível.
No fundo, os gestos, as sombras, as luzes, os rostos, as paisagens, as trocas impressas na retina, exploram um modo especial de ver. Calvino retoca a capacidade de escrever através de “uma ética do olhar”, [19] as imagens que se movimentam com a dignidade e a postura de um mundo futuro, à procura do sublime. Benjamin – flâneur – refletindo a Paris de Baudelaire, do mesmo modo que aprecia as imagens do pensamento – da infância em Berlim, até Nápoles, Moscou … Paris – cidade espelho, outra vez Veneza.
A cidade – escrita (migrações de letras, subterrâneos do livro, um olhar por fazer) é banhada pelas coisas do outro, a cidade onde os enredos são peças vivas da poemática respiração. Nessa viagem, quanto ficou por dizer! Porém, entre a partida e a chegada, há sempre os enigmáticos meandros dos espelhos – arredores projetados por um deus profano, chamado amor. As feições da natureza superexposta e da outra invisível compensam a restauração do canto, posto na cidade quando os arquivos mortos se tornam vivos e a sede dos ancestrais devora o universo mágico do presente.
A alegoria calviniana é, basicamente, se assim podemos resumir, a momentânea crueldade dos nomes, o castigo do automatismo e a supremacia prepotente da máquina, observada sob o ângulo emblemático do cristal, a urdidura da chama como raiz da memória, sopro vital para o amanhã. Pois, a chama transforma em cinzas a memória que ressurge como Fênix. Veneza encarna o futuro e o presente de cada cidade que trazemos adormecida em nosso alforje; a ternura da lembrança, a retirada das máscaras, o aparecimento de novas figuras sobre o ser; nas ilhas do outro, somos navegantes de diferentes imagens; nas ilhas do outro, somos navegantes, sonhamos a pátria através de um nome, um nome-abrigo, um ar (in)visível, um vinho que inebria e salva, um nome-brinde à beleza, um sinal silencioso de que:                                   

Toda cidade / nasce grávida e estéril
criança arquetípica / que se dá e nega
pátio de encontros / e de dispersões
…… um bilhete singelo / ao nada [20]

Sim, a cidade é constituída de ruínas e com o frescor das paixões. As cidades invisíveis de Calvino realiza a viagem da incertitude quando embaralha os indícios das verdades pré-concebidas e dos enredos lineares e prontamente inteligíveis. Pode-se afirmar que:

Sua narrativa opera uma negação da lógica positivista, segundo a qual os fatos falam por si revelando significados unívocos e determinados (lógica subjacente à estrutura dos romances policiais) e desconstrói o esquema de pensamento racional que, em nome da verdade e da certeza, reprime a diversidade de sentido. [21]

Dito isso, seguimos o itinerário lacunoso e fragmentário, não dizível das cidades invisíveis na tentativa de enxergar o outro como prolongamento do nosso olhar – num contínuo processo alegórico –, necessário e imprescindível como o próprio ato de respirar.
Dentre as inúmeras maneiras de se falar de uma cidade, esta é apenas uma. Certamente muitas outras existem, mais alegóricas, metafóricas, auráticas e até mesmo científicas, que se mostrem.


BIBLIOGRAFIA

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis.  5 ed. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
___. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
CAMPOS, Sérgio. As iras do dia. Nova Friburgo/RJ: Mundo Manual Edições, 1990.
___. Leitura de cinzas. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1993.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 6 ed. Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras Escolhidas, Vol. I).
BORGES, Jorge Luis. Biblioteca personal (Prólogos). Madrid: Alianza Editorial, 1988.
___. Ficcionario – una antologia de sus textos. (Edición, Introdución, prólogos, notas de Emir Rodrígues Monegal. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.
FRANCO, Renato. Itinenário político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
GAGNEBIN, Jeane Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva/ Campinas, FAPESP: Editora da UNICAMP, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro. Toda as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
GUATARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Claúdia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
GUELFI, Maria Lúcia Fernandes. O Delfim: uma leitura pós-moderna da história. In Veredas 2. Porto/Portugal: Fundação Eng. António de Almeida, 2000. (p. 253-269)
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LINS, Osman. Avalovara. 5 ed. São Paulo:  Cia das Letras, 1995.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Ver o invisível: a ética das imagens. In Ética. 3 ed. Organização de Adauto Novaes. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
POLO, Marco. O livro das maravilhas: a descrição do mundo. 4 ed. (Tradução de Elói Braga Júnior. Porto Alegre: L&PM, 1994.
SUBIRATS, Eduardo. Vanguarda, mídia, metrópoles. Tradução de Nilson Moulim. São Paulo: Nobel, 1993.
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Tradução de Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

NOTAS
1. Referência a CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Em sua primeira conferência, sobre a Leveza, Calvino afirma em forma de quase confissão: “esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem.” P. 15.
2. HILLMAN, 1993:40.
3. Cf. POLO, 1994.
4. Jeanne Marie Gagnebin trabalha o conceito do alegórico em oposição ao simbólico: “Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unicidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa (all-agorein) que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um sentido último”. Simultaneamente, a autora detalha as duas fontes de onde a linguagem alegórica extrai sua exuberância: a tristeza (o luto) e a liberdade lúdica (o jogo). Cf. História e narração em W. Benjamin. São Paulo, Perspectiva/Campinas, FAPESP – Editora da UNICAMP, 1994, p. 45-46).
5. SUBIRATS, 1993: 34.
6. CALVINO, op. cit. p. 86.
7. BORGES, 1988: 68-69.
8. CALVINO, op. cit. p. 83.
9. BENJAMIN, 1993: 210.
10. Neste roteiro poético das cidades, o autor desmonta pedaço por pedaço as histórias dos possíveis territórios imagináveis do homem. Divido em duas partes: I – O Cristal e a Chama (com a presença de Calvino, Benjamin, Borges, Paz e outros) ele realiza um passeio pelas maravilhas da cidade-escrita; II – Suíte Carioca – o Rio de Janeiro é repartido em colantes fragmentos amorosos, a cidade maravilhosa e as cenas mutantes de uma paixão; por ela passeiam Marques Rebelo, João do Rio, Lima Barreto, Mário e Oswaldo de Andrade, Rubem Fonseca, entre tantos. O Rio é uma cidade-espelho-labirinto de signos. O trabalho de Renato Cordeiro Gomes redesenha o espaço urbano através das vivências literárias. Múltipla leitura de um ensaísta bem aparelhado e, sobretudo, sensível ao jogo textual.
11. CAMPOS, 1990: 50.
12. A propósito é importante conferir, A alegoria na modernidade (p. 147-150), um dos tópicos do 5º capítulo, ou como registra o autor, 5º Movimento – as ruínas estão em toda parte. Neste item de sua tese, Renato Franco discute com propriedade e acuidade crítica os significados e a importância da representação alegórica na modernidade, partindo de Benjamin. Rebate e nega, inclusive, abordagens ligeiras e tacanhas emprestadas corriqueiramente ao termo alegoria, visto grosseiramente apenas e, sobretudo, como um despiste político-ideológico. Algo bastante redutor, pois que a alegoria é muito mais do que isso. É um processo e um método de composição dos mais importantes da arte moderna. In Itinerário político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
13. Veja-se GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
14. A flânerie é a maneira encontrada por Calvino de andar pelas narrativas. Como um passeante metropolitano, ele volta no tempo e vê passar diante de seus olhos as cenas das cidades percorridas por Marco Polo.
15. LINS, 1995: 259.
16. HILLMAN, op. cit. 39.
17. veja-se VIRILIO, Paul. O espaço crítico, 1993.
18. LINS, op. cit, 336.
19. PEIXOTO, 1994: 309.
20. CAMPOS, 1993: 24-25.
21. Cf. O ensaio O Delfim: uma leitura pós-moderna da história, de Maria Lúcia Fernandes Guelfi, 1999:255.

*****

LEONTINO FILHO (Brasil, 1961). Poeta e Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Publicou os seguintes livros de poemas: Cidade Íntima (1987/1991/1999), Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993). Autor do ensaio de crítica literária – inédito em livro, intitulado: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos (1997). Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005). Contato: leontinofilho@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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