terça-feira, 1 de março de 2016

LEONTINO FILHO | Máscaras narrativas em combustão


O mundo que venci deu-me um amor

Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume do paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora

E me rumina em cantos de vitória…

Mário Faustino


O estudo da narrativa moderna passa, impreterivelmente, pela discussão dos elementos estruturadores da obra como o problema do enredo, a temporalidade, a espacialidade, as personagens, o narrador – o ponto de vista –, os recursos linguísticos, a situação-ambiente, o uso de figuras de linguagem e o próprio drama mítico em que a narrativa se insere. Todos estes elementos devem ser entendidos como elos de ligação entre os diferentes tipos de discurso literário. À primeira vista, há um imbricamento textual tão profundo na prosa moderna, que a decodificação das identidades de gêneros confunde o analista, pois, o escritor moderno rompe, em definitivo, com a estratificação dos gêneros, proporcionando noções complexas do que seja a escritura literária, já não existem barreiras separando prosa e poesia, a almejada linearidade é bruscamente esfacelada, importa mais trilhar os caminhos da palavra, tornando a linguagem no verdadeiro artesanato, resultado das leituras particulares do mundo.
Para uma melhor compreensão deste universo artístico, onde a palavra se torna personagem crucial, selecionamos duas obras marcantes da moderna ficção brasileira, ressaltando, por sua vez, que as obras analisadas incorporam uma gama enorme de contribuições, desde Machado de Assis com os seus jogos de palavras, suas ironias, sua fina percepção textual indo até Oswald de Andrade com a total fragmentação do discurso, isto no âmbito nacional.  Em se tratando de estrangeiros, a reflexão vai de Henry James e a sua aparente impessoalidade do narrador chegando a James Joyce e a completa desestruturação narrativa. As obras que iremos discutir são: A hora da estrela (1977), último livro publicado em vida por Clarice Lispector e a outra, Um copo de cólera (1978) de Raduan Nassar.
É bom, no entanto, chamarmos a atenção para alguns objetivos que este ensaio pretende alcançar, entre eles: realizar um estudo comparativo entre as diferentes formas discursivas, tendo como paradigmas os romances mencionados acima, observando-se as variadas similitudes temáticas e estilísticas. De igual modo, as divergências de escrituras para a construção e desconstrução da prosa moderna, mostrando num plano dialético os relacionamentos virtuais geradores de sentido, ocasionados no discurso através da fragmentação dos textos – fragmentação, entendida, aqui, como a perda do sentido de totalidade, como o ajuntamento consciente de propostas narrativas que incorporam novas maneiras de apreender e de refletir o mundo. Outro objetivo baseia-se na discussão a respeito dos limites entre a textualização da prosa e da poesia, redimensionando os procedimentos formais que contribuem para a organização da escritura não ortodoxa do modernismo. E, finalmente, aplicar uma postura analítico-crítica, fruto das teorias da Literatura Comparada, aos elementos do modernismo, na trilha da interpretação intertextual, enumerando as características comuns e as diferenças capitais presentes em A hora da estrela e Um copo de cólera.
Podemos afirmar, em síntese, que a modelação fragmentária dos discursos e a formação discursiva dos narradores nortearam as nossas mais prementes indagações, visto que, o itinerário por nós percorrido, numa perspectiva comparativista, deparou-se com o duplo narrador, em Clarice e Raduan. Na primeira, um narrador falseado pela palavra silenciada, cujo perfil esconde mais segredos do que verdades. E, no segundo, a simples troca de papéis como representação no palco da linguagem – o ator passa a palavra à atriz, na realidade, personagens de mesmo feitio e acabamento. Em ambos, tanto em Clarice quanto em Raduan, pode-se conferir que “o sujeito que fala no romance é um homem essencialmente social”, [1] na correta afirmação bakhtiniana.
Por fim, salientamos o caráter de sugestividade deste estudo, pois, a impressão de que sugerimos caminhos para outras interpretações é um dado real, e, dentro de tais limites, dadas as ambições iniciais do trabalho, procuramos realizar este mergulho em textos tão tentadores e cintilantes. A estrela e a cólera como índices da própria procura de si mesmo, o universo de perdição e gozo que simboliza o curso de todas as vidas e de todas as personagens envolvidas com a sua hora.

1 – AS MÁSCARAS TROCADAS: A ESCRITURA POR UM FIO

Antes de penetrarmos nos meandros das obras desse complexo universo estrelar-colérico, é interessante passar em revista os enredos a serem analisados. Pois muito bem, a nossa primeira máscara, A hora da estrela, conta a história da alagoana Macabéa, espécie de retirante, que tenta sobreviver sozinha, tuberculosa, em permanente estado de fome crônica e subempregada no Rio de Janeiro. Tem a sua vida dividida entre os ambientes evocadores do romance naturalista com a sua lógica centrada na fortaleza dos instintos, no determinismo hereditário, na supremacia tirana e feroz do meio – como elemento definidor da personalidade e das ações humanas –, e, no próprio condicionamento das circunstâncias. Todos estes recursos estão bem inseridos nos argumentos romanescos de um Aluísio de Azevedo e de um Adolfo Caminha, entre tantos outros autores. Macabéa é a ‘típica’ personagem que poderia muito bem habitar os ‘sórdidos’ recantos sociais descritos pela literatura de cunho ‘mais científico’, não fosse a habilidade extrema de Clarice Lispector em escantear os argumentos valorativos e moralizantes do romance naturalista. Macabéa mora num quarto com as companheiras Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas, na rua do Acre; ‘frequenta’ um decadente escritório na Rua do Lavradio e passeia, esporadicamente, no cais do porto.
A datilógrafa Macabéa, Maca, tem o seu grande momento ao conhecer Olímpico de Jesus, nordestino, como ela, que procurava ascensão social a qualquer preço – seja do roubo ou do crime de morte. No entanto, o seu namorado (Olímpico) é logo roubado pela colega de escritório, Glória. Por remorso, Glória financia uma consulta para Macabéa com Madama Carlota, ex-prostituta e cafetina convertida em cartomante. Madama Carlota lê nas cartas melhores dias para Macabéa, prevê o seu casamento com um gringo rico o que será o ponta-pé inicial da completa felicidade macabeana. Ironia, ao sair da consulta a datilógrafa-retirante sem rosto é atropelada por um luxuoso Mercedes Benz, dirigido por um gringo. Esta é a hora da estrela de cinema que buscou a sua identidade observando-se no espelho a opaca imagem, que só a morte é capaz de refletir.
Por trás de todas as ‘aventuras’ de Macabéa está a figura majestosa de Rodrigo S. M., narrador-escritor que empreende, tresloucadamente, a busca de sentidos para a existência, mergulhado nas imagens de solidão e aspereza que os caminhos da vida nos oferecem. Rodrigo S. M. se espanta com o espetáculo da palavra, que, contraditoriamente, está atrelado à suprema glória do silêncio. Seu percurso é o da linguagem, viva-voz da memória e da arte. A hora da estrela é antes de tudo paciência.
Um copo de cólera, nossa segunda máscara, é uma novela curta, de trama enxuta, composta por movimentos de grande tensão literária; através de seis pequenos capítulos (‘A chegada’, ‘Na cama’, ‘O levantar’, ‘O banho’, ‘O café da manhã’ e ‘A chegada’) e um longo capítulo, ‘O esporro’, Raduan Nassar desfia a trajetória do ‘lobo solitário’, ele (o anônimo é a tônica da novela) que chega a sua chácara, onde, no portão, a amiga (ela) já o espera. Sobem para o quarto, fazem amor, tomam banho juntos, passam para o salão de café e, em seguida, desentendem-se profundamente. O motivo de discussão é o mais banal possível: ele observa da varanda a devastação que faz um formigueiro na base da cerca-viva. Ele incrimina um dos caseiros (as únicas personagens nomeadas: dona Mariana e seu Antônio, além do cachorro Bingo, vira-lata da chácara e de um casal de coelhos – Quitéria, a parideira e Pituca, o velho e infalível reprodutor), ela, descontente, invoca os princípios humanitários dele, as coisas pioram, mil ofensas de lado-a-lado, quando tudo parece voltar à normalidade, ele a estapeia. Ela, indignada, parte; ele se deixa cair no pátio e chora como uma criança desamparada. É levado para dentro nos braços de seus dois caseiros. A narrativa recomeça com ‘a chegada’ dela, nova condição, novo fôlego. Um copo de cólera é acima de tudo paixão.
Com efeito, as duas narrativas possibilitam a confluência de elementos temáticos semelhantes. Em primeiro lugar, a provável banalidade do assunto, a ‘leveza’ em percorrer cada movimento pacientemente, costurando fio por fio a trama do destino. Depois, a expressão nostálgica do amor que transforma medo em coragem e reconhece a primazia do querer para a continuidade do próprio desejo. Segue-se, a reelaboração das convivências, o universo simbólico da procura como mecanismo de encontrar-se consigo mesmo. E, finalmente, a frequência, nas narrativas, da linguagem como elemento cíclico do texto em permanente construção. Diante de tais obras, somos tentados a outras procuras, a outras compreensões. A revisão de conceitos é um princípio dos grandes livros, a ser perseguido no andamento dos enredos e na proposição ambígua da linguagem literária que deve fugir dos artifícios pseudocientíficos impostos por um tipo de romance que tenta desesperadamente a desambiguização do discurso como forma de garantir a verossimilhança da narrativa. A hora da estrela e Um copo de cólera, desde as experiências mais remotas, busca atingir a transparência do real nas idas e vindas da trama, nos cortes radicais do tempo  e no ‘ocultamento’ espacial, constituindo-se em atrativas viagens nesse labirinto chamado vida.
Todas as coisas, em A hora da estrela, apontam para a fragmentação discursiva: a presença dos dois narradores, a interpolação de vozes, a aspereza dos diálogos (cômicos e trágicos ao mesmo tempo, a encarnação do clown), o aspecto ambíguo da dimensão de cada personagem, a ruptura com a noção tradicional de gêneros (prosa e poesia em permanente diálogo), a complexidade dos espaços em branco (o silêncio como porta para o preenchimento do dito, o não dito modelando atitudes) e, ainda, o chamado “desenredo”. [2] Há, nesta narrativa o processo descontínuo e dilacerante, tanto do autor quanto do leitor. A banalidade do ‘enredo’ provoca ansiedades e recolhimento, a economia da linguagem reside na sua dupla-fala: um falso naturalismo-realismo recobrindo uma escrita extremamente moderna.
Essa dimensão do livro indica que os significados recônditos do texto demoram a emergir, todavia, o rigor da história culmina com a aparição do narrador-escritor travestido de Macabéa, pois o projeto primeiro deste narrador diz respeito ao desnudamento e a captura da consciência da personagem principal. Macabéa ocupa o des-lugar, a sombra do outro. Radicaliza, dessa maneira, a marca social de Rodrigo S. M. que por meio da escritura tenta liberar seus fantasmas, des-conhecendo que a escassez do silêncio também rebate o sofrido exercício da palavra. Tudo é movimento, como bem acentuou Eduardo Portella:

Em Clarice, em A hora da estrela especificamente, os movimentos de Macabéa, os seus mínimos gestos, estão orientados pela sabedoria da paixão.
Macabéa talvez seja a natureza extraviada na cultura da cidade. Os círculos concêntricos da narrativa se intercomunicam, silenciosamente, por intermédio de uma razão afetiva, que também, ou antes de mais nada, se manifesta como experiência do outro. Mas quando essa experiência se radicaliza, o narrador se identifica com o narrado e Macabéa se consagra. (1993:12)

O trajeto de Macabéa pela cidade instaura a comunicabilidade do silêncio depurando o gesto radical do artista que estabelece com os elementos narrados a identidade afetiva que possibilita uma maior aproximação entre as pessoas. Narrador e objeto narrado são consagrados pela história da individuação e da exclusão mútuas.
Um copo de cólera realiza a proeza, entre nós, de desarmar os espíritos mais reacionários, despindo-se de todas as formas preconceituosas, parodiando inversões linguísticas e exteriorizando o patético da vida. A simplicidade do enredo funciona como chamariz, fogueira acesa nas sombras do esquecimento. De um lado, ele e do outro, ela – a mesma sorte e o duplo suplício da paixão. Ele-ela imaginariamente recolocando sonhos no vazio da fala. Mais uma vez, deparamo-nos com a primazia desse silêncio tão falante que faz, refaz, inventa, desinventa, arruma, desarruma, a inalcançável mercadoria de todas as perguntas.  A nudez recomposta de silêncios, a paixão construída com o corpo, o corpo como alegoria maior das tentações, rocha bruta do querer. Ele corpo, ela copo – eles cólera; co(r)po até o limite da fome.
A narrativa de Raduan Nassar é um tambor batido que tem a força de estraçalhar carnes e espatifar espelhos. A tensão do texto é trepidante, selvagem e fingidamente louca, as palavras parecem comandar todas as funções humanas, elas têm pressa. Antes de tudo, misturam harmoniosamente situações. Dominar e transcender as palavras eis o desafio de toda cólera. Um copo de cólera desestrutura e desconcerta referências. Em cada cólera, a marca da sensualidade surge e multiplica a sublimação dos desejos através da eterna descoberta do amor. Em cada cólera, o narrador-protagonista estabelece uma conturbada parceria com o leitor, tornando-o cúmplice de suas armadilhas, pois parece que a fala – o esporro – se realiza via ambiguidade, configurando o verdadeiro rito de passagem dos amantes. O narrador é, também, retirante da vontade e do vazio, seus intervalos silenciosos intensificam as inúmeras situações onde as ameaças, alimentadas pelos instintos, ferem mortalmente a hipocrisia do igual. Interessa o diferente, importa expulsar do plano da paixão a crença piegas em almas gêmeas. Texto singular, Um copo de cólera é antinaturalista por excelência (as evocações naturalistas de A hora da estrela, paradoxalmente, tornam a obra antinaturalista, também). O que possibilita ir mais longe nesse universo literário são as marcações temáticas, estilísticas e temporais bruscamente rompidas a cada investida de uma nova voz enunciadora que parece conhecer todo o drama narrado, dominando-o integralmente, não obstante, às vezes, deixando-se sucumbir frente à interferência da voz da personagem.
O centro das atenções em Um copo de cólera é o discurso, é a justeza do objeto narrado. Ele, o narrador-protagonista diferencia-se pelas marcas de igualdade, pela sua composição fragmentária e pela sua formação discursiva. Ela, narradora cíclica, causa e efeito da escritura, recebe e abre novas maneiras de desempenhar os papéis sociais; o círculo nunca se fecha, por uma questão artística ele está, constantemente, por fazer. Ele e ela são, como Rodrigo S. M. e a sua Macabéa, destroços, cartas de náufragos à espera de uma outra superfície. O jogo está apenas começando, areia quebrando na beira da praia, vento soprando na aridez da terra, chuva deslizando na paisagem; uma estrela, um copo e uma cólera atraindo flor, fruto e ser. Cintilações atávicas da alma no corpo em chamas.

2 – O PERFIL DO AVESSO: CINTILAÇÕES DO OUTRO

Clarice Lispector escolhe Rodrigo S. M., escritor mal sucedido, para narrar a saga de Macabéa. A ideia globalizante que nós, leitores, temos ao ler a história da moça nordestina é a de que Macabéa só possui simulacros de identidade ou só se deixa fotografar de perfil. A característica anti-realista de A hora da estrela é exteriorizada por intermédio da intransividade de Macabéa. Rodrigo S. M. almeja a completa nudez da personagem, sabendo que tal esforço resulta no seu delírio de artista que tenta aproximações humanas entre tipos, aparentemente tão díspares. Daí a observação de que, “a história da história define-se em parte pelo que não é”, entre o melodrama e a literatura de cordel, a estudiosa complementa, dizendo-nos: “A hora da estrela não é nem uma coisa nem outra, mas é certamente uma paródia do melodrama sentimental e lacrimoso”. [3] Sim, Rodrigo S. M., a seu modo, rompe com as estruturas acabadas do melodrama, propondo alternativas, às vezes, lúdicas sobre o próprio ofício de escrever-viver.
É interessante notar que as experiências do narrador-escritor tentam a todo instante proteger Macabéa, porém o destino e a sua fatalidade dão o rumo da prosa. Rodrigo S. M. confunde-se com a sua personagem, pois ele mesmo, personagem desta trama espiralada, desta história intransitiva, deste mergulho no inusitado do textual, não consegue escapar da consciência metafórica personificada pela metonímica do desejo. Tudo, em A hora da estrela está represado pela hesitação dos conflitos, pela preparação do corpo e pela representação das verdades desfeitas. É este ‘direito ao grito’, este ‘lamento de um blue’, é o não poder fazer nada. Ou ainda, como está na poética e enigmática dedicatória, a dupla cumplicidade entre a vida e a escrita, do inacabado movimento das respostas. Sim, A hora da estrela é a ‘saída discreta pela porta dos fundos’. É, em poucas palavras, ficar à vontade dentro da própria pele para compor outras veredas e filmar novas verdades.
A confecção do narrador-escritor é infinitamente tentadora, revela a dualidade das distâncias: a força maior da admiração pelo mais-perto, entremeado pelo próximo movimento, conduz o tempo ao esplendor da procura. Rodrigo S. M. é direto nos seus objetivos, aliado ao tempo, aspira o domínio do seu romance:

A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentei contra os méis hábitos uma história com começo, meio e gran finale seguido de silêncio e de chuva caindo. (Lispector: 1999: 12-13)

Macabéa, nesse processo narrativo, é o sim e o não de Rodrigo S. M. É, também, a sua pergunta melhor formulada, a impossível resposta, a fala do coração, o vazio e o preenchimento da irreconhecível verdade. A melodia sincopada do narrador-escritor renasce no instante da própria respiração. Entregue aos seus fantasmas, ele entrecruza caminhos criando, via fluxo de consciência, um núcleo vivo para a palavra fluida, rebelde e onipotente. Sua obrigação é pura invenção, estrondo (explosão!). O verbo a depurar o fascínio do corpo falante, atravessando todas as barreiras da ausência no embate sistemático contra e a favor do silêncio, só assim, Rodrigo S. M. concebe o seu livro, sempre como uma pergunta por fazer.
Na linha argumentativa aqui formulada, podemos identificar a prosa de Clarice Lispector, narrador-construtor, a partir de agora Narrador 1 (N1) e o seu representante, a sua estrela Rodrigo S. M., narrador-escritor, agora Narrador 2 (N2) como o imbricamento das tendências estetizantes da prosa moderna. O modelo fragmentário, desestruturado e misto da ficção atual, onde o foco narracional é, constantemente, deslocado, provocando uma mistura de significados enriquecedores para o texto, bem como, outras alternativas, mais artísticas e complexas na elaboração de novos ângulos da palavra-escritura. A hora da estrela, com o duplo narrador e a dupla história, enfatiza os componentes que se reúnem e imbricam a falsa fixidez das impressões. É, certamente, uma bem urdida construção poética minada pela opacidade do dizer. Na medida em que se entende e aceita os encargos, Macabéa é o símbolo capital do grande desafio: realizar a vida com total esperança. O funcionamento da esperança para o N2 exibe os dados de um jogo sagrado e profano a um só tempo, seu discurso nos remete à fantasia, ao mundo das histórias infinitas:

É que a esta história falta melodia cantabile. O seu ritmo é às vezes descompassado. E tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir. (Lispector: 1999: 16)

O N2 é puro estremecimento, figuração, abstração da consciência.
Este elo expresso pela abstração da consciência desorienta o duplo narrador, pois a autêntica concentração de palavras do N2 proporciona discordâncias gritantes, entre ele e o N1. Vale ressaltar que, em muitas de suas intervenções, o N1 tenta dar maior elasticidade ao texto, já o N2 marca com a sua fala a hesitação do dizer, propiciando uma redundância por vezes tediosa, que ‘prejudica’ a perspectiva dialógica do texto. A enumeração de pausas, os comentários, a ausência de tensão, o limite do código vazio e a ambiguidade autoral do N2 podem ser evidenciadas por expressões tais como: por que escrevo? (pergunta reiterada diversas vezes), vejo a nordestina, sou ou não sou escritor?, esta história difícil, continuando, continuarei ou continuemos, contarei a história, Muito bem. Voltemos a… Enfim, uma série de questionamentos metafísicos que, em muitos casos, empobrece o ritmo avassalador da narrativa, seja por meio de clichês [4] ou por sequências discursivas que travam o andamento da história. Já o N1 utiliza-se de comentários fascinantes, alternando sentidos e produzindo o efeito de retardamento, tão artisticamente trabalhado, que faz de A hora da estrela um momento de excepcional brilho na literatura brasileira. A fala do N1 manifesta, numa linguagem despojada, a autoconstrução da essencialidade da palavra. Clarice projeta-se no N1 quando afirma-canta-poetiza a sua condição de não-intelectual, a sua disposição de escrever com o corpo, de penetrar na subterrânea condição de simples mortal, de sentir a floração do prazer no hálito quente do silêncio, de investigar o drama amoroso feito névoa úmida das paixões. O N1 de Clarice ilumina-se a si mesmo quando arranca da solidão as asas para os próximos vôos. A verdade do N1 é a poesia, para tanto o N2 – condutor desta alegoria – contorna a beleza da queda, fazendo Macabéa penetrar no reino da morte. Diante da incapacidade de narrar o todo, resta ao N1 montar os fragmentos dispersos do real recolocando-os num outro contexto, constrói-se, assim, muitas histórias, a partir de um mesmo núcleo narrativo. Por isso, diz-se que a alegoria, a fragmentação e a montagem estão intimamente ligadas e dependem da vontade criativa do artista para organizar materiais e fragmentos tão díspares.
Todo esforço de entrelaçamento entre N1 e N2 comunica-se por intermédio da força e da ação dos riscos, escrever é arriscar, rabiscar a vida com as tintas do desejo, com o sangue e as cores do pré-pensamento, escrever é combinar sensações, participar da preciosidade dos horrores, observar o não dito. É, também, violentar a mudez, o oco do nada, escrever é registrar em carne-viva as tentações da fome e do abandono, é ser poesia, como o jogo sedutor de Macabéa e os N1 e N2. Macabéa é uma espécie de onda leve nascida da poesia que surge como economia do verbal. Sintomático para nós é o recado de Ángel Crespo:

Não nos resta, pois, outra saída senão a da verdadeira poesia, dessa sublime mentira em que a verdade se reflete, inapreensível mas inegável, como num espelho mágico e fugidio. (1992: 9)

Sim, a verdade de Macabéa reside no coração da mentira e as referências existenciais do N2 (Rodrigo S. M.) são os delicados frutos da linguagem, linguagem que se quer poética, pois que é invenção, resistência do N1 (Clarice Lispector) absolutamente perto do selvagem segredo da memória – esse sopro de vida mítica, signo da aventura recriadora da história. Tanto Macabéa, auto-descoberta da beleza, quanto o N1 e o N2 estão near to the wild heart of life, todos são imagens e fragmentos do in-expressivo, do neutro vital, do substrato, dos olhos, da comunhão, da consciência transgressora e dos conflitos mais comezinhos, explicitados na figura da nordestina Macabéa.  Para todos, a vida é um grito de horror, entrincheirada por nesgas de esperança. Grito, horror e esperança na vida, desvios da singular cólera temperada pelo sabor dos desencontros.
Em razão disso, da indagação dos narradores e de suas digressões (os seus desvios narrativos), somos tentados a mais perguntas: A coragem de Macabéa conhece ou respeita limites? Até que ponto Olímpico e Glória representam as trevas de Macabéa? A Madama Carlota é uma espécie de travestido-narrador traduzindo o futuro? Madama Carlota é a terceira via de Macabéa? Os N1 e N2 são os intérpretes de Macabéa que se pronunciam na mudez das horas? Macabéa é túnel ou rocha bruta da cólera? O cansaço de Maca é estrela de mil pontas? É azul? Verde? Negro, como a sua exaurida vida? Macabéa é o regresso metafórico? A perdição metonímica? O co(r)po da cólera e do prazer? Ou era apenas uma sensualidade ambulante à procura de carinho?
Insulada e marginalizada, Macabéa faz do presente a sua vida futura, não vive, pois, o momento hodierno. Não obstante, desarticula as situações pretéritas que, por conta do destino, propiciam o seu completo aniquilamento na terra. Macabéa é uma espécie de Baleia das caatingas sonhando com um paraíso repleto de preás.
Por outro lado, a beleza de Macabéa é ser espelho, seu luxo é ser o sim e o não de todas as perguntas, é excluir a alternativa ou. Sua grandeza é demoníaca, pois contorna por si mesma cada atalho, cada anúncio. Macabéa é Marylin Monroe sem o ser, Greta Garbo em sonho trágico.  Tudo em Macabéa vem por exclusão: o sim no não, o não no talvez, o talvez no sim. E o sim na paciência: tristeza e festa do perdão. Túnel e rocha desabusadamente líricos, paradoxalmente obscenos em sua plasticidade. Por vias diversas, Macabéa com a sua duplicidade compactua, a toda hora, com a tentação da cólera, rica e obscura desigualdade do outro – cintilações do avesso, perfil do outro, trocas propositais, sombras fugidias – narrativa inesperada e essencial. Um copo no frio relato das horas. Cólera em contradança, tentações avulsas.

3. A CONTRADANÇA DAS IMAGENS: ESPERANÇAS AVULSAS

Raduan Nassar, com Um copo de cólera, combina os elementos técnica, estilo e sensibilidade literárias para construir uma narrativa múltipla, luminosa e, sobretudo, identificada com o mais elaborado texto artístico. Há todo um fascínio na escritura de Um copo de cólera, fascínio provocado pela pluralidade do dizer, pela coragem de mergulhar no silêncio e pela imaginação repleta de brilhos inesperados. A sensibilidade do escritor revela a sua singular maneira de ver e decodificar o mundo, passando em revista os movimentos mais corriqueiros do ser humano no exato instante em que a comunicação entre as personagens da trama faz-se por intermédio de uma renovada articulação verbal.
O escritor habita os interstícios da linguagem quando sintetiza as variadas questões da vida que permeiam as relações subterrâneas e veladas dos agentes envolvidos na narrativa. Desse modo, vem à tona, o filão existencialista de cunho mais sartreano: exacerbado teor pessimista, visão de mundo decadente, negação calculada da esperança, rejeição dissimulada do nilismo e propensão ao exercício da paixão desregrada. Tudo isso, resguardado pela contenção lírica da palavra. É, exatamente aí, no universo das palavras, que Raduan Nassar processa a combinatória de signos para expressar a sua visão de mundo. O autor elabora uma alegoria [5] desconcertante. A alegoria da solidão e da finitude. A dinâmica alegórica que envolve as personagens de Um copo de cólera é assoberbada por fantasmas interiores, oprimida por resquícios da infância e condicionada pela mutilação existencial que lenta e dolorosamente desintegra o ser fazendo-o perder a sua identidade. Nesse trajeto, de súbito, desaparece a harmonia do amor, elemento que se move por toda a trama feito sombra inconclusa das circunstâncias.
  Como Clarice Lispector, em A hora da estrela, Raduan Nassar busca redefinir a própria língua como elemento principal da narrativa, pois, o narrador-protagonista de Um copo de cólera encontra na modernidade a explicação para todas as coisas. Na trilha de Benjamin ele reafirma o projeto de escrita dos tempos correntes, onde “a modernidade revela-se como sua fatalidade”, [6] seu brusco método de compreender as coisas nas coisas – a materialidade das formas.
Um copo de cólera escandaliza, justamente, pela sua verdade, pela sua absoluta coragem de ser aberto, sempre. Por isso, negação da racionalidade, do movimento linear das palavras, da trajetória do destino e do esmigalhamento da memória ferem, mortalmente, o afeto que se esconde nos dois narradores do texto: o narrador-protagonista (ele-N1) e o narrador-circular (ela-N2). A presença deste segundo narrador é crucial para o texto, o N2 funciona como porta de entrada para as releituras da obra, a trajetória do N1 jamais se completa(rá) sem a intervenção do N2, o círculo compacto intensifica a tensão entre os dois narradores, a história que não se fecha, mas sim, gira em torno das aparências. A profundidade de cada narrador inverte o jogo das máscaras, a ilusão das imagens é a vida sem mentiras: plenitude e carência.
Curiosamente, para tocar o in-expressivo, Raduan desloca os narradores e chama a matéria passional do texto para o seu resumo máximo. As personagens vivas de Um copo de cólera estão dentro de suas existências, no espaço demoníaco dos desejos, almejando o paraíso da pele, dos gestos e dos toques carnais da paixão. Através da densidade da história, as formas narrativas são objetivadas, esta similitude aproxima Raduan de Clarice, dois articuladores de uma nova estética. É a partir desta argumentação que ambos fazem a sua acertada opção pela narrativa elíptica, aquela que foge da literatura lengalenga, verborrágica e tagarela tão a gosto de boa parcela da tradição literária brasileira, sedenta de mistérios detetivescos e que gosta de cultivar litanias açucaradas, espécies de lacrimosas novelas de plantão. A opção de Clarice é, basicamente, pela elipse, Macabéa é a concretização da elipse, ela (Macabéa) é a metonímia ambulante. Assim como as personagens de Um copo de cólera, a dupla ele-ela, subverte o sentimento amoroso equilibrando nas pausas discursivas os dois lados de um tumultuado relacionamento: a masculina inquietude e a feminina praticidade.
Aqui, pode-se contrapor, depois da chegada, da cama, do levantar, do banho e do café da manhã, os dois narradores de Um copo de cólera. Ambos (ele-N1 versus ela-N2) recolhem todo amor para batalha completa, para o incêndio da paixão. Basta retratar cada um dos narradores pelo prisma do outro, senão vejamos: ela-N2 por ele-N1: femeazinha emancipada, pilantra, a filha-da-puta, jornalistinha de merda, donzela, a jovenzinha, a sacana, sua nanica, filhota-da-porca-grande, filha-do-cacete, porra degenerada, titica de tico-tico, um inseto, uma formiga, imbecil, piranha, puta, fascista (sem o saber), filha-do-caralho… fascistinha enrustida. Ufa! Agora, ele-N1 por ela-N2: vigarista, salafra, falsário graduado, metafísico, reles iconoclasta, solene delinquente, fascista/fascistão, louquinho da aldeia, o macho, dogmático, caricato, debochado, seu gorila, subproduto das paixões obscuras, trapaceiro, bicha, canalha, sacana, monstro… broxa. (Explosão!). Esporro maior, impossível.
Os narradores, ele/ela, estão desempenhando seus papéis sociais, o amor é a maior figuração nesse palco, nesse circo – o clown da vida. Ele-N1 ator e ela-N2 atriz, são clowns negados e afirmados pela linguagem, todavia maquiados nas entrelinhas pela assombração do outro. Não há prolixidade narrativa, tudo vem de um jato só, dizer o momento no momento, empreender a viagem na viagem, atirar flechas no silêncio descomunal. Buscar, enfim, o mistério no próprio mistério afastando limites, brincando com os fracassos. Ele e ela de Um copo de cólera nomeiam e designam Rodrigo S. M. e Macabéa, a linguagem dilacerada pelo corpo. Dizer não ao autoritarismo das palavras, ser ator/atriz, Rodrigo S. M./ Clarice/Macabéa para que “no fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva interior (seja) é comumente metade nossa, metade de outrem”. [7] O diálogo que derruba fronteiras e ergue o texto em sua forma mais radical, o entrelaçamento de todas as representações.
Aponta-se, em Um copo de cólera, para a chamada narrativa geométrica, aquela que, na gravidade da linguagem, imprime a marca do novo, o sinal do caótico, do des-estruturado método narrativo. Tal geometria cabe no corpo vivo da palavra, tirando efeitos sorrateiros para uma outra estética, é uma ‘geometria passional’, uma ‘geometria das coníferas’ avançando pela penumbra do sexo – a narrativa geométrica brotando do rigor pouco a pouco apreendido pelo hálito selvagem do gozo:

e me fazendo estender meus pesados sapatos no seu regaço pra que ela, dobrando-se cheia de aplicação, pudesse dar o laço, eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos pra que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo. (Nassar: 2000: 24)

A narrativa geométrica tem cheiro, sabor e plasticidade, escorre por entre os dedos feito fumaça de cigarro, maldosamente sedutora e fatal, embriaguez das formas, modalidade da ternura, respingando humores e repaginando saudades de outras paixões solapadas pelo tempo:

tudo acontecendo num círculo de luz, contraposto com rigor – sem áreas de penumbra – à zona escura dos pecados, sim-sim, não-não, vindo da parte do demônio toda mancha de imprecisão, era pois na infância (na minha), eu não tinha dúvida, que se localizava no mundo das ideias, acabadas, perfeitas, incontestáveis, e que eu agora – na minha confusão – mal vislumbrava através da lembrança (Nassar: 200: 80-81)

Geometria da memória calculada pelo grau de lembranças localizadas na camada lírica das aventuras e pelo número de episódios retidos pela sensibilidade esgarçada do narrador que no círculo de provocantes conflitos traça, com olhos de plena insônia, o caminho de liberdade, de desassossego criativo e de perplexidade em seu delírio passional.
A indagação maior do N1 em oposição ao N2, em Um copo de cólera, sugere-nos uma vertente que tenta banir a racionalidade, tudo é comandado pela sensualidade, tal como Macabéa – este silêncio feito vida, este coração disparado escrevendo nas estrelas, esta ‘fome de ser outro’. A surpresa deles (ele-N1, ela-N2) vem sob o signo do esporro, em razão disso, para a representação de Rodrigo S. M. e Macabéa com a sua brilhante e não menos faminta explosão, eles possuem outros temas comuns eivados de amor, traição, vingança, infidelidade, deslealdade, vulnerabilidade, dor, morte, redenção, esperança, perda; em suma, a essência do nosso espírito. Nos dois textos resvala a explosão das estrelas. Muito acertada é a observação crítica de Eustáquio Gomes: “Um Copo de Cólera é, assim, a crônica de um rancor que irrompe”. Mais adiante, arrematando o seu texto, o referido crítico assinala: “A brutalidade do macho revela-se, afinal, puro desamparo mas também possibilidade de renascimento.” [8]
Um copo de cólera possui este duplo caminho, de amor e ódio, como o trajeto de Macabéa (entre a certeza e a dúvida da própria certeza, negação do sim, afirmação do não), o duplo dirige toda a trama da novela, porém, diferentemente de A hora da estrela onde os narradores se confundem e se completam, onde os narradores demonstram a sua mais ‘leal’ cumplicidade. Em síntese, os narradores têm em Macabéa o seu momento de epifania, já em Um copo de cólera os olhares dos narradores se desencontram, se opõem, os narradores são in-acabados, um começa (ele) e o outro ‘termina’ (ela). O conectivo “e”, de Raduan, articula as falas e as fases da narrativa, exacerbando as lembranças em função do discurso, do dito pelo não dito, este “e” corresponde exatamente ao “sim” inicial e final de Clarice. O “e” de Raduan acentua o embate dramático com a língua, plasma a realidade sem enfeites, aposta no estranhamento das relações, minimiza as confissões – o intimismo –, adultera a tosca familiaridade dos consensos amorosos e investe numa estética seca, com retratos mínimos e flashes rápidos que brotam de um texto conciso ao extremo, todo ele matizado pela absoluta brevidade do relato.
De qualquer forma, parece-nos interessante assinalar que, tanto Clarice quanto Raduan, buscam a circularidade narrativa, invertendo, portanto, o ponto de vista, modulando o foco narracional, interrompendo o texto, dando-lhe maior mobilidade. O texto ganha vida nova, há uma permanente discussão sobre o fazer literário, sobre o papel do escritor e da própria arte (A hora da estrela), bem como sobre as regras do amor (Um copo de cólera e A hora da estrela). A temática dos dois textos encontra-se, exatamente, neste ponto: a busca de sentidos para a existência. Através de conflitos, relações desgastadas e primitivas (no sentido de verdadeiras) os narradores procuram desvendar as indecisões do nostálgico mistério que os atormenta. Desse modo, a aproximação dos romances concretiza novas maneiras de narrar (de construir o texto fictício), os inúmeros re-cortes que aparecem nas escrituras apontam para formas díspares de abordagem textual, ou seja, a obra literária perde todo, ou quase todo, o seu caráter de linearidade, assumindo, em definitivo, o seu aspecto circular, ou mesmo de espiral – infinitas possibilidades de leitura.
Clarice e Raduan, com A hora da estrela e Um copo de cólera, respectivamente, traduzem a hora da cólera. Seus textos solicitam a constante mobilidade do presente, fator determinante dos começos. Para ambos, a literatura é um início contínuo, a linguagem responsabiliza-se pelos meandros temáticos, a essência dos textos está atrelada ao trabalho com a linguagem contida, árdua tarefa de síntese linguística. Em outras palavras, aparentemente banais, as narrativas possuem intricados/instigantes enredos, com a ênfase recaindo, acima de tudo, no tratamento emprestado à personagem protagonista das obras estudadas: a linguagem. Por tudo isso, o diálogo das máscaras ao avesso, possibilita cintilantes imagens na contradança da escritura, levando um resto de esperança no afiado gume da palavra. Explosão!

CONCLUSÃO

O desenvolvimento de uma técnica semelhante, a fragmentária, a causalidade do duplo narrador, o estranhamento da lógica – fio linear estraçalhado pelas duas narrativas estudadas, a passagem temporal rompida, o elemento estranho – a des-ordem figurativa, a superação do lirismo pela aridez interminável da vida (nenhuma forma de piedade consola as personagens), os tecidos textuais desenvolvidos com a mesma habilidade e paixão, e, de resto, a linguagem definindo e instaurando um outro universo – mais denso, rico e singular, a linguagem propondo uma nova ordem, focalizando situações que subvertem significados; em resumo, uma linguagem fundadora, tudo isso contribui para fazer de A hora da estrela e Um copo de cólera obras que expressam uma clara preocupação com o fazer literário: a construção de um conceito ficcional não circunscrito a um gênero apenas. Nos dois casos, os questionamentos postulados recuperam a possibilidade da prosa poética, ou seja, o elemento poético é incorporado alegoricamente às narrativas, dotando-as de uma estrutura textual onde realidade e imaginação plasmam, via focos narrativos distintos, uma novelística inserida, inteligentemente, no presente. Nos romances, o conflito de classes move grande parte de suas ações, o que demonstra a preocupação com uma estética, absolutamente, não convencional herdeira do mais tacanho nacionalismo e fruto de uma mística terceiro-mundista. [9]
Nos textos analisados, percebemos, com muita clareza, a presença de ele-N1 conduzindo o discurso sob o ponto de vista dos fenômenos de duplicação do elemento narrador. Em Um copo de cólera há a divisão do texto em duas partes, na primeira, ao longo dos seis primeiros capítulos pragmáticos e rudes da existência, a sua fala (O esporro, em especial) contamina toda a narrativa com a plena identificação do sujeito, que busca o intercâmbio das ‘coisas nas coisas’, que parte da palavra para a descoberta do mundo, que desdobra a sua personalidade apresentando a cronologia dos ensinamentos repassados pelo amor-ódio, de tal forma que o seu princípio de macho bate frontalmente com o signo do feminismo, atingindo seu ápice na transferência dos códigos humanitários, tal personagem-narrador aprofunda, a sua maneira, as discussões acerca da existência sócio-cultural, elaborando para si, conceitos individualizantes, exclusivistas e, por vezes, reacionários – espelho de uma só face. Antagonicamente, a realidade labiríntica deste narrador encontra em ela-N2 a explicação possível para as suas lacunas. Na segunda e última parte da novela, ela-N2 sacrifica (em apenas um capítulo) todo o seu discurso para re-organizar o in-consciente de ele-N1, pois, enquanto categoria coletiva, a tarefa de inventar a vida, conciliando amor e ódio, abarca opiniões e naturezas distintas. Um copo de cólera, pela sua natureza verbal, reflete, na realidade, dois começos e dois fins, pelo mecanismo de substituição, a inversão das falas determina a convergência fragmentária do texto e concretiza, no plano metafísico, a possibilidade de penetrarmos no silêncio textual seguros de sua riqueza e de seu infinito poder.
Por sua vez, A hora da estrela é um somatório de discursos, de inquietações e de danações, onde as respostas estão nas próximas perguntas e as frases podem tocar, quase magicamente, o universo poético na pessoa de Macabéa. Os dois narradores, o implícito N1 (a própria Clarice) personificando a expansão do êxtase e a explosão do ‘eu’, funde, epifanicamente, a sua fala com a aspereza de Macabéa.  Seu encontro com a personagem, nos bastidores da alma, marca as reflexões sensuais e a provável derivação de um discurso feminino extremamente apaixonado e apaixonante. O N1 age em silêncio, sua direção é a cósmica estrela em busca de sua hora. Já o N2, o explícito Rodrigo S. M., angustia-se com a sua in-capacidade para elaborar, no prosaico movimento da vida, uma narrativa profunda, humana e, além de tudo, poética. No entanto, sem jamais cair na pieguice e no consolador final feliz, tudo em Macabéa, apesar de algumas situações engraçadas, está acobertado pelo véu trágico dos desvalidos, Macabéa é uma estrela desvalida, passiva tanto na vida quanto na morte. Nos dois narradores de A hora da estrela, o elemento des-estruturador ultrapassa as suas potencialidades, visto que a relação entre eles registra o perigoso jogo da narração e da aceitação. Sob certos aspectos, o N1 busca na figura de Macabéa o próprio N2, do mesmo modo o N2 tenta achar o N1 na estrela de Macabéa, ocorre, assim, o suicídio da paixão, a chave da beleza do texto.
A hora da estrela e Um copo de cólera são, por assim dizer, transfiguração do desejo e desligamento das relações amorosas, escritos com a competência e a agudeza dos grandes narradores ou dos chamados escritores “visionários” [10] preocupados com os caminhos de uma nova literatura, onde a meta a ser alcançada é a escritura da vida em forma de eterna sabedoria. Certamente, tanto em Clarice quanto em Raduan, “o discurso concretiza a imagem, configura a alteridade. De tal modo a sustenta que poderíamos parafrasear Roland Barthes dizendo ‘E como ver-se a não ser comparando-se?’”. [11] Nessa direção, seguimos. Redimensionamos olhares e propomos um brinde à poesia. Quando as identidades e diferenças, como imagens refletidas no espelho do corpo-alma, permitem a nudez do sonho, só nos resta bendizer o dia que nasce, a madrugada que como música vibra e erguer um copo de estrela na hora da cólera. Explosão de máscaras eróticas, de variegados quilates: compulsivo, animalesco, instintivo, realizável, colérico ou reprimido.  Cada uma delas com a sua dose de fragilização carrega a culpa atávica dos desencontros e perpetua na gramática íntima dos amantes a transitoriedade possessiva do amor.

NOTAS
1. Veja-se BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1990, p. 135.
2. Cf. o ensaio de Eduardo Portella, Identidade e diferença na terceira margem. In Revista Terceira Margem. Pós-Graduação em Letras da UFRJ, Ano I, n. 1, 1993. Na página 13, tomando Guimarães Rosa como paradigma, o autor refere-se ao ‘desenredo’ como sinal capaz de desfazer a instituição, a convenção literária para possibilitar a eclosão da linguagem.
3. OLIVEIRA, Solange Ribeiro. Clarice Lispector e o repúdio do exotismo em A hora da estrela. In Anais do 1º e 2º Simpósios de Literatura Comparada, volume 2. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1987. Organização de SOUZA, Eneida M. e PINTO, Júlio C. M.
4. No ótimo ensaio de Jorge Wanderley, Sobre A hora da estrela, de Clarice Lispector: patamares do jogo ficcional, o autor discute, entre muitos tópicos, a presença do kitsch na boca do narrador. In Arquivo/Ensaio. São Paulo: EDUSP, 1994.
5. Cf. A alegoria na modernidade (p. 147-150), um dos tópicos do 5º capítulo, ou como registra o autor, 5º Movimento – as ruínas estão em toda parte. Neste item de sua tese, Renato Franco discute com propriedade e acuidade crítica os significados e a importância da representação alegórica na modernidade, partindo de Benjamin. Rebate e nega, inclusive, abordagens ligeiras e tacanhas emprestadas corriqueiramente ao termo alegoria, visto grosseiramente apenas e, sobretudo, como um despiste político-ideológico. Algo bastante redutor, pois que a alegoria é muito mais do que isso. É um processo e um método de composição dos mais importantes da arte moderna. In Itinerário político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
6. Referência a BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 27. Antes, Benjamin afirma que “a modernidade caracteriza uma época; caracteriza simultaneamente a força que age nesta época e que faz que ela seja parecida com a Antiguidade”. P. 17.
7. BAKHTIN, M. Op. cit. n. 1, p. 145.
8. GOMES, 1988: 41/45, respectivamente.
9. Ver a propósito o artigo Existe uma estética do terceiro mundo? (p. 127-128), de Roberto Schwarz inserido no seu livro Que horas são?
10. De acordo com o crítico Fábio Lucas, “um grupo de escritores, no após-guerra distanciou-se da preocupação de transcrever meramente a realidade social, cujo perfil de injustiça e violência vem sendo apontado por várias gerações”. Entre esses ‘visionários, o crítico cita Murilo Rubião, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Autran Dourado. In Do barroco ao moderno, p. 105. Poderíamos acrescentar a essa confraria o Raduan Nassar.
11. CARVALHAL, Tania Franco. Olhar a América: a prática comparativista. In Revista Terceira Margem. Ano I, n. 1, 1993, p. 62.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikail. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). 2 ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et alii.  São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1990.
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Tradução de Heindrun Krieger Mendes da Silva, Arlete de Brito e Tânia Jatobá. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
CARVALHAL, Tania Franco. Olhar a América: a prática comparativista. In Revista Terceira Margem. Rio de janeiro: UFRJ, Ano I, n. 1, 1993.
CRESPO, Ángel. A mentira verídica. Tradução de Artur Guerra. Lisboa: Editorial Teorema, 1992.
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
GOMES, Eustáquio. Ensaios mínimos. Campinas: Pontes/UNICAMP, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LUCAS, Fábio. Do barroco ao moderno. São Paulo: Ática, 1989.
NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. 5 ed. São Paulo:  Companhia das Letras 1992.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Clarice Lispector e o repúdio ao exotismo em A hora da estrela. In Anais do 1o e 2o simpósios de literatura comparada. Belo Horizonte: UFMG, 1987.
PORTELLA, Eduardo. Identidade e diferença na terceira margem. In Revista Terceira Margem. Rio de Janeiro: UFRJ, Ano 1, n.1, 1993.
SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.                                           



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Leontino Filho (1961). Poeta e Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Publicou os seguintes livros de poemas: Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999); Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993). Autor do ensaio de crítica literária – inédito em livro, intitulado: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos (Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, 1997). Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005). Contato: leontinofilho@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Wega Nery (Brasil), artista convidada desta edição de ARC.






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