terça-feira, 1 de março de 2016

LÊDO IVO | A vida misteriosa do romancista Cornelio Penna


A casa onde reside Cornelio Penna, em Laranjeiras, dá frente para a rua e, com a sua alta porta de madeira pintada de escuro, cor de bronze antigo, lembra logo um pequeno convento. Para essa impressão, muito contribui o estar sempre de janelas cerradas, bem como o seu ar de recolhimento e de silêncio, no meio das outras residências ruidosas e muito abertas. O grande vitral que nos surge logo aos olhos, com duas figuras graves, de olhar sereno, aumenta a sensação de paz e de longitude, que os móveis sombrios, os papéis de cores discretas, a grande quantidade de quadros de pinturas de tons velados e os enormes retratos de família ainda mais acentuam. Não é uma casa mobiliada com móveis antigos, é todo um ambiente que vive tranquilo, um pouco sonolento, indiferente ao que se passa lá fora, e parece imutável. Sabíamos que esta era a nova residência de Cornelio Penna, pois fôramos procurá-lo no bairro de Botafogo, mas era impossível acreditar que aqueles sofás, aqueles tapetes, aqueles móveis preciosos de tartaruga e bronze tivessem vindo para onde estavam há poucos anos, carregados aos trambolhões pelas ruas… Ali deviam estar há muito tempo, colocados por mãos que já foram devoradas pela morte, e seria um crime retirá-los de seus lugares.

– Nasci em Petrópolis – começa Cornelio Penna – mas meu pai, o Doutor Manuel Camilo de Oliveira Penna, nasceu na fazenda do Jirau, que é ainda hoje a sede da mineração da Itabira Iron, depois Companhia Vale do Rio Doce, no município de Itabira do Mato Dentro, em Minas Gerais, e minha mãe, Dona Francisca de Paula Marcondes de Oliveira Penna, nasceu na Fazenda do Cortiço, município de Sapucaia, no Estado do Rio. Era esta uma das fazendas pioneiras do cultivo do café e, depois, de criação do zebu no Brasil. Minha avó materna foi residir em Paris e meu pai foi fazer especialização na Sorbonne, pois era médico, e aí conheceu a futura esposa. Casados, vieram para o Brasil. Aqui residiam ora no Rio, na Praia de Botafogo, esquina da Rua Carlota, em uma casa que foi derrubada (até hoje nada se construiu no lugar), em Itabira do Mato Dentro e em Petrópolis, onde nasci, em uma casa que ainda existe no Morim. Quando eu tinha quase dois anos, em 1898, meu pai faleceu, e fomos, minha mãe e meus quatro irmãos mais velhos, para Pindamonhangaba, terra da gente Marcondes, de minha família materna, onde ficamos um ano e, finalmente, para Campinas, onde moramos dez anos.
Em Campinas, onde existe a nossa mais bela catedral, fiz meu curso primário em uma escolinha adorável, em um velho casarão do Largo de Santa Cruz, e nunca me esquecerei de Dona Alda Amaral, minha primeira professora oficial – digo oficial, porque aprendi as primeiras letras com minha única irmã, a Babi (Bárbara), que me ensinou a ler por um sistema muito curioso. Quando fui para escola, mandaram-me ler, e li com facilidade e até expressão… E fui mandado para o terceiro ano.
Como, porém, não soubesse escrever, voltei para o meu lugar. A professora veio a descobrir que eu lia romances de Alexandre Dumas e Camilo Castelo Branco.
– Ah! Eu adorava Camilo Castelo Branco. Li dos oito aos 12 ou 13 anos todos os seus romances, mas lia uma e dez vezes o mesmo livro. Lembro-me que Novelas do Minho eu reli tantas vezes que, se não fosse a minha memória miserável, saberia todas de cor. Mas uma recordação desse tempo, que me ficou como um sonho, foi quando ganhei meus primeiros vinte mil-réis, e comprei na Casa Genoud, que já não existe mais, as Duas Dianas, de Alexandre Dumas, em edição de couro. Aliás, essa foi a minha primeira e última manifestação de bibliofilia, porque nunca mais comprei edição de luxo, e até hoje considero o livro como utensílio, para ser fortemente manuseado.
– Creio que foi Camilo que me fez triste o resto da vida, pois era uma criança solitária, inquieta, mas só interiormente, que não sabia brincar, e passava a maior parte de meu tempo em duas salas vazias, com os brinquedos diante de mim, a imaginar o que devia se passar com eles… Tive um boneco alemão que foi o príncipe encantado mais cheio de aventuras. imaginadas, e fiz muitas viagens em um barco que era apenas um mastro com um pano branco preso.

Insisto sobre os primeiros livros e Cornelio Penna continua:

– Lia tudo o que vinha às mãos. Desde os folhetins que entregavam na porta até livros fora do meu alcance de criança, e, como tinha aprendido um pouco de francês durante as aulas de minha irmã, que estudava com um professor particular, lia também os livros franceses que encontrava, principalmente os da Bonne Presse de Paris e o Noel, as Lectures pour Tous, de mistura com Nick Carter, Sherlock Holmes, Tico-Tico, os rodapés do jornal O São Paulo, José de Alencar, Pérez Escrich, os Irmãos Grimm, Feuillet, Alexandre Dumas, Condessa de Ségur, 

Ohnet, Cônego Achmid, Regnier e tantos outros… Um dia li Quincas Borba e fiquei trêmulo, comovidíssimo, certo de que era louco também. Essa suspeita de loucura acompanhou-me até bem poucos anos e, afinal, tive que me render à evidência e me resignar a ser uma pessoa inteiramente sensata.

Foi em Campinas que escrevi o meu primeiro romance, cuja heroína era uma princesa da Casa dos Hoenstauffen e habitava um castelo situado “em um dos altos píncaros de uma altíssima montanha”. Esse romance foi abandonado porque descobri que era pintor, com onze anos.
– Onde eu fiz meu curso secundário? Foi no Ginásio Culto à Ciência, de Campinas, onde me matriculei em 1910, e estou convencido de que era um excelente estabelecimento de ensino. Lembro-me do Sr. Jean Keating, professor de francês, que eu acreditava ir a Paris todos os anos para aperfeiçoar sua pronúncia. O de português era o Sr. Américo de Moura, que foi um grande amigo para mim, e me considerava um ótimo aluno, sem saber que eu não era capaz de decorar uma regra de gramática, nem talvez conjugar um verbo mais difícil. Geografia, cujo professor era o Sr. Gustavo Enge, História, e, coisa que até hoje não consegui me explicar, Trigonometria eram minhas matérias prediletas. Vivia um pouco afastado dos colegas, sem amigos, mas já nesse tempo a vida me ensinara rudemente os seus perigos, pois aos dez anos feri a vista direita, e perdi toda a visão de um olho, e daí o meu martírio de criança, proibido de ler, e ouvindo através da porta de meu quarto, a recomendação ansiosa: “Apague a luz, que você fica cego…”.
Mas eu lia até duas e três horas da manhã, sempre dentro da desordem costumeira, e, aos 15 anos, quando terminei o quarto ano ginasial, fomos para São Paulo, onde, de 1914 a 1918, devia cursar a Faculdade de Direito. Já então eu tinha descoberto os russos e vivia unicamente entre os heróis de Dostoiévski, de Puchkin, de Gorki, Gontcharov, Tolstoi, Leskov e tantos outros, e, ao mesmo tempo, comecei a só me vestir de preto ou de escuro. Sentia-me profundamente infeliz, e gostava muito de discutir sobre os destinos finais do homem, mas continuava certo de que era pintor.
Um dia, alguns amigos me pediram que escrevesse no jornal que Jefferson Ávila, Luís Filipe Rangel e Getúlio Paula Santos tinham fundado. Escrevi a primeira alegoria que foi julgada importante, e até imitada… e daí a dúvida em que fiquei, se era pintor ou escritor, por muitos anos.
Colaborei em todos os números de Floreal e estava quase convencido de que meu destino era a literatura. Dos meus quase duzentos colegas lembro-me de muito poucos, pois não conseguia me fazer aceitar por eles, e hoje vejo como tinham razão: eu devia ser incrivelmente aborrecido com a minha intensa literatura, que não me deixava viver simplesmente, como todos os rapazes de minha idade, pois não podia separar a minha vida imaginária, presidida pela desgraça dos fatos, da vida de estudante de Direito. Não posso compreender como consegui passar todos os anos, é verdade que com as notas mais baixas de minha turma, alcancei o diploma de bacharel. Mas, mesmo assim, levei uns vinte e muitos anos certo de que tinha sido reprovado no exame final, pelo Professor Cardoso de Melo Neto, que era a minha bête noire… Há bem pouco tempo foi que verifiquei que tinha sido aprovado na matéria dele, e mandei vir o meu diploma…
– Quando vim para o Rio, em 1919, com a minha carreira escolhida, resolvi pôr em prática a minha vocação para o martírio. Entrei para a imprensa… Depois de breve estada em dois pequenos jornais, Alberto Figueiredo Pimentel II me chamou para O Jornal, onde trabalhei cinco anos, tendo saído e voltado a trabalhar outras tantas cinco vezes. Foi uma experiência dolorosa, pois vi bem de perto como teria sucumbido no mare magnum da agitação jornalística qualquer coisa de secreto que havia em mim e que não me teria sido possível salvar na luta e na confusão que era o jornalismo. Só os que nascem vencedores, só as almas fortes, só os que sabem dar e nadar não se afogam nestas ondas muito confusas para mim. Um dia publiquei um desenho no suplemento do jornal e tive a surpresa de ver que fora aceito. Mandei alguns quadros para o Salão da Primavera, o primeiro que se organizou e deram-me uma medalha de bronze. Vários desenhos meus foram publicados no O Jornal e concorri a todos os salões da Primavera, e uma vez ao de Belas Artes, onde julgaram que se tratava de um pintor mexicano…
Já animado com o que me diziam alguns amigos, resolvi fazer uma exposição individual, o que realizei graças ao espírito empreendedor de Dona Nini Gronau e do Sr. Teodoro Heubergerm, que, com o patrocínio do Ministro da Alemanha em nosso país, o Sr. Hubert Knipping, fizeram tudo para que esse desejo se tornasse uma realidade. Em 1928, foi inaugurada minha única exposição, e consegui vender alguns quadros, tendo sido um deles cedido a prestações a um funcionário de um banco estrangeiro que me mandou propor esse curioso negócio…
– O catálogo dos quadros foi prefaciado por Augusto Frederico Schmidt, e, entre outras manifestações de agrado que tive, nessa ocasião, fizeram-me um convite para levar a exposição a Buenos Aires, a bordo do navio estrangeiro que inaugurava então uma linha de navegação de longo curso, para permanecer na capital argentina durante vinte dias, tudo à custa da empresa. Recusei, e pouco tempo depois, tendo desenhado um quadro que chamei Anjos Combatentes, verifiquei, com tristeza, que não era pintor, nem desenhista, nem ilustrador, apesar de ter feito capas e ilustrações para livros de Moacir de Almeida, Arnaldo Tabaiá, Rubey Wanderley e outros…
– Por quê? Porque fazia literatura desenhada… Minha intenção primitiva, na pintura, era significar alguma coisa, criando uma linguagem que falasse longamente ao espírito, mesmo depois de esquecida a forma, o trabalho manual, a representação em cores e linhas. O quadro, para a minha convicção daqueles tempos, devia ser um mundo independente, sem limites na sua realização, e a ideia que representasse devia ter uma duração indefinida, sem nunca escravizar-se à contemplação. Quem visse um quadro, devia vê-lo para sempre, e sua memória não seria estática, visual, mas sim dinâmica, criadora, projetando-se no futuro com a própria vida daquele que o trazia em seu espírito, e não unicamente nos olhos. Convenci-me de que não seria possível conseguir isso, e eu mesmo achei que tudo que fizera não passava de literatura pintada, uma das coisas mais horríveis que se pode imaginar. Os quadros que ainda tenho comigo estão aqui no desvão da escada, e chamo a este local o “necrotério”, mas fique certo de que não reconheço os mortos que aí estão recolhidos.

Fomos ver o “necrotério” e, presos às paredes da escada longa e sinuosa que leva ao segundo pavimento da casa do romancista, lá vimos os quadros que tão comentados foram, há anos, com suas linhas atormentadas, bizarras, de um colorido ainda vivíssimo e estranho.

– Não pintei mais – continuou o escritor, sem o menor sinal de emoção na voz. Parecia falar de alguém, indiferente, morto há vinte anos. – Acabou-se, enfim, a dúvida e, se não me convenci de todo que sou escritor, pelo menos estou certo de que não sou pintor.
– Como lhe contei, meus pais foram para Itabira do Mato Dentro, e eu estive lá um ano. Mais tarde, em 1917, fui assistir à morte de minha avó paterna, a dona do Jirau, da gigantesca jazida de ferro, da mineração do Major Paulo José de Sousa, que há século e meio a explorava, manufaturando o ferro colhido com processos considerados os mais adiantados da época, e lá estive dois meses. Depois, em 1937 e 1939, lá voltei por três ou quatro dias. Mas a vida da cidade, o espírito belo e sombrio de seus habitantes, as histórias de impressionante força de caráter, de invencível coragem no drama que tudo lá representa, tinham ficado gravadas em meu cérebro e em meu coração de tal forma, toda minha vida, que só pude me libertar de sua obsessão escrevendo. Pedi a muitos escritores que o fizessem, que se voltassem para o tesouro que representava a alma dos itabiranos, mas não consegui interessar a nenhum deles, e assim foi que escrevi Fronteira, que consegui publicar em 1935, e que representou para mim apenas um desabafo, uma confidência, ou melhor, uma confissão pública, a compreensão de Itabira.

Pergunto a Cornelio Penna sobre a marcha de seu espírito, sobre a profunda influência da religião sobre sua vida, que se modificou inteiramente, passando de uma espécie de “fauvismo” para o mais completo isolamento literário que já se observou entre nós.

– É um ponto que não gosto de tocar – respondeu-me ele, fitando-nos com seriedade, esquecido já da cordialidade que manifestara até ali, tomando como uma brincadeira a nossa entrevista. – Aliás, quero dizer desde já que acho um erro, e erro grotesco, essa curiosidade de conhecer o autor em sua vida interior, sem ser pelos seus livros. A mim não me interessam absolutamente fatos da existência dos escritores que leio com mais frequência, e tenho por sistema não ler nunca biografias, nem, e principalmente, as autobiografias e os manifestos de orientação política ou religiosa dos romancistas. Tudo o que deve persistir deles, em minha opinião, é somente sua obra de ficção. Viverá só em seus personagens. Como disse em um artigo que escrevi há muitos anos, deixemos apodrecer em paz os corpos dos nossos autores.
– Mas – retrucou a uma observação minha – esse é o meu modo de ver e não vejo mal algum em contar-lhe que, em toda a minha vida, senti ao meu lado uma presença que não sabia ver nem ouvir, mas que me trazia em perpétua angústia na mais inquieta insatisfação de mim mesmo. Cada ano, cada mês, cada dia, cada hora que se passava, representava um combate minucioso de minutos que se travava no fundo de minha alma, sem que eu soubesse dizer como se chamavam as forças em luta. Imaginava que era a lealdade, o amor à verdade, à justiça, à solidariedade humana, que se revoltavam dentro de mim, e que o primeiro vencido era eu mesmo, mas depois de muitos anos, de tão cansado, de tão vencido, comecei a compreender, e já não sou tão absurdamente infeliz como o era em mocinho, por exemplo.

– Mas – pergunto – qual é a solução que propõe para todos os homens?

– Chegamos a uma época – disse Cornelio Penna, olhando para a janela, para lá fora – em que todos os homens devem comparecer “voluntariamente” perante Deus. Desse contato sairá a salvação do mundo, porque estou convencido de que as soluções individuais é que determinarão o aparecimento das soluções gerais. Não é a humanidade que está errada, é o homem. Mas, voltando aos tempos de rapaz, nessa época, fui a Campos do Jordão, à fazenda de minha prima e madrinha. À minha frente caminhavam devagar, montados em seus cavalos, meu tio, que representava para mim uma grande beleza moral, e um velho amigo e parente, ambos com mais de setenta anos. De repente vejo os dois reterem os animais e, voltando para mim os rostos onde flutuavam as barbas brancas, perguntavam-me: “Você fez vinte anos?” E diante de minha resposta, entreolharam-se e murmuraram maravilhados: “Vinte anos… vinte anos!” Quando prosseguiram, eu os acompanhei com o coração sufocado por um amargor incomportável. Sentia sobre meus ombros o peso dos vinte unos, e sabia que por toda minha vida sentiria aquela angústia que não dependia de seu número.
– Um escritor muito lido – continua Cornelio Penna –, quando fui a Itabira em 1939, perguntou-me se ia colher material, se era o mesmo filão que ia explorar… Ri-me muito dessa ideia, e fui a Minas com esse espinho cravado em meu espírito, ainda mais que um jornal de Belo Horizonte disse que eu ia à procura de documentos humanos. Fiz um grande esforço para libertar-me do ridículo, pude viver lá momentos intensos e senti de novo toda a magia daquela gente, que representa para mim a alma livre do Brasil, poderosa e escondida na montanha. Não trouxe notas em meus cadernos de viagem, mas trouxe a vibração, o nexo espesso, surdo, das horas que vivera, e que faziam com que sentisse necessidade de escrever. E daí a publicação de Dois Romances de Nico Horta. Mas então vieram anos negros em minha vida e, finalmente, tive que enfrentar a maior escuridão que os pobres seres humanos podem suportar. Consegui vencer, ou melhor, ultrapassar esse vácuo que se abria diante de mim, e agora deve ser publicado muito breve o livro Repouso, que é ainda um passo adiante, esforço a mais.

Nesse instante, a mulher de Cornelio Penna entrou na sala onde estávamos. Fomos ver algumas das inúmeras peças antigas que guarnecem a esquisita casa, onde nem sequer falta um verdadeiro esconderijo para conspiradores, inteiramente disfarçado pelo terraço que liga os dois corpos da construção, que parece muito antiga, pelo seu feitio tumultuário e ilógico.
– A marca de Itabira do Mato Dentro lhe ficou tão gravada. Mas… e São Paulo? E as fazendas de café?

– Vou contar-lhe uma coisa curiosa. Curiosa para mim, bem entendido, retificou logo o nosso entrevistado.

E vi que estávamos parados diante de um retrato que representava uma menina, de vestido de brocado branco, estendida em seu bercinho, muito branca com uma coroa de rosas também brancas cingida na cabeça. Era uma sua tia, falecida em 1852, que tinha sido retratada, já morta, na Fazenda do Cortiço, em Porto Novo.

– Escrevi um capítulo para o Repouso, antecipadamente, e tinha perto de mim este retrato. Quando reuni depois todos os capítulos, ele se destacou dos outros, inteiramente diferente, com outro ambiente, com outra alma. Era a fazenda de café que se fazia ouvir, com sua voz murmurejante, onde o pranto dos escravos se mistura com a alegria da riqueza dominadora em marcha. E tive que excluí-lo, e guardá-lo, mas não me foi possível conter tudo que aflorou em minha imaginação.
Os velhos momentos vividos em Pindamonhangaba, o sangue materno, as recordações, os sentimentos que me tinham embalado, sobrepujados, mas não vencidos pela força sobre-humana de Itabira, vieram à tona, e vou escrever outro livro, que se chamará simplesmente A Menina Morta.

Enquanto subíamos as escadas complicadas do esconderijo e saíamos no terraço, com as clássicas estátuas de Santo Antônio do Porto em seus pilares, perguntamos de repente:
– Por que não frequenta os meios literários, conforme todos fazem notar, quando escrevem a seu respeito?

– Porque não sou literato – responde-me, rindo, Cornelio Penna. – Não se pode imaginar o verdadeiro horror que tenho de viver artificialmente, de criar sem sentir um personagem, e depois ficar prisioneiro dele, e ter de tomar atitudes literárias, de viver literariamente. Não me cabe esse papel e não sei representá-lo, e fico humilhado quando me prendo a dizer coisas artísticas… Vivo apenas a minha vida, e acho tão difícil, tão complicado o vivê-la, já me sinto tão cansado, só com isso, que o isolamento para mim é um refúgio e uma necessidade.

– Quais são os autores que prefere, quais os que exerceram maior influência sobre a sua formação literária?

– Não posso dizer que tenha uma formação literária. Tenho lido, conforme já disse, sem ordem, sem método, sem organizar, e desajudado por uma memória deplorável, e continuo sempre a ler ao acaso, e acho que não modificarei mais esse modo de viver. Agora, por exemplo, que tinha resolvido só ler os modernos romancistas portugueses, e não imagina que encontros maravilhosos tenho tido! Leio, ao mesmo tempo, livros inteiramente diferentes… Mas Portugal representa para mim um grande sonho e tenho vivido lá, em imaginação, talvez melhor do que se fosse, realmente, àquele país. Estão aqui nesta prateleira, perto de cento e cinquenta romances de moços portugueses, e todos de uma vitalidade soberba, e neles fervilha a vida desse povo, e deles se desprende um perfume novo e sadio, uma força que se projeta para a frente, magnífica. É claro que, como nos modernos franceses e de outros países, como agora esses livros que nos vêm da Islândia, encontramos autores que nos fazem vibrar tão intensamente, uns mais do que outros, mas não tenho uma predileção, uma orientação que me prenda, que possa dizer ter-me influenciado marcadamente. Não consigo sistematizar nada, não ultrapasso nunca os limites da erudição, e assim só posso falar de meu maior ou menor gosto por este ou aquele livro, e assim mesmo no momento em que os estou lendo… Vou contar uma coisa que me sucede com frequência. Vou a uma livraria, vejo um livro, acho que deve ser interessante, compro-o e trago-o para minha casa. Leio o livro, muitas vezes acho que justificou a sua compra, pois é realmente bom, e depois vou pô-lo na estante. Lá está outro exemplar do mesmo livro, comprado tempos antes, com sinais iniludíveis de ter sido lido por mim, pois está enrugado, mostrando que foi dobrado ao meio.

Tínhamos voltado, sem o sentir, para a sala dos livros, que agora estava iluminada apenas pela luz indecisa da tarde, e era preciso terminar. Atrás dos vidros, que despediam reflexos, eu via as lombadas que se enfileiravam, amigas, sempre prontas a revelar o seu segredo, solícitas para aqueles que precisam de sonho e de evasão…
– E o seu novo livro?

– Sobre esse assunto – responde-me Cornelio Penna – o que tinha a dizer, já o disse no livro, pois, quando termino um trabalho, já nada mais tenho a falar sobre ele. Creio, até, que já me esqueci de que se trata. Mas é a mesma vida, com seu sofrimento, com sua procura sem fim, com suas lutas sem vitórias…



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Lêdo Ivo (1924-2012). Poeta, narrador, ensaísta. Página ilustrada com obras de Wega Nery (Brasil), artista convidada desta edição de ARC.






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