A questão, cujo nexo não se faz de
imediato, era apenas mais um enigma de Arthur Bispo do Rosário. Qualquer matiz
como resposta satisfazia ao velho solitário, e a porta de entrada para seu
universo de ícones elaborados e em organização constante pela desrazão era
aberta para o mundo da lógica. Assim era possível adentrar a obra que, com a
morte de Bispo, perdeu o sítio original, descaracterizando-se quando catalogada
e exposta segundo aquelas regras da museologia que atendem ao olhar educado
para a fruição do objeto. A partir de então tornou-se fragmento de uma
composição magnífica que jamais será recomposta em sua originalidade. Se, por
um lado, o mistério que dessa descaracterização se perpetua, por outro, a
conclusão sobre o diálogo homem/obra se torna mais difícil.
Desses fragmentos expressivos que já
representaram o Brasil na XLVI Bienal de Veneza e que continuam aguçando
o ânimo para a pesquisa sobre o tangenciamento da arte pela loucura, resultou
este trabalho, originalmente uma dissertação de mestrado sob a orientação da
professora doutora Samira Chalhub.
A obra de Bispo, múltipla em procedimentos
e materiais, não se permitiu dominar pela imediaticidade de conhecimento. Plena
de estranhamentos, aos poucos foi determinando os próprios caminhos para ser
compreendida e, finalmente, interpretada como processo criativo. Desde o início
estava claro que não poderia ser analisada autonomamente, como as faturas artísticas
resultantes do procedimento lógico da arte. A vida de Bispo, com uma história
existencial feita de eventos dramáticos que o colocaram sistematicamente à
parte do mundo pautado pela lógica, pulsava irremediavelmente em cada objeto.
Por isso, os períodos de transformações substantivas em sua vida foram
retomados em breve biografia, de forma a se proceder à leitura das séries
expressivas tendo-o como motor e elemento singular projetado nesses objetos.
Considerá-los indiscriminadamente objetos
da arte é tarefa que demanda apurada justificativa. O que se pode e deve
garantir é que Bispo procedeu criativamente, sem o concurso da
elaboração do pensamento prévio para a idealização desse compósito primitivo
eivado de forte carga expressiva.
Ao comentarista e aos críticos, cabe a
difícil tarefa de ressignificar tais objetos, dando-lhes o estatuto da arte.
Essa é, talvez, a tarefa maior deste trabalho que busca incorporá-los aos
princípios criativos da arte contemporânea. Quer, também, encontrar os
alicerces sobre os quais a ação criadora se fundamentou e por isso a
complexidade da trama foi ordenada em esquema lógico de justaposições e
sobreposições de procedimentos. É de se lembrar, ainda, que a loucura não é
prenúncio obrigatório para a arte. O que Leo Navratil entende como “Funções
Criativas Fundamentais”, em sua obra capital para os estudos da arte e da
loucura, Schizophrénie et art, são impulsos gerais possíveis no processo
criativo do esquizofrênico, razoavelmente observáveis na execução universal da
obra de arte. A esquizofrenia, em si, não é pré-requisito para a criação.
Bispo é caso raro, rico e qualitativo,
tanto para o estudo da loucura criativa, quanto da possibilidade de a desrazão
se tornar, por meio da ação, um universo de expressão criativa do eu
dissociado. Tem, ainda, relevância como vontade intrínseca e independência do
ser, ainda que subjugado ao espaço de coação, sem condições ou reforços mínimos
para a prática de qualquer forma de expressão.
Tramar esse resultado como paradigma que
reflete alguns procedimentos contemporâneos da arte foi outra perspectiva aqui
adotada. Embora Bispo não se considerasse artista, mas alguém orientado por
“vozes” para proceder criativamente, é sabido que o resultado de seu esforço,
além de vasto e rico mecanismo para o entendimento do ser paradoxal, explicita
princípios adotados pela arte que rompeu com a representação do visível para
ser um caminho de conceitos abertos à interpretação. Apartado do âmbito da
cultura e lançado, finalmente, no intramuros onde a prática da psiquiatria
hegemônica do passado mais produzia a ausência mórbida da vontade e uma
impotência para a ação, o sergipano de Japaratuba exercitou compulsivamente a
atitude para a ordem, como que a produzir arranjos exteriores nos quais a
dissociação interior pudesse se refletir ordenadamente. Um sonho este de juntar
o paradoxo à lógica conclusiva? É preciso visitar os monumentos disponíveis na
obra para buscar uma possível resposta.
Na ordem como natureza primeira da
elaboração desses arranjos, está a gênese do procedimento criativo. Este,
imperceptível à primeira vista, está diluído e sustentando a intricada
expressão de Bispo que, ao perder a totalidade por injunções que não interessam
a este estudo, reforça o caráter ficcional que tanto envolve a vida de seu
autor. Dele pouco se sabe dos primeiros anos de vida, salvo um solitário
registro no batistério da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, em Japaratuba (SE).
A história oficial mínima ainda apresenta indagações que só o tempo se
incumbirá ou não de decifrar. E a obra fala em pedaços. Se fosse mantida a sua
composição geral operada em cerca de dez salas na Colônia Juliano Moreira, em
Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, a originalidade da obra oferecer-se-ia in
totum à análise e não como meros pedaços de uma totalidade instigante;
metonímias que nem sempre se sustentam como aparatos artísticos livres da sorte
de seu criador.
Muito ainda será escrito sobre esse homem
ímpar, capaz de mobilizar tudo o que o mundo das utilidades tornou dejeto e,
neles, impregnar um sentido transcendente incômodo à razão comum. Sabendo-se
que na pretensão de esgotar a discussão sobre essa realização magnífica estaria
a inútil ousadia de aniquilar o objeto, as páginas seguintes não querem mais
que retomar a discussão sobre os feitos de Arthur Bispo do Rosário, para que
mais e mais se entenda a razão esfíngica da pergunta que faz plasmar ordenação
e vertigem:
“Qual a cor do meu sembrante?”
1. A INFÂNCIA SEM RASTROS...
Quem
afirmaria, com a certeza das marés, que nascer não é também a morte do
conhecido? Sair para o outro lado, transpor o útero e encontrar a incógnita, o
que não foi dominado pela experiência. Deixar impiedosamente o calor amniótico,
escorrer-se com o líquen sangrado, ver murchar o quente envolvimento
placentário. Sai o ser da ambiência escura, movente e sem choques, abandona o
encapsulamento aquoso para o destino da respiração solitária. O leito anímico
se esvai, acompanha a fuga do ser que, abrupto, busca o destino da luz.
Assombra as retinas o raio agressor, os ventos transformam as gomas em
películas vítreas, o calor se defronta com o vento. Estala um grito de
engrenagem seca e, depois, o choro intermitente. Nascer é renascer do outro.
Filho de Adriano Bispo do Rosário e
Blandina Francisca de Jesus, Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba (SE),
por volta de julho de 1909, conforme consta no Livro de Batismo da Igreja de
Nossa Senhora da Saúde:
Aos 5 de outubro de 1909 baptisei solemnemente Arthur, com 3
meses, legítimo de Claudino Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus.
Foram Padrinhos Maximiniano Ribeiro dos Santos e Candida dos Prazeres.
A data e a paternidade são controversas,
pois em registros posteriores figuram, como data de nascimento do artista, os
dias 14 de maio de 1909 ou 16 de março de 1911 e, como pai, Adriano Bispo do
Rosário.
Cidade economicamente inexpressiva, de
origem comum a tantas outras que se desenvolveram à sombra de engenhos de cana,
Japaratuba está 21 km do Atlântico, na foz do rio que lhe dá nome.
Conta à historia que, no século XVI, seis
tribos indígenas povoavam a região, uma delas comandada pelo cacique
Yaparatuba. A palavra é a junção de “y” (rio), “apara” (volta) e “tuba” (frequência,
repetição). Sua leitura final remete a “rio de muitas voltas”, o que se explica
pela topografia local, que faz o Japaratuba chegar ao mar já sem a força das
corredeiras, formando meandros, sinuosidades de cursos d’água comuns à
linearidade das planícies.
A nascente do Japaratuba fica entre os
pequenos Municípios de Feira Nova e Gracho Cardoso, ambos em região de clima
semi-árido a que chamam “chapadão”. O rio, que escreveu a história de extensa
área em Sergipe, segue por grotões formados por elevações medianas e atravessa
as localidades de Aquidaban e Capela, onde recebe o reforço do Japaratuba-Mirim.
Ali as terras sergipanas tornam-se férteis, as mais férteis do Estado,
estendendo-se até o destino atlântico do rio. Sobre as virtudes do solo, em 1º
de março de 1855, o Presidente da Província, Inácio Joaquim Barbosa,
referindo-se à abertura de um novo canal de irrigação na região, assim
discursava à Assembleia Provincial:
A abertura do canal central de Japaratuba que acaba de ser
realizada pois que a ribeira que ora lhe fica mais próxima (do Rio Cotinguiba)
do que nenhum outro povoado, é a mais importante e rica de toda a Província por
contar mais números de engenhos de açúcar.
O passado do Município registra um período
heráldico, quando foi um baronato, título criado por Decreto de 14 de março de
1860.
Seu brasão era formado por um “escudo
esquartelado” em cujo primeiro quartel era impresso
... em campo de oiro um canavial. No segundo de azul, um
castello de prata; no terceiro de góles, um leão de oiro, rompente; no quarto
em campo de prata, um índio ao natural, tendo na mão direita um ramo de cafeeiro
e na esquerda seu arco e flechas.
Era tal a importância do Japaratuba para a
vida econômica da região que, por Lei de 6 de maio de 1872, foi dada à empresa
Campos, Cameron & Cia. a incumbência de construir uma estrada de ferro
ligando o porto à Capela de Nossa Senhora das Dores. Sem motivo aparente, essa
Lei foi derrogada por uma Resolução em 2 de abril de 1875. Outro dado que
resgata no tempo a importância do Japaratuba é o fato de a bandeira de Sergipe
mostrar cinco estrelas, representando as barras dos rios Real, Vasa-Barris,
Sergipe (a central), Japaratuba e São Francisco.
Ainda hoje há registros arquitetônicos da
época colonial, em casas-grandes e chaminés de tijolos. Remanescem, também,
plantações de taquara e eucalipto, árvores cujos troncos alimentaram, por
séculos, as fornalhas dos engenhos no cozimento da garapa.
A Cidade desenvolveu-se a partir das
relações de trabalho entre senhores, proprietários de vastas extensões de
terras, e escravos, trazidos da Guiné e do Congo para a produção de açúcar.
Posteriormente, recebeu também padres carmelitas, comandados por frei Antonio
da Piedade, que tinham por objetivo fundar a Missão dos Carmelitas para a
evangelização dos povos e o Hospício de Japaratuba.
À época da expulsão dos jesuítas do Brasil
pelo Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, no período de
1759-1760, Japaratuba era não mais que um vilarejo em torno de uma capela. A
construção da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, padroeira da cidade, somente
seria autorizada em ofício de 19 de dezembro de 1854.
Segundo estudos e projeções do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, na área de 379 km2 que Japaratuba ocupa, viviam, em 1993 (últimos
dados colhidos no censo de 1991), 13.425 pessoas.
Não há dados exatos sobre a população negra
da cidade. As tabulações dos censos demográficos podem apresentar equívocos de
alguma monta. Isto porque a cor do indivíduo pode ser declinada por ele, quando
da resposta a questionários oficiais. Daí podem resultar inverdades crônicas no
mapeamento de raças no Brasil, sobretudo a negra. A coordenadora de amostragem
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em São Paulo (SP), explica
que “o censo é uma entrevista como qualquer outra”. O recenseador pergunta ao
cidadão: “Qual é a sua cor?”. A resposta obtida não é questionada, mas
considerada como expressão da verdade. “Se um negro disser ‘branca’, será o
campo correspondente a branco assinalado nas planilhas.” Acrescenta ainda a
coordenadora que “há uma tendência no mestiço/mulato a responder dessa forma”.
Sobre a prevalência atual da população
negra na região, é valiosa a opinião de Eduardo Carvalho Cabral, tabelião,
escrivão e oficial do Registro de lmóveis e Protestos de Japaratuba:
Uma grande parte da população de Japaratuba é descendente de
escravos. O atual povoado de Patioba,
próximo de onde existia grande concentração de engenhos, já teve o nome de
Quilombo e sua população ainda é quase toda de negros. As festas folclóricas,
principalmente a de Santos-Reis, a mais popular de Japaratuba, representam
danças e coreografias dos costumes dos antigos africanos.
No dia 20 de fevereiro de 1909, ano de nascimento de Arthur
Bispo do Rosário, F. T. Marinetti lançou a Fundação e Manifesto do Futurismo,
um dos muitos que comporiam o copioso corpo de leis daquele movimento.
A Itália respondia afirmativamente à vontade de elaboração
de uma arte nova, tendo o progresso, a velocidade e o futuro como ideais.
Marinetti levantou as bases para o impulso decisivo da moderna linguagem da
arte, ao preconizar o fim do tempo e do espaço para o objeto artístico,
glorificando “a coragem, a audácia, a rebelião” como “elementos essenciais” da
poesia moderna. Há nisso um claro princípio de desorganização e de
desconstrução dos paradigmas herdados do século XIX. Um impulso renovador foi
instituído, resultando em escândalos e com desdobramentos em quase todas as
formas de produção de arte.
Em 1910, U. Boccioni, C. Carrá, L. Russolo, G. Balla e G.
Severini dirigem-se aos “artistas jovens da Itália” com o Manifesto dos Pintores
Futuristas, como iconoclastas da experiência artística pretérita, em nome da
exaltação ao novo.
1911 foi o ano, em que a Mona Lisa foi roubada do
Louvre, em Paris, por um ex-guarda do Museu, Vicenzio Perugio.
Com Les demoiselles d’Avignon (1907), Picasso já
havia desconstruído a figura, pondo em relevo o recurso da “faceta”. O artista
fundiu um primitivismo bárbaro a simplificações deformantes na imagem para
gerar a monumentalidade paradoxal da figura em blocos de formas incomuns.
Recuperou o “escorço”, recurso expressivo que liberta o espectador de apreciar
o objeto de arte apenas nos limites da frontalidade, como normalmente a visão
humana percebe o mundo. Andrea Mantegna (1431/1506) já dele havia lançado mão,
tornando-se exemplo histórico com Cristo morto (1506). Salvador Dali
(1904/1989) retomá-lo-ia em A travessia de São João Batista.
A faceta e o escorço viabilizam desafios à identificação
imediata dos objetos, mostrando-os sob perspectiva não habitual.
Do nascimento aos 15 anos aproximados,
quase nada se sabe da vida de Bispo; há, apenas, a informação, não comprovada,
de que teria sido adotado por uma família de cacauicultores do norte da Bahia.
Nenhum documento de registro de nascimento foi encontrado no Cartório do
Registro Civil de Japaratuba. Os dados sobre seu nascimento e filiação
encontrados em documentos da Colônia Juliano Moreira, onde seria internado, da
Marinha de Guerra e da Light, onde trabalharia, são contraditórios. Enquanto na
ficha admissional da Marinha figura como data de nascimento do artista o dia 14
de maio de 1909, os registros da Light apontam o dia 16 de março de 1911. Sobre
o assunto, fala o Sr. Eduardo Carvalho Cabral, já mencionado:
Arthur Bispo do Rosário não foi registrado no Cartório do
Registro Civil de Japaratuba, o que não quer dizer que não tenha sido
registrado em qualquer outro Cartório do País, como faculta a lei.
O fator de não se encontrar marcas oficiais
do nascimento do artista, à exceção do Livro de Batismo, permite inferir que
ele pode ter sido registrado ou mesmo haver nascido em outra localidade.
Nenhuma família Bispo do Rosário foi localizada em Japaratuba, embora haja na
cidade muitos moradores com os sobrenomes “Bispo” e “Rosário”. Ainda sobre o
assunto, alega Cabral:
Mesmo pesquisando nos cartórios, não encontrei ninguém com o
sobrenome Bispo do Rosário. Encontrei uma família Evangelista do Rosário, mas
não creio que seja parente de Arthur, pois é de cor branca e olhos engatinhados
[sic].
Japaratuba sustenta a mítica de uma origem
fenícia, até o momento não comprovada. Corre entre seus habitantes a história
de que uma das cidades da região, Piaçaba, teria sido fundada por fenícios,
segundo anotações, de um viajante alemão de nome Schwennhagen. Escreve o
historiador Luiz Antônio Barreto (s/d), referindo-se às facilidades que aquele
povo navegador teria para chegar, no passado, ao local:
O Japaratuba é, presentemente, um rio de duas barras, uma
delas no Oceano Atlântico, distante cerca de 50 quilômetros da barra do São
Francisco. Uma diferença pequena para as necessidades das estações fenícias,
porque 40 quilômetros eram a segurança da viagem pelo dia, até o ancoradouro,
porque de noite os marinheiros fenícios não viajavam, mas ficavam nas estações.
[Japaratuba poderia ser] a segunda estação, onde foram feitos aterros que, para
conter o mar e manter canais, que davam à terra condições de cultivo agrícola,
além de ser lugar ideal de concentração de tupis e tapuias, especialmente estes
últimos, ambos aliados dos fenícios e egípcios na colonização sergipana. (p.
242)
Inscrições cuneiformes relacionadas à
possível presença desses povos, foram localizadas na área rural de Japaratuba.
Embora não haja rigor científico na identificação desses sinais, a presença de
egípcios e fenícios é fato na fabulação dos habitantes da cidade e em sua rede
imaginária. Buscando-se semelhanças entre esses trabalhos e os de Bispo, e sem
qualquer intenção de se comprovar ou sugerir alguma hipótese, merecem atenção
os objetos escriturais, série marcante como procedimento plástico e valorizada
pela crítica em exposições.
A imprecisão de dados sobre os primeiros
anos da vida de Arthur Bispo torna-se mais intrigante quando se verifica que em
Sergipe, nas últimas décadas do século XIX, era hábito o registro de novos
nascimentos, mesmo escravos. É de se lembrar que o Bispo nasceu 21 anos após a
Lei Áurea. A Nota 191, atendendo ao artigo 6º do Regulamento nº 4.835, de 1º de
dezembro de 1871, é uma comprovação nesse sentido. Diz o documento:
Manoel Antônio Severo, residente neste Município, declara que no dia [ilegível]
de setembro de 1874, nasceo de sua escrava [ilegível] de nome Guilhermina preta
[ilegível], que se acha matriculada com os ns. 1.050 da matrícula geral do
Município e 1 da relação apresentada pelo mesmo Severo, uma criança parda do
sexo feminino, baptisada com o nome de Luzia. Sítio Cabral. Província de
Sergipe, município de Japaratuba parochia de Nossa Senhora da Saúde. 28 de
dezembro de 1874. Assina Manoel Antônio
Severo.
Outro registro ligado à escravidão são as
sentenças de morte de escravos criminosos. Conhecida é a história de Miguel dos
Anjos Bispo (seria coincidência o sobrenome?), cuja ata de pena por um crime
assim foi lavrada:
Em conformidade das decisões do, Jury, julgamento o réu Miguel dos Anjos Bispo incurso no grão
máximo do artigo 192 do Código Criminal, o condenno a pena de morte, e nas
custas. E na forma dos artigos 79 parágrafos 2 da Lei de 03 de dezembro de 1841
e 449 parágrafo 2. Do regulamento n. 20 de 31 de janeiro de 1842, apello para o
Egrégio Tribunal da Relação do Districto. Sala das Sessões do Jury da Villa de
Japaratuba, 29 de junho (as 10 horas da noite) de 1883. Lino Cassiano Lima.
A hipótese de que o artista tenha vivido
sua infância no norte da Bahia não pode ser comprovada. Eduardo Carvalho Cabral
esclarece:
Se Bispo viveu em fazenda de cacau, não posso informar. O
que sei é o que informa a imprensa. É verdade que muito Japaratubenses forma
para a Zona de Itabuna e Ilhéus, inclusive pessoas da família Moura, que
possuía fazenda de cacau em Ilhéus. Antônio Moura saiu daqui também rapazote e
nunca mais voltou, nem para visitar sua genitora, que faleceu há pouco tempo.
Se o nome revela algum possível desejo
paterno em relação ao filho nomeado, as palavras “Arthur”, “Bispo” e “Rosário”
merecem análise arqueológica autônoma, ainda que como exercício imaginativo
para ocupar lacunas biográficas. Todas as três são reveladoras do mito e da
religiosidade ancestral e constituem símbolos constantes na verdade psicológica
do artista.
Arthur ou Artus foi a lendária figura do rei de Gales (fins
do século V, início do século VI) que teria liderado a resistência céltica
contra as invasões anglo-saxônias. À mítica de Artur confluiu a formação dos
sentimentos de nacionalidade, estimulada pela narrativa Historia britorum, de
Nennius (826) e pela Historia regum britanniae (1136), de Godofredo de
Monmouth, que, traduzida e publicada na França, gerou o ciclo de poemas
bretões.
Dessas narrativas origina-se a aura do
sonho coletivo ao redor de Artur e da Távola Redonda, vivificada pela mística
da demanda do Santo Graal. O Graal, segundo a lenda, foi o vaso que serviu a
Jesus Cristo na Santa Ceia e que, posteriormente, teria sido usado pelo
discípulo José de Arimateia para recolher-Lhe o sangue, quando Cristo foi
ferido pelo centurião com a lança.
Fora da justificativa histórica e mítica,
“Artur”, em diferentes dicionários de antroponímia, é citado na origem céltica
como “nobre”, “generoso”, ou “aquele que tem os cabelos eriçados”. O radical art,
em céltico, vem a ser “urso”, enquanto ur significa “grande”,
“velho”. Pelo grego, chega-nos como arktúros, “vigilantes da Ursa”, nome
comum a duas constelações do hemisfério boreal. A Ursa Maior é identificada
pela sequência de sete estrelas representando um carro com o timão (a peça na
qual se atrelam os animais ao arado) ou forma, em dimensão diminuída e em
simetria com a Ursa Maior. Na ponta, que corresponderia à extremidade do arado,
está a estrela Polar, ou Alfa da Ursa Menor, na atual posição 1.25’ da direção
do pólo, apontando para o norte. Artur, enquanto nome próprio, tem a
característica da universalidade: em alemão e em português corresponde a Artur;
em espanhol e italiano, a Arturo; e Arthur é o mesmo indicativo para o francês
e para o inglês.
Sobre os nomes medievais, nos quais Arturo
está incluído, os autores Fruttero e Luccentini (1969) sustentam que:
eppure sono tutti nomi nordici che in Italiano sono entrati
solo con le invazioni barbariche, diffondendosi rapidamente nel medioevo e
scalzando in parte lonomastica latina e greca. [1]
Se a palavra determina o que nomeia, o
artista tem no segundo nome algo que pode denotar a futura fixação pela
transcendência, quando da transposição de seu corpo do mundo concreto para a
imortalidade, por intermédio do manto, uma de suas mais sugestivas criações.
O estudo teleológico revela o Bispo (do
latim episcopu) como o ser com o dom sobre-humano da ressureição. Isso
justifica, mesmo após a ascensão, a presença de Cristo no seio da Igreja.
Posteriormente, o nome foi usado como título honorífico, dado àqueles que
seriam os apóstolos investidos de autoridade para a evangelização. A palavra
grega Bispo é citada cinco vezes no Novo Testamento (Filipenses 1:1; Atos
20:28; Timóteo 3:2; Tito 1:7; Pedro 2:25) em referência à autoridade eclesiástica,
cuja função é a união do homem a Deus por meio da comunicação sobrenatural. Na
hierarquia da Igreja, só há três patamares de poder: o primeiro é ocupado pelo
diácono, que é o serviçal incumbido do cuidado com os doentes, com os velhos e
com a própria manutenção das igrejas. Em grau intermediário está o sacedorte,
aquele que é o dono do rito. O último é o epíscopo ou bispo, chefe espiritual
supremo. Só este é investido cerimonialmente. O Papa é o “bispo de Roma”.
Leitura de significação ampla tem, ainda, o
Rosário (do latim rosariu), nome do maior instrumento de reza conhecido
pelo homem. São três terços que compõem 150 ave-marias, 15 pai-nossos, 5
salve-rainhas e 1 credo. A palavra “rosário” tem origem provável em rosa
Mística, uma das 49 possibilidades invocatórias da Virgem Maria. Outras são:
Regina Virgo Virginum, Froedelis Arcae, Stela Matutina, Turris Eburnea e as
tantas formam a candente e mântrica Ladainha de Nossa Senhora. O rosário é
composto de três mistérios. Os primeiros, os gozosos, estão ligados ao
nascimento, e à infância de Jesus: a fase ingênua da existência, quando a
inconsequência é justificada pela imaturidade do ser. Os dolorosos reverenciam
a agonia do homem, o martírio e a crucificação. Finalmente, os gloriosos são a
metáfora da ressurreição do filho de Deus e a assunção de Nossa Senhora ao
signo da eternidade. Como objeto de adoração, o rosário tem as qualidades
mântricas da repetição, comuns, também, nos cultos muçulmano e budista para
persuadir e para predispor o psiquismo individual e coletivo à sensibilização,
por meio do ritmo da ritualística peculiar de cada credo. Cabe lembrar que a
finalidade da repetição é a contemplação do mistério. Acredita-se que por ela
se chegue a um estado de simbiose com o que é contemplado. Pela repetição,
frui-se, contempla-se. Ao se contemplar, torna-se o contemplador semelhante ao
contemplado. Gozo, dor e gloria são signos da religiosidade que, concretamente,
parecem haver determinado a passagem de Bispo pela vida.
Rosário pode ser nome ou sobrenome. Em
espanhol é comum de dois. No Cristianismo, está relacionado à invocação de
Nossa Senhora do Rosário, festejada em 7 de outubro. Em latim primitivo vem a
ser “campo de rosas”, “coroa”, “grinalda de rosas” e, depois, “corrente de
contas para orações”.
Nesse itinerário de mitos, em que a
presença das águas é determinante para as populações e a religiosidade se faz
presente nos ícones de Nossa Senhora das Dores, de Nossa Senhora da Ajuda e de
arcaicas divindades bantas, prepondera o desconhecido, quando a referência é o
artista.
Nesse quadro de dúvidas, pleno de
possibilidades interpretativas, eivado de signos religiosos que invocam a
saúde, a dor e o perdão, pode ter vivido os primeiros anos de uma infância sem
rastros o filho de Blandina Francisca de Jesus e Adriano Bispo do Rosário, o
negro Arthur...
2. O CAMINHO ADOLESCENTE
Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue
ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior
a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas:
solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência,
isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida
assim como não se, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua
única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem
pertencer.
(Michel Foucault)
Em 1925, o inglês Charles Spencer Chaplin (1889/1977)
escreveu, dirigiu e protagonizou A corrida do ouro. O verão
americano foi sufocante. Le corps de ma brune (O corpo de minha
morena) foi concluído por Joan Miró (1893/1983). O quadro é bem-humorado e
insólito, com a superposição de frases sobre formas detalhadas e abstratas em
intermitentes cores vivas, predominando o ocre e o marrom. Foi também o ano em
que o revolucionário André Breton produziu o Poema ótico, juntando a
forma do ovo a outros objetos inusitados para a representação no plano, dentro
dos princípios da assemblage, utilizando a escrita com às seguintes
palavras:
na intersecção das linhas de força invisíveis
encontrar
o ponto da canção em direção ao qual as árvores se dão as
mãos,
em ajuda
o espírito de silêncio
que quer que o senhor dos navios solte ao vento o penacho
dos cães azuis.
Em 23 de fevereiro de 1925, Bispo foi,
comprovadamente, levado pelo pai para alistar-se na Escola de Aprendizes de
Marinheiros de Sergipe, em Aracaju (o que, aliás, coloca em dúvida a suposição
de que o artista teria sido adotado por uma família de outro Estado). Um ano de
serviços como grumete foi o último período vivido, ainda no Estado natal. É
investido inicialmente na função de grumete (do inglês groom + mate =
ajudante) da Companhia. O grumete era o praça inferior, cujas funções eram
manter a limpeza a bordo e atender aos marinheiros como aprendiz de serviços
gerais. Um serviçal, portanto, e o primeiro posto de trabalho na rígida
estrutura funcional da marinha de guerra da época.
Da época, a foto única revela, além da
expressão habitual de quem se deixa registrar pelas lentes, como que a estabelecer
com elas uma indizível cumplicidade, a jaqueta de marinheiro.
Era um negro de atributos faciais
definidos. Caixa craniana volumosa, rosto de traços duros, com os seios da face
proeminentes e a testa alta saindo em pronunciado aclive anterior de um par de
olhos pequenos, cobertos por sobrancelhas finas. Os lábios avantajados, o nariz
de fossas amplas, as orelhas delicadas, a pele brilhosa e o pescoço afilado
sustentavam um olhar duro, de fixidez desconcertante.
Em 21 de janeiro de 1926, Arthur foi
transferido (por razões que se desconhecem) ao Quartel Central do Corpo de
Marinheiros Nacionaes de Villegagnon, na ilha de mesmo nome, na Baía de
Guanabara. Seu número de identificação funcional é 15.148. Nove meses depois,
sofre uma primeira punição, não especificada, por “faltar às leis”.
Os registros da passagem do artista pela
marinha, em linguagem simples e clara, são voltados a observações cotidianas
sobre seu comportamento, redigidos à mão, pena e tinta, em diferentes
caligrafias.
É o melhor e mais preciso memorial sobre a
vida de Bispo. Sem detalhes que esclareçam sobre uma possível gênese da futura
dissociação mental, o documento revela alternância entre comportamento
“exemplar” e faltas ao trabalho, e uma prisão em solitária por oito dias, em julho
de 1929, quando foi submetido a exames médicos para, em 3 de outubro daquele
ano, ser considerado, naquele momento, “inabilitado para promoção”.
É razoável pensar, ainda que com base no
frágil histórico disponível, que Artur viveu à margem dos processos reguladores
do comportamento ou que era de índole difícil. Isso são elucubrações sem rigor
científico, uma vez que o prontuário não fornece detalhes que esclareçam o
motivo das prisões e punições e justifiquem a recusa de promoção funcional.
Segue-se um pequeno período de avaliações
positivas e de registros de embarque no navio Belmonte. Em abril e maio
de 1930, Bispo é internado no Hospital Central da Marinha, obtendo “alta por
curado” em 12 de junho. Embora essas palavras determinem que estivesse doente,
não há qualquer menção ao mal que o acometeu. Bispo continua embarcado no Belmonte.
A anotação seguinte retroage a 18 de março de 1930, para registro de uma
promoção a “sinaleiro-chefe-B”, função que ocuparia nos próximos três anos e
que seria também a última exercida por ele naquela instituição.
O sinaleiro era um comunicador de situações
a grande distância (valendo-se do código morse) ou a distância visual
(utilizando bandeiras com desenhos geométricos bem-definidos e geralmente
bicolores ou lanternas), para viabilizar a entrada e saída de navios nos
portos. Ao sinaleiro competia também a conversa entre duas embarcações que se
aproximavam em trânsito. Com a melhoria das comunicações, a profissão de
sinaleiro, em navios do porte daqueles em que Bispo trabalhava, foi substituída
pelas mensagens eletrônicas.
Do livro Nossa Marinha, de Arthur
Dias, publicado em 1910, consta o “Abecedário Semaphorico usado na Marinha do
Brasil” - uma sequência de 25 sinais, aqueles, certamente, utilizados pelo
então sinaleiro. A cada um corresponde uma letra do alfabeto em uso na época
(A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Y e Z).
Esses sinais de conversa silenciosa entre o sinaleiro e seu interlocutor
desconhecido completavam-se com o “Signal de numeros”, o “Não compreendeo” e o
“Fim de palavra”. São indicativos lexicais que um dia se tornariam lembrança
resgatada em muitos segmentos da obra de Rosário, principalmente nos bordados.
Em 8 de setembro de 1931, Bispo obtém uma
derradeira promoção, por antiguidade. Um de seus últimos trabalhos foi a bordo
do São Paulo, encouraçado que entrou para a história das embarcações de
guerra brasileiras com o drama de seu afundamento. Construído pela Inglaterra,
em 1910, a pedido da Marinha Brasileira, em 1951 foi considerado obsoleto e
vendido ao país de origem. Na viagem de volta, desapareceu próximo aos Açores.
As águas do rio Japaratuba, fundamentais
para a fertilidade da região suposta como a de origem de Bispo, continuam, em
sua imprecisão movente, sustentando os caminhos do adolescente em sua trágica e
comovente feitura da trilha do homem.
Bispo é desligado “de acordo com o artigo
41 do Regulamento Disciplinar para a Armada”, em 15 de julho de 1933.
O mais completo relato fatual disponível
sobre a vida do grumete e sinaleiro Arthur Bispo do Rosário está no boletim
oficial de sua passagem pela Marinha Brasileira, transcrito ipsis verbis:
Meirelles 29
Arthur Bispo do Rosário
HISTÓRICO
Alistou-se na Escola de Aprendizes de Marinheiros do
Sergipe, sendo apresentado pelo seu pai, Adriano Bispo do Rosário, em 23 de
Fevereiro de 1925. Procedente da mesma Escola recolheu-se ao Quartel Central do
Corpo de Marinheiros Nacionaes em 21 de janeiro de 1926. Alistamento - Em
virtude da Ordem do Dia do Comando Geral n. 36, 3. Letra C do Decreto n. 4977,
de 16 de Dezembro de 1925, sendo classificado Grumete da Companhia SE, com o n.
15148, contando antiguidade de 21 de Janeiro de db [sic] corrente anno, de acordo com o art. 18 do
regulamento em vigor. Quartel Central do Corpo de Marinheiros Nacionaes
Villegagnon, 13 de Fevereiro de 1926. Teve exemplar comportamento nos meses de
Janeiro Fevereiro e de 1 a 20 de Março de 1926. Destaca na presente data no
Enc. Floriano. Quartel Central em 20.3.1926.
Apresentou-se a bordo do E. Floriano no porto do Rio de
Janeiro - 20.3.1926. Teve exemplar comportamento de 21 a 30 de Março e em Abril
Maio junho julho - Agosto 1926 Punido por faltar leis em Setembro 1926.
Exemplar comportamento em Outubro e de 1 a 20 de Novembro Dezembro gozou as ferias
de Dezembro 1926. Janeiro Fevereiro Março Abril 1927 foi punido por falta leis.
No Mez de Maio e junho 1927. Exemplar comportamento no mez de julho. 1723.
Exame achase habilitado no exame pas. PE STE com greno [ilegível].
Transferência e classificação Ordem Dra. n. 233 de 16 1 a 27 foi classificado
na Companhia de PESP. Teve exemplar comportamento nos mezes de Agosto Setembro
Outubro e de 1 a 10 de Novembro 1927 de 10 afim de Novembro 1927 e Dezembro. E
de Janeiro a Maio de 1928 foi punido por faltas leis no mes de Julho teve
exemplar comportamento. Nos mez de Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro
1928 Janeiro Fevereiro Março 1929 gozou as ferias regulamentares ao ano 1928.
Teve exemplar comportamento no onze Abril 1929. Foi infridido [?] por 20 dias
no mez do Maio 1930 Teve exemplar comportamento no mez de Junho 1929. Foi
(ídem) por 30 dias no mez de Julho 1929. Teve exem Foi punido por 15 dia-s de
insudamento [?] do 12 aos 18 dias mez de Julho 1929. Foi punido com 8 dias de
solitária no mez de Agosto de 1929. Resultado de exames. Boletim n. 40 de 3 de
Outubro 1929 foi inhabilitado para promoção de 11 de Junho 1929. Identificado
neste Gabinete sob registro 15191 de 12 de Novembro 1929. 12-11-1929. Exemplar
comportamento em Setembro 1929 Outubro Novembro. Foi punido por faltas leve nos
mezes de Dezembro e Janeiro. Exemplar comportamento no mezes Fevereiro Marso
Abril Maio 1930 baixou nesta data ao Hospital Central da Marinha. Bordo do CJ
[?] Para em 11 de junho 1930 rematese nesta data caderneta saco de
[incompreensível] ao Corpo de Marinheiros. Bordo do CJ Para 12 de Junho 1930
Alta do H C M. Alta por curado Exemplar comportamento no mezes de Setembro
Outubro Novembro Dezembro 1930 Embarca na presente data para bordo do Belmonte
em 1931. Exemplar comportamento no, Marco 1931. Por ordem do Senhor Comandante
a partir de 18 de Março vence a gratificação de sinaleiro chefe do
B-[incompreensível] Setor Belmonte 5-5-de 31. Exemplar comportamento nos mezes
de Maio Junho Julio Agosto 1931 Promocão 37 de .8-9 1931 letra
[incompreensível] foi promovido a 1. Classe contando antiguidade de 11 de Julio
1931 teve exemplar comportamento nos mezes Outubro Novembro Dezembro 1931.
Vai a seguinte
Meirelles 30
Arthur Bispo do Rosário
HISTÓRICO
vem da anterior
Janeiro Fevereiro 1932. Gozou nas ferias relativa ao ano
1931 esemplar comportamento nos mezes de Março Abril de 1932. Apresentouse a
bordo enc. São Paulo. Rio de Janeiro Abril de 932 Teve exemplar comportamento
nos mezes de Abril Maio Junho 1932 Julho 1932 Punido por faltar leis Clopio [sic] Aviso n. 1.609 de 20.6.932 Boletim n. 26 de 30.6.93
Letra T Bordo do & São Paulo. Rio de [incompreensível] 20 de Julho 1932.
Exemplar comportamento nos mez de Outubro Novembro Dezembro 1932 Janeiro
Fevereiro 1933 Março 193 Punido por faltas leis. Exemplar comportamento nos
mezes de Abril Maio 1932. Gozou as férias relativas au annos de 1932.
Apresentou-se na bordo do C. J. Pir [incompreensível] no Porto do Rio de
janeiro em 4 de Maio de 1933. Exemplar comportamento nos mezes de Maio 1933.
Apresentou-se à bordo do C. J. Rio Grande do Norte no Porto do Rio de Janeiro 1
de Junho 1933. Exemplar comportamento nos mezes de Junho e Julho 1933.
Dezembarca nesta data em comprimento a letra Av. Do Boletim n. 94 de 15..933
devendo se apresentar ao Corpo de M.M.M.N. Bordo do C. J. Rio Grande do Norte
no porto do Rio de Janeiro em 3 de Julho 1933. Baixou e desligou Apresenta.
Ordem do Dia n. 7 do Boletim n. 24 de 15 de Julio 1933 tenha baixa e seja
desligado do estado efetivo deste corpo de acordo com o artigo 41 do
Regulamento Disciplinar para a Armada Artigo 1962 de 8-6-933 Quartel Central em
19 de Julho 1933.
Martinho Soares da Costa
2. Tenente Auxiliar
Após oito anos e cinco meses de serviços à
Marinha de Guerra Brasileira, possivelmente por não caber [2] nos parâmetros disciplinares daquela
instituição, Bispo sai em destino a então Capital Federal, o Rio de
Janeiro...
Em 1933, Tarsila do Amaral expôs no Palace Hotel do Rio de
Janeiro. A exposição tendia para a temática social, após a fase Pau-Brasil
(1925) e a antropofágica (1928). Flávio de Carvalho, polêmico e inovador, teve
seu Teatro da Experiência fechado pela polícia. Portinari pintou Retirantes,
inspirado na questão social do homem que abandona a terra quando esta já
não o acolhe nem mesmo para a sobrevivência. O artista ambicionava uma pintura
notadamente brasileira, reveladora de um imaginário contemporâneo e com
inserções temáticas da ordem social.
3. A TRILHA DO HOMEM
Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e
talvez de loucura.
(Borges, in: A Casa de
Asterion)
Registro áureo do Renascimento, ícones da arte universal, os
afrescos da Sistina são um copioso universo de representações. Botticelli,
Ghirlandaio, Cosimo Rosselli, Signorelli, Perugino e Pinturicchio transmudaram
o Antigo e o Novo Testamento em feéricas formulações que deslumbram a percepção
e, através dos tempos, fascinam. A Michelangelo Buonaroti (1475-1564) coube o
patético O juízo final e as cenas de A criação, no teto da
capela. Nesta última, ilustra a origem do homem por meio do contato entre o
indicador de Deus com o do primeiro ser. O breve toque anímico acaba de
acontecer. A mão direita, fática, tensionada, monitorada pelo hemisfério
esquerdo do cérebro, a massa cefálica da razão, desce do vetusto Criador à
criatura. A mão esquerda, de relação imediata com o hemisfério da intuição,
lânguida, servil, relaxada, ergue-se suave do jovem pleno de força e juventude
em direção à vida em sua origem divina.
Desde os primórdios da hominização, as mãos se mostram elementos
expressivos, chegando a servir como soma personalíssimo de possibilidades
metafísicas, como a da previsão do futuro.
São 27 ossos, uma profusão de pequenos músculos e uma
incontável quantidade de nervos a formar o órgão de preensão, dotado de um polegar
opositor que o torna adequado à manipulação, um privilégio dos primatas que
encontra sua plenitude no gênero humano. Mãos redigiram o teatro helênico, mãos
trabalharam a tábua dos elementos, mãos domaram os rios, assenhorearam-se do
átomo explosivo e escreveram a extensa bagagem de conhecimentos que a
humanidade atingiu em milênios de história.
Ainda na Idade da Pedra, deixaram suas palmas gravadas em
pinturas nas paredes escuras das cavernas profundas, permitindo aos pósteros
melhor entender seus primórdios. O ingênuo dito “sua palma, sua alma” tem
fundamentação, ao menos como elemento de identificação. É sabido que as
impressões digitais são usadas como personalidade gráfica de determinação do
sujeito. Uma identificação entendida pelo Direito como incontestável.
As mãos, parte física de grande expressão, que construíram o
universo dos objetos à disposição do destino do homem, foram o engenho que
permitiu a vida de liberdade e de clausura a Bispo...
Consta que, saindo da Marinha, onde teria,
também, sido boxeador na categoria peso-leve e conquistado um título
sul-americano, Bispo viveu um início de declínio pessoal, época em que
sobreviveu fazendo biscates.
Embora faltem documentos que comprovem que
Bispo tenha sido lutador de boxe, é sabido que a Marinha Brasileira sempre
incentivou a prática esportiva em diversas modalidades. Fotos disponíveis no
Serviço de Documentação da Marinha, na Ilha das Cobras, Rio de Janeiro (RJ),
registram a prática esportiva de marinheiros, na época em que Bispo esteve embarcado.
O futebol, a natação, a ginástica e mesmo o boxe podem ser vistos como prática
educativa nessas fotografias. Curiosamente, porém, nenhum registro sobre o
Bispo boxeador foi encontrado até o momento.
Em entrevista à assistente social que o
acompanhou por um curto período na Colônia Juliano Moreira, Bispo afirma que
“era pugilista. Lutava dez, doze rounds (...) apanhou muito e se
ressentia, hoje, dessas lutas.” Esse testemunho está em acordo com o moderno
quadro de regras do esporte. Atualmente, a luta amadora pode durar até seis rounds
(ou assaltos), enquanto a de profissionais varia de quatro a quinze rounds,
dependendo da importância do confronto. Campeonatos mundiais são disputados
obrigatoriamente em quinze rounds que podem, no entanto, ser abreviados
por nocaute.
Ele prossegue dizendo que “a Marinha não
gostava”, mas que havia “alguém que o acobertava”. Diz ainda que “teve
sucesso”. A alegação do artista contradiz a postura histórica da Marinha, que é
de manter o arquivo fotográfico dos esportistas, como é o caso dos lutadores
“Peitão” e Santa Rosa.
Se Bispo foi bem-sucedido, como pretendia,
é difícil imaginar que, em função de sua degeneração mental, tenham feito
desaparecer documentos, fotos ou registros, a fim de descaracterizar o
envolvimento ou compromisso da instituição com a loucura ou com um esporte
possivelmente não muito reforçado socialmente na época. Os jornais de então
dedicavam, semanalmente, pequeno espaço para a divulgação das lutas.
Ainda sobre a condição de boxeador, há o
testemunho de um lutador, ex-combatente da Marinha de Guerra, que tem pontos em
comum com a história de Bispo. Diz que não o conheceu pessoalmente, mas “ouvia
falar muito dele”. Ao que tudo indica, tratava-se, mais que de um lutador, de
um homem de briga, um “guerreiro”.
A afirmação de Bispo de que teria sido
campeão sul-americano de boxe não pôde ainda ser comprovada.
É possível que Bispo, com alguma tendência
a ser violento na juventude, tivesse grande simpatia pelo boxe e buscasse a
proximidade e o convívio de academias e lutadores. Embora a história não o
registre como boxeador, talvez tenha sido sparring de outro lutador com
algum relevo na época. Essa função o colocaria como um segundo, aquele que
serve de suporte para o treino e a preparação do primeiro. Tal atividade
poderia ter advindo dessa mencionada agressividade juvenil.
A iconografia do boxe tem trânsito nos
bordados, seja pelos sinais, seja pela escrita firme de nomes e situações
vividas ou conhecidas pelo artista. “Rinc”, “sacco de areia, cabo de pular,
mesa de puche” (do inglês punch = vigor físico, força efetiva), “gongo
para um banco, um puche”, “um protetor”, são referências. Há ainda outros
registros, tais como “comissão de box do Rio de Janeiro”; nomes de lutadores
seus contemporâneos (“Antônio Rodrigues - Pugilista Português; Antônio Misquita
- Pugilista Marujo; Agenor Gurgel - Marujo Pugilista; Americo Aldo - Marujo
Pugilista Segunda Classe”) juntam-se às citações “3 round, 3 socos, knock
down”, formando um paratático entranhamento de sinais conhecidos dos
boxeadores. Um objeto de feições figurativas, lembrando grotescamente um
ringue, e outro, o saco para exercícios de soco, são prováveis reminiscências
de uma vivência concreta no universo da luta profissional.
Ao deixar a Marinha, Bispo vive uma sequência
documentalmente desconhecida de fatos, até sua admissão pela Light do Rio de
Janeiro, como lavador de bondes no Departamento de Trações de Bondes, na
garagem da companhia, no Largo dos Leões. Em documento da empresa empregadora,
na época The Rio de Janeiro Tramway, Light & Power Company Limited, consta
que Bispo nasceu em 16 de março de 1911, diferente do registro da Marinha, 14
de maio de 1909. A citação do nome do pai, Adriano Bispo do Rosário, vem
seguida pela anotação: “(fallecido)”.
Tendo sido apresentado pelo pai à Marinha,
em Aracaju, em 23 de fevereiro de 1925, e declarando-o falecido ao ser admitido
na Light, conclui-se que Bispo se tornou órfão entre a adolescência e o início
da idade adulta. Se assim informou, é porque teve algum contato com a família
após ter saído da casa paterna para não mais voltar. Soube, salvo lapso de
comunicação, que o pai, Adriano Bispo do Rosário, estava morto, ou assim ele o
considerava.
Em 1933, o Brasil vibra com a estreia de Carmem Miranda em A
voz do carnaval, do cineasta Ademar Gonzaga. Em Paris, André Malraux
(1901-1976) publica A condição humana, romance-reportagem que narra a
luta clandestina contra o nazismo alemão. Graciliano Ramos (1892-1953) publica Caetés,
romance inaugural do regionalismo como tema na moderna ficção brasileira.
Hitler, fracassado como candidato presidencial contra Hindenburg, é indicado
chanceler por 230 deputados nazistas eleitos no mesmo ano. Na arte alemã
instaura-se a repressão ao que o nazismo considera “degenerado”. Paul Klee se
estabelece na Suíça e Kandinski, na França. O Instituto de Warburg é
transferido de Hamburgo para Londres. Nesse ano, quando começam a produzir-se
transformações radicais na história da Europa, ocorre, em 29/12, a contratação
de Arthur Bispo do Rosário na condição de lavador no Departamento de Trações de
Bondes da Light, na garagem do Largo dos Leões. Em código do empregado consta o
número 21812.
A palavra “light”, enquanto luz, tem no
inglês vasta gama de sinônimos e significados:
1 - the natural agent that
stimulates the sense of sight; 2 - medium or condition of space in which sight
is possible; 3 - appearance of brightness; 4 - sensation peculiar to optic
nerve; 5 - amount of illumination; 6 - vivacity in person’s eyes; 7 - sun’s
direct or diffused or reflectes rays; 8 - object from which brightness
emanates; 9 - mental illumination, elucidation, enlightenment; 10 - one’s
natural or acquired mental powers. (The
Concise Oxford Dictionary, 1974)
A última acepção diz, literalmente: poderes
mentais próprios ou adquiridos por alguém.
Na “assignatura do empregado”, aparece o
traço seguro do artista, com laços na
letra “A” e o primeiro nome arrematado por um arco em sentido contrário ao da
escrita, finalizando o corte da letra “t”. Rosário, contrariamente ao que
consta em todos os outros documentos, está, de próprio punho, grafado com “z”.
O exame admissional foi realizado pelo Dr. Azevedo Branco em 28 de dezembro de
1933. O salário inicial, de $ 950, teve “augmentos” para 1$100, em 9 de outubro
de 1934, e 1$250, em 9 de outubro de 1936. Bispo foi promovido a ajudante de
vulcanizador em 9 de abril de 1934, a vulcanizador 3º em 9 de outubro do mesmo
ano e a meio oficial em 9 de outubro de 1936.
Isto prova que fez carreira funcional e
que, ainda que trabalhando como braçal, pôde ascender na estrutura hierárquica
da empresa, tanto na condição de profissional qualificado como na de
assalariado. Estava solteiro e sem referências familiares na então Capital
Federal. Na ficha de admissão da Light, o campo “Em caso de accidente,
notifique” está em branco. É possível que não tivesse, naquela idade, alguém a
quem recorrer em caso de necessidade extrema. O indicativo de faltas e
suspensões também carece de qualquer anotação. O endereço residencial era Praça
15 de Novembro, nº 311. Bispo, portanto, morava em casa térrea. Em 23 de
fevereiro de 1937, três anos e dois meses após sua contratação, foi demitido
sem justificativa aparente. Não saiu da empresa por iniciativa própria, uma vez
que a expressão “Demitiu-se” está inutilizada, para validar outra: “Demitido”.
O motivo da demissão, no texto da exposição
realizada em dezembro de 1992, no Museu de Arte Moderna, é dado como sendo “não
cumprir ordem da Chefia”.
Em 1937, ano em que Arthur Bispo do Rosário deixa a Light,
às 16h30 da tarde ensolarada de 26 de abril, na primavera europeia, Guernica y
Luno, a mais antiga vila basca, foi arrasada pela aviação alemã. Sob a
orientação de Francisco Franco, comandante dos nacionalistas espanhóis, o
bombardeio durou exatamente três horas e quinze minutos, em vôos rasantes. Os
bascos refugiados no campo foram alcançados por metralhadoras aéreas, enquanto
uma Guernica y Luno obscurecida pela fumaça era iluminada apenas por
insistentes chamas intermitentes das fogueiras.
Em primeiro de maio do mesmo ano, Pablo Ruiz Picasso esboçou
Guernica, datando e assinando um primeiro estudo em lápis sobre papel
azul. Eram riscos ainda imprecisos, como imprecisa é a forma do escombro.
Apenas sinais titubeantes sem um léxico definitivo. Uma forma dúbia sugeria um
animal; outra, quadrada, uma possível janela, dando para um vago espaço
interior. Na mesma data, a mão precisa do artista desenhou um touro e um
cavalo, elementos de força arquetípica ancestral e bruta para a Espanha. Como
um Goya contemporâneo, poderia representar, apenas, algum fato dramático da
tauromaquia. Mas tratava-se de lacônicas formas cubistas, esculpidas a
machadadas, aos poucos revelando a visão do desatino humano, cristalizado na
guerra, pelos olhos da derrota. A deformidade proposital é um experimento
revolucionário do cubismo.
A demissão da Light pode ter ocorrido após
um acidente de trabalho, em 1935, quando Bispo teria fraturado o pé direito,
trabalhando na Viação Excelsior, empresa coligada àquela. Consta, ainda, que em
1936 caiu de um ônibus em movimento, vindo a fraturar seriamente o pé direito.
Na consideração de Alexandre David de Oliveira Passos (s/d), na monografia Arthur
Bispo do Rosário - o artista, o delirante, o místico, o caso clínico da
psiquiatria, esse acidente tê-lo-ia feito mancar pelo resto da vida. Nas
imagens de Bispo, no vídeo produzido pelo psicanalista Hugo Denizart, não é
possível comprovar nenhum defeito em seus membros inferiores. Vestido com o
Manto, enfraquecido pela recusa constante em se alimentar, o homem é uma figura
hirsuta e arqueada. Ainda que mancasse, isto poderia revelar o peso da velhice,
mais que expressar um defeito físico. Seu emprego e residência seguintes foram
na casa de um famoso advogado carioca, Humberto Leone, na rua São Clemente, nº
301.
Sustenta Alexandre David de Oliveira Passos
que o advogado teria representado Bispo na causa movida contra a Light, na qual
conseguiu indenização para o artista. Essa informação consta, também, do livro Arthur
Bispo do Rosário, o senhor do labirinto, de Luciana Hidalgo (1996).
Frederico Morais entrevistou o filho de Humberto, Sr. Gilberto Leone, também
advogado. Este confirmou a permanência de Bispo na casa da família e a causa
defendida pelo pai contra a Light, mas não falou em valores ou sobre a relação
comercial do pai com ele. Diz o Sr. Gilberto que Bispo encerava o chão com
obsessão. Tinha o hábito de lustrar o chão “até conseguir um brilho onde se
visse refletido”. Bispo passou a viver na edícula da casa onde trabalhava como
faxineiro e encarregado de serviços gerais. “Ia à Praça XV comprar peixe,
levava as filhas do advogado para tomar o bonde a caminho da escola. Era o
faz-tudo” da família e já construía brinquedos com tampas de garrafa e
capachos, demonstrando uma habilidade manual admirável. Percebia-se já a
capacidade para a articulação de objetos e a frequência com que essa atividade
se manifestava.
Ao sofrer o que se supõe seu primeiro
delírio, em 22 de dezembro de 1938, Bispo viu Jesus Cristo descer à terra
rodeado por uma corte de sete anjos azuis. Vozes lhe teriam dito para
reconstruir o mundo. Consta que vagava pelo Rio de Janeiro por dois dias e duas
noites, até ser interceptado pela polícia, que o encaminhou para a primeira
internação no Hospital dos Alienados, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Foi
internado em 24 de dezembro desse ano.
Em 1938 é criada no Rio de Janeiro a companhia Os
comediantes e lançada a revista Diretrizes, que aborda temas da vida
política brasileira. Realiza-se o II Salão de Maio, e a galeria de arte
paulista Casa de Jardim abre-se para artistas contemporâneos. Morre Gabriele
D’Annunzio, escritor que une o culto à beleza ao refinado senso simbolista.
Morre o diretor Constantin Sergueievitch Stanislawski, fundador do Teatro de
Arte de Moscou. Da interpretação naturalista transitou pelo simbolismo até o
realismo poético para construir um método até hoje utilizado para a
representação cênica. No mesmo ano, Orson Welles (1915-1985) transmitiu
sua adaptação radiofônica para A guerra dos mundos, de H. G. Wells,
instaurando o pânico na população norte-americana.
O local onde morava Bispo ainda hoje
permite uma vista privilegiada do Cristo Redentor. Em dias ou noites enevoadas,
o Corcovado emerge do espaço celeste como um maravilhamento divino pairando
sobre a cidade do Rio de Janeiro, ainda “maravilhosa”. É uma visão de
deslumbramento, que bem pode ter sido um dos elementos desencadeadores ou
catalisadores do surto.
O Cristo Redentor foi colocado no Maciço da
Tijuca em 1931 e desde então domina a cidade, elevando-se a 704 m do nível do
mar. Em 1938, o referencial de altura para a percepção era menor. O Corcovado
talvez parecesse mais alto, mais intangível e celeste, uma vez que não havia
outros parâmetros de altura elevada como os edifícios de hoje.
Segue-se um período de dois anos, no qual
não se sabe muito de Bispo, exceto por informações fragmentadas contidas na
série de entrevistas com pessoas que com ele conviveram ou que o entrevistaram.
A documentação sobre suas internações
comprova que a primeira, no então Hospital Nacional dos Alienados, ocorreu na
véspera do natal de 1938 e a partir de diligências da Polícia Civil do Rio de
Janeiro. A Guia de Internação recebe o número 18 e registra que Bispo sofria de
“esquizofrenia paranóide”. Traz a assinatura do artista com letra em geral
firme, tendo o “h” vacilante. Embora a palavra “Arthur” pareça ter sido escrita
de um só impulso, “Bispo” é grafada letra a letra sem as ligações da escrita
cursiva. É como se a palavra não estivesse no contexto do nome ou fosse o mais
importante dele, refletindo a predestinação para uma missão à qual se dizia
convocado: a de auxiliar o trabalho divino (o bispo, na igreja primitiva, era
aquele que difundia a palavra de Deus, zelando também pela sua aplicação; a
função é hoje exercida pelos padres); e a palavra “do Rosário”, corretamente
acentuada e escrita com “s”, traduz-se em quatro fragmentos arrematados pela
meia palavra “ário”.
A palavra esquizofrenia tem origem no grego, com schizo significando
“divisão”, “separo”, “cisão” e phrenos, “espírito”. Para a medicina é a
psicose crônica com afecção revelada em inúmeras formas de comportamento com o
pensamento em desacordo com a vida emocional e as formas de relação com o mundo
exterior. A origem pode ser psicobiossocial. Na forma figurada, pode-se dizer que
na esquizofrenia há uma projeção dos extratos mais profundos do inconsciente
sobre a razão. A vigília é, então, conduzida pelo delírio gerando alucinações
várias. O pensamento é afetado, fragmenta-se o discurso, perde-se a unidade do
ser, advêm as ambivalências e o autismo. Diz-se que morre o afeto. Rompem-se os
laços sociais.
No filme O prisioneiro da passagem,
o próprio Bispo confessa a um entrevistador, o artista plástico e psicanalista
Hugo Denizart, que “em 22/12 desci em São Clemente em Botafogo. Dia 24 fui ao
Mosteiro de São Bento e fui mandado pelos frades para o hospício.” Um dos
estandartes do artista traz menção ao fato, com relato denso e dramático.
Revela o itinerário pela cidade do Rio de Janeiro, da rua São Clemente nº 301
ao Mosteiro de São Bento, de onde sairia para a primeira internação.
22 dezembro 1938 - meia noite acompanhado por 7 anjos em
nuves especiais, forma esteira - mim deixaram na casa nos fundo murrado rua São
Clemente - 301 - Botafogo entre as ruas das Palmeiras e Matriz eu com lança nas
mão nesta nuves espírito malisimo não penetrara as 11 horas antes de ir ao
centro da cidade na rua Primeiro de Março - Praça 15 eu fiz oração do cledo no
corredor perto da porta - veio mim - Humberto Magalhães Leoni - advogado mestre
para onde eu ia perguntou eu vou mim apresentar - na Igreja da Candelária esta
foi minha resposta eu abrir a porta lado leste um jardim varas cores ao 7 -
metros de frente um portão de - 2 metros de aaltura de ferro lado esquerda com
seus gradeado todas de ponta lança um metro e vinte altura - 10 - espaços - uma
polegada sobre uma pilatra de 60 - citimetros de cimento piso de lado esquerda
- 70 - largura até portão eu fiquei na calçada esperando no ponto de parada -
fica enfrente numero 301 - Bonde Jardim Leblo tomei esta condução ja no fim
desta rua aos 10 - minutos fez curva para lado esquerda - seque viagem pela
praia de Botafogo rua Senador Vergueiro em sua velocidade normal vai pelo
centro - quase no fim um pequeno quarterão faz curva para direita nesta rua de esquina
observo uma embaixada - curva a esquerda entra na Praia do Flamengo logo
observei ue é os fundos do Palacio do Catete - sede de sua excelencia
presidente - Estados Unidos do Brazil - um portão de ferro largo com suas
grades de ponta de lanças sobre pilastras de pedra aos 2 - metros de altura
pode ser mais - 100 distancia um soldado exercito de sintinela com seu fuzil na
costa sua bandleira afrente couro proximo gurita jardim.
No mesmo filme, o artista também fala de um
internamento no “Franco da Rocha, em 5/1/1939”. Não consta registro de sua
passagem pelo Hospital Franco da Rocha, na cidade de mesmo nome, em São Paulo.
Se em 22 de dezembro de 1938 Bispo estava em São Clemente, no Rio, dificilmente
poderia estar em Franco da Rocha (SP) em 5 de janeiro de 1939.
Em 25 de janeiro de 1939, Bispo é
transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro,
em cujo pórtico ainda hoje está gravada a inscrição latina: Praxis omnia
vincit (O trabalho a tudo vence).
Sucedem-se alguns reingressos, sem nenhuma
indicação oficial de saída ou alta.
Gilberto Leone relata a Frederico Morais
que alguns anos depois, na década de 40, seu pai foi procurado pelo artista em
seu escritório na avenida Rio Branco. Bispo queria saber o que havia acontecido
na noite do delírio visionário; depois, ficou trabalhando no escritório,
encerando o chão e fazendo serviços gerais.
Fato determinante na vida profissional e na
leitura do caráter de Bispo ocorre no tempo em que ele trabalha nesse
escritório: uma cliente em visita ao advogado Gilberto Leone perde uma joia no
sofá; Bispo, fazendo a limpeza, encontra-a; um outro empregado sugere que Bispo
dela se aproprie, para que dividam o valor do achado; Bispo não aceita a
proposta e devolve a joia ao patrão.
A cliente era a esposa do proprietário do
Hotel Suíço, também na Glória. O bom caráter, expresso em sua atitude de
devolver o objeto, fez com que Bispo viesse a trabalhar como porteiro no Hotel,
para onde se mudou.
Posteriormente, trabalharia durante quatro
anos na Clínica Pediátrica Amiu - Assistência Médica Infantil de Urgência -, na
rua Muniz Barreto, em Botafogo, ainda hoje existente. Tratava-se de uma
sociedade formada por diversos médicos, um deles contraparente dos Leone, o
pediatra Avany Bonfim. Frederico Morais esclarece que, quando da primeira
exposição dos trabalhos de Bispo, intitulada À margem da vida, um dos
donos da Clínica Amiu o procurou, dizendo-se emocionado em saber que o antigo
empregado se transformara em artista. Disse ainda que Bispo produziu muita coisa
durante o período em que viveu no sótão da clínica e que, inclusive, teria
iniciado ali a produção do famoso Manto. Nessa época, a década de 60,
Bispo construía objetos com cabos de vassoura e formas várias disponíveis
naquele novo espaço.
Ali também, Bispo foi um funcionário de
múltiplas funções, exercendo, entre outras, a de pedreiro, vigia e cobrador de
dívidas, talvez devido a sua força física.
Sobre a vida sexual de Bispo, homem que
viveu só e sem lembranças ou fatos que o definissem afetivamente, Frederico
Morais, por um momento, diz ter suspeitado da prática homossexual, devido à
ausência de um histórico de relacionamento com mulheres. Conversando, porém,
com Gilberto Leone, soube que ele teve uma namorada na Ilha do Governador e
que, uma vez, indo visitá-la, encontrou um trabalho de vodu em sua cama, fato
que o teria impressionado muito. O crítico diz ser de seu conhecimento que
Bispo costumava ir à Ilha para rachar lenha (essa era a maneira de treinar e de
ganhar força física para o lutador de boxe da época). Esclarece, ainda, que
Bonfim lhe relatou que Bispo tinha opiniões muito particulares sobre as
mulheres. Achava que as enfermeiras não eram puras, quando as via namorando, e
dizia que “quem lida com criança tem que ser pura”. Costumava dizer que as
mulheres “não eram virgens, eram prostitutas”.
Ainda sobre homossexualidade, relata a
assistente social da Colônia Juliano Moreira que, entre os internos, ela
existe.
Uma relação homossexual é, na maioria das vezes, negada.
Muitas vezes, não é consentida. Há casos de estupro com pacientes mais
indefesos, mais oligofrênicos. É uma relação com um conteúdo afetivo, de ter
uma relação de companheirismo. Há por parte dos funcionários um respeito por
essas relações. É uma relação que resgata o afeto, tão difícil e negado naquele
espaço. Há pacientes com 30, 40 anos de internação (...) Esse contato carnal
acaba sendo muito restrito.
Especificamente sobre uma possível relação
homoerótica de Bispo, afirma a assistente social:
Nunca soube. Não há registro. Eu perguntei às plantonistas e
ninguém jamais soube de alguma relação homossexual dele. Sabe-se da paixão pela
Rosângela, mas do contato físico ninguém tem notícia. Nem agora, nem no
passado.
Mesmo sendo um homem de poucos
relacionamentos, recalcitrante quando o assunto era seu passado, Bispo “gostava
de se vestir bem”, conforme relata Frederico Morais. Tinha crédito em uma loja
onde comprava linhas, fios, passamanarias, roupas e gravatas.
Na época, dizia-se embaixador de Deus.
Estando em processo agudo de dissociação, teve de ser internado, mais uma vez
internado.
O artista Lula Wanderley, que o conheceu em
Jacarepaguá (RJ), afirma que “Bispo trabalhou com os Leone muitos anos,
inclusive na época em que teve o surto psicótico inicial”.
Lula também disse que Bispo trabalhou não
apenas em casa de um dos Leone, mas em várias outras e em situações diferentes.
Consta, ainda, que Bispo trabalhou em um sítio dessa família, no Estado do Rio
de Janeiro, e que, “antes de enlouquecer, já trabalhava expressivamente, criando
peças de madeira, desenhos e bordados”. A relação positiva com a família é
narrada em detalhes por Luciana Hidalgo no texto O senhor do labirinto. Dessa
época, Lula Wanderley conservou por algum tempo um desenho representando um
navio, presente que lhe foi oferecido por um jovem da família Leone, que não
soube identificar. A informação é importante para se saber que Bispo também
produziu objetos artísticos na bidimensionalidade (como na pintura), ainda que
poucos, ou apenas um.
Em 23 de agosto de 1944, ocorre outra
internação documentada, com a anotação dos seguintes dados na ficha de
controle:
Nome: Arthur Bispo do Rosário
Filiação: desconhecida [3]
Idade: 27 anos [4]
Cor: preta
Nacionalidade: brasileira
Sexo: masculino
Estado Civil: solteiro
Profissão: desconhecida [5]
Procedência: Hospital Psiquiátrico
Há registros de que em 19 de fevereiro de
1946 Bispo foi novamente encaminhado à Colônia Juliano Moreira, por ordem do
diretor do Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha, contrário à permanência de
Bispo em sua unidade hospitalar. São muitas as comprovações de entrada na
Colônia sem uma correspondente saída documentada, seja por alta, seja por
licença especial. É de se supor fugas constantes que justifiquem esses
reingressos.
Em uma de suas saídas da Colônia Juliano Moreira,
Arthur foi novamente preso. Documentos dos arquivos da Polícia Civil do Rio de
Janeiro comprovam, por meio do Registro de Ocorrência 163/48, de 27 de janeiro
de 1948, fl. 375 do livro 12.206, a prisão e o internamento do artista no
Hospital Pedro II:
REMOÇÃO DE DEMENTES - Foram removidos para o Hospital Pedro
II, todos por apresentarem sintomas visíveis de alienação mental, as seguintes
pessoas: uma senhora de identidade ignorada, que estava a cometer desatinos na
via pública, cor parda, guia n. 12. Artur Bispo, brasileiro, preto, solteiro,
36 anos, removido da Av. Rio Branco 183 - 8. Andar, sala 808, Guia 13 e
atestado firmado pelo Dr. David Madeiro, e Euclides Felipe, brasileiro, preto,
interdito, residente à Rua Itália 118, Cavalcante, com Guia n. 14. Esta remoção
foi solicitada pelo ofício n. 1449 do Testamento e do Tutor Judicial.
Em 1948, o francês Georges Braque (1882/1963) inicia a série
Estudos, uma sequência revolucionária de formas para interiores. Jackson
Pollock (1912/1956), artista vibrante e contrário às convenções do
provincianismo americano, já é considerado o pioneiro do Expressionismo
Abstrato em Nova Iorque. Franco Zampari funda o Teatro Brasileiro de Comédia,
na Bela Vista, em São Paulo. Sir Winston Churchill (1874-1965), em discurso em
Foiton, criou as expressões cold war e iron curtain. O crítico
francês Pierre Restany tenta renovar os valores do movimento Dadá com a nova
corrente nouveau réalisme. Participam da iniciativa Klein e Chamberlain.
O processo definitivo de transferência de
Bispo para a Colônia Juliano Moreira inicia-se com o “Pedido de Transferência”,
de 30 de março de 1948. Ali está justificada a remoção, caracterizando-o como
doente “crônico e calmo com delírios de grandeza, [os quais] geram conflitos
com outros pacientes”. Na ocasião, Bispo “não suporta doentes agitados e
mostra-se mais lúcido no pátio de liberdade”.
Em primeiro de abril é autorizada a sua
saída, mas 13 dias depois ocorre sua terceira entrada na Juliano Moreira, onde
permanece no Pavilhão Ulisses Viana, com algum histórico de saídas, até sua
morte, por infarto do miocárdio (estado mórbido causador da morte),
arteriosclerose (causa antecedente) e broncopneumonia (estado patológico de
contribuição à morte) em 5 de julho de 1989, às 19 horas.
As saídas e voltas de Bispo à Colônia
Juliano Moreira indicam a Instituição como aberta e com parcos controles sobre
o trânsito de pacientes para fora de seus limites. A respeito, fala a
assistente social:
Hoje, os portões estão abertos, exceto para aquele paciente que,
por uma condição momentânea ou permanente, não é capaz de se cuidar. O controle
é feito dentro da unidade. Transpõem os portões da unidade aqueles pacientes
com permissão, o que é a grande maioria. Houve uma inversão. Ficam aqueles que
têm impedimento para sair. Há uma norma de que, para sair, o paciente tem que
provar que está credenciado. Houve época em que havia carteirinha. Mas, como a
Colônia é do tamanho do Bairro de Copacabana - lá dentro circula uma linha de
ônibus... -, eles têm abertura para sair. Um paciente como o Bispo teria,
embora nunca saísse...
A Colônia Juliano Moreira foi construída
com o fim específico de atender ao doente mental, então considerado incapaz
para o convívio social. Inaugurada em 1924, em extensa gleba de 7.400.000 m2, esperava-se
que também resolvesse o problema de superlotação em outros hospitais do Rio de
Janeiro. Um deles, o Hospital dos Alienados da Praia Vermelha, era, na época,
dirigido pelo médico Juliano Moreira. Com o novo espaço, propunha-se humanizar
a loucura e oferecer aos doentes uma ambiência de natureza ampla e com a ideia
de liberdade. Internamente, o cidadão era submetido a “eletrochoques e
contenção física como instrumentos de intimidação”.
Originalmente, a Colônia não seria o espaço
restrito da exclusão e do fechamento dos diferenciados socialmente, mas uma
possibilidade ilusória de liberdade pela amplidão do entorno. Seria residência
e oportunidade de trabalho, onde grande número de pessoas com problemática
similar pudesse se encontrar, conviver e, possivelmente, voltar a ser
produtivo.
Jacarepaguá é hoje uma extensão do Rio de
Janeiro. Na época da construção da Colônia, o local situava-se a distância
considerável da Capital Federal. Ali foram construídos mais dois espaços
semelhantes, um para a lepra, a Colônia Curopati, e outro para a tuberculose, a
Colônia Curicica.
Um dos proprietários da Assistência Médica
Infantil Urgente relatou a Frederico Moraes que, no primeiro contato com Bispo,
este surpreendeu-o, afirmando categoricamente que procurava um lugar para
trabalhar “sem receber dinheiro”, uma vez que o “dinheiro era a perdição do
mundo”. O artista foi incumbido da segurança. Seu passado de boxeador talvez
tenha influenciado na decisão do empregador de lhe confiar tal tarefa. Passando
a residir na própria Clínica, começou, ali, a elaborar objetos. Seriam, já,
junções no princípio da montagem, característica que define boa parte da obra,
depois continuada no Pavilhão Ulisses Viana.
A relação com o dinheiro tornava-se
ambígua, na fala dessas pessoas. Uma estagiária de Psicologia que o acompanhou
durante certo período relata que ele se preocupava com dinheiro. Certa vez
mencionou um advogado que teria ficado com o dinheiro dele, dinheiro este que
Bispo ainda pretendia reaver.
Fato representativo na relação da vida de
Bispo com a obra é o jejum constante que lhe permitiria a transparência física.
Essa obsessão tem eco em seus discursos sobre o vestir o manto para a ascensão.
A propensão inata para o trabalho manual
está documentada no Prontuário Clínico (Brasil/Dinsan, Colônia Juliano Moreira,
Pront. nº 11.530) que relata a vida de Bispo, nos 51 anos de sua intermitência
asilar. Em 27 de outubro de 1976, é atendido por uma médica, que relata:
Arthur Bispo do Rosário, estado civil solteiro, foi
internado na Praia Vermelha em 24 de dezembro de 1938 e admitido na Colônia
Juliano Moreira em 25 de janeiro de 1939. Tem períodos em que ajuda muito no
serviço, outros em que apenas fica reclusivo. Também tem grande capacidade
artística, faz bandeiras, tapeçarias, etc. É difícil de lidar, devido à paranoia
extrema. Apresenta dispneia de esforço ultimamente.
Este é o primeiro relatório psiquiátrico
mais bem elaborado no extenso, incompleto e mal conservado dossiê sobre a vida
de Bispo em todo o período de internação. Seguem os seguintes dados sobre suas
condições físicas:
Pele limpa. Dispneia constante. Sons normais no coração com
modificações de sinais de arteriosclerose. Mesmo após exercício não se ouviu,
murmúrios.
Pulso regular, dilatado, artérias ligeiramente infiltradas,
com pressão 140/80 mm Hg., indicando arteriosclerose generalizada. Pulso de
ritmo 70 b/min, antes do exercício e 80 b/min, após exercício. Pulmão: sons
distantes, indicando enfisema pulmonar avançado. Alguns sons sibilantes, raros
estertores.
A análise psíquica relata-o como doente
parcialmente orientado em todas as esferas:
Apesar de poder nos ajudar muito em serviços internos e
supervisionar doentes, ajudar na alimentação, etc., este paciente está apenas
em contato muito superficial com a realidade. Ele tem diversos delírios
místicos e de grandeza, se crê um enviado de Deus, e pessoa “muito especial”.
Perguntou se eu conseguia ver, através dele, as suas especialidades. Se crê o
“médico dos médicos”, etc. Ele se nega a responder perguntas, baseado em seus
privilégios especiais. As perguntas que ele responde, são com respostas
delirantes, tangenciais, e irrelevantes. Diz que trabalha quando dá vontade.
Por outro lado, ele é capaz de chefiar a equipe de trabalhadores e sente o
problema pungente de falta de cigarro para recompensar os seus ajudantes.
A postura de liderança em relação a outros
internos é confirmada por um interno que conviveu com Bispo durante 12 anos:
“... ele organizava a fila. Um atrás do outro.” Questionado sobre se os
internos trabalhavam, como se esperava que acontecesse desde a criação da
Colônia Juliano Moreira, respondeu: “Trabalhava. Não ganhava dinheiro. Ganhava
cigarro.” O cigarro é um bem com valor de moeda nas trocas entre os pacientes.
É sabido que muitos dos serviços prestados por eles nos ambientes asilares são
assim pagos pelas instituições.
No prontuário médico (nº 1.662) há
anotações do Serviço Médico Estatístico, sem data e assinatura, que confirmam
os diagnósticos anteriores, por meio do seguinte exame psiquiátrico:
O paciente apresenta-se à entrevista em trajes [ilegível];
com precário estado de higiene corporal. O contato é difícil em função da
grande estrutura delirante paranóide que o paciente apresenta, afirmando
sempre que não pode responder a certas perguntas em função de sua luz e seus
poderes divinos. Está parcialmente orientado em todas as esferas e apresenta o
pensamento invadido por ideias delirantes de conteúdo místico de grandeza. O
paciente trabalha em serviços internos do Núcleo, embora mantenha um contato
muito superficial com a realidade. Por vezes, fica isolado e alimentando-se
precariamente.
São inúmeras as anotações de caráter
médico, com prescrição de medicamentos neurolépticos, e raras as análises
consequentes do quadro psicótico. Fica, assim, evidente a orientação médica no
tratamento da loucura, sem a correspondente atuação daquela instituição no
âmbito da reinserção social dos indivíduos. Nenhuma terapia de aspecto
socializante é observada até o ano de 1981, quando a Colônia Juliano Moreira
entra em processo de reforma institucional, visando ao resgate da identidade
dos pacientes, até então em condições deploráveis de existência. Realiza-se um
censo, com levantamento do histórico e avaliação de cunho social de cada
paciente. São revistos o histórico da internação, as relações familiares e o
comportamento, visando a uma nova orientação relacional entre o corpo de
internos e a instituição. O aspecto positivo da mudança é evidenciado nas
palavras de um interno, tomadas em março de 1994:
Com esse pessoal novo que veio, o negócio se tornou outra
forma. Naquele tempo, a agressividade de funcionários, com o pau na mão ...
tinha aquela ignorância toda, quer dizer que o doente ficava mais agressivo,
mais violento. Quando teve essa mudança, veio o pessoal novo, acabou a
ignorância toda. Esse mau-trato. Agora está civilizado.
Na época da mudança, Bispo é atendido pelo
médico psiquiatra Paulo José Torres da Silva e pela assistente social Circe
Barbosa. Há uma incorreção no documento firmado pelo médico, que dá como data
de entrada de Bispo naquela instituição o dia 25 de dezembro de 1939.
Implementa-se um projeto de ressocialização, na tentativa de integrar os
pacientes, ainda que com limitações, ao convívio social e, com isso, as
anotações médicas passam a ser mais detalhadas, tentando maior humanização e
proximidade com a realidade existencial dos pacientes. As anotações seguintes,
da época, descrevem Bispo como:
Uma pessoa com um dom artístico muito aguçado e que, segundo
ele, está guardando e construindo os instrumentos do homem para uma nova era.
Sua avalilação médica apresenta um exame físico com estado de nutrição bom,
mucosas coradas, ausência de edemas, ausência de lesões lesões traumáticas,
pressão arterial de 140/80 mm Hg., pulso de 80 b/min., frequência cardíaca 80.
Não apresenta deficiência física nem doença orgânica. Como tratamentos
realizados, registram-se entre os medicamentos os psicotrópicos e
médico-clínicos, nenhum tratamento biológico (ECT ou insulina), nenhum
tratamento psicoterápico, nenhum tratamento praxiterápico, observando-se,
porém, que o paciente já tem atividade praxiterápica. [Também registra que]
naquele momento Bispo não toma nenhuma medicação.
Na anamnese, é inserido um registro de nome
“Súmula Psicológica”, onde constam dados que confirmam observações anteriores,
como “capacidade volitiva deficiente, nexos afetivos presentes, presença de
alucinação, ausência de agressividade em relação a si e a outros e ausência de
estado de desorientação”.
É discutível essa suposta falta de vontade,
uma vez que, no período, Bispo trabalhava incansavelmente em sua obra,
dedicando todo seu tempo a organizar sua tela. É possível que as anotações
quisessem se referir a alguma falta de interesse por assuntos da ordem do
social, ou outros que não os do desejo pessoal. Havia, na época, somente o
impulso de continuar, obsessivamente, redigindo significações com o mesmo
impulso de sobrevivência que acometeu Penélope.
Na fuga aos pretendentes, encorajados a tomar-lhe a mão pela
longa ausência do marido, a esposa de Ulisses diz precisar de tempo para tecer
- incansável - a mortalha do sogro Laertes. Usando o estratagema de tecê-la
durante o dia e desmanchá-la à noite, Penélope mantém-se na privacidade da
relação com o herói de Ítaca.
É confirmado o diagnóstico de esquizofrenia
paranóide (código 295.3 da Organização Mundial de Saúde), e seguem-se anotações
qualitativas como:
Ausência de meios de subsistência familiar; ausência de
necessidade de cuidados de enfermagem; capacidade para o trabalho;
impossibilidade de alta social e possibilidade de alta psiquiátrica, clínica e
jurídica.
Os cuidados psicológicos com o paciente só
ocorrem quase 43 anos após sua primeira internação.
Em 1º de junho de 1982, as anotações
clínicas dão conta de um Bispo delirante, recusando-se a tomar refeições, pois
estava na “hora de fazer a passagem”. Alimentava-se somente de leite e
frutas. As anotações no prontuário relatam que:
Acha que é Jesus Cristo e que sua missão na terra já está
terminando. Recusa-se a tomar medicação. Está sendo feita abordagem
psicoterápica a fim de convencê-lo a alimentar-se.
Essa atuação psicoterápica inaugura um novo
capítulo em sua obra e em seu posicionamento relativo à realidade, pela
abertura ao afeto que se estabelece. Aquilo que o relatório trata como “nexos
afetivos presentes” é fato mobilizador de importância capital para a obra e
para a inserção parcial do artista no âmbito da realidade.
Bispo mantém, contudo, seu desejo de
tornar-se transparente para a “passagem” ou apresentação a Nossa Senhora. Mantém
o hábito antigo de não se alimentar, a fim de se tornar leve e ascender aos
céus. Após a saída da estagiária de Psicologia, o desejo de morte se
intensifica. Morre em 5 de julho de 1989.
O rosto do artista havia se transformado em
esquálida expressão da loucura. Os períodos de abstinência haviam-no tornado
uma face ressecada, sustentada por um pescoço frágil, afinado e lento. A
carapinha mantinha ainda um resquício de negro brilhante, ressaltado por
chumaços brancos. A boca conservava uns poucos dentes atrás de lábios finos e
de desenho impreciso. As mãos eram grossas, resultado dos mais de 70 anos de
história escrita pelo artesanato, pela reclusão e pela vontade. A voz mansa
tinha quebras sintomáticas de sentido. Tudo eram “coisas do céu”. Os olhos conservavam
a expressão de distanciamento, e a fala era plena de certezas, certezas de que
o homem havia cumprido a função para a qual teria vindo à terra: reconstruir,
remontar, refazer em nome da Salvação.
Bispo fazia lembrar os suaves versos de
Bandeira: “- Estou onde está Deus.”
CERTIDÃO DE ÓBITO n. 3614 - Duljacy Espírito Santo Cardoso -
Oficial do Registro Civil e Tabelião Vitalício da Décima Segunda Circunscrição,
Freguesias de Irajá e Jacarepaguá, CERTIFICA que às fls. 099 do livro 109 SC 2
sob o n. 30.899 de registro de óbitos consta o de “Arthur Bispo do Rosário”
falecido em 05 de julho de 1989 as 19,00 hs, em (Local) Estrada Rodrigues
Caldas 3.400, do sexo Masculino - profissão:: - cor:: - natural de:: Idade 60
anos; Filho de: Ignorados - Estado Civil:: ignorado., Residência: onde faleceu
- Causa Mortis: infarto do miocárdio, arteriosclerose - Deixa bens? Ignorado -
Fez testamento? Ignorado Era eleitor? Ignorado - Deixa filhos? Ignorado -
Médico Dr. Aroldo Pietre de Freitas - Foi declarante Solange Franco de
Assumpção
Local do Sepultamento - Cemitério de Jacarepaguá.
Obs.
O referido é verdade e dou fé
Rio de Janeiro 10 de julho de 1989
2. Circunscrição
David dos Santos Guido
Tab. Substituto
PERJ 06/0857
4. UM AFETO: DIRETORA DE TUDO EU TENHO
... é preciso que desçais, cada um por sua vez, à morada
comum e vos acostumeis às trevas que aí reinam; quando vos tiverdes
familiarizado com elas, vereis mil vezes melhor que os habitantes desse lugar e
conhecereis a natureza de cada imagem e de que objeto ela é a imagem, porque
tereis contemplado verdadeiramente o belo, o justo e o bem.
(Platão, in: A República)
Em 1981, cumprindo exigências curriculares
da faculdade onde estudava psicologia, uma estudante iniciou estágio de
atendimento a pacientes na Colônia Juliano Moreira. A jovem de pouco mais de
vinte anos optou por trabalhar com pacientes que apresentassem algum
diferencial.
A proposta da instituição na qual estudava
era colocar os formandos para desenvolver um trabalho de ressocialização com
pacientes de instituições públicas. Os estagiários deveriam atendê-los em maior
número. Havia cerca de setecentos pacientes no Pavilhão Ulisses Viana,
historicamente destinado aos internos agitados e agressivos. A estagiária
escolheu aquele segmento da Colônia para trabalhar e ali conheceu Bispo.
O artista ficava no quarto, organizando
objetos quaisquer. Como sempre, operava no mutismo, não permitindo o acesso ao
seu universo cotidiano. Nunca havia participado de qualquer trabalho
terapêutico. A estudante sentiu vontade de iniciar uma atividade
individualizada com ele.
O contato fazia-se difícil por razões
várias. Com tanto tempo de internação, Bispo desenvolvera um evidente
comportamento autista, recolhendo-se integralmente à vivência interior e
recusando o contato no âmbito social.
Para entrar na sala onde vivia tecendo e
organizando sua obra, era necessário entrar no delírio organizatório do
artista, respondendo-se a um enigma por ele proposto: “Qual a cor do meu
sembrante?”, ou “De que cor você vê minha aura?”.
As pessoas que iam visitá-lo, geralmente
curiosos que somente queriam conhecê-lo pelo exotismo e para terem acesso às
celas, respondiam à pergunta habitual com uma cor qualquer. Com isso o
satisfaziam e, em geral, entravam. Poucos voltavam, como parecia ser o desejo
de Bispo.
No primeiro contato com a estagiária, não
foi diferente. Ao pedir para entrar na sala onde trabalhava o artista, foi por
ele inquirida com a tradicional questão: “De que cor você vê a minha aura?”.
Recusando-se a entrar no delírio de Bispo,
a estudante respondeu que nada via. Por isso, foi impedida de entrar na
primeira tentativa. Como queria entrar e ficar, sabia que precisava ser
diferente e autêntica. Via Bispo como um paciente da Colônia Juliano Moreira e
tinha o desejo de conhecer aquela pessoa não habitual mesmo para um asilo de
dissociados, aquele que não saía, não tomava banho, não se comportava como os
outros pacientes. O acesso a ele deveria ocorrer pela verdade e pela lógica.
Passou a procurá-lo em horários fixos, duas
a três vezes por semana, trazendo-lhe a noção da temporalidade. Queria
caracterizar sua presença como um trabalho terapêutico e não como mera visita.
Reforçava sempre a certeza de que ele era um paciente como os outros, com o
uniforme azul da Colônia, vivendo uma realidade pessoal que não era a dela.
Bispo não a aceitava nessas tentativas.
“Você vai sair. Você não vai ficar, porque
você não é escolhida, você não consegue perceber como eu sou, não vê a minha
importância e, então, vai embora.”
Três meses depois, ele disse: “Está bom, já
que você não me percebe como eu quero, eu vou aceitar você assim mesmo. Você
vai entrar e um dia, quem sabe, você me vê como eu quero.”
Naquele momento iniciou-se o processo de
uma relação transformadora na vida de Bispo.
Foi muito difícil para a estudante. Ele era
um paciente que pouco falava, pouco respondia a estímulos, mas se expressava na
arte com a força de quem não contém a expressão nos limites da lógica.
Mostrava-lhe as coisas e falava compulsivamente sobre elas. A importância, na visão
da jovem, não estava nele, estava nos objetos. Bispo não se sentia pessoa.
Parecia não existir.
“Você está satisfeita, eu já mostrei tudo,
agora, você vai.”
Aos poucos, a realidade imediata tornou-se
elemento presente na percepção de Bispo.
A estratégia foi fazer com que o paciente,
já despersonalizado por cerca de quarenta anos de internação, olhasse para si e
não se visse apenas como representação, por meio dos signos por ele criados.
Chamá-lo à realidade, pensava a estagiária, seria contribuir para que ele se
desse conta de sua própria existência. Notou também que as pessoas, mesmo sem
perceberem, reforçavam a não-existência de Bispo. Entravam na sala, diziam ver
a “aura”, ou o “sembrante”, viam o trabalho, iam embora e, satisfeitas na
curiosidade, não voltavam mais. O trabalho seguro da estudante em pouco tempo
apresentou o resultado pretendido. Bispo a aceitou. A convivência fez com que
ele desenvolvesse um profundo interesse por ela a ponto de mostrar indícios de
afetividade em relação a ela.
A estagiária confirma que o sentimento
existiu em profundidade. Ele reorganizou-se interiormente pela possibilidade do
afeto e de uma relação cuja gênese esteve no ato de volição do artista. Um
forte vínculo foi estabelecido por ele. Esse fato redirecionador das significações
impregnadas à obra, a partir de então, remete às reflexões sobre a existência
ou não de afeto no sujeito tomado pela potência da esquizofrenia. Por um bom
tempo Bispo instaura como fator fundante de seu fazer a existência do outro, no
caso a estagiária. Se, em função disso, o diagnóstico tem sido questionado por
alguns, é significativa a análise do doutor Heimar Saldanha Camarinha, diretor
da Colônia Juliano Moreira no período de 1980 a 1985. Diz Camarinha que o
diagnóstico de esquizofrenia paranóide (doença que acarreta a desvinculação da
realidade e a perda da capacidade afetiva)
... está correto. Desde 1939 até 1980, mais ou menos
quarenta e um anos, essa doença evoluiu no sentido do empobrecimento da vontade
e do empobrecimento da afetividade. Esse vínculo que ele fez com uma pessoa
como a estagiária não significa, necessariamente, um vínculo social. Ele
continuou sendo um sujeito autista, que vive naquele mundo próprio, e essa é
uma das características da esquizofrenia. É claro que, como todo diagnóstico,
esse é passível de discussão, embora eu acredite que, pela longa evolução de
quase cinquenta anos de atendimento, seja um quadro de esquizofrenia.
Bispo começa a se organizar quando percebe
que se trata de um atendimento. Quer dominar a medida do tempo e consegue um
relógio de madeira que não funciona, mas que para ele marca o horário do
atendimento.
Inicialmente, esse objeto é aceito da forma
como lido por Bispo. Aos poucos, a estagiária mostra que o relógio não funciona
e que é Bispo quem marca o tempo internamente com o seu desejo. Bispo passa,
também, a se arrumar para esperá-la. Toma banho, penteia-se.
A relação aos poucos se solidifica nele, na
forma unilateral do desejo. Ele cria um mundo moral, por meio do qual pretende
controlar as atitudes da estudante. Diz como gostaria que ela se vestisse, como
ele gostava das mulheres. Mulher não andava como ela, de rabo-de-cavalo, jeans
e tênis. Mulher andava de vestido, saia, sapatos, cabelo solto, maquiada. Era a
mulher idealizada por ele, virgem, solteira, filha única e morando com os pais.
O tratamento artístico do amor impossível tem vários
registros na literatura clássica ocidental. Othelo, o Mouro de Veneza,
instigado por Iago, estrangula Desdêmona, inocente vítima de seu ciúme. Dirceu
(Thomás Antônio Gonzaga - 1744/1810), condenado ao degredo em Moçambique, deixa
em Vila Rica a solitária esposa Marília (Maria Doroteia Joaquina de Seixas)
para nunca mais. Outro exemplo é o de Dante e Beatrice. Ela, possivelmente
Beatrice Portinari (1265/1290), é a personagem de Vita Nuova (?1292),
experiência literária de Dante Alighieri (1265/1321). Após a morte da amada,
Dante a teria transformado em protetora celeste n’A divina comédia (?1309/?1320).
Ele a encontra no topo da montanha do Purgatório, para onde é levado por
Virgílio, que o conduzirá ao Paraíso. Apenas para pontuar semelhanças, Dante
mescla, de forma sintética, a crueza do real ao lirismo medieval, por
intermédio da visão transcendente do amor.
Torna-se obsessão a expectativa pela
presença da jovem, como se torna crítico o ciúme, manifesto na forma
depreciativa como Bispo refere-se aos outros internos por ela atendidos.
Bispo passa a adiantar os ponteiros do
relógio que já não funcionava, para satisfazer seu desejo de antecipar a
chegada da estudante para um novo atendimento. Dedica-se a formular novas
inserções na obra, marcas. Inicialmente, o nome da jovem povoa pedaços de papel
e bordados e estimula novos símbolos. Depois, vai prevalecendo Maria, signo já
presente desde as vozes dos delírios iniciais. Ele a presenteia com
travesseiros, sabonetes, talco e outros elementos da intimidade feminina. Junta
dinheiro que não tinha um valor real para presenteá-la. A relação dura dois
anos. Mesmo assim, Bispo não perde o desejo de fazer a “passagem”. Continua se
alimentando apenas de laranjas, por longos períodos, para tornar-se
transparente.
A presença obsessiva do nome dessa mulher
na obra de Bispo chega à expressão de uma confissão profunda do artista, quando
escreve: “Diretora de tudo eu tenho.” Coloca-a como alter-ego em sua diária
tarefa de organizar o mundo por meio dos objetos de sua realidade asilar.
Um acontecimento de grande repercussão na
vida e na obra de Arthur é o fim do período de estágio da estudante, momento em
que esta deve deixar de frequentar a Colônia Juliano Moreira.
Iniciou-se então o processo de separação.
Nesse período, ele aparecia com uma faquinha, o tempo todo cortando,
trabalhando, talhando a madeira na tentativa de entender a separação e recompor
tudo isto como uma regressão.
O artista faz então uma óbvia tentativa de
retê-la, ainda que simbolicamente, por meio de metáforas artísticas de forte
expressão inconsciente. Quando descobre que ela está prestes a terminar o
trabalho na Juliano Moreira, Bispo, sem qualquer procedimento criativo, mas com
expressivo simbolismo, toma uma cadeira de metal e fórmica, na qual espera que
ela venha a se sentar, como um trono. Prepara a cadeira com correntes e tenta
retê-la concretamente no Trono acorrentado, uma última tentativa
concreta de mantê-la consigo. Ela não desiste de que ele possa entender sua
partida. Argumenta que ele não poderia acorrentá-la a ele, repete inúmeras
vezes que estava ali para que ele se livrasse das próprias correntes.
“Senta na cadeira que eu não vou te
acorrentar”, ele diz.
A cadeira era provida de rodas. A jovem
senta-se e é empurrada e puxada, colocada longe e perto, na tentativa de Bispo
se aliviar ritmicamente da angústia. Ele tentava experimentar o que sentia. E
ela prossegue na explicação de que coisas que haviam vivido juntos ficariam com
ele e nele, mesmo que ela fosse embora.
Ele diz: “está bom”.
Aparentemente aceitando a separação, Bispo
diz que está preparando uma surpresa para ela. A partir disso, ele a proíbe de
entrar na cela, para onde se transfere. Passa a dormir ali no chão, porque em
seu quarto havia uma nova surpresa em preparação.
Ele a deixou entrar somente no penúltimo
atendimento. Nesse dia ele trancou a porta, o que não era habitual. Havia duas
portas: a primeira, de ferro, que ficava entreaberta, e a porta do quarto onde
ele dormia. Fechou a porta de ferro e a levou até seu quarto. Lá estava a
surpresa: uma cama com dossel e enfeites de cordões coloridos. Era a cama de
Romeu e Julieta. Sobre ela havia uma camisola e o Manto da apresentação. Quando
a jovem entrou, ele fez menção de fechar a última porta, mas ela, assustada,
não permitiu.
A separação ainda não havia sido por ele
elaborada e assimilada. A dificuldade da perda fez com que Bispo propusesse que
os dois representassem, no último momento, a tragédia romântica de Romeu e
Julieta.
Aceita, talvez, a separação física, restava
ainda o símbolo, a representação como forma de união entre aquelas realidades
incongruentes, a da lógica e a da dissociação. A paixão, o amor, a relação
física surgiram como possibilidade de domínio do homem paradoxal sobre a
realidade extramuros da mulher. A interface capaz de envolver universos tão
díspares chega pelas mãos do teatro. A essência de Bispo tornou-se uma metáfora
da representação da própria existência.
A jovem entendeu que o pequeno teatro seria
o final, a tragédia, a separação, a dor, a morte, e não a história em si. Não
era nem uma interpretação, mas algo interior que tomava forma e expressão.
Perguntou se ele sabia como terminava Romeu
e Julieta. Ele entendeu: “(...) você nunca foi ao teatro? Eu só quero
representar (...) eu aceito, eu sei que você vai embora. Você pode ir embora.”
Estava elaborada a separação nele. Sete
anos depois voltariam a se ver quando mais uma vez Bispo deixou de se alimentar
para se tornar transparente. Ela foi chamada pela direção da Colônia para
conversar com ele. Lembrou o tempo que passaram juntos, as coisas que estavam
dentro dele, as obras que ele fez, como que a indicar a importância do homem
como artista. Disse que ele não estava abandonado, sozinho.
Bispo respondeu que ela poderia ir. Voltou
a produzir e, até a morte, não permitiu que ninguém lhe prestasse qualquer
cuidado terapêutico.
5. DESCRIÇÃO DA OBRA
Partidos estão os vasos harmoniosos, os pratos com a face
grega, as cabeças douradas dos clássicos. Mas o barro e a água continuam a
girar no casebre dos oleiros
(Ernest Iande)
Nunca se soube que Bispo tenha se
considerado artista: ele não tinha essa consciência. Sabe-se que possuía
habilidades manuais e que desde a juventude arquitetava objetos e propunha
alterações físicas nos lugares em que habitava, o que resultava em melhoria
para a vida no entorno. No tempo em que teria vivido numa fazenda de café, no
Estado do Rio de Janeiro, realizou mudanças no sistema de irrigação para que a
água chegasse de forma mais eficaz aos locais a serem alcançados. A história,
contada pelo crítico Frederico Morais, exemplifica, em teoria, uma vontade
antiga do artista de manipular objetos, transformar o meio e operar ativamente
sobre a fisicidade do mundo em que vivia.
Arthur não se afirmou artista, não se
submeteu à sistemática de avaliação, mensuração, exibição e vontades do mercado
da arte, que determinava e determina, valora e referenda o objeto artístico.
Nunca pretendeu mostrar o que produzia, porque o fazia para si, a partir de uma
pulsão interior e sem o desejo da revelação de talento. A propósito, o contato
com sua obra era difícil, já que ele não permitia sua contemplação dentro dos
parâmetros para o qual está rigidamente educado o olhar. Para se ver os seus
trabalhos, a imensa instalação de uma vida, era necessário penetrar em sua
intimidade e transitar pela sua loucura, decifrando enigmas perante o enigma
gerador.
Realizava uma metáfora existencial para si
e a ela se entregava para dela ser partícipe e fenômeno movente, dentro de um
organismo vivo de representações. O homem e o seu fazer formam um sistema
intercorrente, gerador de discursos, na dimensão em que permite desconstrução e
leitura segundo variados paradigmas do conhecimento. À Antropologia, apresenta,
por meio da série de objetos encapsulados, um exemplo de dispositivo ilustrador
da expressão pictográfica primitiva. A presença do sagrado reveste a obra de um
sentido sugestivo e transcendente. À Psicanálise, auxilia como possibilidade de
contato com o inconsciente, objetivado de forma copiosa na trama de sentidos
dos objetos. Para a Sociologia, significa a capacidade de resistência humana, a
força anímica diante das tenazes das antigas instituições, fechadas sob a hegemonia
de uma Psiquiatria do passado, utilizadora de neurolépticos, de surras, de
doses maciças de insulina e de choques elétricos abusivamente aplicados. Para a
Linguística, os feitos de Bispo são um copioso corpo de sinais, a ser
decodificado por estudos sobre a afasia esquizofrênica. À Psiquiatria,
interessa como paciente que se diferencia no universo dos iguais. Para a
História da Arte, é um campo aberto de conhecimento, apenas em início de
desbravamento. E, finalmente, para a Semiótica, contribui com a variedade de
conexões que se podem processar pela leitura integrada de todos esses campos de
conhecimento, pela autonomia do signo.
O Bispo, na obra, são os sinais pessoais
motivadores de uma emoção incomum para o observador. Os bordados trazem
itinerários e vivências com as intenções do passado. O delírio auditivo
determina, ordena ao homem a confecção da obra e constitui-se no moto-contínuo
da operação artística. Em sua complexidade, a obra gera admiração imediata,
pelo estranhamento trazido à percepção. Os objetos não culturalizados no âmbito
da criação e a trágica história de vida do artista, com seus intransponíveis
humores pessoais, vão, aos poucos, gerando uma hipnótica rede de significações
que não se acomoda ao saber artístico tradicional do observador. Esse
conhecimento, pelas mãos do louco, chega abrupto, sem amaciamentos estéticos,
sem o ideal do belo ou do equilíbrio. Irrompe do inconsciente, formulando uma
estética delirante, irreconhecível ao olhar primeiro.
O artista era, também, um compósito de sua
arquitetura. Esta representava, para ele, uma trama magnética pessoal,
totalitária, crescente e dominadora de espaços, que representava uma forma de
vida fundada no trabalho e na produção. Evidencia-se que o atávico caráter de
inutilidade da loucura passou ao largo de Bispo, quando se consideram o número
de objetos que produziu e a forma como os produziu. Uma obra feita de algumas
centenas de objetos para os quais o pouco tempo, desde sua morte, foi
suficiente para desconstruir. Falta de recursos, instabilidade dos
administradores, falta de uma política definitiva de manutenção e restauro,
desconhecimento e desrespeito à memória fizeram-lhe uma coleção de fragmentos.
Para os outros, conhecer sua obra
significava adentrar uma voragem de intangíveis horizontes a conspurcar a
percepção observadora. Como um labirinto traiçoeiro, ela seduzia e afastava,
envolvia e abandonava. Era forte como emblema do inconsciente, mas fina e
frágil na particularidade de alguns materiais, como o papel, o pano, o barro e
o plástico.
A descrição que ora se propõe é formulada
com base em inúmeras visitas ao Museu Nise da Silveira, na Colônia Juliano
Moreira, em Jacarepaguá (RJ), em informações colhidas de pessoas que conviveram
com o artista e na análise de vídeos realizados no Pavilhão Ulisses Viana.
Deve-se lembrar que boa parte da obra foi destruída na passagem de um hospital
para outro, conforme relata o dr. Hugo Denizart, um dos responsáveis pela
divulgação do artista nos anos 80 e pessoa que registrou em vídeo e em fotografias
já publicadas e expostas a vida e a situação dos internos da Colônia Juliano
Moreira.
Na forma, há uma predileção pela
tridimensionalidade. Embora desconheça a correta representação da proporção dos
volumes, o artista realiza objetos para a ocupação de espaços nas dimensões do
comprimento, largura e altura. São poucos os elementos feitos no plano: neles
incluem-se os bordados em lençóis, alguns papéis escritos e uma folha de
flandres furada, que resultou em forma de grande plasticidade. Sabe-se também que
Arthur produziu um quadro, oferecido à psicóloga Rosângela Maria Magalhães, e
outro, que já foi propriedade do artista Lula Wanderlei.
Em Bispo não há um elemento que determine
uma posição de centro, da qual se possa partir como referencial para uma análise
radial da obra. Há uma opção pelo irregular e por elementos de surpresa, que
não se deixam captar logicamente dentro de estruturas rígidas de classificação
e análise. Não há, igualmente, um aspecto evolutivo em que o procedimento
amadurece pela pesquisa e pela autocrítica que os produtores de arte processam
sobre o que fazem. O caminho para a interpretação desse labirinto de formas é
pessoal, embora seja difícil dissociar o homem da obra. Há padrões expressivos
que se repetem em algumas séries. O caráter de aparente descontinuidade acaba
por se reforçar nelas, pela diversidade que apresentam. Mas há uma quantidade
significativa de objetos autônomos, passíveis de análise. Remetem à leitura
individual, mas demandam a relação com outros formalizadores da linguagem
artística. É o caso das semelhanças com elementos produzidos pelas vanguardas
do início do século. Nada disso tira da obra sua característica de
imprevisibilidade e de abertura a formas inúmeras de descrição e análise.
As “leis internas da obra”, como as
denomina Umberto Eco (1971), em muito se estabelecem a partir de sua
materialidade casual. As substâncias constitutivas das bases e das
possibilidades de formulações em Bispo são a variedade e o ocasional. Isso o
leva a não processar um domínio viabilizador da evolução técnica pelo trato
física dos materiais. Não se pode, também, analisar a obra a partir de sua
competência evolutiva, se considerada a técnica. O obstáculo referenciado por
Eco está na base do domínio artístico do homem sobre seus instrumentos de
expressão. Bispo não tem um elemento de expressão único, mas um procedimento
empírico no aproveitamento e manejo de matérias quaisquer. Por isso, entende-se
que o obstáculo se apresenta na medida da escolha do material; entre as formas
de solução encontradas para o domínio da matéria, está o arranjo e, nele, a
técnica facilitadora da montagem. Montar é produzir um organismo a partir da
disposição de suas partes constitutivas. É operação em que a originalidade deve
se processar ao impregnar a unidade criada de personalidade única. Embora a
montagem possa sugerir simplismo, demanda ineditismo pela transcriação que
permite e pelo caráter de peça única que deve ter.
Em Bispo, estabelece-se como que um
microcosmo de amplas possibilidades interpretativas. A primeira está na fonte
geradora dessas formas, que vem a ser a loucura. Querendo-se ou não, esta é uma
significação latente na obra. Pode-se afirmar, sem possibilidade de erro, que a
loucura é o elemento positivo no reconhecimento de seu feito como objeto de
arte. Se outro a produzisse, fora das condições de Bispo, dificilmente seria
reconhecido como grande criador. Posteriormente, desconstruindo-a para a
interpretação, verificam-se aspectos autônomos inter-relacionados que, no
sentido semântico, falam a partir de quatro proposições que lhe são
características: ordenar, catalogar, preencher, envolver.
Buscando-se a gênese criativa que determina
a feitura da teia de significações de Bispo, chega-se a esses princípios como
lei fundante. A razão dessa conduta criativa, imposta pela dissociação mental,
é objeto para a análise da Psiquiatria e da Psicanálise. A obra denota
procedimentos pautados nesses princípios, os quais acabam por constituir uma
espécie de personalidade imutável, sustentando toda a ação do artista.
Entende-se que esses princípios, balizadores da execução em Bispo, determinam,
na obra, seu nascedouro de referência semântica. Não se trata aqui de uma
teoria ampla de significados. Pretende-se, apenas, a revelação dos aspectos de
significação da obra, que são sua faculdade exclusiva.
Ordenar é o procedimento que imediatamente comunica a obra
como organismo. A ordem, como disposição, exige um princípio lógico de
categorias hierárquicas. Para que se chegue a resultados, em geral, previstos,
buscam-se elementos reguladores sob os quais se coloca, por similaridade,
aquilo que tem a mesma origem, a mesma forma física e a mesma cor. A natureza
tem essa inteligência para a formação de categorias. O processo evolutivo
determina a formação de organismos que se agrupam em ordens, como lei geral
autônoma. Delas vêm as subordens, classes e subclasses de seres viventes, por
exemplo, descritos pela Biologia. A obra apresenta, nos grandes fragmentos
seriados, essa tendência geral à ordem. Os objetos são estruturados de forma
que a latência organizadora salta, em primeira instância, como identidade
imediata do signo artístico. Sapatos em relação de semelhança com sapatos,
pentes adotados como corpo para a ocupação ordenada do espaço, garfos dispostos
na sequência que suas próprias dimensões determinam, identificam uma taxa de
informações suficiente para clarificar o idioleto, essa marca pessoal e, por
vezes, indizível de Bispo. Não há uma hierarquia estabelecida por uma matriz a
ser dada como paradigma para a ordenação. Antes de tudo, é necessário
ver que a ordenação existe como princípio, mas não como resultado lógico de
categorização.
Catalogar, verifica-se, é um dos princípios de
investigação para a arte conceitual, como os mapas de obras, os croquis ou a
própria palavra como parte da pintura. Em Uma e três cadeiras, Joseph
Kosuth torna claro esse princípio de relação entre o objeto em sua situação
natural, sua representação mimética no quadro e sua definição linguística. Os
três momentos estão no plano, e o quadro explicita a situação de entrecruzar a
escrita com a realidade e a representação, também na obra. Quando o signo
verbal é aposto ao objeto ou ao signo da visualidade pura, na forma de
explicitação, está-se diante de um processo de aderência de códigos, em geral
com a superação do visual pelo escrito, se este tender à conexão, ao princípio
hipotático. Dar nome ao visível, investindo-o voluntariamente com a palavra é
criar um campo de experimentação no qual a incerteza deve cair por terra. Bispo
assim tenta fazer, querendo estabelecer uma explicitação geral por intermédio
da escrita e da numeração. Pode-se dizer que a sua criação está fundamentada,
também, na utilização do léxico como princípio descritivo, quando não como
princípio fundante. A escrita, o número, a pseudo-ordem numérica não fecham a
significação. Ao contrário, somam-se ao objeto visual como possibilidade de
indeterminação e abertura à interpretação. Sua catalogação não restringe a
leitura do objeto e não o limita a se postar taxonomicamente ao lado de seus
pares. Faz com que a indeterminação e a erraticidade se ampliem na tentativa de
identificação do objeto catalogado. No catalogar de Bispo, sabe-se que uma lei
ordenante está permeando a ordenação espacial, embora nunca estabeleça uma relação
intrínseca de um objeto com o outro, como reza a lógica das ordenações
conhecidas.
É esclarecedora a análise do quadro Les
mots et les images, de René Magritte, em que o autor, por uma equivalência
semântica, esclarece que Un objet ne fait jamais le même office que son nom
ou que son image: cheval (“Um objeto não desempenha a mesma função de seu
nome ou de sua imagem: cavalo”). A obra do artista belga conecta signos para
apresentar enunciados no quadro, mostrando a prevalência do código verbal sobre
aquela imagem que designa. O discurso escrito é signo com autonomia sobre a
representação visual. Bispo apõe a letra e o número com o desejo de que o soma
por ele produzido se estruture em alguma forma de ordem que não se sabe qual é.
Buscar coerência nessa ordem seria uma viagem pelo mundo das possibilidades e
nunca o resultado de uma possível pesquisa.
Há arranjos tridimensionais de Bispo nos
quais não comparecem a escrita, o número ou a letra, nem se faz presente o
desejo da catalogação. Mas este continua como princípio, inclusive nos
bordados, nos quais se dispõe a memória do passado vivido. Está, também, nas
obras moduladas em papelão, nas montagens que têm o plástico como páginas de
expressão e nos encapsulados representando a geografia das ruas do Rio de Janeiro,
uma série de estranhamento e alto teor de significação autônoma.
O catalogar é um sistema numérico e
de escrita, transposto para o nível estético, que pode representar a vontade do
controle sobre o todo e a referência espacial imediata aos microitens. A
catalogação relaciona-se com o capítulo 8, sob a cifra “A Ordenação da Trama”,
em que se busca a lógica de um processamento esquemático na interioridade da
obra.
A terceira característica geral da obra,
presente nas montagens, é a de preencher o espaço de expressão, aquela
ambiência física determinada pela base material em madeira, plástico ou
papelão. O preencher ocorre pela disposição dos corpos que se pretende
sejam um extensão do outro ou uma complementação pela seletividade formal de
cada um, quando a natureza desses corpos não se assemelha. Os bordados são
elaborados com a técnica do preenchimento do espaço. Um pergaminho de memórias
e de representações do entorno buscando a completude nos limites do branco.
Preencher aí significa dominar o que está virgem pela inserção de uma gramática
pessoal. É formular uma personalidade transformadora, mudando-se a natureza
daquilo que é efêmero. Ao se bordar, o pano adquire outra natureza que não a de
ser um mero lençol. Sobre ele está a pregnância do signo artístico. As
montagens, com variedade de elementos, processam-se, assim, por uma possível
complementaridade de formas. O preenchimento dos interiores quer a eliminação
da lacuna, a elisão da fenda.
Sobre a fundamentação desses objetos em sua
complexidade estrutural, evidencia-se o quarto princípio geral fundante, o envolver,
ou encapsular, como qualidade constitutiva do alicerce sobre o qual o
artista ergue sua arquitetura de lógicas próprias, ordenadas pela insensatez.
Envolver está na base do estabelecer de um esboço pessoal de difícil
esclarecimento, visto que baseado na experiência pessoal. É a supressão do que
sempre foi e é, pela transformação taxonômica na exterioridade do outro. O que
aparece ganha outra feição, um disfarce na aparência, sua tradução em outra
coisa e a manutenção da forma. Significa, também, a marca do desejo de se
colocar, como o guardião, aquele que é maior, pronto para proteger o envolvido.
Bispo cerca o que se apresenta à vista como que lhe dissimulando a natureza.
Nessa operação, a peça de ferro pesada e dura recebe uma carga de
expressividade na qual o que primeiro se comunica é a maciez. Não se
conhecendo o material que determina aquela forma original, pensa-se, ao
primeiro olhar, tratar-se de objeto suave. Ao tocá-lo, sabe-se tratar de um
disfarce, com a resistência do ferro, pelo peso. É o privilégio do tato que vai
discernir entre o rugoso e o liso, o compacto e o poroso, como se o elemento da
arte fosse uma extensão das mãos.
Envolver é assumir a guarda do que lhe está
à mercê. É tornar-se essencial e próximo, pelo que falta ao outro. É dispor-se
pelo que lhe é próprio e que ao outro falta. Está, também, na base de outra
obsessão, a de colecionar. Pela amplitude numérica dos objetos que possuía, um
apêndice da própria vida reclusa, infere-se que Bispo era um obsessivo
colecionador: aquele que arrebanha o dessacralizado, que o organiza para nele
projetar o sonho da desrazão como possibilidade de retenção da realidade. Uma
realidade que não domina, mas na qual pode interferir, apropriando-se de seu
restos e transformando-os em novas significações. Rouanet (1989) entende o
hábito da coleção como maneira de tornar os objetos acessíveis à reminiscência.
Cita a “irracionalidade da mera existência das coisas”, o que se aplica totalmente
a Bispo, em sua compulsão por inserir elementos banais num sistema que se
formatava e ganhava representatividade, na medida das próprias inserções.
Colecionar pode ter significado para Bispo uma forma de contato afetivo com o
que era exterior às suas celas, pela relação com as coisas do meio, nas quais
interfere, contrariando o sentido usual de sua história.
Mudar a exterioridade dos corpos, pelo
processo de encapsulamento, é um princípio cuja propriedade subjetiva pode
estar nas origens da condição paradoxal do artista, com a cisão do eu e a
projeção do inconsciente sobre a razão.
Adotamos, neste estudo, o princípio da base
material e do procedimento sobre os objetos para a descrição sumária da obra.
6. A BASE MATERIAL
Things are on
the saddle and they ride mankind.
(Emerson)
Para se inventariar a obra a partir de sua
base material, é necessário esclarecer que na produção de Bispo não há uma
anterioridade artística, uma seleção prévia norteando a preferência pelos
suportes sobre os quais recai a expressão. O que o supre com a materialidade,
além do próprio organismo de formas presentes no asilo, é o acaso, os demais
internos e os visitantes. Por isso, grande parte da obra é feita de objetos
incomuns e não seriais, como o lixo e outros resíduos da inutilidade física do
dia-a-dia.
Os materiais utilizados são, em geral, os
que lhe estão disponíveis, o que permeia o caráter físico da obra de Bispo de
um aspecto criativo aleatório. Tais materiais não são aqueles dos quais a
tradição artística lança mão, ou seja, não vêm da indústria da arte, como o
acrílico, o papel, a tinta a óleo ou acrílica, a tela, o gesso e o bronze, para
citar somente os mais usuais. A base material não se define a priori.
Apenas nos lençóis bordados há essa competência seletiva e uma possível
anterioridade do pensamento sobre o procedimento criativo. Uma agulha pode ter
desencadeado o pensamento sobre esse processo expressivo incomum: o bordado.
Sem as linhas, sem o providencial bastidor, sem o tecido, Bispo desfez os
uniformes azuis, tomou os lençóis em uso na cama como base e sobre eles bordou
frases patéticas, figuras e símbolos.
O alicerce físico na obra de Bispo
fundamenta-se na medida da materialidade determinada pelo entorno. E o entorno
não significa, apenas, o que está disponível no ambiente manicomial. Após
décadas vivendo o enclausuramento, Bispo tornou-se o “xerife” organizador das
filas para o almoço e o jantar e impôs aos outros internos uma mítica incomum
em asilos. A mítica do comandante, aquele que lidera não apenas circunstancialmente
o grupo, mas estabelece a supremacia de sua vontade e impõe-se como a voz mais
forte, em torno da qual há uma conjugação de interesses. Não se pode comparar
essa liderança com aquela das prisões, a que objetiva o crime, mesmo fora do
ambiente do recluso. Nos asilos, liderar, se assim se pode dizer, significa
apenas fazer-se respeitado. Era Bispo um referencial humano para os demais.
Sua qualidade de organizador, portanto, não
se restringe à obra, mas à própria vida comunitária, que talvez carecesse de
uma ordem interna informal, antes de sua sustentação como líder. Por isso,
Bispo foi entronizado o chefe, o mediador, no momento em que todos,
obrigatoriamente, deveriam estar juntos, ou seja, na hora de receber o
alimento. Essa condição fez com que o artista fosse constantemente procurado
por outros internos, os quais lhe traziam objetos para a composição da obra. A
profusão de pratos, sapatos, congas, pentes, canecas, bolsas femininas, bonecas
e tantos outros elementos díspares nas montagens justifica-se por essa romaria
de loucos à caserna do chefe na Juliano Moreira.
As operações formais, fora das montagens,
ocorrem pela via do artesanato. Há uma predileção pela formulação de objetos
infantis, como que para finalidade lúdica. Em geral são carrinhos toscos, cuja
confecção não exige mais que operações primárias sobre a forma e a estrutura,
como cortar, serrar, colar e pregar. As formas são o quadrado ou, no máximo, o
retângulo e o círculo, corporificado nas rodas. A matéria circular é recorrente
no carrinho para suporte de bombas de gás antiincêndio, em carrosséis, na Roda
da fortuna (uma cópia fiel da Roda de bicicleta, de Marcel Duchamp)
ou em formas geométricas dos bordados.
Impossibilitado de acompanhar as alterações
sociais no mundo externo, privado de ver a evolução da arte extramuros, o
artista voltou-se para a própria estrutura física da realidade asilar e,
operando sobre ela, encontrou e fundamentou sua gama própria de bases
materiais. O que Goffman (1987) chama de “a profanação do eu”, pela perda seja
da referência de uma cultura externa, seja do aporte cultural do interno, pode
ter resultado em uma tentativa constante da formulação de uma individualidade,
na medida ampla da formulação artística. A base material se faz na medida das
limitações impostas pelo meio físico, por isso é aleatória. Mas, como
possibilidade expressiva, abre-se como uma nova perspectiva material,
determinada pela carência, como uma transcriação sobre o que já foi criado,
utilizado e, em geral, tornado inútil.
A MADEIRA | É o suporte físico
mais estável para outros materiais pesados, como ferros de passar roupas,
latas, vidros de conservas, espelhos de luz, tomadas, frigideiras, tampos de
fogão, estruturas internas de caixas de som, tampas de panelas, funis, partes
de encanamentos, botões, chaves, vidros de faróis de carros, mangueiras para
irrigação, carpetes enrolados, garrafas plásticas de detergente, copos
plásticos, tampinhas de garrafas, garrafas de vidro, boias de redes de pesca,
redes de pescar, rolos de papel kraft, colheres de pau, cestinhos de plástico para pão, ralos metálicos,
torneiras e partes de torneiras, bocais de lâmpadas, brochas, pincéis, fivelas
metálicas, abajures, facas, um relógio cuco, canivetes, forminhas de uso
culinário, estatuetas em gesso da Pomba Gira, da Cabocla Jurema, de Nossa
Senhora Aparecida, de Cosme e Damião, da cabeça de Nefertite, da bandeira do
Brasil, de Santo Antonio, São Lázaro e São Sebastião, colares de contas
plásticas, escovas de cabelo, uma Estrela de David, uma moldura de onde foram
retiradas as fotos, azulejos, vasos, saca-rolhas, flores metálicas,
espremedores de frutas, saleiros plásticos, bengalas encapsuladas, ancinhos,
ratoeiras, escadinhas, carrinhos plásticos e de madeira e inúmeras outras
formas inidentificáveis, circulares ou geométricas.
A madeira revela o caráter artesanal e, em
muitos momentos, a vontade de domínio sobre a matéria que supera a própria
habilidade manual na manipulação. O material resiste à consecução de formas. O
lenho não se deixa dominar com facilidade. Demanda extensões técnicas da mão
para que assuma formatos determinados. Talvez pela impossibilidade de obter
essas ferramentas, Bispo tenha utilizado a madeira mais como base de
sustentação e para a organização de formas com a solidez desejada. Operou
minimamente sobre ela e, quando o fez, foi pelo corte com serrote ou faca e
pela junção das peças, geralmente com pregos e, muito raramente, com cola ou
com amarrilho.
Grande parte das montagens é, assim,
elaborada a partir da estrutura física das formas em organização, formas estas
que demandam a base sólida da madeira para o arranjo das partes da composição.
Não há regularidade de tamanho nessas bases. Sua dimensão depende dos
fragmentos que sobre elas serão arranjados. São estruturas pesadas, em geral
retangulares e verticais, sobre as quais o artista vai organizando os
objetos, selecionados por similaridade, como sapatos, canecas, garfos, pentes,
garrafas de água mineral, ou por contiguidade, como plásticos diversos ou
outros materiais vários.
Esses constructos individuais são os
módulos da arquitetura de Bispo. Embora extremamente pesados e sólidos, eram
transportáveis, podendo ocupar diferentes lugares nas celas do Pavilhão Ulisses
Viana. Uma característica comum a todos é a continuação de duas partes da
moldura, formando uma espécie de cabo que permitisse o manuseio. Esses cabos
assemelham-se, rusticamente, àqueles das carriolas para transporte de areia ou
cal. Esses cabos podiam funcionar também como um pé: se a obra fosse
depositada no piso, a montagem ficaria protegida e distanciada do rés-do-chão.
Em instituições como a Colônia Juliano
Moreira, a madeira está disponível na forma de caixotes de frutas, troncos do
entorno rural, cabos de vassouras, vara, ripas, pedaços de portas e janelas,
travas, varinhas, pequenos lenhos, pranchas, vigas, fragmentos de soalhos e uma
barafunda de possibilidades determinadas pelo uso dado a esse material.
Na obra de Bispo, a madeira foi, também,
utilizada como elemento expressivo autônomo, ou adicionada a outros materiais
como forma escultórica. Quando não é tomada como base, é um componente em geral
agregado à forma final, sem alterações substanciais, conservando a feição com a
qual surge para o artista. Não sendo o suporte, passa a compor, mais do que
transformar ou ser transformada.
Não se trata da madeira com possibilidade
de modulação figurativa, com dureza pensada, resistência medida, durabilidade
calculada em função da permanência da obra. Não se trata da madeira apropriada
ao objeto da arte: é a madeira que sobrou, a lasca encontrada no lixo ou na
sujeira crônica do ambiente asilar. O artista dela se apropria sem pensá-la
como matéria-prima elementar a ser densamente transformada em sua natureza
estrutural. O artesanato modificador que opera sobre essa base é pequeno, e
para isso deve-se considerar a ausência de um ferramental mínimo para operações
de transformação manual: formões, martelos, pregos, serrotes afiados, cola,
serra tico-tico - os acessórios, enfim, que viabilizam a interferência eficaz
sobre a madeira para transformá-la em elemento autônomo de expressão e com
maior variedade de sustentação de formas.
Bispo utilizava-se de uma faquinha. Fora
esse instrumento, há outros que foram encapsulados, como o martelo e o formão e
que talvez fossem usados como viabilizadores da técnica.
Há um traço característico na estruturação
da madeira, sobretudo na construção do esqueleto dos barcos/prateleiras. É o
feitio do elemento vazado, que permanece na obra acabada como um frágil
arcabouço visível.
A madeira, tomada como suporte, também está
presente na forma de pedestais quadrados ou de tábuas retas, de onde sai o
objeto elaborado em direção ascendente. Assim estão articuladas: A roda da
fortuna; uma representação em gesso de Diana caçadora; a peça que
Bispo catalogou como B-280 palanque; a base para o Sacco de boxe; a
Cantoneira para flores plásticas; o Orador religioso - o
Político; o Curral; o Timão com sino; o recorte 434 - Como
é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa; e uma infinidade de
outros objetos que parecem inacabados ou foram parcialmente destruídos ao serem
transportados para o Museu Nise da Silveira, onde hoje estão.
O PANO | Este é um suporte tradicional que não é utilizado
por Bispo de forma convencional. O quadro tendeu a constituir o aspecto de
mobilidade da obra de arte e sua característica de objeto independente, fora de
sua inserção como elemento da arquitetura ou da decoração de interiores, e foi
delimitado em suas extremidades por outro elemento de sustentação, em geral a
madeira. Os dois, pano e madeira, estabeleceram o espaço delimitador da
expressão, do qual não houve transbordamentos até as modernas experimentações
do Dadaísmo. Com este, o comportamento e a técnica da arte cederam a uma certa
desordem na formulação do objeto artístico.
O quadro, após as experimentações
vanguardistas, deixou de ser o espaço sagrado e único do artista. Bispo, como a
vanguarda, utiliza o pano de forma inusitada, fora da sujeição à moldura, mesmo
porque o tecido de que dispõe não está, tecnicamente, adequado à tradição das
tintas e dos pincéis. São panos e não telas feitas com a urdidura adequada ao
recebimento das demãos a serem aplicadas sobre a superfície-base. O pano, ao
contrário da tela, não resulta de um desenvolvimento têxtil, relacionado à densidade
da têmpera, do óleo ou da tinta acrílica, modernamente utilizada. Se Bispo
usasse o algodão para a deposição de tintas, certamente não se criariam
películas, aqueles delicados espelhos que se vitrificam sobre sua base mais
adequada, a tela.
O pano, embora não tomado como base para a
tinta, tem diferentes utilizações para Bispo. Pode ser suporte ou elemento de
composição agregado, um elemento secundário para a formulação de outros
objetos, conjugados a outros materiais. No primeiro caso, aquele em que atua
como base, é interferido para que a linguagem se expresse em sua função
de memória. Referimo-nos aqui aos bordados sobre lençóis e aos bordados sobre
tecidos formatados em retângulos horizontais, juntados pelas extremidades,
compondo os estandartes de fragmentos.
Pode, também, comparecer sob a forma de
vestimentas. Aí, estamos diante de objetos cuja base é o pano, já não, porém, o
algodão dos lençóis. Trata-se das fardas, uma possível rememoração da vivência
do homem marinheiro. Essas fardas são tiradas de seu uso cotidiano e
interferidas com bordados mínimos, carregados de elementos do delírio auditivo.
Frederico Morais, que conviveu com o artista e realizou duas exposições quando
este ainda vivia, lembra que uma das fardas tem, costuradas nas mangas,
pequenas faixas retangulares horizontais, de cores diversas. Esclarece que
essas inserções de retalhos são o resultado de respostas dadas por diversos
visitantes às clássicas perguntas admissionais do artista: “Qual a cor da minha
aura?”, “De que cor você me vê hoje?”, ou “Qual a cor do meu sembrante?”. Bispo
apropriava-se da cor recebida em resposta como elemento formal para a
composição estética, apondo-a sobre a farda. É possível que, na relação
cuidadosa com esses objetos, tentasse estabelecer um controle ao ingresso em
seu labirinto já ordenado e quisesse impregná-los com a representação da
história e das vivências pessoais e do presente.
A ideia de uma tentativa de filtragem por
meio de sinais ou senhas repete-se em muitos momentos na obra, pela conjugação
da busca de uma ordenação racional que nem sempre acontece, sobretudo nas
montagens, com o rememorar frequente do passado, pela utilização da escrita. O
controle chega pela ordem e pela memória.
Esta seria a característica primeira do
artista. Uma ordem que não encontra um resultado imediato, um fim esperado e,
por isso, perpetua-se como procedimento. Não se trata de uma função, a de
repetir, a serviço de uma finalidade, mas da organização pela tarefa obsessiva
de organizar, que resulta em processo de criação de falas que se repetem.
Entendendo-se a organização como qualidade sutil na mente paradoxal, não há um
princípio lógico externo a ela. A organização em Bispo apenas é. Ela não tem
uma utilidade que não seja interna ao artista, mobilizado, a partir do delírio,
pela pulsão de representá-la. Trata-se de um organizar indiscriminado,
insistente, que retém, na obra, o gesto geometrizado, não informal e pessoal do
artista. Dessas molduras de ordem pode transbordar a desordem, como nas
“Embarcações”, receptáculo de uma miríade de formas inusitadas que vão se
derramando pela estrutura física do barco.
Os lençóis contêm o exagero dos
elementos figurativos, também acentuado na escrita, pela frase paratática.
Nesta, as conexões lógicas do pensamento, com a estrutura frasal organizada em
sujeito, verbo e complementos, não conseguem se estruturar. O texto hipotático,
de estruturação lógica, aparece apenas uma vez, no pano onde bordou a mensagem
escrita por outra pessoa: os dizeres de propaganda da revista Veja, de
26 de março de 1986, relativos a uma posterior publicação de fascículos para
venda em bancas de jornais.
O bordado figurativo é um preencher
constante do espaço, um exercício de acumulação de formas aleatórias, como que
a fugir do vazio. É uma possível representação do medo do nada. Uma agorafobia
estética, um mórbido sair das grandes extensões espaciais. O que se verificou
na tridimensionalidade, no Pavilhão Ulisses Viana, o que se repete no interior
das “Embarcações”, é, novamente, expresso no bordado plano. Há que se
considerar aqui os dificultadores e os facilitadores de cada técnica utilizada
nesse preenchimento sem crítica.
No espaço, trata-se de arquitetar novas
formas a partir da junção de outras preexistentes, fazendo-se uma aproximação,
por alguns princípios de semelhança ou não, entre os componentes. No plano,
principalmente nos bordados em que elabora a figura, há uma ordem geral,
determinada pelas imposições da própria técnica do bordado. Este exige que se
dimensione no pano a figura a ser impressa pelo entranhamento de outra linha e,
assim, não facilita a casualidade que se faz presente nas montagens.
As montagens, por serem esquemáticas, são
mais abertas à inserção de materiais. São edificações que permitem liberdade na
escolha dos contornos, uma vez que trabalham com a forma livre e sua
articulação. Em algumas, há uma tendência à abstração, pois as formas agregadas
não se definem a priori. São raros esse momentos, mas eles estão em
trânsito pela montagens, como estão alguns sinais bordados. No espaço, surgem
como liberdade gestual na ordenação e escolha dos materiais aderentes. No
bordado, não: ali a figura determina-se previamente e, ao exigir paciência e
tempo em sua confecção, acaba por apresentar uma feição de maior clareza, de
maior limpeza, sem ruídos na leitura e, aparentemente, uma menor entropia. Por
essa razão, o bordado figurativo ganha autonomia estética em relação ao todo da
obra de Bispo. É o segmento mais mostrado em exposições, porque se sustenta
como técnica inusitada, como procedimento particular e como possibilidade de
expressão própria, sem precedente na história da arte brasileira. É um trabalho
complexo e de apelos aos sentidos. Sem ser agradável, é empático e
surpreendente. A figura bordada é reduzida a sua forma primária, despida de
adereços ou adornos. Ainda assim, os bordados figurativos, pela profusão de
formas que os rodeiam, como um inventário do universo vivido ou imaginado,
saturam a retina.
O pano, em sua variedade de tramas, pode
ser utilizado como elemento adjunto. Há um berço rústico de madeira, onde o voile
é o elemento de proteção a um suposto bebê, representado por folhas amassadas
de jornal. Já o outro, o leito que criou como objeto de contemplação e que se
assemelha, em sua ambiguidade, a uma nave, foi guarnecido com ampla peça de voile
branco à guisa de mosquiteiro. Este foi decorado com fitas de lã azul e verde e
cordões dourados e marrons. A cobertura do leito/nave é feita por uma colcha
verde-água, ornada com geometrismos e motivos florais, arrematados por uma pequena
franja. É um objeto cuja estrutura é a madeira e que pode ser usado para sua
finalidade original. Mais do que elemento da representação, é realidade pouco
interferida, porém, muito significada.
A MASSA, O BARRO | O barro oferece possibilidades
inúmeras de expressão. Considerado pela cultura dos materiais como elemento
menor, é um dos princípios mais maleáveis na elaboração de formas. Exige o
contato direto das mãos. Moldar o barro demanda, apenas, a operação da mistura
da alumina e da sílica ou da argila e da greda com a água. O processo de
secagem pode ser natural e, embora lento, não exige, obrigatoriamente, a
utilização de fornos ou catalisadores.
Bispo revela-se um artesão na manipulação
do barro que processou. É o acabamento para sua base escultórica. Utiliza-o
pouco, mas por meio dele revela seu potencial de criador e não só de ordenador
da forma. Cria ícones da espacialidade, com a utilização dessa técnica milenar,
simples, mas que exige a precisão no arremate. Com o barro, finaliza carrinhos
tão ao gosto da criança da roça, do interior, ou de lugares onde a cultura dos
brinquedos para meninos não era, ainda, ditada pela indústria. A Japaratuba de
1911 assim deveria ser. Um desses elementos referencia a diligência, meio de
transporte dos filmes ambientados no Oeste americano. O que seria a cobertura
desse veículo, em geral em tecido grosso, a lona, é cuidadosamente formatado em
barro escuro, possivelmente o saibro, como se infere por sua tonalidade cinza
enegrecida.
Outra pequena escultura, sustentada por uma
barra de madeira, é, também, acabada sob esse princípio da cobertura com
material de consistência de massa, desta vez branca, talvez a cal. Trata-se da Caixa
d’água, elemento que não se explicita à primeira mirada, pois exige a dúvida
como forma de identificá-lo. Por estar fora do chão, sustentada sobre três
pilares, e não quatro, como manda a convenção, processa a indecisão no momento
em que o receptor tenta percebê-la materialmente.
O PAPEL, O PAPELÃO, O PLÁSTICO | Estes são meios
largamente utilizados como sustentação para a expressividade. Não como
elementos escultóricos apenas, mas como base para a escrita em três dos quatro
princípios anteriormente citados, ou seja, preencher, catalogar e ordenar.
Segundo dados informalmente obtidos na Colônia Juliano Moreira, soube-se que
Bispo mantinha em seu autocativeiro uma série de listas telefônicas. Com a
obsessão pela re-presentação da ordem, realizou uma série de módulos em papelão
recortado de caixas, que permitem o movimento e podem ser pendurados. Sobre as
peças moduladas, transcreveu uma sequência de nomes, dos quais manteve a letra
inicial, embora a ordem alfabética não tenha sido respeitada corretamente.
O objeto final lembra um estandarte,
como aqueles que abrem as festas religiosas da Folia de Reis ou a Festa de São
Gonçalo, referências culturais das populações rurais, hoje quase extintas, mas
de forte inserção nas comunidades interioranas no passado. No capítulo I,
especificamente na história de Japaratuba, há comentários de Eduardo Carvalho
Cabral sobre as festas populares de origem africana realizadas naquela cidade.
Nelas, o estandarte comparece, como também no Maracatu (com a Dama da Boneca) e
no Reisado. O estandarte anuncia, emblematicamente, a chegada dos blocos, com
os símbolos identificatórios de cada um; a entrada do estranho no espaço do
conhecido, a vinda daquele que se anuncia em silêncio, que chega como um monarca
em visita a outro reino, que sabe que vai embora, pois que de transitória
passagem; cristaliza no instante a sua melhor qualidade, a beleza do movimento,
a promessa das rezas, a música, a força da invocação.
O estandarte é a inscrição para que a
memória, tão seletiva, lembre-se dos melhores momentos, como a boa hora nas
angulosas riscas dos relógios de sol. O estandarte é o registro do que está no
presente do outro, mas que pede para não ficar como corpo ordenado, assim
poderá um dia voltar. Poderá voltar sempre, para depois se dissolver na
desordem dos corpos que se tornam estranhezas enfeitadas, perdidos atavios no
âmbito de quem o recebe.
O carnaval conserva essa situação do
emblema como forma identificatória e de anunciação da chegada, antigamente, dos
blocos, e hoje, das escolas de samba.
Outro elemento da escrita sobre o papelão é
a notícia policial, o fato relacionado ao crime e ao castigo. O punido carrega
para sempre a carga de sua punição, suporta a sua marca solitário. Leva-a
consigo como qualidade definitiva de seus feitos. A punição é o que está e que
não pode ser removido ou transferido ao outro. Ela é interioridade pura,
instalada, entranhada inexoravelmente. Se o estandarte paira e passa para se
tornar lembrança, a punição fica, pois sempre será relacionada a algo passado.
A escrita é, pois, o engenho que plasma no estandarte a festa e a culpa.
O estandarte é, portanto, o marco
maniqueísta de Arthur Bispo do Rosário, em quem o bem e o mal são referências
dentro das quais o homem faz o seu melhor para chegar à casa do deus. O
material da escrita é o pincel atômico com tinta preta ou branca:
Duque de Caxias - jornal dia 25 - de - maio - de - 1979 -
depois de intensa troca de tiros - quatro assaltantes presos por uma turma - da
policias na praça principal de Piabetá - a quadrilha é responsaves por uma
seris de assaltos - foi reconhecida por umas da que procurou o delegado Rudá -
Iguatemi
Foram identificados como Rubens Martins de Castro - 23 -
anos-Rua do Relógio - sem numero Pibetá-Genivaldo Gonsalves da Silva-19 ano Rua
Guarani-18-Piabetá-Cosme da Silva Santo-19-anos-Rua Guarani-quadra
1-lote-27-Fragoso-Aristides Moreira Filho-26- anos-foram apreendidos com eles
tres revolveres
Calibre-38-calibre32-todos com carga deflagradas-depois de
atuados e trancafidoconfessam ja possuir antecedentes criminais pela pratica de
roubos e furto-no momento em que foram presos estavam planejando atacar um supermercado
que fica à entrada da cidade. [6]
O plástico também é utilizado como base
para a escrita com pincel. No mesmo segmento, há estandartes fixos sobre
papelão, no qual foram apostos retângulos azuis e há uma série de nomes,
seguidos das respectivas profissões. Comparecem dados de pugilistas
brasileiros, portugueses, argentinos e uruguaios do passado.
7. PROCEDIMENTO PLÁSTICO
A história da arte pode ser descrita como o ato de forjar
chaves-mestras para abrir fechaduras misteriosas dos nossos sentidos, cuja
chave original só a natureza tinha. São fechaduras complexas, que apenas se
deixam penetrar quando diversos parafusos ficam de prontidão e certo número de
trincos são movidos simultaneamente.
(Gombrich, in Arte e ilusão)
AS “EMBARCAÇÕES” | São em pequeno número, mas de
importância capital para a análise da obra e uma referência direta ao homem.
Embora nem sempre se apresentem como elementos de identificação imediata, pela
forma esquemática como são articuladas, trazem indícios do passado vivido do
artista, enquanto jovem sinaleiro e grumete na Marinha. Alguns elementos com
essa feição identificatória são cordões de bandeirinhas, presos às extremidades
dos mastros e dos barcos. Ao mesmo tempo em que são percebidas como
embarcações, inculcam a dúvida no receptor que examina mais detidamente esses
objetos escultóricos. Estão estruturadas como prateleiras vazadas, em geral, de
três níveis. Sob a base de cada um desses níveis, foram colocadas rodinhas aos
pares, uma possibilidade de movimento orientado. Trata-se de embarcações
babélicas, engendradas na fragilidade de ripas, mas com um interior orgiástico
de formas. Estas se diferenciam nos materiais, mantendo, porém, a constância
dos pequenos elementos emblemáticos que são as bandeirinhas, sinais de
comunicação ou de países indeterminados. Seriam uma forma alegórica de cordões
marinhos ou de festas juninas?
A madeira, tomada como base para a
construção desses barcos, não é operada de maneira transformadora. Ela
constitui a estrutura para a deposição dessas alegorias, com possibilidade
concreta para a mobilidade do objeto, uma vez que guarnecida de rodas. A
embarcação-mãe sugere-se, também, como uma prateleira, algo que sustenta as
partes. Ela é seu próprio modelo, na medida em que contém o outro que tenta
representar. Na forma geral, lembra um edifício, cujos módulos são aquilo que
está no todo: um arquivo absurdo de si mesma. Nesse sentido, o barco representa
o que é, mas vai além da realidade, fazendo da estrutura esquelética edificada
por Bispo uma matéria que, na significação, se supera para sugerir uma
ambivalência entre o todo e a parte. Há uma possibilidade de deslocamento da
percepção observadora, visto que esse processo construtivista de objetos coloca
em evidência as polaridades da ordem e da desordem. A ordem está na estrutura
montada sobre a base material, que é a madeira, a prateleira, e nos cordões de
banderinhas cuidadosamente dispostas umas ao lado das outras. A desordem surge
como as vísceras da estrutura, aquele emaranhado de formas incomuns e que não
dialogam entre si, um juntamento de materiais quaisquer que não se repetem. É a
parte entrópica e intrínseca, limitada pela ordem estabelecida pela linha
compacta que delimita o que é interior e o que é exterior. Esses objetos não
estão na escala do homem, mas na desproporção que lhes garante a arte, e seu
interior labiríntico não expressa qualquer relação de funcionalidade entre as
partes.
Sua feição interior compõe-se de
complexidade, desordenada pela natureza das peças que formam a embarcação. O
barco, um sistema de proteção e de movimento feito para a imprecisão das águas,
faz-se presente na obra como fixidez física. Por isso, foi guarnecido de rodas.
Por sua estrutura geral, a embarcação denota o objeto que está nas lembranças
do interno, que a quer expressar em sua completude de formas na relação com o
espaço. Ao apresentar indícios que o qualificam como barco ou navio, chega ao
repositório de signos conhecidos pelo observador, que o identifica como forma geral
por meio de seus componentes. Mas, ao apresentar sua intimidade, remete a essa
ambiência perceptual de ambiguidade, deslocando a lógica da interpretação para
as demais metonímias de seu arcabouço, que bem podem ser elementos da
realidade, como uma garrafa, uma bola de inflar ou, até mesmo, uma frase
escrita, elemento que transita obsessivamente pela obra de Bispo. São objetos
únicos.
Há outras embarcações, de fisionomia mais
bem figurada, que, em geral, não possuem uma área como base. Para sustentar-se,
devem ser encostadas em outro objeto.
AS MONTAGENS | O nível sintático de arranjo das montagens é
definido pela relação entre as características materiais internas dos
componentes que estruturam o código artístico. Este, segundo uma lógica
própria, processa a composição ou a organização de objetos, operando ao modo do
caleidoscópio: tal é o princípio da montagem.
Há uma infinita possibilidade de arranjos,
na medida em que a disposição dos materiais fica à mercê de uma organização de
cunho íntimo, e, embora se possa pensar uma previsibilidade sobre o universo de
unidades componenciais, o resultado criativo acaba por recair no ineditismo,
com a marca da pessoalidade em cada gesto.
Em Bispo, a desordem interior é um
princípio de significação, pela organização de formas. Há nelas a substituição
da mimesis por um princípio de semiosis, tais as variantes expressivas e os
diálogos processados entre si pelos componentes das montagens, que podem impor
a imprecisão como princípio. Há uma ambiguidade geral entre a definição
imediata da figura e uma sua segunda identidade, como os barcos-prateleiras.
Nas montagens, o método é constante. Ele é
taxonômico, é organizatório e é previsível no preenchimento/eliminação de
espaços vazios e na ordenação obsessiva.
É fato que a cultura dos materiais
artísticos, a partir de Duchamp, garantiu direitos sobre qualquer corpo para a
expressão. No entanto, nota-se que Bispo os tomou de modo diferenciado. Em sua
obra, os materiais já chegam impregnados de significação pela história que surpreende,
eivada de seu nicho original. Suas unidades de referência, banalizadas em
excesso pelo uso cotidiano, adquirem o status de objetos auráticos pela
significação sobre elas prevalente, na medida em que estão circunscritas a um
espaço inabitual para o universo da lógica.
O manicômio, cuja gênese está em Salamanca,
no século XV, já é um nascedouro sugestivo, tanto para o interno quanto para um
artista qualquer que queira ali buscar elementos de expressão, como um
fotógrafo, um pintor, um confeccionador de objetos.
As montagens de Bispo adquirem referencial
denso para a pesquisa e a interpretação, porque saem das mãos do artista com
uma carga sígnica que não possuiriam, se arquitetadas pela razão. Este é um
adendo inerente aos objetos que produz. Atualmente, outro artista de tendência
expressionista está se impondo na Colônia Juliano Moreira como pintor. Sua
condição de interno é seu diferencial, embora comprove talento e expressividade
na criação.
Feitos inusitados, esses arranjos continuam
dialogando entre si numa relação que se atualiza na medida da disponibilidade
de materiais para a seriação. A possibilidade de utilização desses fragmentos é
ampla e, ao mesmo tempo, uma finitude os envolve, mercê de sua previsibilidade
estrutural, ditada pela ordenação e o preenchimento, duas das quatro
características de Bispo.
OS BORDADOS | A série conjuga a figura à
escrita. Enquanto técnica expressiva, acena com a possibilidade do desenho
prévio, figura a figura, o que faz pressupor uma intervenção anterior mínima por
parte do artista sobre seu meio de linguagem. É, nesse sentido, uma tentativa
de ordenação da expressão.
Embora esquemático e de feição primitiva
nas angulações e nos círculos, o desenho é vivo, pleno de saturação como uma
cartografia de memórias. Destaca-se, em sua base expressiva como módulos,
dentro dos quais o movimento se ordena. Nunca se estrutura como uma gramática.
Novamente, o princípio de preencher está integrado ao espaço do pano, como
recortes individuais em que a significação é autônoma e nem sempre dialoga com
o recorde contíguo.
O preencher não nasce a partir de um centro
hipotético no plano, em que estaria o motivo e de onde sairia uma radialidade
com a qual as significações colaterais caminhariam para a saída periférica. Não
há motivo, mas um elenco de intenções motivadoras.
É uma composição formal, de princípio
aleatório, mas coerente enquanto microespaço. É una, se considerada na relação
com as vivências do artista e seu quadro clínico de fragmentação dos sentidos,
sua forma peculiar de percepção e recepção do meio. A ideia de espaço está
impressa sob a forma de mapeamentos dos pavilhões da Colônia Juliano Moreira,
vistos em plano aéreo. O esquema comparece no bordado da mesma forma que a
figura, sem o princípio mimético que tanto depende da ilusão de profundidade.
Perdida a perspectiva espacial e
considerado o fragmento bordado com suas situações individuais, o desenho geral
conjuga no plano as quatro dimensões, ou seja, o comprimento, a largura, a
altura e o tempo, como se todos se fundissem, irresistivelmente, na forma
primordial que criam. É um dos princípios que a pintura primitiva contemporânea
ainda conserva: o desrespeito à perspectiva e ao plasmar, no plano, de todas as
dimensões dos objetos.
O que a montagem permite em termos de espacialidade,
determinada pela própria natureza dos objetos utilizados e tirados à realidade,
é negado pelo bordado, que não facilita a inserção do volume dentro do
princípio da profundidade, para que o objeto seja visto em suas dimensões
naturais. Há uma repetição temática, na constância de elementos que estão em
trânsito por outros segmentos de expressão. O marinheiro, os códigos do
sinaleiro, a referência a países, as divisões militares, a boiada, o ludismo
(por meio da brincadeira de roda), os elementos físicos do entorno, as escadas,
os números e o carrossel formam uma insistência barroca na forma. Algumas
inidentificáveis, como símbolos neolíticos, sobre as quais o artista bordou a
inscrição “Desenho Geométrico”, acompanham mapas canhestros, descrições cujos
significados remetem ao ex-voto no plano e ao corpo humano, dissecado em
palavras que designam órgãos ou feições exteriores, da cabeça aos pés.
Trata-se de um dos bordados de grande força
expressiva, relacionado à leitura do corpo feita por Bispo. A peça é dominada
por um homem de braços abertos, protegido por uma linha que lembra uma redoma.
Desta sai, em curva ascendente, a descrição detalhada do corpo. No centro, como
a queda de uma goteira embriagada, descem as letras:
ESPINHADORSAL
Nos pés da figura, a confissão de fé
do artista na força sustentadora da palavra e da escrita:
Eu preciso destas palavras. Escrita.
A palavra pode comparecer, e em geral
comparece, como elemento que tenta explicitar, conforme já visto anteriormente,
ou chega com seus significados gerais e específicos, sem a companhia da figura.
Quanto à cor, preponderam o branco dos
lençóis, como base, e o azul da roupa desfiada, no bordado. Esporadicamente,
surge o vermelho, em geral preenchendo o começo de uma frase ou de um nome. Acredita-se
que o uso da inicial maiúscula preenchida seja uma opção do artista e não um
sintoma de economia de material. Diferentemente, o Manto, mais adiante
descrito, é uma miríade de cores, sem parcimônia no amarelo, marrom, azul,
verde, rosa, preto e branco. Para esse objeto, não lhe faltaram linhas. Quando
o bordado tem como base apenas a descrição ordenatória do passado, revela a
memória prodigiosa de Bispo. Nomes de médicos do Hospital Pedro II, no Engenho
de Dentro, por onde havia passado há muito tempo, ou de boxeadores famosos nas
décadas de 30 e 40, brasileiros ou estrangeiros, referências ao passado no
interior do Rio de Janeiro ou em Japaratuba, nomes do pai e da mãe, de antigos
prefeitos de cidades mineiras, de oficiais da Marinha, capitães, de navios de
guerra, ruas, fortes, de pessoas, em ordem alfabética e acompanhados de suas
profissões, compõem um dicionário existencial com uma profusão de formas como
uma sucessão de filigranas da memória.
O sentido da ordem e da direção é um
componente que forma uma condensação estética de signos escritos. Para manter a
ordenação, o artista bordou as linhas sobre as quais repousam as palavras.
OS ENCAPSULADOS - PLACAS E OBJETOS DE USO | São elementos
cuja exterioridade se tornou interior pela interferência de Bispo com o
princípio do envolvimento, um abraçar a realidade por intermédio da operação
artística. O encapsulamento é uma técnica de difícil finalização, pela demanda
de paciência, destreza e abundância de linhas. Uma série completa, aludindo aos
postes de indicação de ruas, foi realizada segundo esse procedimento.
Desconhece-se a base envolvida pela lã ou sisal. Aqui, o princípio da
catalogação é evidente. Na placa envolvida pelo fio, está bordado o nome da
rua; no corpo do poste, um número ou uma letra. Na base, em geral, há um
número.
Com isso, a obra permite duas análises. A
primeira é a do uso do bordado como um metaprocedimento sobre a estrutura de
base que foi criada pelo encapsulamento com o fio. A segunda remete à obsessão
pela catalogação mediante o uso de letras e números. O princípio pode ser
verificado nas montagens bordadas, que representam um inventário do universo do
artista no Pavilhão Ulisses Viana. Esclarecedora é a inscrição de uma delas:
12.031.Folha
de
frande
12.por 5
serve
para ama
rração em
sacco de platico com
biscoito
dobra as
3.022.
Cem moedas
de um
centavo e um
cruzeiro.E
conto
372 -
Bolas de
vidro
varias
cores -
gude
8.008.Butoes
pretos
para
barguilha
[7]
Envolver esses objetos, criando sobre eles
uma carga de sugestividade e mistério, transformando sua exterioridade
histórica e sua aparência em mundo interior, é experimento de artistas
contemporâneos como Christo Vladimiroff Javacheff (1935), que, em uma de suas
últimas realizações de repercussão internacional, envolveu o Reichstag, em
Berlim. Embora não se possa dizer que a operação realizada pelo artista búlgaro
tenha precedente em Bispo (os primeiros pacotes daquele datam de 1958), o
princípio estético da mutação efêmera de aparências que realizou é processo
experimental corrente na arte contemporânea. Nele está também o desejo do
ocultamento e do disfarce. Pelo toque da arte, a natureza dos materiais, em sua
realidade finita, amplia a significação do objeto para além de sua fisicidade.
Este perde sua qualidade funcional, tem eliminada a natureza da matéria e o
objetivo para o qual foi produzido no universo das coisas práticas, para
objetivar-se com a aura da matéria tocada por uma fonte de renovos.
Bispo processa uma mutação formal no
objeto, dando-lhe uma feição de continuum, eliminando a imperfeição das
superfícies (ao trabalhar com ferramentas encapsuladas); cria uma segunda pele,
um outro limite entre aquilo que oculta e o que é exibido ao mundo exterior;
opera a continuidade das superfícies; e alimenta uma nova matéria com a
promessa da maciez física e de uma essencialidade pura. O objeto perde seu
caráter utilitário. Ele apenas é, e não mais se define por tudo o que esconde.
A matéria transmuda-se em essência. A verdade da forma ou do objeto torna-se
sugestão e mistério, cujo deslindamento só se dará pela destruição da capa, da
segunda pele, do véu grosseiro no qual o tempo se instala pela concreção
escura, a pátina que sobre ele se deposita.
Para o discurso da arte, essas criações
contrastantes respondem com o indicativo para a fala de princípio dialético.
Esse contraste, como num poema japonês que diz: “Sobre o grande sino de bronze,
pousou uma borboleta”, propõe cogitar sobre o perene e o transitório, o falso e
o verdadeiro, o que é realidade física e conceito, o que é e o que emana, a
vida e a morte. Essa polaridade entre o perdurável e o passageiro, a dureza e a
maciez, a fixidez e a envolvência pelo movimento, o dentro e o fora, a
desproteção e o envolvimento para sempre, é elemento metafísico que a técnica
do encapsulamento revela. O que em Christo é experiência exterior memorável e
efêmera, uma vez que oculta a natureza num grandiloquente empacotar de ilhas,
pontes, estradas, rochas e vales, em Arthur Bispo do Rosário faz-se pela
operação cirúrgica da minudência sobre pequenos somas, encontrados na
interioridade do espaço asilar, e para sempre.
A CARTOGRAFIA DAS MISSES | O contraste é, novamente, determinante nessa série
de 58 objetos que se remetem aos concursos internacionais para a escolha da
mulher mais bela do mundo. No passado, tais concursos tinham grande repercussão
e reforçavam um mito de beleza feminina preso a determinados padrões de medida.
A palavra inglesa miss significa
senhorita: aquela que não se casou. Na memória de Bispo, talvez quisesse
reverenciar a virgem, a mulher santa que constantemente cita como “Nossa
Senhora”, ou “A Mãe de Cristo”, aquela que não se entregou ao homem. São três
os elementos do fetiche da miss: o cetro,
objeto de conotação fálica, cuja posse é transmitida de uma eleita para aquela
que a sucede no ano seguinte; o manto, símbolo da realeza, em geral vermelho e
com acabamento em penugens de marabu branco; e, finalmente, a coroa.
A heráldica, com sua gama de significações
potestativas e nobiliárquicas, é aplicada à mulher por seus atributos de beleza
e feminilidade. Os três elementos constitutivos dessa aspiração à grandeza, à
magnificência e à sublimidade estão presentes em grande medida na hagiografia
cristã, sendo que a coroa, em geral, é substituída pela intangibilidade da aura
nas representações pictóricas dos santos.
Em Bispo, há um delírio de discurso
religioso monitorando o fazer artístico, conforme analisado n’a ordenação da
trama. Os três símbolos da beleza, embora em sintoma com a religiosidade, não
se repetem na dicção cristã do artista: são a expressão de algo que não foi
verbalizado. Somente o conceito de virgindade, que impregna a idealização que
Bispo faz da mulher e era atributo exigido às misses, aparece nessa
série.
Em cada faixa de miss, Bispo bordou
pontos da topografia do país representado: nomes de ruas, torres, construções.
A mulher é identificada pelos indicativos de sua origem que traz sobre o corpo,
não por seus atributos. Em nenhum momento, o nome de uma delas foi grafado pelo
bordador.
Bispo realizou essa série a partir de uma
leitura geográfica do mundo, possivelmente auxiliado pelo atlas encontrado
entre seus pertences. Sobre a qualidade expressiva desses objetos, pode-se
dizer que são uma taxidermia, formatada pelo cruzamento da leitura dos mapas
com o desejo de ordenar a simbologia da beleza feminina: como uma escavação
sobre significados, o bordado utiliza a palavra e o número como elementos de
ordenação, catalogação, preenchimento e montagem.
O MANTO | Se a miss tem como atributos o cetro, a faixa e o manto, Bispo reserva para si
apenas o símbolo maior da realeza: o Manto da passagem. Ele é o arabesco da loucura, o
elemento aglutinador de toda a expressão e sentido da obra, com referenciais
evidentes da vida do artista. É o objeto maior para a análise da obra e
objetivo último da criação de Bispo. Realizado para o fim da transcendência,
para a passagem do homem, significa a entrega à morte e a abertura das portas
do reino da felicidade absoluta. Os elementos técnicos analisados anteriormente
estão aqui externa e internamente impressos na complexidade de formas
figurativas, algarismos arábicos e romanos, pequenas mandalas, minúsculos
geometrismos, objetos de uso, navios, tabuleiros de damas e xadrez, cestas e
samburás, tridentes, bules, televisores, mesas de pingue-pongue, redes de
pescar, aviões, banquinhos, escadas, carrinhos de feira, estradas de ferro,
anzóis, dados, corações, ferros de passar, formas irreconhecíveis e cores
espoucando dos planejamentos, sobre os quais descem em profusão galardões e cordões
dourados, negros, vermelhos e prateados. A parte interna do Manto também está tomada por sinais
mnemônicos, em especial nomes femininos, símbolos do vivido relacionados a
fatos e feitos de uma vida extra-asilo. O passado está impresso, como que reconstruindo
o universo, por intermédio uma arquitetura feita de lembranças.
Arthur concentrou no Manto sua
simbologia particular e solitária de religiosidade. É o ícone da passagem, que
corporifica a fé como outra geratriz da obra e, também, a contenção humana, a
sujeição do desejo à vontade da santificação. Nele comparecem os caminhos da
escrita, inventariando a memória, trazendo ao presente a carga de
transcendência que o artista perseguiu, jejuando para tornar-se transparente.
É o centro da mandala, para onde convergem
todos os sentidos, para onde é dragada toda a técnica movente na obra. É a
referência básica para as metonímias de Bispo, uma sorte de patchwork de
sentidos em que foram impressos todos os ícones da criação e as expectativas do
devir. Uma ressonância inesperada nas turvas recordações do homem de olhar
intenso na juventude. Muito se falou desse objeto e aqui cabem análises
complementares, de ordem mítica, estética e referencial à existência do
artista.
O suporte material é o cobertor barato. Nele
o bordado é a técnica mais utilizada, embora haja a sobreposição de galardões e
a deposição de cordões na forma de meias elipses exteriores saídas de um
repuxo, o que seria o plexo solar da peça. Há um movimento de origem central
que ascende aos ombros nos quais os galões dourados estão apostos para dar
maior desenvoltura e imponência ao andar. A profusão de pingentes vermelhos e
brancos, tirados de cortinas, adorna as barras sobrepondo-se à linearidade do
franjado. Tudo é movimento, do centro anterior aos ombros. Tudo sobe. No meio
dessa fartura de formas, as palavras “universo”, “céu”, “em meu nome” e
“Cristo” envolvem o pequeno coração hachurado em branco.
A técnica do bordado é a mais utilizada com
o ponto cheio e o haste. No Manto está, também, o procedimento do
preencher em andamento entrecortado, como se o artista pretendesse uma
arqueologia das vivências em pedaços, expressa em morfologia transposta para o
plano. O número está expresso como elemento auxiliar de catalogação e
indefinição acompanhando a clareza particular de figuras delicadas, tiradas da
realidade pequena com seus temas banais, sem importância, mas que o artista
promove a outra categoria. É arquitetura de minudências que, como em Antoni
Gaudi y Cornet (1852-1926), torna o resíduo possibilidade de organização e
interferência no espaço. Ambos caracterizam-se pela originalidade e criação já
na seleção de materiais e na introdução de novas formulações espaciais.
Coerência e conflito movem-se no todo. O misticismo presentifica-se como qualidade
que está sobreposta ao que o objeto comunica em sua imediatidade. Enquanto em
outras séries Bispo utiliza-se do material que já transitou pela sua história
de utilidades, e que são bases de segunda mão, no Manto há a qualidade
do inaugural. As linhas têm um caráter de coisa nova, sem o desgaste do uso.
Ainda hoje retêm a força do brilho no verde, no amarelo-ouro.
O Manto é o elemento denunciador do
desejo de tornar-se grande, de sobrepor-se ao mero sentido da vida cotidiana. É
o objeto que faz do corpo algo intangível, pois o desmaterializa, como nos
santos e reis. O manto faz, naturalmente, realçar as expressões por meio do
olhar e da fala e faz convergir, para quem o enverga, a atenção para o rosto.
Quem o usa, em geral, esconde as mãos na luva ou na mitene e mostra o anel. O
manto quer sobrepor a riqueza, a santidade e o luxo perenes à finitude do corpo
que o porta. Pode-se dizer que ele protege o corpo perecível que o enverga.
Representa a hierarquia e a dignidade supremas, qualidades que se sobrepõem ao
físico para isolar o homem da pequenez do mundo. É a fina película, ou a pesada
riqueza da separação, o arquétipo da passagem entre a matéria e a essência. Com
ele os homens entregam-se à vida monacal e pronunciam votos que exigem a
retirada para o mundo da contenção. Fuga das tentações é, também, renúncia aos
instintos materiais. Vesti-lo significa entregar-se à sabedoria. O manto é o
emblema da função papal. Ao portá-lo, o padre professa os votos de castidade,
obediência, pobreza e humildade. Tem atributos dos deuses, e, na tradição celta
(que também registra o nome Arthur ou Artus como já visto), quem o veste toma a
forma que desejar. Por isso, o manto ou a capa simbolizam a metamorfose,
permitindo ao homem a assunção da personalidade que o desejo determinar. São
seus complementares o trono, o cetro e a coroa, elementos universais do
equilíbrio e da harmonia.
O Manto de Bispo não foge a essas
interpretações. O que agrega à rica simbolização dos outros é a qualidade de
objeto de arte grandiloquente em sentidos. A escrita escorre-se para o seu
dentro fazendo com que essa segunda pele não tenha avesso, nada a ser
escondido. Avesso e direito são extensões e complementares sem a separação que
a beleza ditada pela exterioridade, em geral, impõe. O dentro é continuidade
elaborada de um fora no qual a riqueza de detalhes salta à percepção como
urdidura barroca. Onde foi possível a inserção, ali está o bordado auxiliando a
saturação do código. É o pergaminho a ser percorrido pelo estudioso, com o
auxílio da ciência e da arte. Contrariamente a quase toda a produção do
artista, o Manto é pleno de movimento, em oposição ao caráter de
embalsamento, fixidez e imobilidade de outros objetos.
Pode ser vestido. Se a arte de Bispo
pudesse transformar-lhe a vida e não fosse uma representação apenas, isso
ocorreria pelo Manto. Porque é o objeto que, em seu desejo, representa a
passagem de uma situação determinada para outra, desconhecida. A passagem, no
âmbito da cultura, pode ser cristalizada em sucessão de etapas ditadas pelo
corpo social por meio dos ritos. Congrega uma simbologia e estabelece atos
coletivos relativos ao nascimento, à infância, à puberdade, ao noivado, ao
casamento, à gravidez, à paternidade, à morte. Enquanto a passagem, no sentido
geral das culturas, ocorre em consonância com a natureza das organizações e as
necessidades de manutenção da ordem simbólica, em Bispo é individual e não
ocorre por uma possível intermediação preestabelecida. A passagem à qual se
refere é fruto da volição e está presa ao desejo de colocar-se como sujeito da
modificação. Quer a purificação pela transposição da matéria à essência. O
Bispo da passagem é o homem que quer fazer a passagem do morto, o que parte
bruscamente da vida levando um sinal de bom augúrio. As sociedades primitivas
muniam o ser em passagem com a miniatura da canoa e do remo para que em sua
travessia inaudita tivesse acolhimento positivo em algum lugar de destino. O
artista preparou uma passagem solitária, simbólica, que não aconteceu. Não
conseguiu seu feito nas inúmeras vezes que vestiu seu manto de significações,
ainda que auxiliado pelo jejum. A realidade, plena de alteridade, não se rendeu
ao desejo de quem viveu fora do âmbito da razão. Apenas tornou-se outra,
abrindo ao comentarista, ao crítico um sem-número de perguntas, muitas ainda
sem resposta. Ao artista coube construir para que alguém o ressignifique, já
que um ser de linguagem.
8. A ORDENAÇÃO DA TRAMA
Pange lingua gloriosi corporis misterium
(D liturgia católica)
O SER DAS VOZES
O
LEITO
O TRONO ACORRENTADO
O SER DA FIGURA REAL CAIXINHA
DE MÚSICA
FARDÕES
CARRINHOS
MONTAGENS
O SER DA FIGURA INTER‑FERIDA ENCAPSULADOS
READY
MADES
POEMEMÓRIA
O SER DA ESCRITA CARTOGRAFIA
DAS MISSES
PLACAS
MANTO
O SER DA PAIXÃO O
TRONO ACORRENTADO
O SER DAS VOZES
Esta leitura busca identificar uma possível
lógica, uma ligação interna entre os segmentos, para que se compreenda o
todo da obra. O elemento primeiro, aquele que determina a realização da trama,
são as vozes do delírio que acometeram Bispo na juventude. Estas lhe teriam
ordenado reconstruir o mundo e salvar a humanidade de uma perdição citada em
seu discurso difuso para então, como o Filho de Maria e envergando o manto,
apresentar-se ao Pai no dia da passagem. São o elemento que deflagra, fecha,
protege e delimita toda a realização artística de Bispo.
No filme O prisioneiro da passagem, de
Hugo Denizart, Bispo refere-se às vozes como entidades que determinam o seu
fazer. “Eu escuto Jesus Filho e para mim é o bastante”, afirma. Para efeito da
classificação que aqui se propõe, as vozes são a gênese da obra. São o limite
que encerra, em forma esquemática, a ordenação da trama. Pelo fato de obra e
homem formarem uma unidade, os quatro segmentos serão grafados com a palavra
“ser”. “O ser das vozes” é aquele que recebeu a incumbência de operar por meio
da fisicidade do real, por via de um constructo pessoal que remete ao
refazimento do universo. É como se suas realizações estéticas viessem de uma gênese
metafísica. “No princípio era o verbo.”
Essa missão demanda de Bispo a
auto-superação pelo jejum, criando uma estranha ambiguidade entre reconstruir o
concreto pela via da arte e buscar fazer-se imaterial e transparente pela
recusa à sujeição a uma necessidade imposta pela realidade: alimentar-se.
As vozes são o elemento obsessivo gerador
de toda a trama, o motor de uma elaboração de linguagem e da criação de uma
estética delirante, fundamentada, em grande parte, na repetição.
A partir da observação de uma repetição
rítmica, estabelece-se uma qualidade formal nos objetos, tendo a figura como
elemento de identificação imediata. A essa identidade, chamaremos “O ser da
figura real”, por apresentar os objetos em sua materialidade intrínseca,
imediata: cada objeto é o que é, porém tem agregada a si uma sugestividade
única, determinada por uma interferência física mínima do artista, ou pela
projeção de sua história pessoal sobre a matéria.
Os elementos principais desse segmento são O
leito e o Trono acorrentado, que se referem ao envolvimento de Bispo
com a estagiária de psicologia. São objetos da realidade prosaica, tomados para
ressignificação pelo artista sem perda de sua função original. Despidos da
relação com Bispo, podem voltar ao universo utilitário. Com a pequena série dos
Fardões ocorre o mesmo. Estes são vestimentas que, por meio da pequena
interferência física e pela relação com o passado de Bispo, adquirem densa
significação. Um deles pode ter sido o que Bispo pretendeu usar na formatura da
estudante.
A Caixinha de música (segundo
consta, um objeto desaparecido em 1996) é outro elemento do real representado.
Trata-se de uma caixa de madeira, preenchida com minúsculos fragmentos de papel
crepom à guisa de notas musicais.
O segundo segmento da ordenação é “O ser da
figura inter-ferida.” Evidencia-se nas montagens, sintáticas ou semânticas, de
objetos reais, feridos em sua natureza e, até mesmo, inutilizados,
descaracterizados na medida em que serviram como peças para compor algum espaço
de representações. Exemplos desse procedimento são a utilização seriada de
canecas, facas, congas, pentes ou bonecas e também as montagens híbridas com
objetos de uso prático, ou partes destes, tomadas como elementos de composição.
Nesse segmento estão, também, o que se chamou
de Encapsulados e os Ready mades. São objetos que se repetem à
exaustão, expondo o ritmo e a ordem. Encapsulados são faturas sobre as quais
Bispo aderiu uma pele ao envolvê-las com linha. Podem ser descritos como
geometrismos resultantes da interferência do artista sobre instrumentos para a
marcação de animais, pequenos esquadros, compassos, formas angulosas várias,
conchas culinárias, quadrados, cachimbos, macetes, martelos, flechas e um
sem-número de formas, tendendo a representar uma proto-escrita: uma
reminiscência cuneiforme, como se a figura estivesse à beira de se tornar
apenas sinal.
Nesse segmento, incluímos também o que se
chamou de Ready mades, por apresentarem efetiva semelhança de
procedimento com o discurso criador de Marcel Duchamp.
Desambientando o objeto de seu uso comum e
introduzindo-o no espaço criacional, descontextualiza esse objeto e instaura-o
como objeto de arte. O conceito impõe-se em detrimento da desimportância física
da forma. Essa dessacralização do objeto vem-se operando desde o início deste
século que, à beira de seu encerramento, reverencia Bispo como um artista de
proposições amplas para a leitura crítica.
A propósito, dois elementos da obra de
Bispo são semelhantes aos da obra do artista de Blainville. São eles a Roda
da fortuna, um tridimensional feito com uma roda de tômbola, interferida
por Bispo por meio de sua colocação sobre uma base de madeira, como a Roda
de bicicleta (1913), e a pequena estrutura encapsulada, sem nome, idêntica
ao Porta-garrafas (1914), de Duchamp.
No terceiro segmento da ordenação, “O ser
da escrita”, tratamos de sinais e símbolos, sobretudo as palavras e os números
desencadeados pela lembrança ou por textos e palavras de jornais e catálogos
telefônicos disponíveis nas celas do criador, na Juliano Moreira. A
“Cartografia das misses” situa-se neste segmento, por ser obra do Bispo
escriba da vivência, assim como as “Placas de ruas” e o Manto.
O quarto e último segmento é “O ser da
paixão”, em que se flagra o homem em sua desesperada tentativa de estabelecer
um vínculo afetivo com o mundo livre, aquele onde a vontade pode ser
satisfeita, por intermédio da estagiária de psicologia.
Manifestações da paixão citada é o Trono
acorrentado, brevemente mencionado no capítulo I, obra de feitura tosca,
porém plena de significações. Esse objeto, aliás, se insere em dois segmentos
da ordenação, uma vez que também é “Figura real”. Mas o Trono acorrentado agrega
valores meta-reais, na medida em que se liga à vivência do afeto.
O trono tem uma competência mítica e simbólica,
inerentes à sua própria existência e denominação. É o signo arquetípico do rei
ou do Bispo. É o ponto de onde o comando irradia e é sobre ele que se processa
o ritual de passagem do poder de um monarca a outro.
Mas esse trono em particular, o de Bispo,
com os carrinhos e algumas montagens primárias compõem uma parte da obra que,
fora de seu contexto, é pouco expressiva em termos de qualidade artística. No
entanto, na rede sígnica em que está inserido, é um objeto aurático, de forte
dimensão qualitativa. Do mesmo modo, pouco significariam, isolados, cada um dos
milhares de papeizinhos escritos com o nome da psicóloga, os horários de suas
visitas e a dramática inscrição em peça especial:
Rosangela Maria diretora de tudo. Eu tenho.
Essa ordenação é apenas uma possível
leitura geral da obra de Bispo, por meio do estabelecimento de conexões
internas e de recorrências que transitam pelo interior do que se poderia chamar
de a instalação de uma vida. A divisão da obra em quatro partes buscou
propiciar a visualização do arcabouço sobre o qual Bispo articulou sua história
pessoal num sistema de representação.
A presente ordenação quer reforçar a
hipótese de que a obra deve ser lida como um totum, sustentado por
partes que se comunicam, enredam-se, repetem-se e ordenam-se mutuamente.
Infelizmente o que Bispo produziu está completamente descaracterizado de sua
feição original. Não tendo elaborado sua rede de significações com o fim da
expressão artística para o espaço sagrado das galerias, dos museus ou das praças,
mas como metáfora da própria existência paradoxal, não se preocupou em fazê-los
objetos para a contemplação. Ironicamente, foram descaracterizados em sua
gênese para servir ao olhar no espaço lógico onde está hoje. Vê-los já
desfigurados, por essa interferência, significa conhecer a obra. É como ler
traduções, iguais ao beijo na noiva através do véu.
9. TRAÇOS DE MODERNIDADE
... la muerte de
la pintura, la muerte del arte de caballete no significa ni mucho menos la
muerte del arte en general.
El arte continua viviendo, no como forma determinada, sino
como substancia creadora.
(Nikolai Tarabukin)
Espelhando o procedimento de Marcel
Duchamp, que fez deslocar o eixo da observação do objeto para o artista, o
caráter de obra aberta em Bispo também se projeta sobre o fruidor, fazendo-o
processar seu próprio discurso sobre a coisa observada. Esta, uma das
determinações absolutas da arte moderna, é conteúdo presente nos feitos do
artista de Japaratuba. Na leitura desse feito surpreendente, é compulsório
deparar-se com uma estética feita de banalidades que alguns não categorizam
como arte. É compulsório, também, afirmar que ao artista coube construir. A
outros compete recriar sua obra no tempo. Aos que vulgarmente questionam - e
são inúmeros - “quem prova que o que ele fez é arte?”, deve-se lembrar que o
artista constrói e o outro desconstrói a obra. Isso justifica a
transepocalidade da grande obra. A temporalidade não objeta à juventude dos
grandes feitos da arte. Las meninas (c. 1656), do sevilhano Diego
Velázquez, ainda hoje fascina com sua complexa trama de relações espaciais. Em
sua existência de mais de três séculos intriga e confirma a arte como signo
nascido para ser revivido. O que dizer de Guernica (1937) ou do próprio cubismo
que o tempo se incumbe de referendar como eventos que se abrem à interpretação
nas épocas. Isto é o que aqui se faz e que não é nada, diante das
possibilidades interpretativas sobre os códigos de Bispo. Em função do estoque
de informações de cada observador, essa produção pessoal convida-o a refazê-la,
germinando relações intrínsecas que ele descobre a partir da própria vivência.
A arte de Bispo é moderna porque pede para
ser compreendida pela inteligência e não se limita a se instaurar como sedução
pela forma. Ainda que abjeta para alguns, ainda que recusável pelo sentimento
do belo educado pela lógica, demanda a razão para ser entendida. É uma obra
para ser interpretada, mais que fruída.
A construção e montagem
Se há uma dicção peculiar em Bispo, esta se
evidencia sob a forma de construção, que a arte moderna herdou do cubismo e do
suprematismo, que relacionaram tempo e espaço como eixos para o corpo da
expressão.
A ordem e a regularidade são elementos de
uma necessidade de temporalidade inerente ao artista. Não se referem ao tempo
como medida exterior, mas como interioridade à procura do ritmo; contribuem
sensivelmente para a relação perceptual direta da qualidade do objeto fruído,
como no exemplo da montagem com garrafas plásticas cheias de papel picado. Os
objetos ordenados e regulares ocorrem episodicamente e diferenciam-se pela
clareza de leitura e imediata decifração que possibilitam. Contrastam com a
ordem barroca de outros objetos, em que há recorrências, volteios e a impressão
de saturação do código. Uma mis-en-scène seletiva na qual o artista tem
a liberdade de escolher os corpos com os quais quer estabelecer um sentido. Ao
final, tem-se um organismo expressivo feito de justaposições que se integram
como corpo. Trata-se de um princípio de construção, um procedimento artístico viabilizado
pelas experimentações do cubismo, as quais, ainda hoje, têm ampla utilização.
No Brasil, Farnese de Andrade Neto (1926/1996) é outro adepto desse
procedimento. Realizou montagens de clima místico ou mórbido, utilizando-se de
materiais vários, com obsessão por ex-votos.
A montagem, em Bispo, não pode ser dita
totalmente abstracional, porque é a resultante de elementos identificáveis do
real. Entendida como processo, é a contramão da divisão e da fragmentação. É a
tendência de se encontrar a unidade pela composição engenhosa, de se juntar as
partes na formulação de um todo estrutural na obra de arte.
A METONÍMIA E A FRAGMENTAÇÃO
A metonímia está presente nas montagens
como padrão formador de linguagem. Sugere sem definir, aumentando a
possibilidade da dúvida. Na técnica da montagem, permite a composição pela
utilização de pedaços dos objetos para a formação de um todo do qual não são,
originalmente, partes constitutivas. A indefinição convida o observador a
estabelecer suas crenças próprias. É uma experiência que não pode ser
generalizada porque estende-se a cada observador. Transposto o objeto para a
montagem, ele entra na formação do conceito, abrindo significações ao objeto
final. Em Bispo é o desnecessário que se transforma em fundamental, na
medida em que se auto-referencia.
O objeto não se pretende a representação
fiel da figura. O que o artista busca é a organização dos segmentos na obra,
indefinível como forma, mas pessoal nas relações de contiguidade entre seus
constituintes. Pela formulação metonímica, a organização de objetos em Bispo
impede que se estabeleça uma hierarquia de formas ou um princípio fundador que
não o simples ordenamento de corpos na realização do todo.
A REPETIÇÃO DO MOTIVO
Repetir o motivo significa firmar a
mensagem, estabelecer o código pela insistência em diminuir a sua entropia.
Quando há materiais de mesma natureza, Bispo os utiliza ad nauseam, parecendo
estabelecer uma matriz formal. Uma caneca vem seguida de outras e outras, até o
momento em que se altera esse itinerário pela inserção de um elemento de
indefinição, de estranhamento.
O mesmo ocorre na montagem feita com as
congas: dispostas linearmente, presas em arames, constituem uma sequência de
formas cuja característica maior é a monotonia. Esta é quebrada pela inserção
de um novo elemento, um chumaço de cordões, que faculta uma outra leitura. O
observador é conduzido pelo artista a um universo de formas iguais, repetidas,
que se rompe com a inserção inesperada.
Nem todas as montagens são realizadas dessa
maneira. Em algumas há variação de fragmentos, o que faz supor que o que
determinou a constância ou a diversidade foi a disponibilidade de objetos na
cela de Bispo. Algumas mantêm a repetição como princípio, assemelhando-se à pop
art pela frieza e impessoalidade que denotam.
A CONSTÂNCIA E A RUPTURA / O CONTRASTE E A HARMONIA
Esta parece ser a tônica histórica do ato
criador no Ocidente. Os processos de renovação da linguagem artística acontecem
de forma pendular, pela ruptura de padrões preexistentes e estabelecimento de
novos cânones, que, por sua vez, também serão derrubados.
Nesse sentido, o cosmos de Bispo é uma
microestrutura histórica da arte em evolução no Ocidente. Talvez por uma
questão de afasia, que deve ser estudada na esquizofrenia, Bispo borda o padrão
linguístico e o rompe a cada pedaço de expressão. Isso ocorre também nas
montagens, que são chacoalhadas em seu ritmo por uma invasão da forma
alienígena, a qual chega para se estabelecer como um diferencial na monotonia
rítmica. Constância e ruptura determinam o ritmo em Bispo.
O contraste ocorre na seleção das bases.
Enquanto a madeira sugere a solidez, o papel escrito traduz o efêmero e o
transitório. Se o voile traduz movimento e leveza, o paralelepípedo,
muito utilizado como elemento para preencher carrinhos, sugere a permanência e
o eterno. A harmonia está presente na repetição seriada, como em “A cartografia
das misses”, “As placas de ruas”, “Os carrinhos”, “As garrafas de água
mineral com papel picado” e “Os encapsulados cuneiformes”.
A ARTE EFÊMERA / A ARTE POBRE
Não há uma consciência do depois no
artista. Ele não se expressa visando à posteridade, tanto do ponto de vista
material quanto histórico. Grande parte de seus elementos não é resistente ao
tempo, não tendo sido pensada para durar. A obra de Bispo é efêmera e foge aos
padrões de consumo.
Pobre é o termo utilizado, depois dos anos
50, para definir uma arte realizada para ser expressiva, independentemente de
sua base. Uma arte, portanto, voltada à expressão em detrimento de sua
composição material. Por ser fruto da inquietude, mais que do tempo que
desejaria perpetuar, pode estar fora da historicidade ou com ela não se
preocupa.
Para o artista contemporâneo, processador
desse conceito, os materiais são coadjuvantes da ideia e não mais os determinantes
da realização. Bispo está em sintoma com esse princípio, na medida em que o que
se lê em sua obra são os significados, mais que a realidade física de seus
materiais. Mas ainda que fossem outros os seus materiais, o artista não
deixaria de processá-los dentro dos princípios já estudados.
Tem um caráter de ineditismo, porque o
usual de uma colônia de internos é ser um corpo de resquícios da realidade na
qual esta se insere. Mesmo sob esse aspecto, a produção de Bispo se diferencia
da de outros artistas que também se valem de objetos corriqueiros: seu banal é
específico, pois torna-se uma linguagem expressiva, na medida em que será lida
como expressão pura do psiquismo.
Bispo realiza uma carpintaria linguística
expressiva. Os elementos são aleatórios e não apresentam um tema outro que não
a vida, em sua história rasteira de acontecimentos.
A obra merece pesquisa fundada no discurso
de quem a recebe.
OS “READY
MADES”
O que Picasso representou em termos de
ruptura com o passado fauve, com Les demoiselles d’Avignon (1907),
Duchamp o fez com Nu descendent un escalier (1912) em relação ao
próprio Cubismo Sintético. No experimento Dadá, Duchamp atuou sobre a ordem dos
materiais, fazendo-os elementos de expressão, por meio de operações mínimas,
como em A roda de bicicleta. Ao extrair um objeto de sua finitude
material e depositá-lo sobre uma base, também retirada da banalidade cotidiana,
o artista engendrou uma nova ideia, que se sustentaria como elemento do
discurso artístico, mais que da morfologia estética.
Melhor que isso, essas formas industriais
ajuntadas se fundaram como uma nova determinação discursiva, ao demonstrar que,
abstraindo-se o elemento de sua finalidade, este pode se revestir de caráter
artístico, por meio do conceito que gera. Duchamp, assim, dessacralizou a
tradição das formas e apropriou-se de outras que, em sua previsibilidade
utilitária, jamais poderiam ser pensadas ou tidas como expressivas.
Bispo opera uma volúpia de formas, uma
cenografia do inconsciente dentro desse mesmo princípio e, embora não os
pré-signifique, seus objetos pulsam significações para o olhar crítico. Uma
“Roda de tômbola”, com algumas inscrições, é uma decorrência do famoso e
intrigante objeto de Duchamp, assim como outro, já citado, é uma cópia
encapsulada do Porta-garrafas. A comparação não implica que Bispo
conhecesse a arte Dadá, que teorizasse previamente à realização do objeto.
Trata-se, apenas, de reconhecer no louco uma capacidade produtiva cuja
substância artística está referendada pela história.
Enquanto o Ready made de Duchamp é
idealizado pelo trânsito da função, o de Bispo acontece pela apropriação e pela
recuperação do objeto, a partir de sua qualidade de resíduo do mundo prático: o
lixo. Duchamp processa a arte no âmbito da forma, ainda inserida em sua competência
industrial, e Bispo, quando os objetos já cumpriram sua função e se tornaram
inúteis, reintegra-os ao universo das formas, fazendo-os renascer para uma nova
realidade espacial em formulação constante.
O AUTOMATISMO NA PRODUÇÃO
Esta é uma característica da arte,
sobretudo a norte-americana, no século XX. A forma de produção agregou
processos industriais para a formatação de algumas bases a serem interferidas
manualmente pelo artista. A arte xerox é uma dessas formas que se utilizam da
automação como possibilidade técnica. O mesmo ocorre com a arte postal e a
serigrafia, que permitem a seriação (como a gravura em geral), utilizando
processos em que a industrialização opera como coadjuvante do fazer individual,
sem tirar-lhe a autonomia expressiva.
Esses procedimentos, sujeitos a um
programa, encontram algo de comum em Bispo. Ele criou em resposta a uma
necessidade íntima delirante, por meio de repetições dos princípios básicos
mínimos. O que Bispo tem de automático é a repetição e a obsessão pelo ato
criador.
A automação, porém, não se restringe
somente à produção. Quer ser objeto banalizado, visto pelo maior número de
pessoas. A pop art e a action painting foram além dos
procedimentos industriais. Entraram no âmbito da comunicação de massa, renunciando
à produção tradicional, típica do artesanato.
Bispo não está inserido nesse âmbito, por
razões mais do que explicitadas. Apenas guarda com a modernidade da automação
um traço de semelhança. Trabalhar e repetir obsessivamente a forma é onde está
a similaridade.
A ARTE COMO OBJETO TÁTIL
Desfeito o princípio da arte para a pura
contemplação, ela abriu-se à entrada do homem, permitiu-se o toque. A arte
escultórica, feita no passado com a nobreza do bronze e do mármore, assumiu a
fragilidade e a mistura de materiais antes impensáveis como entes de expressão.
Chegou-se ao experimento como princípio da forma, tanto para o artista quanto
para o observador. Experimentar parece ser a melhor forma de definir o objeto
em sua plenitude de possibilidades táteis. Se a obra de Bispo estivesse
intacta, seria adentrada, percorrida e tocada, como o ser que se entrega ao
outro no entranhamento de sua interioridade.
O ACASO E A POSSIBILIDADE
O acaso revela-se pela materialidade da
obra. Surge como uma característica determinada pelo local de vivência do
interno Bispo. Como já dissemos, há uma previsibilidade nas formas, mas esta
não é ameaça para a surpresa, uma vez que, sendo a Colônia Juliano Moreira,
desde 1981, um espaço aberto, a forma poderia lá chegar pela entrada de
visitantes ou pela saída de outros internos.
Bispo se recusava, nos últimos anos, quando
sua obra se tornou mais consistente materialmente, a deixar suas celas. O
acaso, também, se revela no modo como atua o artista, ajuntando objetos,
compondo formas imprevisíveis e bordando sobre fatos que somente ele conhecia.
O acaso é um dos princípios da colagem e da montagem, tal como realizada pelo
artista Farnese de Andrade em operação de aglutinação de formas com
características mórbidas e intrigantes.
A FRAGMENTAÇÃO DO DISCURSO ARTÍSTICO
À modernidade, coube reforçar o cotidiano
como tema para a realização da arte. Essa foi uma das transformações operadas
sobre a arte tradicional e que prevaleceria como ato criador. Para se realizar
a grande obra, lança-se mão do cotidiano, toma-se o acessório como leitmotiv
e a linguagem telegráfica em oposição à fala parnasiana. Marinetti já
preconizava, em 1912, a destruição da sintaxe, no primeiro item de seu
Manifesto Técnico: “É preciso destruir a sintaxe, colocando os substantivos a
olho, conforme eles vão nascendo.”
Nas artes plásticas, o cubismo
analítico fez essa exposição da figura pela utilização do escorço,
estabelecendo novos valores para a percepção do objeto. Por meio do fragmento e
da decomposição, a figura se expressa mais completa e complexamente do que em
sua exterioridade natural.
Pode se dizer que Bispo realiza grande
parte de sua obra sob esse prisma, o do fragmento. Salvo os objetos de uso
prático, sobre os quais apenas interfere minimamente, entre eles o Trono
acorrentado e O leito, não costuma haver uma totalidade discursiva.
Os objetos falam, mais claramente, quando analisados como partes na composição
da obra.
A arte-terapia preconiza a reorganização do
caos intrapsíquico pelo ordenamento do espaço interior, para o quê a arte
desempenha um fator de catálise. Bispo procede à organização de fragmentos
dentro dos princípios já mencionados na explicitação da obra, mas não se
assemelha, pelo menos até hoje na história da arte da loucura, a nenhum
paradigma outro de criação. Sabe-se que os artistas do Engenho de Dentro e os
de Stetten, na Alemanha, são orientados a atuar artisticamente em oficinas
dirigidas por psiquiatras, psicólogos e educadores. Chegam a ser mestres da
pintura e da escultura monitorados por profissionais da arte-terapia. Bispo
produziu independentemente desses processos oficiais.
Bispo tem uma complexidade formal inédita,
entre loucos, e rara, mesmo entre artistas. Utiliza a forma na complexidade em
que ela se apresentar. E não a criação direcionada por arte-terapeutas.
Isso lhe confere ineditismo, mesmo na
relação com a arte paradoxal, a art brut, a arte primitiva
contemporânea.
Embora seu feito tenha o fragmento como
princípio, tem busca da totalidade como fim.
A NEGAÇÃO DO OBJETO COMO ELEMENTO DE MERCADO
O fato de Bispo ter produzido objetos para
transformar o inútil em desnecessário, a forma como os produziu, a natureza
primitiva e perecível de muitos dos materiais utilizados e sua inadequação ao
consumo pelos colecionadores, tudo isso evidencia a enorme dificuldade de
trânsito desses objetos pelo mercado de arte.
Embora já se tenha realizado e publicado um
levantamento de preços para os lençóis e para as montagens, isso não garante à
obra de Bispo algum valor comercial. Esses objetos não transitaram pelo
mercado, não cabem em leilões, resistem à característica de partes
independentes, já que formam um compósito único, sem espaço no microambiente
mercantil das galerias. A melhor clientela para a obra de Bispo é o Estado, que
já a tombou, por entendê-la como de grande valor para o conhecimento da arte e
da loucura.
Outro elemento que faz da obra uma recusa
ao desejo de posse é o fato de ela não possuir um aspecto estético de
equilíbrio constante de formas, tendência à beleza e simpatia para a convivência.
Seu perfil grotesco afasta o desejo dos possíveis colecionadores. Mesmo aquele
que, patologicamente, consome objetos de arte pelo prazer intelectual, encontra
nas composições de Bispo pouca serventia. As séries são extensas, demandam
espaços singulares para sua leitura pelos olhos e não se adequam ao espaço
habitual das residências.
A ARTE COMO IDEIA
A característica de morfologia pura,
qualidade da arte do passado, deu lugar a uma arte de ideias, sobretudo a
partir dos experimentos de Marcel Duchamp, no início do século. A arte como
possibilidade discursiva é um modelo formalista de tautologia, hermético,
enaltecendo a semelhança consigo mesmo. O artista, mais que senhor das
realidades aparentes, opera a possibilidade intrínseca do seu objeto tornar-se
um conceito geral. Abandona o aspecto imediato e o comportamento dos objetos
fazendo com que a arte e a ideia sobre a arte se aproximem e se confundam. Abre
seu discurso à indagação e à reflexão do observador. Quem não prender a uma
análise sob o aspecto morfológico pode dialogar em profundidade com essa obra
alheia à arte como gosto e aparências.
É a possibilidade de se ter contato com o
real do artista. Aqui não cabe a evasão, a viagem que a obra romântica pode
permitir, não se sai do campo do conhecimento do objeto. Este indaga,
questiona, comprime a razão em direção às significações pessoais, ao mesmo
tempo em que desafia a imaginação. A forma instiga e afeta o espírito, com
impressões e sensações incômodas. É um convite à reflexão, à penetração
profunda em sua verdade porque transcende à temporalidade do mero aparecer. A
inteligência não seduz porque tenta convencer. A obra de Bispo é um ato de
vontade. Sem refletir a beleza fácil, convida ao saber. Para se saber o que
nela há de belo.
10. A RASURA COMO ACABAMENTO
Quando uma obra apresenta diversos pretextos, muitos
significados e sobretudo muitas faces e muitas maneiras de ser compreendida e
amada, então certamente ela é interessantíssima, então é uma cristalina
expressão da personalidade.
(Anceschi)
O século XX, pródigo com o progresso e a
velocidade, tem sido de extrema receptividade com os aspectos primitivos da
expressão humana. A razão dessa tendência instintiva a positivar o homem em sua
rudeza expressiva advém, em boa extensão, dos caminhos de conhecimento abertos
pelas teorizações sobre o inconsciente levadas a efeito por Sigmund Freud.
Não seria um exagero afirmar que este é o
século do inconsciente, tal o vigor com que o homem passou a exercer seu
ecletismo sobre os seus próprios meios de expressão e sobre o repositório de
seu (auto)conhecimento, que se alarga entre a dúvida e a certeza. Ainda mais
verdadeiro seria dizer que o século XX inaugurou um novo período sobre o
indivíduo e este, em suas idiossincrasias e contradições, realizou sua nova
história na medida em que fez nascer uma nova concepção de homem.
A história mostrou, durante séculos, que o
ser era feito da dualidade entre a finitude do corpo e a grandeza sublime da
alma. Esta, uma entidade sutil, intangível, mas possibilitadora de uma
felicidade suprema, impalpável à experiência concreta da existência, pois que
só realizável com a morte. A alma, em sua imortalidade, abasteceu e animou o
corpo perecível com a diretriz dos valores do prazer, acenando com a infinitude
do gozo para a curta passagem pelo “vale de lágrimas”, esse rio sem limites, de
direção ignorada, por onde navega a dor necessária e onde se afogou o amargo
desprendimento da carne.
Com o inconsciente revelado, o corpo,
pátria da vontade dominada pela alma histórica e onde se esconde o instinto,
foi também exposto pelo avesso. Não o reverso da forma, mas o lado também
sugestivo, escondido e no qual moram as paixões, a vontade e o ser que escolhe,
verdadeiro e único.
O experimento artístico, como um
caleidoscópio, exibe o homem eterno em sua imediatidade. A arte é um dos
fenômenos especulares do ser e das épocas. Nela está a expressão de totalidade
do homem e por isso é um agregado fundamental para o entendimento da
experiência humana pretérita. A experiência profunda do artista transita pelas
obras, e estas são recurso para o conhecimento dele, das épocas, dos anseios
gerais. Ieronimus Bosch (1450/1516) revela, em cerca de 40 pinturas a ele
atribuídas, uma iconografia perturbadora, na qual o ser medeia entre o bem e o
mal. Sua visão aterradora e original da existência coloca a nu a simbologia de
sua época. Juntando do onírico ao real, fazendo da natureza uma representação
distorcida, do mundo intocado do Renascimento uma experiência assustadora,
conjuga a dureza do sonho à concreção da realidade. Desconcertante, Pieter
Bruegel (?1525/1569) faz de sua paleta a expressão do desatino em Dulle Griet
ou Margarida, a Louca (1562), dentro do período em que a razão clássica grega
se impunha como verdade para que o saber entronizasse o homem como centro do
universo.
Bispo, esse quixotesco ser em luta contra a
realidade asilar, como um Sísifo cristão, abre sua época a outro prisma para a
interpretação, que não aquele da formulação artística, apenas. Lê o pecado,
essa entidade moral fundadora da crença histórica na alma como redenção do ser,
e tenta uma nova taxonomia do universo. Não a do demiurgo, concreta, mas uma
gramática se não uma classificação do universo por meio de representações.
Bispo é o ser da expressão pura, por isso, um artista. Seu primitivismo é
original, embora não inédito.
Modernamente, as vanguardas
pós-impressionistas e o experimentalismo artístico subsequente objetivaram o
despertar dos caracteres da primitividade e do inconsciente, como forma de se
abastecer e renovar uma nova estética em fundamentação. Ao fauvismo e ao
expressionismo coube a tarefa de fecundar no procedimento artístico uma forma
gestual, livre do desenho e com liberdade das cores e temas. Estes deixaram de
ser aqueles clássicos, como a morte, o amor, o absoluto, para ser o cotidiano
com sua carga de expressividade inclusive das perturbações individuais. A
aparência expressionista, em grande porção, é a revelação de um novo homem, não
mais subjugado pela necessidade de inibir as suas vontades e paixões em nome do
dever. Não mais cindido entre o mundo da cultura e do que se poderia entender
como o espaço da natureza. Ele é o ser pleno, e aquilo que lhe é marco profundo
brota como possibilidade de expressão universal. Nesse sentido, é esclarecedora
a presença renovadora de Henri Rousseau, Le douanier, nas exposições
impressionistas, como possibilidade na nova formulação estética nascente em sua
época. Um autodidata incorpora ao mundo civilizado da arte a expressão natural
do homem, sem o caráter civilizatório das academias. Agregue-se a isso a
descoberta da art négre, da cultura tribal, pelos experimentos pessoais
de Gauguin, um dos precursores do estudo do primitivismo na arte moderna do
Ocidente, tanto como temática quanto como ineditismo na inserção de fragmentos
da forma primitiva como agregados do quadro.
As vanguardas históricas fizeram a
apropriação desses elementos trazidos para a cognição e fundamentaram um novo
corpo de conhecimento para a arte moderna em que se positiva a expressão livre
da vivência e do pensamento do artista, mais a liberdade de escolha do estoque
de materiais sobre os quais quer transitar a linguagem. A liberdade modernista
abriu os caminhos ao experimento como expressão, relegando ao passado a forma
rígida determinada pela ciência do gosto e do estilo. O artista está à mercê de
sua vontade na formação de sua cultura expressiva.
A sustentação de Arthur Bispo do Rosário
como artista só é possível graças aos amplos caminhos da expressão, abertos
pelo experimento da arte no século XX. No cenário de conjunções do saber que
hoje se apresenta, Bispo surge como um aglutinador de teorias, um referencial
concreto, um ponto final que permite reticências, sobre as quais se podem
estruturar desdobramentos teóricos do fazer artístico. Faz da loucura
possibilidade de produção de novos conhecimentos sobre a natureza humana e,
finalmente, sobre a capacidade latente que o homem tem de criar representações.
Com Bispo, a rasura se faz acabamento e a
imperfeição se instala como paradigma. Assim pensando, não seria abuso afirmar
que o inconsciente revelado por Freud, mais sua relação intrínseca com o corpo,
sem fendas e sem rasgos, é a alma do século.
NOTAS
1. Também
são todos nomes nórdicos que foram incorporados ao italiano somente com as
invasões bárbaras que se difundiram rapidamente no período medieval e colocaram
à mostra, em parte, a onomástica latina e grega. (tradução do autor)
2. “Caber”, “ser devido ou merecido”, “ser
peculiar a”, “ser jurisdição ou obrigação de alguém” são significados da
palavra “pertencer”, que tem origem no termo latino pertinescere,
incoativo de pertinere.
3. Informação incorreta.
4. Informação
controversa.
5. Informação
incorreta.
6. Transcrito
como no original.
7. Transcrito
como no original.
*****
Jorge
Anthonio e Silva.
Doutor em Estética pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e Autor dos livros Ivonaldo
(2002), O Fragmento e a Síntese - A Educação Estética do Homem (2003), Arthur Bispo do Rosário - Arte e Loucura (2003) e A Torre de Babel de Valdir Rocha (2007). Página ilustrada com obras de Arthur Bispo do Rosário (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
São Paulo. Membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e Autor dos livros Ivonaldo
(2002), O Fragmento e a Síntese - A Educação Estética do Homem (2003), Arthur Bispo do Rosário - Arte e Loucura (2003) e A Torre de Babel de Valdir Rocha (2007). Página ilustrada com obras de Arthur Bispo do Rosário (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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