terça-feira, 19 de abril de 2016

JORGE ANTHONIO E SILVA | Arte e loucura em Arthur Bispo do Rosário


Qual a cor do meu sembrante?”
A questão, cujo nexo não se faz de imediato, era apenas mais um enigma de Arthur Bispo do Rosário. Qualquer matiz como resposta satisfazia ao velho solitário, e a porta de entrada para seu universo de ícones elaborados e em organização constante pela desrazão era aberta para o mundo da lógica. Assim era possível adentrar a obra que, com a morte de Bispo, perdeu o sítio original, descaracterizando-se quando catalogada e exposta segundo aquelas regras da museologia que atendem ao olhar educado para a fruição do objeto. A partir de então tornou-se fragmento de uma composição magnífica que jamais será recomposta em sua originalidade. Se, por um lado, o mistério que dessa descaracterização se perpetua, por outro, a conclusão sobre o diálogo homem/obra se torna mais difícil.
Desses fragmentos expressivos que já representaram o Brasil na XLVI Bienal de Veneza e que continuam aguçando o ânimo para a pesquisa sobre o tangenciamento da arte pela loucura, resultou este trabalho, originalmente uma dissertação de mestrado sob a orientação da professora doutora Samira Chalhub.
A obra de Bispo, múltipla em procedimentos e materiais, não se permitiu dominar pela imediaticidade de conhecimento. Plena de estranhamentos, aos poucos foi determinando os próprios caminhos para ser compreendida e, finalmente, interpretada como processo criativo. Desde o início estava claro que não poderia ser analisada autonomamente, como as faturas artísticas resultantes do procedimento lógico da arte. A vida de Bispo, com uma história existencial feita de eventos dramáticos que o colocaram sistematicamente à parte do mundo pautado pela lógica, pulsava irremediavelmente em cada objeto. Por isso, os períodos de transformações substantivas em sua vida foram retomados em breve biografia, de forma a se proceder à leitura das séries expressivas tendo-o como motor e elemento singular projetado nesses objetos.
Considerá-los indiscriminadamente objetos da arte é tarefa que demanda apurada justificativa. O que se pode e deve garantir é que Bispo procedeu criativamente, sem o concurso da elaboração do pen­samento prévio para a idealização desse compósito primitivo eivado de forte carga expressiva.
Ao comentarista e aos críticos, cabe a difícil tarefa de ressignificar tais objetos, dando-lhes o estatuto da arte. Essa é, talvez, a tarefa maior deste trabalho que busca incorporá-los aos princípios cria­tivos da arte contemporânea. Quer, também, encontrar os alicerces sobre os quais a ação criadora se fundamentou e por isso a complexidade da trama foi ordenada em esquema lógico de justaposições e sobreposições de procedimentos. É de se lembrar, ainda, que a loucura não é prenúncio obrigatório para a arte. O que Leo Navratil entende como “Funções Criativas Fundamentais”, em sua obra capital para os estudos da arte e da loucura, Schizophrénie et art, são impulsos gerais possíveis no processo criativo do esquizofrênico, razoavelmente observáveis na execução universal da obra de arte. A esquizofrenia, em si, não é pré-requisito para a criação.
Bispo é caso raro, rico e qualitativo, tanto para o estudo da loucura criativa, quanto da possibilidade de a desrazão se tornar, por meio da ação, um universo de expressão criativa do eu dissociado. Tem, ainda, relevância como vontade intrínseca e independência do ser, ainda que subjugado ao espaço de coação, sem condições ou reforços mínimos para a prática de qualquer forma de expressão.
Tramar esse resultado como paradigma que reflete alguns procedimentos contemporâneos da arte foi outra perspectiva aqui adotada. Embora Bispo não se considerasse artista, mas alguém orientado por “vozes” para proceder criativamente, é sabido que o resultado de seu esforço, além de vasto e rico mecanismo para o entendimento do ser paradoxal, explicita princípios adotados pela arte que rompeu com a representação do visível para ser um caminho de conceitos abertos à interpretação. Apartado do âmbito da cultura e lançado, finalmente, no intramuros onde a prática da psiquiatria hegemônica do passado mais produzia a ausência mórbida da vontade e uma impotência para a ação, o sergipano de Japaratuba exercitou compulsivamente a atitude para a ordem, como que a produzir arranjos exteriores nos quais a dissociação interior pudesse se refletir ordenadamente. Um sonho este de juntar o paradoxo à lógica conclusiva? É preciso visitar os monumentos disponíveis na obra para buscar uma possível resposta.
Na ordem como natureza primeira da elaboração desses arranjos, está a gênese do procedimento criativo. Este, imperceptível à primeira vista, está diluído e sustentando a intricada expressão de Bispo que, ao perder a totalidade por injunções que não interessam a este estudo, reforça o caráter ficcional que tanto envolve a vida de seu autor. Dele pouco se sabe dos primeiros anos de vida, salvo um solitário registro no batistério da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, em Japaratuba (SE). A história oficial mínima ainda apresenta indagações que só o tempo se incumbirá ou não de decifrar. E a obra fala em pedaços. Se fosse mantida a sua composição geral operada em cerca de dez salas na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, a originalidade da obra oferecer-se-ia in totum à análise e não como meros pedaços de uma totalidade instigante; metonímias que nem sempre se sustentam como aparatos artísticos livres da sorte de seu criador.
Muito ainda será escrito sobre esse homem ímpar, capaz de mobilizar tudo o que o mundo das utilidades tornou dejeto e, neles, impregnar um sentido transcendente incômodo à razão comum. Sabendo-se que na pretensão de esgotar a discussão sobre essa realização magnífica estaria a inútil ousadia de aniquilar o objeto, as páginas seguintes não querem mais que retomar a discussão sobre os feitos de Arthur Bispo do Rosário, para que mais e mais se entenda a razão esfíngica da pergunta que faz plasmar ordenação e vertigem:
“Qual a cor do meu sembrante?”

1. A INFÂNCIA SEM RASTROS...

Quem afirmaria, com a certeza das marés, que nascer não é também a morte do conhecido? Sair para o outro lado, transpor o útero e encontrar a incógnita, o que não foi dominado pela experiência. Deixar impiedosamente o calor amniótico, escorrer-se com o líquen sangrado, ver murchar o quente envolvimento placentário. Sai o ser da ambiência escura, movente e sem choques, abandona o encapsulamento aquoso para o destino da respiração solitária. O leito anímico se esvai, acompanha a fuga do ser que, abrupto, busca o destino da luz. Assombra as retinas o raio agressor, os ventos transformam as gomas em películas vítreas, o calor se defronta com o vento. Estala um grito de engrenagem seca e, depois, o choro intermitente. Nascer é renascer do outro.

Filho de Adriano Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus, Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba (SE), por volta de julho de 1909, conforme consta no Livro de Batismo da Igreja de Nossa Senhora da Saúde:

Aos 5 de outubro de 1909 baptisei solemnemente Arthur, com 3 meses, legítimo de Claudino Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus. Foram Padrinhos Maximiniano Ribeiro dos Santos e Candida dos Prazeres.

A data e a paternidade são controversas, pois em registros posteriores figuram, como data de nascimento do artista, os dias 14 de maio de 1909 ou 16 de março de 1911 e, como pai, Adriano Bispo do Rosário.
Cidade economicamente inexpressiva, de origem comum a tantas outras que se desenvolveram à sombra de engenhos de cana, Japaratuba está 21 km do Atlântico, na foz do rio que lhe dá nome.
Conta à historia que, no século XVI, seis tribos indígenas povoavam a região, uma delas comandada pelo cacique Yaparatuba. A palavra é a junção de “y” (rio), “apara” (volta) e “tuba” (frequência, repetição). Sua leitura final remete a “rio de muitas voltas”, o que se explica pela topografia local, que faz o Japaratuba chegar ao mar já sem a força das corredeiras, formando meandros, sinuosidades de cursos d’água comuns à linearidade das planícies.
A nascente do Japaratuba fica entre os pequenos Municípios de Feira Nova e Gracho Cardoso, ambos em região de clima semi-árido a que chamam “chapadão”. O rio, que escreveu a história de extensa área em Sergipe, segue por grotões formados por elevações medianas e atravessa as localidades de Aquidaban e Capela, onde recebe o reforço do Japaratuba-Mirim. Ali as terras sergipanas tornam-se férteis, as mais férteis do Estado, estendendo-se até o destino atlântico do rio. Sobre as virtudes do solo, em 1º de março de 1855, o Presidente da Província, Inácio Joaquim Barbosa, referindo-se à abertura de um novo canal de irrigação na região, assim discursava à Assembleia Provincial:

A abertura do canal central de Japaratuba que acaba de ser realizada pois que a ribeira que ora lhe fica mais próxima (do Rio Cotinguiba) do que nenhum outro povoado, é a mais importante e rica de toda a Província por contar mais números de engenhos de açúcar.

O passado do Município registra um período heráldico, quando foi um baronato, título criado por Decreto de 14 de março de 1860.
Seu brasão era formado por um “escudo esquartelado” em cujo primeiro quartel era impresso

... em campo de oiro um canavial. No segundo de azul, um castello de prata; no terceiro de góles, um leão de oiro, rompente; no quarto em campo de prata, um índio ao natural, tendo na mão direita um ramo de cafeeiro e na esquerda seu arco e flechas.

Era tal a importância do Japaratuba para a vida econômica da região que, por Lei de 6 de maio de 1872, foi dada à empresa Campos, Cameron & Cia. a incumbência de construir uma estrada de ferro ligando o porto à Capela de Nossa Senhora das Dores. Sem motivo aparente, essa Lei foi derrogada por uma Resolução em 2 de abril de 1875. Outro dado que resgata no tempo a importância do Japaratuba é o fato de a bandeira de Sergipe mostrar cinco estrelas, representando as barras dos rios Real, Vasa-Barris, Sergipe (a central), Japaratuba e São Francisco.
Ainda hoje há registros arquitetônicos da época colonial, em casas-grandes e chaminés de tijolos. Remanescem, também, plantações de taquara e eucalipto, árvores cujos troncos alimentaram, por séculos, as fornalhas dos engenhos no cozimento da garapa.
A Cidade desenvolveu-se a partir das relações de trabalho entre senhores, proprietários de vastas extensões de terras, e escravos, trazidos da Guiné e do Congo para a produção de açúcar. Posteriormente, recebeu também padres carmelitas, comandados por frei Antonio da Piedade, que tinham por objetivo fundar a Missão dos Carmelitas para a evangelização dos povos e o Hospício de Japaratuba.
À época da expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, no período de 1759-1760, Japaratuba era não mais que um vilarejo em torno de uma capela. A construção da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, padroeira da cidade, somente seria autorizada em ofício de 19 de dezembro de 1854.
Segundo estudos e projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, na área de 379 km2 que Japaratuba ocupa, viviam, em 1993 (últimos dados colhidos no censo de 1991), 13.425 pessoas.
Não há dados exatos sobre a população negra da cidade. As tabulações dos censos demográficos podem apresentar equívocos de alguma monta. Isto porque a cor do indivíduo pode ser declinada por ele, quando da resposta a questionários oficiais. Daí podem resultar inverdades crônicas no mapeamento de raças no Brasil, sobretudo a negra. A coordenadora de amostragem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em São Paulo (SP), explica que “o censo é uma entrevista como qualquer outra”. O recenseador pergunta ao cidadão: “Qual é a sua cor?”. A resposta obtida não é questionada, mas considerada como expressão da verdade. “Se um negro disser ‘branca’, será o campo correspondente a branco assinalado nas planilhas.” Acrescenta ainda a coordenadora que “há uma tendência no mestiço/mulato a responder dessa forma”.
Sobre a prevalência atual da população negra na região, é valiosa a opinião de Eduardo Carvalho Cabral, tabelião, escrivão e oficial do Registro de lmóveis e Protestos de Japaratuba:

Uma grande parte da população de Japaratuba é descendente de escravos. O atual povoado de Patioba, próximo de onde existia grande concentração de engenhos, já teve o nome de Quilombo e sua população ainda é quase toda de negros. As festas folclóricas, principalmente a de Santos-Reis, a mais popular de Japaratuba, representam danças e coreografias dos costumes dos antigos africanos.

No dia 20 de fevereiro de 1909, ano de nascimento de Arthur Bispo do Rosário, F. T. Marinetti lançou a Fundação e Manifesto do Futurismo, um dos muitos que comporiam o copioso corpo de leis daquele movimento.
A Itália respondia afirmativamente à vontade de elaboração de uma arte nova, tendo o progresso, a velocidade e o futuro como ideais. Marinetti levantou as bases para o impulso decisivo da moderna linguagem da arte, ao preconizar o fim do tempo e do espaço para o objeto artístico, glorificando “a coragem, a audácia, a rebelião” como “elementos essenciais” da poesia moderna. Há nisso um claro princípio de desorganização e de desconstrução dos paradigmas herdados do século XIX. Um impulso renovador foi instituído, resultando em escândalos e com desdobramentos em quase todas as formas de produção de arte.
Em 1910, U. Boccioni, C. Carrá, L. Russolo, G. Balla e G. Severini dirigem-se aos “artistas jovens da Itália” com o Manifesto dos Pintores Futuristas, como iconoclastas da experiência artística pretérita, em nome da exaltação ao novo.
1911 foi o ano, em que a Mona Lisa foi roubada do Louvre, em Paris, por um ex-guarda do Museu, Vicenzio Perugio.
Com Les demoiselles d’Avignon (1907), Picasso já havia desconstruído a figura, pondo em relevo o recurso da “faceta”. O artista fundiu um primitivismo bárbaro a simplificações deformantes na imagem para gerar a monumentalidade paradoxal da figura em blocos de formas incomuns. Recuperou o “escorço”, recurso expressivo que liberta o espectador de apreciar o objeto de arte apenas nos limites da frontalidade, como normalmente a visão humana percebe o mundo. Andrea Mantegna (1431/1506) já dele havia lançado mão, tornando-se exemplo histórico com Cristo morto (1506). Salvador Dali (1904/1989) retomá-lo-ia em A travessia de São João Batista.
A faceta e o escorço viabilizam desafios à identificação imediata dos objetos, mostrando-os sob perspectiva não habitual.
Do nascimento aos 15 anos aproximados, quase nada se sabe da vida de Bispo; há, apenas, a informação, não comprovada, de que teria sido adotado por uma família de cacauicultores do norte da Bahia. Nenhum documento de registro de nascimento foi encontrado no Cartório do Registro Civil de Japaratuba. Os dados sobre seu nascimento e filiação encontrados em documentos da Colônia Juliano Moreira, onde seria internado, da Marinha de Guerra e da Light, onde trabalharia, são contraditórios. Enquanto na ficha admissional da Marinha figura como data de nascimento do artista o dia 14 de maio de 1909, os registros da Light apontam o dia 16 de março de 1911. Sobre o assunto, fala o Sr. Eduardo Carvalho Cabral, já mencionado:

Arthur Bispo do Rosário não foi registrado no Cartório do Registro Civil de Japaratuba, o que não quer dizer que não tenha sido registrado em qualquer outro Cartório do País, como faculta a lei.

O fator de não se encontrar marcas oficiais do nascimento do artista, à exceção do Livro de Batismo, permite inferir que ele pode ter sido registrado ou mesmo haver nascido em outra localidade. Nenhuma família Bispo do Rosário foi localizada em Japaratuba, embora haja na cidade muitos moradores com os sobrenomes “Bispo” e “Rosário”. Ainda sobre o assunto, alega Cabral:

Mesmo pesquisando nos cartórios, não encontrei ninguém com o sobrenome Bispo do Rosário. Encontrei uma família Evangelista do Rosário, mas não creio que seja parente de Arthur, pois é de cor branca e olhos engatinhados [sic].

Japaratuba sustenta a mítica de uma origem fenícia, até o momento não comprovada. Corre entre seus habitantes a história de que uma das cidades da região, Piaçaba, teria sido fundada por fenícios, segundo anotações, de um viajante alemão de nome Schwennhagen. Escreve o historiador Luiz Antônio Barreto (s/d), referindo-se às facilidades que aquele povo navegador teria para chegar, no passado, ao local:

O Japaratuba é, presentemente, um rio de duas barras, uma delas no Oceano Atlântico, distante cerca de 50 quilômetros da barra do São Francisco. Uma diferença pequena para as necessidades das estações fenícias, porque 40 quilômetros eram a segurança da viagem pelo dia, até o ancoradouro, porque de noite os marinheiros fenícios não viajavam, mas ficavam nas estações. [Japaratuba poderia ser] a segunda estação, onde foram feitos aterros que, para conter o mar e manter canais, que davam à terra condições de cultivo agrícola, além de ser lugar ideal de concentração de tupis e tapuias, especialmente estes últimos, ambos aliados dos fenícios e egípcios na colonização sergipana. (p. 242)

Inscrições cuneiformes relacionadas à possível presença desses povos, foram localizadas na área rural de Japaratuba. Embora não haja rigor científico na identificação desses sinais, a presença de egípcios e fenícios é fato na fabulação dos habitantes da cidade e em sua rede imaginária. Buscando-se semelhanças entre esses trabalhos e os de Bispo, e sem qualquer intenção de se comprovar ou sugerir alguma hipótese, merecem atenção os objetos escriturais, série marcante como procedimento plástico e valorizada pela crítica em exposições.
A imprecisão de dados sobre os primeiros anos da vida de Arthur Bispo torna-se mais intrigante quando se verifica que em Sergipe, nas últimas décadas do século XIX, era hábito o registro de novos nascimentos, mesmo escravos. É de se lembrar que o Bispo nasceu 21 anos após a Lei Áurea. A Nota 191, atendendo ao artigo 6º do Regulamento nº 4.835, de 1º de dezembro de 1871, é uma comprovação nesse sentido. Diz o documento:

Manoel Antônio Severo, residente neste Município, declara que no dia [ilegível] de setembro de 1874, nasceo de sua escrava [ilegível] de nome Guilhermina preta [ilegível], que se acha matriculada com os ns. 1.050 da matrícula geral do Município e 1 da relação apresentada pelo mesmo Severo, uma criança parda do sexo feminino, baptisada com o nome de Luzia. Sítio Cabral. Província de Sergipe, município de Japaratuba parochia de Nossa Senhora da Saúde. 28 de dezembro de 1874. Assina Manoel Antônio Severo.

Outro registro ligado à escravidão são as sentenças de morte de escravos criminosos. Conhecida é a história de Miguel dos Anjos Bispo (seria coincidência o sobrenome?), cuja ata de pena por um crime assim foi lavrada:

Em conformidade das decisões do, Jury, julgamento o réu Miguel dos Anjos Bispo incurso no grão máximo do artigo 192 do Código Criminal, o condenno a pena de morte, e nas custas. E na forma dos artigos 79 parágrafos 2 da Lei de 03 de dezembro de 1841 e 449 parágrafo 2. Do regulamento n. 20 de 31 de janeiro de 1842, apello para o Egrégio Tribunal da Relação do Districto. Sala das Sessões do Jury da Villa de Japaratuba, 29 de junho (as 10 horas da noite) de 1883. Lino Cassiano Lima.

A hipótese de que o artista tenha vivido sua infância no norte da Bahia não pode ser comprovada. Eduardo Carvalho Cabral esclarece:

Se Bispo viveu em fazenda de cacau, não posso informar. O que sei é o que informa a imprensa. É verdade que muito Japaratubenses forma para a Zona de Itabuna e Ilhéus, inclusive pessoas da família Moura, que possuía fazenda de cacau em Ilhéus. Antônio Moura saiu daqui também rapazote e nunca mais voltou, nem para visitar sua genitora, que faleceu há pouco tempo.

Se o nome revela algum possível desejo paterno em relação ao filho nomeado, as palavras “Arthur”, “Bispo” e “Rosário” merecem análise arqueológica autônoma, ainda que como exercício imaginativo para ocupar lacunas biográficas. Todas as três são reveladoras do mito e da religiosidade ancestral e constituem símbolos constantes na verdade psicológica do artista.
Arthur ou Artus foi a lendária figura do rei de Gales (fins do século V, início do século VI) que teria liderado a resistência céltica contra as invasões anglo-saxônias. À mítica de Artur confluiu a formação dos sentimentos de nacionalidade, estimulada pela narrativa Historia britorum, de Nennius (826) e pela Historia regum britanniae (1136), de Godofredo de Monmouth, que, traduzida e publicada na França, gerou o ciclo de poemas bretões.
Dessas narrativas origina-se a aura do sonho coletivo ao redor de Artur e da Távola Redonda, vivificada pela mística da demanda do Santo Graal. O Graal, segundo a lenda, foi o vaso que serviu a Jesus Cristo na Santa Ceia e que, posteriormente, teria sido usado pelo discípulo José de Arimateia para recolher-Lhe o sangue, quando Cristo foi ferido pelo centurião com a lança.
Fora da justificativa histórica e mítica, “Artur”, em diferentes dicionários de antroponímia, é citado na origem céltica como “nobre”, “generoso”, ou “aquele que tem os cabelos eriçados”. O radical art, em céltico, vem a ser “urso”, enquanto ur significa “grande”, “velho”. Pelo grego, chega-nos como arktúros, “vigilantes da Ursa”, nome comum a duas constelações do hemisfério boreal. A Ursa Maior é identificada pela sequência de sete estrelas representando um carro com o timão (a peça na qual se atrelam os animais ao arado) ou forma, em dimensão diminuída e em simetria com a Ursa Maior. Na ponta, que corresponderia à extremidade do arado, está a estrela Polar, ou Alfa da Ursa Menor, na atual posição 1.25’ da direção do pólo, apontando para o norte. Artur, enquanto nome próprio, tem a característica da universalidade: em alemão e em português corresponde a Artur; em espanhol e italiano, a Arturo; e Arthur é o mesmo indicativo para o francês e para o inglês.
Sobre os nomes medievais, nos quais Arturo está incluído, os autores Fruttero e Luccentini (1969) sustentam que:

eppure sono tutti nomi nordici che in Italiano sono entrati solo con le invazioni barbariche, diffondendosi rapidamente nel medioevo e scalzando in parte lonomastica latina e greca. [1]

Se a palavra determina o que nomeia, o artista tem no segundo nome algo que pode denotar a futura fixação pela transcendência, quando da transposição de seu corpo do mundo concreto para a imortalidade, por intermédio do manto, uma de suas mais sugestivas criações.
O estudo teleológico revela o Bispo (do latim episcopu) como o ser com o dom sobre-humano da ressureição. Isso justifica, mesmo após a ascensão, a presença de Cristo no seio da Igreja. Posterior­mente, o nome foi usado como título honorífico, dado àqueles que seriam os apóstolos investidos de autoridade para a evangelização. A palavra grega Bispo é citada cinco vezes no Novo Testamento (Filipenses 1:1; Atos 20:28; Timóteo 3:2; Tito 1:7; Pedro 2:25) em referência à autoridade eclesiástica, cuja função é a união do homem a Deus por meio da comunicação sobrenatural. Na hierarquia da Igreja, só há três patamares de poder: o primeiro é ocupado pelo diácono, que é o serviçal incumbido do cuidado com os doentes, com os velhos e com a própria manutenção das igrejas. Em grau intermediário está o sacedorte, aquele que é o dono do rito. O último é o epíscopo ou bispo, chefe espiritual supremo. Só este é investido cerimonialmente. O Papa é o “bispo de Roma”.
Leitura de significação ampla tem, ainda, o Rosário (do latim rosariu), nome do maior instrumento de reza conhecido pelo homem. São três terços que compõem 150 ave-marias, 15 pai-nossos, 5 salve-rainhas e 1 credo. A palavra “rosário” tem origem provável em rosa Mística, uma das 49 possibilidades invocatórias da Virgem Maria. Outras são: Regina Virgo Virginum, Froedelis Arcae, Stela Matutina, Turris Eburnea e as tantas formam a candente e mântrica Ladainha de Nossa Senhora. O rosário é composto de três mistérios. Os primeiros, os gozosos, estão ligados ao nascimento, e à infância de Jesus: a fase ingênua da existência, quando a inconsequência é justificada pela imaturidade do ser. Os dolorosos reverenciam a agonia do homem, o martírio e a crucificação. Finalmente, os gloriosos são a metáfora da ressurreição do filho de Deus e a assunção de Nossa Senhora ao signo da eternidade. Como objeto de adoração, o rosário tem as qualidades mântricas da repetição, comuns, também, nos cultos muçulmano e budista para persuadir e para predispor o psiquismo individual e coletivo à sensibilização, por meio do ritmo da ritualística peculiar de cada credo. Cabe lembrar que a finalidade da repetição é a contemplação do mistério. Acredita-se que por ela se chegue a um estado de simbiose com o que é contemplado. Pela repetição, frui-se, contempla-se. Ao se contemplar, torna-se o contemplador semelhante ao contemplado. Gozo, dor e gloria são signos da religiosidade que, concretamente, parecem haver determinado a passagem de Bispo pela vida.
Rosário pode ser nome ou sobrenome. Em espanhol é comum de dois. No Cristianismo, está relacionado à invocação de Nossa Senhora do Rosário, festejada em 7 de outubro. Em latim primitivo vem a ser “campo de rosas”, “coroa”, “grinalda de rosas” e, depois, “corrente de contas para orações”.
Nesse itinerário de mitos, em que a presença das águas é determinante para as populações e a religiosidade se faz presente nos ícones de Nossa Senhora das Dores, de Nossa Senhora da Ajuda e de arcaicas divindades bantas, prepondera o desconhecido, quando a referência é o artista.
Nesse quadro de dúvidas, pleno de possibilidades interpretativas, eivado de signos religiosos que invocam a saúde, a dor e o perdão, pode ter vivido os primeiros anos de uma infância sem rastros o filho de Blandina Francisca de Jesus e Adriano Bispo do Rosário, o negro Arthur...

2. O CAMINHO ADOLESCENTE

Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida assim como não se, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.
(Michel Foucault)

Em 1925, o inglês Charles Spencer Chaplin (1889/1977) escreveu, dirigiu e protagonizou A corrida do ouro. O verão americano foi sufocante. Le corps de ma brune (O corpo de minha morena) foi concluído por Joan Miró (1893/1983). O quadro é bem-humorado e insólito, com a superposição de frases sobre formas detalhadas e abstratas em intermitentes cores vivas, predominando o ocre e o marrom. Foi também o ano em que o revolucionário André Breton produziu o Poema ótico, juntando a forma do ovo a outros objetos inusitados para a representação no plano, dentro dos princípios da assemblage, utilizando a escrita com às seguintes palavras:

na intersecção das linhas de força invisíveis
encontrar
o ponto da canção em direção ao qual as árvores se dão as mãos,
em ajuda
o espírito de silêncio
que quer que o senhor dos navios solte ao vento o penacho
dos cães azuis.

Em 23 de fevereiro de 1925, Bispo foi, comprovadamente, levado pelo pai para alistar-se na Escola de Aprendizes de Marinheiros de Sergipe, em Aracaju (o que, aliás, coloca em dúvida a suposição de que o artista teria sido adotado por uma família de outro Estado). Um ano de serviços como grumete foi o último período vivido, ainda no Estado natal. É investido inicialmente na função de grumete (do inglês groom + mate = ajudante) da Companhia. O grumete era o praça inferior, cujas funções eram manter a limpeza a bordo e atender aos marinheiros como aprendiz de serviços gerais. Um serviçal, portanto, e o primeiro posto de trabalho na rígida estrutura funcional da marinha de guerra da época.
Da época, a foto única revela, além da expressão habitual de quem se deixa registrar pelas lentes, como que a estabelecer com elas uma indizível cumplicidade, a jaqueta de marinheiro.
Era um negro de atributos faciais definidos. Caixa craniana volumosa, rosto de traços duros, com os seios da face proeminentes e a testa alta saindo em pronunciado aclive anterior de um par de olhos pequenos, cobertos por sobrancelhas finas. Os lábios avantajados, o nariz de fossas amplas, as orelhas delicadas, a pele brilhosa e o pescoço afilado sustentavam um olhar duro, de fixidez desconcertante.
Em 21 de janeiro de 1926, Arthur foi transferido (por razões que se desconhecem) ao Quartel Central do Corpo de Marinheiros Nacionaes de Villegagnon, na ilha de mesmo nome, na Baía de Guanabara. Seu número de identificação funcional é 15.148. Nove meses depois, sofre uma primeira punição, não especificada, por “faltar às leis”.
Os registros da passagem do artista pela marinha, em linguagem simples e clara, são voltados a observações cotidianas sobre seu comportamento, redigidos à mão, pena e tinta, em diferentes caligrafias.
É o melhor e mais preciso memorial sobre a vida de Bispo. Sem detalhes que esclareçam sobre uma possível gênese da futura dissociação mental, o documento revela alternância entre comportamento “exemplar” e faltas ao trabalho, e uma prisão em solitária por oito dias, em julho de 1929, quando foi submetido a exames médicos para, em 3 de outubro daquele ano, ser considerado, naquele momento, “inabilitado para promoção”.
É razoável pensar, ainda que com base no frágil histórico disponível, que Artur viveu à margem dos processos reguladores do comportamento ou que era de índole difícil. Isso são elucubrações sem rigor científico, uma vez que o prontuário não fornece detalhes que esclareçam o motivo das prisões e punições e justifiquem a recusa de promoção funcional.
Segue-se um pequeno período de avaliações positivas e de registros de embarque no navio Belmonte. Em abril e maio de 1930, Bispo é internado no Hospital Central da Marinha, obtendo “alta por curado” em 12 de junho. Embora essas palavras determinem que estivesse doente, não há qualquer menção ao mal que o acometeu. Bispo continua embarcado no Belmonte. A anotação seguinte retroage a 18 de março de 1930, para registro de uma promoção a “sinaleiro-chefe-B”, função que ocuparia nos próximos três anos e que seria também a última exercida por ele naquela instituição.
O sinaleiro era um comunicador de situações a grande distância (valendo-se do código morse) ou a distância visual (utilizando bandeiras com desenhos geométricos bem-definidos e geralmente bicolores ou lanternas), para viabilizar a entrada e saída de navios nos portos. Ao sinaleiro competia também a conversa entre duas embarcações que se aproximavam em trânsito. Com a melhoria das comunicações, a profissão de sinaleiro, em navios do porte daqueles em que Bispo trabalhava, foi substituída pelas mensagens eletrônicas.
Do livro Nossa Marinha, de Arthur Dias, publicado em 1910, consta o “Abecedário Semaphorico usado na Marinha do Brasil” - uma sequência de 25 sinais, aqueles, certamente, utilizados pelo então sinaleiro. A cada um corresponde uma letra do alfabeto em uso na época (A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Y e Z). Esses sinais de conversa silenciosa entre o sinaleiro e seu interlocutor desconhecido completavam-se com o “Signal de numeros”, o “Não compreendeo” e o “Fim de palavra”. São indicativos lexicais que um dia se tornariam lembrança resgatada em muitos segmentos da obra de Rosário, principalmente nos bordados.
Em 8 de setembro de 1931, Bispo obtém uma derradeira promoção, por antiguidade. Um de seus últimos trabalhos foi a bordo do São Paulo, encouraçado que entrou para a história das embarcações de guerra brasileiras com o drama de seu afundamento. Construído pela Inglaterra, em 1910, a pedido da Marinha Brasileira, em 1951 foi considerado obsoleto e vendido ao país de origem. Na viagem de volta, desapareceu próximo aos Açores.
As águas do rio Japaratuba, fundamentais para a fertilidade da região suposta como a de origem de Bispo, continuam, em sua imprecisão movente, sustentando os caminhos do adolescente em sua trágica e comovente feitura da trilha do homem.
Bispo é desligado “de acordo com o artigo 41 do Regulamento Disciplinar para a Armada”, em 15 de julho de 1933.
O mais completo relato fatual disponível sobre a vida do grumete e sinaleiro Arthur Bispo do Rosário está no boletim oficial de sua passagem pela Marinha Brasileira, transcrito ipsis verbis:

Meirelles 29
Arthur Bispo do Rosário
HISTÓRICO
Alistou-se na Escola de Aprendizes de Marinheiros do Sergipe, sendo apresentado pelo seu pai, Adriano Bispo do Rosário, em 23 de Fevereiro de 1925. Procedente da mesma Escola recolheu-se ao Quartel Central do Corpo de Marinheiros Nacionaes em 21 de janeiro de 1926. Alistamento - Em virtude da Ordem do Dia do Comando Geral n. 36, 3. Letra C do Decreto n. 4977, de 16 de Dezembro de 1925, sendo classificado Grumete da Companhia SE, com o n. 15148, contando antiguidade de 21 de Janeiro de db [sic] corrente anno, de acordo com o art. 18 do regulamento em vigor. Quartel Central do Corpo de Marinheiros Nacionaes Villegagnon, 13 de Fevereiro de 1926. Teve exemplar comportamento nos meses de Janeiro Fevereiro e de 1 a 20 de Março de 1926. Destaca na presente data no Enc. Floriano. Quartel Central em 20.3.1926.
Apresentou-se a bordo do E. Floriano no porto do Rio de Janeiro - 20.3.1926. Teve exemplar comportamento de 21 a 30 de Março e em Abril Maio junho julho - Agosto 1926 Punido por faltar leis em Setembro 1926. Exemplar comportamento em Outubro e de 1 a 20 de Novembro Dezembro gozou as ferias de Dezembro 1926. Janeiro Fevereiro Março Abril 1927 foi punido por falta leis. No Mez de Maio e junho 1927. Exemplar comportamento no mez de julho. 1723. Exame achase habilitado no exame pas. PE STE com greno [ilegível]. Transferência e classificação Ordem Dra. n. 233 de 16 1 a 27 foi classificado na Companhia de PESP. Teve exemplar comportamento nos mezes de Agosto Setembro Outubro e de 1 a 10 de Novembro 1927 de 10 afim de Novembro 1927 e Dezembro. E de Janeiro a Maio de 1928 foi punido por faltas leis no mes de Julho teve exemplar comportamento. Nos mez de Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro 1928 Janeiro Fevereiro Março 1929 gozou as ferias regulamentares ao ano 1928. Teve exemplar comportamento no onze Abril 1929. Foi infridido [?] por 20 dias no mez do Maio 1930 Teve exemplar comportamento no mez de Junho 1929. Foi (ídem) por 30 dias no mez de Julho 1929. Teve exem Foi punido por 15 dia-s de insudamento [?] do 12 aos 18 dias mez de Julho 1929. Foi punido com 8 dias de solitária no mez de Agosto de 1929. Resultado de exames. Boletim n. 40 de 3 de Outubro 1929 foi inhabilitado para promoção de 11 de Junho 1929. Identificado neste Gabinete sob registro 15191 de 12 de Novembro 1929. 12-11-1929. Exemplar comportamento em Setembro 1929 Outubro Novembro. Foi punido por faltas leve nos mezes de Dezembro e Janeiro. Exemplar comportamento no mezes Fevereiro Marso Abril Maio 1930 baixou nesta data ao Hospital Central da Marinha. Bordo do CJ [?] Para em 11 de junho 1930 rematese nesta data caderneta saco de [incompreensível] ao Corpo de Marinheiros. Bordo do CJ Para 12 de Junho 1930 Alta do H C M. Alta por curado Exemplar comportamento no mezes de Setembro Outubro Novembro Dezembro 1930 Embarca na presente data para bordo do Belmonte em 1931. Exemplar comportamento no, Marco 1931. Por ordem do Senhor Comandante a partir de 18 de Março vence a gratificação de sinaleiro chefe do B-[incompreensível] Setor Belmonte 5-5-de 31. Exemplar comportamento nos mezes de Maio Junho Julio Agosto 1931 Promocão 37 de .8-9 1931 letra [incompreensível] foi promovido a 1. Classe contando antiguidade de 11 de Julio 1931 teve exemplar comportamento nos mezes Outubro Novembro Dezembro 1931.

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Meirelles 30
Arthur Bispo do Rosário
HISTÓRICO
vem da anterior

Janeiro Fevereiro 1932. Gozou nas ferias relativa ao ano 1931 esemplar comportamento nos mezes de Março Abril de 1932. Apresentouse a bordo enc. São Paulo. Rio de Janeiro Abril de 932 Teve exemplar comportamento nos mezes de Abril Maio Junho 1932 Julho 1932 Punido por faltar leis Clopio [sic] Aviso n. 1.609 de 20.6.932 Boletim n. 26 de 30.6.93 Letra T Bordo do & São Paulo. Rio de [incompreensível] 20 de Julho 1932. Exemplar comportamento nos mez de Outubro Novembro Dezembro 1932 Janeiro Fevereiro 1933 Março 193 Punido por faltas leis. Exemplar comportamento nos mezes de Abril Maio 1932. Gozou as férias relativas au annos de 1932. Apresentou-se na bordo do C. J. Pir [incompreensível] no Porto do Rio de janeiro em 4 de Maio de 1933. Exemplar comportamento nos mezes de Maio 1933. Apresentou-se à bordo do C. J. Rio Grande do Norte no Porto do Rio de Janeiro 1 de Junho 1933. Exemplar comportamento nos mezes de Junho e Julho 1933. Dezembarca nesta data em comprimento a letra Av. Do Boletim n. 94 de 15..933 devendo se apresentar ao Corpo de M.M.M.N. Bordo do C. J. Rio Grande do Norte no porto do Rio de Janeiro em 3 de Julho 1933. Baixou e desligou Apresenta. Ordem do Dia n. 7 do Boletim n. 24 de 15 de Julio 1933 tenha baixa e seja desligado do estado efetivo deste corpo de acordo com o artigo 41 do Regulamento Disciplinar para a Armada Artigo 1962 de 8-6-933 Quartel Central em 19 de Julho 1933.
Martinho Soares da Costa
2. Tenente Auxiliar

Após oito anos e cinco meses de serviços à Marinha de Guerra Brasileira, possivelmente por não caber [2] nos parâmetros disciplinares daquela instituição, Bispo sai em destino a então Capital Federal, o Rio de Janeiro...
Em 1933, Tarsila do Amaral expôs no Palace Hotel do Rio de Janeiro. A exposição tendia para a temática social, após a fase Pau-Brasil (1925) e a antropofágica (1928). Flávio de Carvalho, polêmico e inovador, teve seu Teatro da Experiência fechado pela polícia. Portinari pintou Retirantes, inspirado na questão social do homem que abandona a terra quando esta já não o acolhe nem mesmo para a sobrevivência. O artista ambicionava uma pintura notadamente brasileira, reveladora de um imaginário contemporâneo e com inserções temáticas da ordem social.

3. A TRILHA DO HOMEM

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura.
(Borges, in: A Casa de Asterion)

Registro áureo do Renascimento, ícones da arte universal, os afrescos da Sistina são um copioso universo de representações. Botticelli, Ghirlandaio, Cosimo Rosselli, Signorelli, Perugino e Pinturicchio transmudaram o Antigo e o Novo Testamento em feéricas formulações que deslumbram a percepção e, através dos tempos, fascinam. A Michelangelo Buonaroti (1475-1564) coube o patético O juízo final e as cenas de A criação, no teto da capela. Nesta última, ilustra a origem do homem por meio do contato entre o indicador de Deus com o do primeiro ser. O breve toque anímico acaba de acontecer. A mão direita, fática, tensionada, monitorada pelo hemisfério esquerdo do cérebro, a massa cefálica da razão, desce do vetusto Criador à criatura. A mão esquerda, de relação imediata com o hemisfério da intuição, lânguida, servil, relaxada, ergue-se suave do jovem pleno de força e juventude em direção à vida em sua origem divina.
Desde os primórdios da hominização, as mãos se mostram elementos expressivos, chegando a servir como soma personalíssimo de possibilidades metafísicas, como a da previsão do futuro.
São 27 ossos, uma profusão de pequenos músculos e uma incontável quantidade de nervos a formar o órgão de preensão, dotado de um polegar opositor que o torna adequado à manipulação, um privilégio dos primatas que encontra sua plenitude no gênero humano. Mãos redigiram o teatro helênico, mãos trabalharam a tábua dos elementos, mãos domaram os rios, assenhorearam-se do átomo explosivo e escreveram a extensa bagagem de conhecimentos que a humanidade atingiu em milênios de história.
Ainda na Idade da Pedra, deixaram suas palmas gravadas em pinturas nas paredes escuras das cavernas profundas, permitindo aos pósteros melhor entender seus primórdios. O ingênuo dito “sua palma, sua alma” tem fundamentação, ao menos como elemento de identificação. É sabido que as impressões digitais são usadas como personalidade gráfica de determinação do sujeito. Uma identificação entendida pelo Direito como incontestável.
As mãos, parte física de grande expressão, que construíram o universo dos objetos à disposição do destino do homem, foram o engenho que permitiu a vida de liberdade e de clausura a Bispo...
Consta que, saindo da Marinha, onde teria, também, sido boxeador na categoria peso-leve e conquistado um título sul-americano, Bispo viveu um início de declínio pessoal, época em que sobreviveu fazendo biscates.
Embora faltem documentos que comprovem que Bispo tenha sido lutador de boxe, é sabido que a Marinha Brasileira sempre incentivou a prática esportiva em diversas modalidades. Fotos disponíveis no Serviço de Documentação da Marinha, na Ilha das Cobras, Rio de Janeiro (RJ), registram a prática esportiva de marinheiros, na época em que Bispo esteve embarcado. O futebol, a natação, a ginástica e mesmo o boxe podem ser vistos como prática educativa nessas fotografias. Curiosamente, porém, nenhum registro sobre o Bispo boxeador foi encontrado até o momento.
Em entrevista à assistente social que o acompanhou por um curto período na Colônia Juliano Moreira, Bispo afirma que “era pugilista. Lutava dez, doze rounds (...) apanhou muito e se ressentia, hoje, dessas lutas.” Esse testemunho está em acordo com o moderno quadro de regras do esporte. Atualmente, a luta amadora pode durar até seis rounds (ou assaltos), enquanto a de profissionais varia de quatro a quinze rounds, dependendo da importância do confronto. Campeonatos mundiais são disputados obrigatoriamente em quinze rounds que podem, no entanto, ser abreviados por nocaute.
Ele prossegue dizendo que “a Marinha não gostava”, mas que havia “alguém que o acobertava”. Diz ainda que “teve sucesso”. A alegação do artista contradiz a postura histórica da Marinha, que é de manter o arquivo fotográfico dos esportistas, como é o caso dos lutadores “Peitão” e Santa Rosa.
Se Bispo foi bem-sucedido, como pretendia, é difícil imaginar que, em função de sua degeneração mental, tenham feito desaparecer documentos, fotos ou registros, a fim de descaracterizar o envolvimento ou compromisso da instituição com a loucura ou com um esporte possivelmente não muito reforçado socialmente na época. Os jornais de então dedicavam, semanalmente, pequeno espaço para a divulgação das lutas.
Ainda sobre a condição de boxeador, há o testemunho de um lutador, ex-combatente da Marinha de Guerra, que tem pontos em comum com a história de Bispo. Diz que não o conheceu pessoalmente, mas “ouvia falar muito dele”. Ao que tudo indica, tratava-se, mais que de um lutador, de um homem de briga, um “guerreiro”.
A afirmação de Bispo de que teria sido campeão sul-americano de boxe não pôde ainda ser comprovada.
É possível que Bispo, com alguma tendência a ser violento na juventude, tivesse grande simpatia pelo boxe e buscasse a proximidade e o convívio de academias e lutadores. Embora a história não o registre como boxeador, talvez tenha sido sparring de outro lutador com algum relevo na época. Essa função o colocaria como um segundo, aquele que serve de suporte para o treino e a preparação do primeiro. Tal atividade poderia ter advindo dessa mencionada agressividade juvenil.
A iconografia do boxe tem trânsito nos bordados, seja pelos sinais, seja pela escrita firme de nomes e situações vividas ou conhecidas pelo artista. “Rinc”, “sacco de areia, cabo de pular, mesa de puche” (do inglês punch = vigor físico, força efetiva), “gongo para um banco, um puche”, “um protetor”, são referências. Há ainda outros registros, tais como “comissão de box do Rio de Janeiro”; nomes de lutadores seus contemporâneos (“Antônio Rodrigues - Pugilista Português; Antônio Misquita - Pugilista Marujo; Agenor Gurgel - Marujo Pugilista; Americo Aldo - Marujo Pugilista Segunda Classe”) juntam-se às citações “3 round, 3 socos, knock down”, formando um paratático entranhamento de sinais conhecidos dos boxeadores. Um objeto de feições figurativas, lembrando grotescamente um ringue, e outro, o saco para exercícios de soco, são prováveis reminiscências de uma vivência concreta no universo da luta profissional.
Ao deixar a Marinha, Bispo vive uma sequência documentalmente desconhecida de fatos, até sua admissão pela Light do Rio de Janeiro, como lavador de bondes no Departamento de Trações de Bondes, na garagem da companhia, no Largo dos Leões. Em documento da empresa empregadora, na época The Rio de Janeiro Tramway, Light & Power Company Limited, consta que Bispo nasceu em 16 de março de 1911, diferente do registro da Marinha, 14 de maio de 1909. A citação do nome do pai, Adriano Bispo do Rosário, vem seguida pela anotação: “(fallecido)”.
Tendo sido apresentado pelo pai à Marinha, em Aracaju, em 23 de fevereiro de 1925, e declarando-o falecido ao ser admitido na Light, conclui-se que Bispo se tornou órfão entre a adolescência e o início da idade adulta. Se assim informou, é porque teve algum contato com a família após ter saído da casa paterna para não mais voltar. Soube, salvo lapso de comunicação, que o pai, Adriano Bispo do Rosário, estava morto, ou assim ele o considerava.
Em 1933, o Brasil vibra com a estreia de Carmem Miranda em A voz do carnaval, do cineasta Ademar Gonzaga. Em Paris, André Malraux (1901-1976) publica A condição humana, romance-reportagem que narra a luta clandestina contra o nazismo alemão. Graciliano Ramos (1892-1953) publica Caetés, romance inaugural do regionalismo como tema na moderna ficção brasileira. Hitler, fracassado como candidato presidencial contra Hindenburg, é indicado chanceler por 230 deputados nazistas eleitos no mesmo ano. Na arte alemã instaura-se a repressão ao que o nazismo considera “degenerado”. Paul Klee se estabelece na Suíça e Kandinski, na França. O Instituto de Warburg é transferido de Hamburgo para Londres. Nesse ano, quando começam a produzir-se transformações radicais na história da Europa, ocorre, em 29/12, a contratação de Arthur Bispo do Rosário na condição de lavador no Departamento de Trações de Bondes da Light, na garagem do Largo dos Leões. Em código do empregado consta o número 21812.
A palavra “light”, enquanto luz, tem no inglês vasta gama de sinônimos e significados:
1 - the natural agent that stimulates the sense of sight; 2 - medium or condition of space in which sight is possible; 3 - appearance of brightness; 4 - sensation peculiar to optic nerve; 5 - amount of illumination; 6 - vivacity in person’s eyes; 7 - sun’s direct or diffused or reflectes rays; 8 - object from which brightness emanates; 9 - mental illumination, elucidation, enlightenment; 10 - one’s natural or acquired mental powers. (The Concise Oxford Dictionary, 1974)
A última acepção diz, literalmente: poderes mentais próprios ou adquiridos por alguém.
Na “assignatura do empregado”, aparece o traço seguro do artista,    com laços na letra “A” e o primeiro nome arrematado por um arco em sentido contrário ao da escrita, finalizando o corte da letra “t”. Rosário, contrariamente ao que consta em todos os outros documentos, está, de próprio punho, grafado com “z”. O exame admissional foi realizado pelo Dr. Azevedo Branco em 28 de dezembro de 1933. O salário inicial, de $ 950, teve “augmentos” para 1$100, em 9 de outubro de 1934, e 1$250, em 9 de outubro de 1936. Bispo foi promovido a ajudante de vulcanizador em 9 de abril de 1934, a vulcanizador 3º em 9 de outubro do mesmo ano e a meio oficial em 9 de outubro de 1936.
Isto prova que fez carreira funcional e que, ainda que trabalhando como braçal, pôde ascender na estrutura hierárquica da empresa, tanto na condição de profissional qualificado como na de assalariado. Estava solteiro e sem referências familiares na então Capital Federal. Na ficha de admissão da Light, o campo “Em caso de accidente, notifique” está em branco. É possível que não tivesse, naquela idade, alguém a quem recorrer em caso de necessidade extrema. O indicativo de faltas e suspensões também carece de qualquer anotação. O endereço residencial era Praça 15 de Novembro, nº 311. Bispo, portanto, morava em casa térrea. Em 23 de fevereiro de 1937, três anos e dois meses após sua contratação, foi demitido sem justificativa aparente. Não saiu da empresa por iniciativa própria, uma vez que a expressão “Demitiu-se” está inutilizada, para validar outra: “Demitido”.
O motivo da demissão, no texto da exposição realizada em dezembro de 1992, no Museu de Arte Moderna, é dado como sendo “não cumprir ordem da Chefia”.
Em 1937, ano em que Arthur Bispo do Rosário deixa a Light, às 16h30 da tarde ensolarada de 26 de abril, na primavera europeia, Guernica y Luno, a mais antiga vila basca, foi arrasada pela aviação alemã. Sob a orientação de Francisco Franco, comandante dos nacionalistas espanhóis, o bombardeio durou exatamente três horas e quinze minutos, em vôos rasantes. Os bascos refugiados no campo foram alcançados por metralhadoras aéreas, enquanto uma Guernica y Luno obscurecida pela fumaça era iluminada apenas por insistentes chamas intermitentes das fogueiras.
Em primeiro de maio do mesmo ano, Pablo Ruiz Picasso esboçou Guernica, datando e assinando um primeiro estudo em lápis sobre papel azul. Eram riscos ainda imprecisos, como imprecisa é a forma do escombro. Apenas sinais titubeantes sem um léxico definitivo. Uma forma dúbia sugeria um animal; outra, quadrada, uma possível janela, dando para um vago espaço interior. Na mesma data, a mão precisa do artista desenhou um touro e um cavalo, elementos de força arquetípica ancestral e bruta para a Espanha. Como um Goya contemporâneo, poderia representar, apenas, algum fato dramático da tauromaquia. Mas tratava-se de lacônicas formas cubistas, esculpidas a machadadas, aos poucos revelando a visão do desatino humano, cristalizado na guerra, pelos olhos da derrota. A deformidade proposital é um experimento revolucionário do cubismo.
A demissão da Light pode ter ocorrido após um acidente de trabalho, em 1935, quando Bispo teria fraturado o pé direito, trabalhando na Viação Excelsior, empresa coligada àquela. Consta, ainda, que em 1936 caiu de um ônibus em movimento, vindo a fraturar seriamente o pé direito. Na consideração de Alexandre David de Oliveira Passos (s/d), na monografia Arthur Bispo do Rosário - o artista, o delirante, o místico, o caso clínico da psiquiatria, esse acidente tê-lo-ia feito mancar pelo resto da vida. Nas imagens de Bispo, no vídeo produzido pelo psicanalista Hugo Denizart, não é possível comprovar nenhum defeito em seus membros inferiores. Vestido com o Manto, enfraquecido pela recusa constante em se alimentar, o homem é uma figura hirsuta e arqueada. Ainda que mancasse, isto poderia revelar o peso da velhice, mais que expressar um defeito físico. Seu emprego e residência seguintes foram na casa de um famoso advogado carioca, Humberto Leone, na rua São Clemente, nº 301.
Sustenta Alexandre David de Oliveira Passos que o advogado teria representado Bispo na causa movida contra a Light, na qual conseguiu indenização para o artista. Essa informação consta, também, do livro Arthur Bispo do Rosário, o senhor do labirinto, de Luciana Hidalgo (1996). Frederico Morais entrevistou o filho de Humberto, Sr. Gilberto Leone, também advogado. Este confirmou a permanência de Bispo na casa da família e a causa defendida pelo pai contra a Light, mas não falou em valores ou sobre a relação comercial do pai com ele. Diz o Sr. Gilberto que Bispo encerava o chão com obsessão. Tinha o hábito de lustrar o chão “até conseguir um brilho onde se visse refletido”. Bispo passou a viver na edícula da casa onde trabalhava como faxineiro e encarregado de serviços gerais. “Ia à Praça XV comprar peixe, levava as filhas do advogado para tomar o bonde a caminho da escola. Era o faz-tudo” da família e já construía brinquedos com tampas de garrafa e capachos, demonstrando uma habilidade manual admirável. Percebia-se já a capacidade para a articulação de objetos e a frequência com que essa atividade se manifestava.
Ao sofrer o que se supõe seu primeiro delírio, em 22 de dezembro de 1938, Bispo viu Jesus Cristo descer à terra rodeado por uma corte de sete anjos azuis. Vozes lhe teriam dito para reconstruir o mundo. Consta que vagava pelo Rio de Janeiro por dois dias e duas noites, até ser interceptado pela polícia, que o encaminhou para a primeira internação no Hospital dos Alienados, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Foi internado em 24 de dezembro desse ano.
Em 1938 é criada no Rio de Janeiro a companhia Os comediantes e lançada a revista Diretrizes, que aborda temas da vida política bra­sileira. Realiza-se o II Salão de Maio, e a galeria de arte paulista Casa de Jardim abre-se para artistas contemporâneos. Morre Gabriele D’Annunzio, escritor que une o culto à beleza ao refinado senso simbolista. Morre o diretor Constantin Sergueievitch Stanislawski, fundador do Teatro de Arte de Moscou. Da interpretação naturalista transitou pelo simbolismo até o realismo poético para construir um método até hoje utilizado para a representação cênica. No mesmo ano, Orson Welles (1915-1985) transmitiu sua adaptação radiofônica para A guerra dos mundos, de H. G. Wells, instaurando o pânico na população norte-americana.
O local onde morava Bispo ainda hoje permite uma vista privilegiada do Cristo Redentor. Em dias ou noites enevoadas, o Corcovado emerge do espaço celeste como um maravilhamento divino pairando sobre a cidade do Rio de Janeiro, ainda “maravilhosa”. É uma visão de deslumbramento, que bem pode ter sido um dos elementos desencadeadores ou catalisadores do surto.
O Cristo Redentor foi colocado no Maciço da Tijuca em 1931 e desde então domina a cidade, elevando-se a 704 m do nível do mar. Em 1938, o referencial de altura para a percepção era menor. O Corcovado talvez parecesse mais alto, mais intangível e celeste, uma vez que não havia outros parâmetros de altura elevada como os edifícios de hoje.
Segue-se um período de dois anos, no qual não se sabe muito de Bispo, exceto por informações fragmentadas contidas na série de entrevistas com pessoas que com ele conviveram ou que o entrevistaram.
A documentação sobre suas internações comprova que a primeira, no então Hospital Nacional dos Alienados, ocorreu na véspera do natal de 1938 e a partir de diligências da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A Guia de Internação recebe o número 18 e registra que Bispo sofria de “esquizofrenia paranóide”. Traz a assinatura do artista com letra em geral firme, tendo o “h” vacilante. Embora a palavra “Arthur” pareça ter sido escrita de um só impulso, “Bispo” é grafada letra a letra sem as ligações da escrita cursiva. É como se a palavra não estivesse no contexto do nome ou fosse o mais importante dele, refletindo a predestinação para uma missão à qual se dizia convocado: a de auxiliar o trabalho divino (o bispo, na igreja primitiva, era aquele que difundia a palavra de Deus, zelando também pela sua aplicação; a função é hoje exercida pelos padres); e a palavra “do Rosário”, corretamente acentuada e escrita com “s”, traduz-se em quatro fragmentos arrematados pela meia palavra “ário”.
A palavra esquizofrenia tem origem no grego, com schizo significando “divisão”, “separo”, “cisão” e phrenos, “espírito”. Para a medicina é a psicose crônica com afecção revelada em inúmeras formas de comportamento com o pensamento em desacordo com a vida emocional e as formas de relação com o mundo exterior. A origem pode ser psicobiossocial. Na forma figurada, pode-se dizer que na esquizofrenia há uma projeção dos extratos mais profundos do inconsciente sobre a razão. A vigília é, então, conduzida pelo delírio gerando alucinações várias. O pensamento é afetado, fragmenta-se o discurso, perde-se a unidade do ser, advêm as ambivalências e o autismo. Diz-se que morre o afeto. Rompem-se os laços sociais.
No filme O prisioneiro da passagem, o próprio Bispo confessa a um entrevistador, o artista plástico e psicanalista Hugo Denizart, que “em 22/12 desci em São Clemente em Botafogo. Dia 24 fui ao Mosteiro de São Bento e fui mandado pelos frades para o hospício.” Um dos estandartes do artista traz menção ao fato, com relato denso e dramático. Revela o itinerário pela cidade do Rio de Janeiro, da rua São Clemente nº 301 ao Mosteiro de São Bento, de onde sairia para a primeira internação.
22 dezembro 1938 - meia noite acompanhado por 7 anjos em nuves especiais, forma esteira - mim deixaram na casa nos fundo murrado rua São Clemente - 301 - Botafogo entre as ruas das Palmeiras e Matriz eu com lança nas mão nesta nuves espírito malisimo não penetrara as 11 horas antes de ir ao centro da cidade na rua Primeiro de Março - Praça 15 eu fiz oração do cledo no corredor perto da porta - veio mim - Humberto Magalhães Leoni - advogado mestre para onde eu ia perguntou eu vou mim apresentar - na Igreja da Candelária esta foi minha resposta eu abrir a porta lado leste um jardim varas cores ao 7 - metros de frente um portão de - 2 metros de aaltura de ferro lado esquerda com seus gradeado todas de ponta lança um metro e vinte altura - 10 - espaços - uma polegada sobre uma pilatra de 60 - citimetros de cimento piso de lado esquerda - 70 - largura até portão eu fiquei na calçada esperando no ponto de parada - fica enfrente numero 301 - Bonde Jardim Leblo tomei esta condução ja no fim desta rua aos 10 - minutos fez curva para lado esquerda - seque viagem pela praia de Botafogo rua Senador Vergueiro em sua velocidade normal vai pelo centro - quase no fim um pequeno quarterão faz curva para direita nesta rua de esquina observo uma embaixada - curva a esquerda entra na Praia do Flamengo logo observei ue é os fundos do Palacio do Catete - sede de sua excelencia presidente - Estados Unidos do Brazil - um portão de ferro largo com suas grades de ponta de lanças sobre pilastras de pedra aos 2 - metros de altura pode ser mais - 100 distancia um soldado exercito de sintinela com seu fuzil na costa sua bandleira afrente couro proximo gurita jardim.
No mesmo filme, o artista também fala de um internamento no “Franco da Rocha, em 5/1/1939”. Não consta registro de sua passagem pelo Hospital Franco da Rocha, na cidade de mesmo nome, em São Paulo. Se em 22 de dezembro de 1938 Bispo estava em São Clemente, no Rio, dificilmente poderia estar em Franco da Rocha (SP) em 5 de janeiro de 1939.
Em 25 de janeiro de 1939, Bispo é transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, em cujo pórtico ainda hoje está gravada a inscrição latina: Praxis omnia vincit (O trabalho a tudo vence).
Sucedem-se alguns reingressos, sem nenhuma indicação oficial de saída ou alta.
Gilberto Leone relata a Frederico Morais que alguns anos depois, na década de 40, seu pai foi procurado pelo artista em seu escritório na avenida Rio Branco. Bispo queria saber o que havia acontecido na noite do delírio visionário; depois, ficou trabalhando no escritório, encerando o chão e fazendo serviços gerais.
Fato determinante na vida profissional e na leitura do caráter de Bispo ocorre no tempo em que ele trabalha nesse escritório: uma cliente em visita ao advogado Gilberto Leone perde uma joia no sofá; Bispo, fazendo a limpeza, encontra-a; um outro empregado sugere que Bispo dela se aproprie, para que dividam o valor do achado; Bispo não aceita a proposta e devolve a joia ao patrão.
A cliente era a esposa do proprietário do Hotel Suíço, também na Glória. O bom caráter, expresso em sua atitude de devolver o objeto, fez com que Bispo viesse a trabalhar como porteiro no Hotel, para onde se mudou.
Posteriormente, trabalharia durante quatro anos na Clínica Pediátrica Amiu - Assistência Médica Infantil de Urgência -, na rua Muniz Barreto, em Botafogo, ainda hoje existente. Tratava-se de uma sociedade formada por diversos médicos, um deles contraparente dos Leone, o pediatra Avany Bonfim. Frederico Morais esclarece que, quando da primeira exposição dos trabalhos de Bispo, intitulada À margem da vida, um dos donos da Clínica Amiu o procurou, dizendo-se emocionado em saber que o antigo empregado se transformara em artista. Disse ainda que Bispo produziu muita coisa durante o período em que viveu no sótão da clínica e que, inclusive, teria iniciado ali a produção do famoso Manto. Nessa época, a década de 60, Bispo construía objetos com cabos de vassoura e formas várias disponíveis naquele novo espaço.
Ali também, Bispo foi um funcionário de múltiplas funções, exercendo, entre outras, a de pedreiro, vigia e cobrador de dívidas, talvez devido a sua força física.
Sobre a vida sexual de Bispo, homem que viveu só e sem lembranças ou fatos que o definissem afetivamente, Frederico Morais, por um momento, diz ter suspeitado da prática homossexual, devido à ausência de um histórico de relacionamento com mulheres. Conversando, porém, com Gilberto Leone, soube que ele teve uma namorada na Ilha do Governador e que, uma vez, indo visitá-la, encontrou um trabalho de vodu em sua cama, fato que o teria impressionado muito. O crítico diz ser de seu conhecimento que Bispo costumava ir à Ilha para rachar lenha (essa era a maneira de treinar e de ganhar força física para o lutador de boxe da época). Esclarece, ainda, que Bonfim lhe relatou que Bispo tinha opiniões muito particulares sobre as mulheres. Achava que as enfermeiras não eram puras, quando as via namorando, e dizia que “quem lida com criança tem que ser pura”. Costumava dizer que as mulheres “não eram virgens, eram prostitutas”.
Ainda sobre homossexualidade, relata a assistente social da Colônia Juliano Moreira que, entre os internos, ela existe.
Uma relação homossexual é, na maioria das vezes, negada. Muitas vezes, não é consentida. Há casos de estupro com pacientes mais indefesos, mais oligofrênicos. É uma relação com um conteúdo afetivo, de ter uma relação de companheirismo. Há por parte dos funcionários um respeito por essas relações. É uma relação que resgata o afeto, tão difícil e negado naquele espaço. Há pacientes com 30, 40 anos de internação (...) Esse contato carnal acaba sendo muito restrito.
Especificamente sobre uma possível relação homoerótica de Bispo, afirma a assistente social:
Nunca soube. Não há registro. Eu perguntei às plantonistas e ninguém jamais soube de alguma relação homossexual dele. Sabe-se da paixão pela Rosângela, mas do contato físico ninguém tem notícia. Nem agora, nem no passado.
Mesmo sendo um homem de poucos relacionamentos, recalcitrante quando o assunto era seu passado, Bispo “gostava de se vestir bem”, conforme relata Frederico Morais. Tinha crédito em uma loja onde comprava linhas, fios, passamanarias, roupas e gravatas.
Na época, dizia-se embaixador de Deus. Estando em processo agudo de dissociação, teve de ser internado, mais uma vez internado.
O artista Lula Wanderley, que o conheceu em Jacarepaguá (RJ), afirma que “Bispo trabalhou com os Leone muitos anos, inclusive na época em que teve o surto psicótico inicial”.
Lula também disse que Bispo trabalhou não apenas em casa de um dos Leone, mas em várias outras e em situações diferentes. Consta, ainda, que Bispo trabalhou em um sítio dessa família, no Estado do Rio de Janeiro, e que, “antes de enlouquecer, já trabalhava expressivamente, criando peças de madeira, desenhos e bordados”. A relação positiva com a família é narrada em detalhes por Luciana Hidalgo no texto O senhor do labirinto. Dessa época, Lula Wanderley conservou por algum tempo um desenho representando um navio, presente que lhe foi oferecido por um jovem da família Leone, que não soube identificar. A informação é importante para se saber que Bispo também produziu objetos artísticos na bidimensionalidade (como na pintura), ainda que poucos, ou apenas um.
Em 23 de agosto de 1944, ocorre outra internação documentada, com a anotação dos seguintes dados na ficha de controle:
Nome: Arthur Bispo do Rosário
Filiação: desconhecida [3]
Idade: 27 anos [4]
Cor: preta
Nacionalidade: brasileira
Sexo: masculino
Estado Civil: solteiro
Profissão: desconhecida [5]
Procedência: Hospital Psiquiátrico
Há registros de que em 19 de fevereiro de 1946 Bispo foi novamente encaminhado à Colônia Juliano Moreira, por ordem do diretor do Hospital Psiquiátrico da Praia Vermelha, contrário à permanência de Bispo em sua unidade hospitalar. São muitas as comprovações de entrada na Colônia sem uma correspondente saída documentada, seja por alta, seja por licença especial. É de se supor fugas constantes que justifiquem esses reingressos.
Em uma de suas saídas da Colônia Juliano Moreira, Arthur foi novamente preso. Documentos dos arquivos da Polícia Civil do Rio de Janeiro comprovam, por meio do Registro de Ocorrência 163/48, de 27 de janeiro de 1948, fl. 375 do livro 12.206, a prisão e o internamento do artista no Hospital Pedro II:
REMOÇÃO DE DEMENTES - Foram removidos para o Hospital Pedro II, todos por apresentarem sintomas visíveis de alienação mental, as seguintes pessoas: uma senhora de identidade ignorada, que estava a cometer desatinos na via pública, cor parda, guia n. 12. Artur Bispo, brasileiro, preto, solteiro, 36 anos, removido da Av. Rio Branco 183 - 8. Andar, sala 808, Guia 13 e atestado firmado pelo Dr. David Madeiro, e Euclides Felipe, brasileiro, preto, interdito, residente à Rua Itália 118, Cavalcante, com Guia n. 14. Esta remoção foi solicitada pelo ofício n. 1449 do Testamento e do Tutor Judicial.
Em 1948, o francês Georges Braque (1882/1963) inicia a série Estudos, uma sequência revolucionária de formas para interiores. Jackson Pollock (1912/1956), artista vibrante e contrário às convenções do provincianismo americano, já é considerado o pioneiro do Expressionismo Abstrato em Nova Iorque. Franco Zampari funda o Teatro Brasileiro de Comédia, na Bela Vista, em São Paulo. Sir Winston Churchill (1874-1965), em discurso em Foiton, criou as expressões cold war e iron curtain. O crítico francês Pierre Restany tenta renovar os valores do movimento Dadá com a nova corrente nouveau réalisme. Participam da iniciativa Klein e Chamberlain.
O processo definitivo de transferência de Bispo para a Colônia Juliano Moreira inicia-se com o “Pedido de Transferência”, de 30 de março de 1948. Ali está justificada a remoção, caracterizando-o como doente “crônico e calmo com delírios de grandeza, [os quais] geram conflitos com outros pacientes”. Na ocasião, Bispo “não suporta doentes agitados e mostra-se mais lúcido no pátio de liberdade”.
Em primeiro de abril é autorizada a sua saída, mas 13 dias depois ocorre sua terceira entrada na Juliano Moreira, onde permanece no Pavilhão Ulisses Viana, com algum histórico de saídas, até sua morte, por infarto do miocárdio (estado mórbido causador da morte), arteriosclerose (causa antecedente) e broncopneumonia (estado patológico de contribuição à morte) em 5 de julho de 1989, às 19 horas.
As saídas e voltas de Bispo à Colônia Juliano Moreira indicam a Instituição como aberta e com parcos controles sobre o trânsito de pacientes para fora de seus limites. A respeito, fala a assistente so­cial:
Hoje, os portões estão abertos, exceto para aquele paciente que, por uma condição momentânea ou permanente, não é capaz de se cuidar. O controle é feito dentro da unidade. Transpõem os portões da unidade aqueles pacientes com permissão, o que é a grande maioria. Houve uma inversão. Ficam aqueles que têm impedimento para sair. Há uma norma de que, para sair, o paciente tem que provar que está credenciado. Houve época em que havia carteirinha. Mas, como a Colônia é do tamanho do Bairro de Copacabana - lá dentro circula uma linha de ônibus... -, eles têm abertura para sair. Um paciente como o Bispo teria, embora nunca saísse...
A Colônia Juliano Moreira foi construída com o fim específico de atender ao doente mental, então considerado incapaz para o convívio social. Inaugurada em 1924, em extensa gleba de 7.400.000 m2, esperava-se que também resolvesse o problema de superlotação em outros hospitais do Rio de Janeiro. Um deles, o Hospital dos Alienados da Praia Vermelha, era, na época, dirigido pelo médico Juliano Moreira. Com o novo espaço, propunha-se humanizar a loucura e oferecer aos doentes uma ambiência de natureza ampla e com a ideia de liberdade. Internamente, o cidadão era submetido a “eletrochoques e contenção física como instrumentos de intimidação”.
Originalmente, a Colônia não seria o espaço restrito da exclusão e do fechamento dos diferenciados socialmente, mas uma possibilidade ilusória de liberdade pela amplidão do entorno. Seria residência e oportunidade de trabalho, onde grande número de pessoas com problemática similar pudesse se encontrar, conviver e, possivelmente, voltar a ser produtivo.
Jacarepaguá é hoje uma extensão do Rio de Janeiro. Na época da construção da Colônia, o local situava-se a distância considerável da Capital Federal. Ali foram construídos mais dois espaços semelhantes, um para a lepra, a Colônia Curopati, e outro para a tuberculose, a Colônia Curicica.
Um dos proprietários da Assistência Médica Infantil Urgente relatou a Frederico Moraes que, no primeiro contato com Bispo, este surpreendeu-o, afirmando categoricamente que procurava um lugar para trabalhar “sem receber dinheiro”, uma vez que o “dinheiro era a perdição do mundo”. O artista foi incumbido da segurança. Seu passado de boxeador talvez tenha influenciado na decisão do empregador de lhe confiar tal tarefa. Passando a residir na própria Clínica, começou, ali, a elaborar objetos. Seriam, já, junções no princípio da montagem, característica que define boa parte da obra, depois continuada no Pavilhão Ulisses Viana.
A relação com o dinheiro tornava-se ambígua, na fala dessas pessoas. Uma estagiária de Psicologia que o acompanhou durante certo período relata que ele se preocupava com dinheiro. Certa vez mencionou um advogado que teria ficado com o dinheiro dele, dinheiro este que Bispo ainda pretendia reaver.
Fato representativo na relação da vida de Bispo com a obra é o jejum constante que lhe permitiria a transparência física. Essa obsessão tem eco em seus discursos sobre o vestir o manto para a ascensão.
A propensão inata para o trabalho manual está documentada no Prontuário Clínico (Brasil/Dinsan, Colônia Juliano Moreira, Pront. nº 11.530) que relata a vida de Bispo, nos 51 anos de sua intermitência asilar. Em 27 de outubro de 1976, é atendido por uma médica, que relata:
Arthur Bispo do Rosário, estado civil solteiro, foi internado na Praia Vermelha em 24 de dezembro de 1938 e admitido na Colônia Juliano Moreira em 25 de janeiro de 1939. Tem períodos em que ajuda muito no serviço, outros em que apenas fica reclusivo. Também tem grande capacidade artística, faz bandeiras, tapeçarias, etc. É difícil de lidar, devido à paranoia extrema. Apresenta dispneia de esforço ultimamente.
Este é o primeiro relatório psiquiátrico mais bem elaborado no extenso, incompleto e mal conservado dossiê sobre a vida de Bispo em todo o período de internação. Seguem os seguintes dados sobre suas condições físicas:
Pele limpa. Dispneia constante. Sons normais no coração com modificações de sinais de arteriosclerose. Mesmo após exercício não se ouviu, murmúrios.
Pulso regular, dilatado, artérias ligeiramente infiltradas, com pressão 140/80 mm Hg., indicando arteriosclerose generalizada. Pulso de ritmo 70 b/min, antes do exercício e 80 b/min, após exercício. Pulmão: sons distantes, indicando enfisema pulmonar avançado. Alguns sons sibilantes, raros estertores.
A análise psíquica relata-o como doente parcialmente orientado em todas as esferas:
Apesar de poder nos ajudar muito em serviços internos e supervisionar doentes, ajudar na alimentação, etc., este paciente está apenas em contato muito superficial com a realidade. Ele tem diversos delírios místicos e de grandeza, se crê um enviado de Deus, e pessoa “muito especial”. Perguntou se eu conseguia ver, através dele, as suas especialidades. Se crê o “médico dos médicos”, etc. Ele se nega a responder perguntas, baseado em seus privilégios especiais. As perguntas que ele responde, são com respostas delirantes, tangenciais, e irrelevantes. Diz que trabalha quando dá vontade. Por outro lado, ele é capaz de chefiar a equipe de trabalhadores e sente o problema pungente de falta de cigarro para recompensar os seus ajudantes.
A postura de liderança em relação a outros internos é confirmada por um interno que conviveu com Bispo durante 12 anos: “... ele organizava a fila. Um atrás do outro.” Questionado sobre se os internos trabalhavam, como se esperava que acontecesse desde a criação da Colônia Juliano Moreira, respondeu: “Trabalhava. Não ganhava dinheiro. Ganhava cigarro.” O cigarro é um bem com valor de moeda nas trocas entre os pacientes. É sabido que muitos dos serviços prestados por eles nos ambientes asilares são assim pagos pelas instituições.
No prontuário médico (nº 1.662) há anotações do Serviço Médico Estatístico, sem data e assinatura, que confirmam os diagnósticos anteriores, por meio do seguinte exame psiquiátrico:
O paciente apresenta-se à entrevista em trajes [ilegível]; com precário estado de higiene corporal. O contato é difícil em função da grande estrutura delirante paranóide que o pa­ciente apresenta, afirmando sempre que não pode responder a certas perguntas em função de sua luz e seus poderes divinos. Está parcialmente orientado em todas as esferas e apresenta o pensamento invadido por ideias delirantes de conteúdo místico de grandeza. O paciente trabalha em serviços internos do Núcleo, embora mantenha um contato muito superficial com a realidade. Por vezes, fica isolado e alimentando-se precariamente.
São inúmeras as anotações de caráter médico, com prescrição de medicamentos neurolépticos, e raras as análises consequentes do quadro psicótico. Fica, assim, evidente a orientação médica no tratamento da loucura, sem a correspondente atuação daquela instituição no âmbito da reinserção social dos indivíduos. Nenhuma terapia de aspecto socializante é observada até o ano de 1981, quando a Colônia Juliano Moreira entra em processo de reforma institucional, visando ao resgate da identidade dos pacientes, até então em condições deploráveis de existência. Realiza-se um censo, com levantamento do histórico e avaliação de cunho social de cada paciente. São revistos o histórico da internação, as relações familiares e o comportamento, visando a uma nova orientação relacional entre o corpo de internos e a instituição. O aspecto positivo da mudança é evidenciado nas palavras de um interno, tomadas em março de 1994:
Com esse pessoal novo que veio, o negócio se tornou outra forma. Naquele tempo, a agressividade de funcionários, com o pau na mão ... tinha aquela ignorância toda, quer dizer que o doente ficava mais agressivo, mais violento. Quando teve essa mudança, veio o pessoal novo, acabou a ignorância toda. Esse mau-trato. Agora está civilizado.
Na época da mudança, Bispo é atendido pelo médico psiquiatra Paulo José Torres da Silva e pela assistente social Circe Barbosa. Há uma incorreção no documento firmado pelo médico, que dá como data de entrada de Bispo naquela instituição o dia 25 de dezembro de 1939. Implementa-se um projeto de ressocialização, na tentativa de integrar os pacientes, ainda que com limitações, ao convívio social e, com isso, as anotações médicas passam a ser mais detalhadas, tentando maior humanização e proximidade com a realidade existencial dos pacientes. As anotações seguintes, da época, descrevem Bispo como:
Uma pessoa com um dom artístico muito aguçado e que, segundo ele, está guardando e construindo os instrumentos do homem para uma nova era. Sua avalilação médica apresenta um exame físico com estado de nutrição bom, mucosas coradas, ausência de edemas, ausência de lesões lesões traumáticas, pressão arterial de 140/80 mm Hg., pulso de 80 b/min., frequência cardíaca 80. Não apresenta deficiência física nem doença orgânica. Como tratamentos realizados, registram-se entre os medicamentos os psicotrópicos e médico-clínicos, nenhum tratamento biológico (ECT ou insulina), nenhum tratamento psicoterápico, nenhum tratamento praxiterápico, observando-se, porém, que o paciente já tem atividade praxiterápica. [Também registra que] naquele momento Bispo não toma nenhuma medicação.
Na anamnese, é inserido um registro de nome “Súmula Psicológica”, onde constam dados que confirmam observações anteriores, como “capacidade volitiva deficiente, nexos afetivos presentes, presença de alucinação, ausência de agressividade em relação a si e a outros e ausência de estado de desorientação”.
É discutível essa suposta falta de vontade, uma vez que, no período, Bispo trabalhava incansavelmente em sua obra, dedicando todo seu tempo a organizar sua tela. É possível que as anotações quisessem se referir a alguma falta de interesse por assuntos da ordem do social, ou outros que não os do desejo pessoal. Havia, na época, somente o impulso de continuar, obsessivamente, redigindo significações com o mesmo impulso de sobrevivência que acometeu Penélope.
Na fuga aos pretendentes, encorajados a tomar-lhe a mão pela longa ausência do marido, a esposa de Ulisses diz precisar de tempo para tecer - incansável - a mortalha do sogro Laertes. Usando o estratagema de tecê-la durante o dia e desmanchá-la à noite, Penélope mantém-se na privacidade da relação com o herói de Ítaca.
É confirmado o diagnóstico de esquizofrenia paranóide (código 295.3 da Organização Mundial de Saúde), e seguem-se anotações qualitativas como:
Ausência de meios de subsistência familiar; ausência de necessidade de cuidados de enfermagem; capacidade para o trabalho; impossibilidade de alta social e possibilidade de alta psiquiátrica, clínica e jurídica.
Os cuidados psicológicos com o paciente só ocorrem quase 43 anos após sua primeira internação.
Em 1º de junho de 1982, as anotações clínicas dão conta de um Bispo delirante, recusando-se a tomar refeições, pois estava na “hora de fazer a passagem”. Alimentava-se somente de leite e frutas. As anotações no prontuário relatam que:
Acha que é Jesus Cristo e que sua missão na terra já está terminando. Recusa-se a tomar medicação. Está sendo feita abordagem psicoterápica a fim de convencê-lo a alimentar-se.
Essa atuação psicoterápica inaugura um novo capítulo em sua obra e em seu posicionamento relativo à realidade, pela abertura ao afeto que se estabelece. Aquilo que o relatório trata como “nexos afetivos presentes” é fato mobilizador de importância capital para a obra e para a inserção parcial do artista no âmbito da realidade.
Bispo mantém, contudo, seu desejo de tornar-se transparente para a “passagem” ou apresentação a Nossa Senhora. Mantém o hábito antigo de não se alimentar, a fim de se tornar leve e ascender aos céus. Após a saída da estagiária de Psicologia, o desejo de morte se intensifica. Morre em 5 de julho de 1989.
O rosto do artista havia se transformado em esquálida expressão da loucura. Os períodos de abstinência haviam-no tornado uma face ressecada, sustentada por um pescoço frágil, afinado e lento. A carapinha mantinha ainda um resquício de negro brilhante, ressaltado por chumaços brancos. A boca conservava uns poucos dentes atrás de lábios finos e de desenho impreciso. As mãos eram grossas, resultado dos mais de 70 anos de história escrita pelo artesanato, pela reclusão e pela vontade. A voz mansa tinha quebras sintomáticas de sentido. Tudo eram “coisas do céu”. Os olhos conservavam a expressão de distanciamento, e a fala era plena de certezas, certezas de que o homem havia cumprido a função para a qual teria vindo à terra: reconstruir, remontar, refazer em nome da Salvação.
Bispo fazia lembrar os suaves versos de Bandeira: “- Estou onde está Deus.”
CERTIDÃO DE ÓBITO n. 3614 - Duljacy Espírito Santo Cardoso - Oficial do Registro Civil e Tabelião Vitalício da Décima Segunda Circunscrição, Freguesias de Irajá e Jacarepaguá, CERTIFICA que às fls. 099 do livro 109 SC 2 sob o n. 30.899 de registro de óbitos consta o de “Arthur Bispo do Rosário” falecido em 05 de julho de 1989 as 19,00 hs, em (Local) Estrada Rodrigues Caldas 3.400, do sexo Masculino - profissão:: - cor:: - natural de:: Idade 60 anos; Filho de: Ignorados - Estado Civil:: ignorado., Residência: onde faleceu - Causa Mortis: infarto do miocárdio, arteriosclerose - Deixa bens? Ignorado - Fez testamento? Ignorado Era eleitor? Ignorado - Deixa filhos? Ignorado - Médico Dr. Aroldo Pietre de Freitas - Foi declarante Solange Franco de Assumpção
Local do Sepultamento - Cemitério de Jacarepaguá.
Obs.
O referido é verdade e dou fé
Rio de Janeiro 10 de julho de 1989
2. Circunscrição
David dos Santos Guido
Tab. Substituto
PERJ 06/0857

4. UM AFETO: DIRETORA DE TUDO EU TENHO

... é preciso que desçais, cada um por sua vez, à morada comum e vos acostumeis às trevas que aí reinam; quando vos tiverdes familiarizado com elas, vereis mil vezes melhor que os habitantes desse lugar e conhecereis a natureza de cada imagem e de que objeto ela é a imagem, porque tereis contemplado verdadeiramente o belo, o justo e o bem.
(Platão, in: A República)

Em 1981, cumprindo exigências curriculares da faculdade onde estudava psicologia, uma estudante iniciou estágio de atendimento a pacientes na Colônia Juliano Moreira. A jovem de pouco mais de vinte anos optou por trabalhar com pacientes que apresentassem algum diferencial.
A proposta da instituição na qual estudava era colocar os formandos para desenvolver um trabalho de ressocialização com pacientes de instituições públicas. Os estagiários deveriam atendê-los em maior número. Havia cerca de setecentos pacientes no Pavilhão Ulisses Viana, historicamente destinado aos internos agitados e agressivos. A estagiária escolheu aquele segmento da Colônia para trabalhar e ali conheceu Bispo.
O artista ficava no quarto, organizando objetos quaisquer. Como sempre, operava no mutismo, não permitindo o acesso ao seu universo cotidiano. Nunca havia participado de qualquer trabalho terapêutico. A estudante sentiu vontade de iniciar uma atividade individualizada com ele.
O contato fazia-se difícil por razões várias. Com tanto tempo de internação, Bispo desenvolvera um evidente comportamento autista, recolhendo-se integralmente à vivência interior e recusando o contato no âmbito social.
Para entrar na sala onde vivia tecendo e organizando sua obra, era necessário entrar no delírio organizatório do artista, respondendo-se a um enigma por ele proposto: “Qual a cor do meu sembrante?”, ou “De que cor você vê minha aura?”.
As pessoas que iam visitá-lo, geralmente curiosos que somente queriam conhecê-lo pelo exotismo e para terem acesso às celas, respondiam à pergunta habitual com uma cor qualquer. Com isso o satisfaziam e, em geral, entravam. Poucos voltavam, como parecia ser o desejo de Bispo.
No primeiro contato com a estagiária, não foi diferente. Ao pedir para entrar na sala onde trabalhava o artista, foi por ele inquirida com a tradicional questão: “De que cor você vê a minha aura?”.
Recusando-se a entrar no delírio de Bispo, a estudante respondeu que nada via. Por isso, foi impedida de entrar na primeira tentativa. Como queria entrar e ficar, sabia que precisava ser diferente e autêntica. Via Bispo como um paciente da Colônia Juliano Moreira e tinha o desejo de conhecer aquela pessoa não habitual mesmo para um asilo de dissociados, aquele que não saía, não tomava banho, não se comportava como os outros pacientes. O acesso a ele deveria ocorrer pela verdade e pela lógica.
Passou a procurá-lo em horários fixos, duas a três vezes por semana, trazendo-lhe a noção da temporalidade. Queria caracterizar sua presença como um trabalho terapêutico e não como mera visita. Reforçava sempre a certeza de que ele era um paciente como os outros, com o uniforme azul da Colônia, vivendo uma realidade pessoal que não era a dela.
Bispo não a aceitava nessas tentativas.
“Você vai sair. Você não vai ficar, porque você não é escolhida, você não consegue perceber como eu sou, não vê a minha importância e, então, vai embora.”
Três meses depois, ele disse: “Está bom, já que você não me percebe como eu quero, eu vou aceitar você assim mesmo. Você vai entrar e um dia, quem sabe, você me vê como eu quero.”
Naquele momento iniciou-se o processo de uma relação transformadora na vida de Bispo.
Foi muito difícil para a estudante. Ele era um paciente que pouco falava, pouco respondia a estímulos, mas se expressava na arte com a força de quem não contém a expressão nos limites da lógica. Mostrava-lhe as coisas e falava compulsivamente sobre elas. A importância, na visão da jovem, não estava nele, estava nos objetos. Bispo não se sentia pessoa. Parecia não existir.
“Você está satisfeita, eu já mostrei tudo, agora, você vai.”
Aos poucos, a realidade imediata tornou-se elemento presente na percepção de Bispo.
A estratégia foi fazer com que o paciente, já despersonalizado por cerca de quarenta anos de internação, olhasse para si e não se visse apenas como representação, por meio dos signos por ele criados. Chamá-lo à realidade, pensava a estagiária, seria contribuir para que ele se desse conta de sua própria existência. Notou também que as pessoas, mesmo sem perceberem, reforçavam a não-existência de Bispo. Entravam na sala, diziam ver a “aura”, ou o “sembrante”, viam o trabalho, iam embora e, satisfeitas na curiosidade, não voltavam mais. O trabalho seguro da estudante em pouco tempo apresentou o resultado pretendido. Bispo a aceitou. A convivência fez com que ele desenvolvesse um profundo interesse por ela a ponto de mostrar indícios de afetividade em relação a ela.
A estagiária confirma que o sentimento existiu em profundidade. Ele reorganizou-se interiormente pela possibilidade do afeto e de uma relação cuja gênese esteve no ato de volição do artista. Um forte vínculo foi estabelecido por ele. Esse fato redirecionador das significações impregnadas à obra, a partir de então, remete às reflexões sobre a existência ou não de afeto no sujeito tomado pela potência da esquizofrenia. Por um bom tempo Bispo instaura como fator fundante de seu fazer a existência do outro, no caso a estagiária. Se, em função disso, o diagnóstico tem sido questionado por alguns, é significativa a análise do doutor Heimar Saldanha Camarinha, diretor da Colônia Juliano Moreira no período de 1980 a 1985. Diz Camarinha que o diagnóstico de esquizofrenia paranóide (doença que acarreta a desvinculação da realidade e a perda da capacidade afetiva)
... está correto. Desde 1939 até 1980, mais ou menos quarenta e um anos, essa doença evoluiu no sentido do empobrecimento da vontade e do empobrecimento da afetividade. Esse vínculo que ele fez com uma pessoa como a estagiária não significa, necessariamente, um vínculo social. Ele continuou sendo um sujeito autista, que vive naquele mundo próprio, e essa é uma das características da esquizofrenia. É claro que, como todo diagnóstico, esse é passível de discussão, embora eu acredite que, pela longa evolução de quase cinquenta anos de atendimento, seja um quadro de esquizofrenia.
Bispo começa a se organizar quando percebe que se trata de um atendimento. Quer dominar a medida do tempo e consegue um relógio de madeira que não funciona, mas que para ele marca o horário do atendimento.
Inicialmente, esse objeto é aceito da forma como lido por Bispo. Aos poucos, a estagiária mostra que o relógio não funciona e que é Bispo quem marca o tempo internamente com o seu desejo. Bispo passa, também, a se arrumar para esperá-la. Toma banho, penteia-se.
A relação aos poucos se solidifica nele, na forma unilateral do desejo. Ele cria um mundo moral, por meio do qual pretende controlar as atitudes da estudante. Diz como gostaria que ela se vestisse, como ele gostava das mulheres. Mulher não andava como ela, de rabo-de-cavalo, jeans e tênis. Mulher andava de vestido, saia, sapatos, cabelo solto, maquiada. Era a mulher idealizada por ele, virgem, solteira, filha única e morando com os pais.
O tratamento artístico do amor impossível tem vários registros na literatura clássica ocidental. Othelo, o Mouro de Veneza, instigado por Iago, estrangula Desdêmona, inocente vítima de seu ciúme. Dirceu (Thomás Antônio Gonzaga - 1744/1810), condenado ao degredo em Moçambique, deixa em Vila Rica a solitária esposa Marília (Maria Doroteia Joaquina de Seixas) para nunca mais. Outro exemplo é o de Dante e Beatrice. Ela, possivelmente Beatrice Portinari (1265/1290), é a personagem de Vita Nuova (?1292), experiência literária de Dante Alighie­ri (1265/1321). Após a morte da amada, Dante a teria transformado em protetora celeste n’A divina comédia (?1309/?1320). Ele a encontra no topo da montanha do Purgatório, para onde é levado por Virgílio, que o conduzirá ao Paraíso. Apenas para pontuar semelhanças, Dante mescla, de forma sintética, a crueza do real ao lirismo medieval, por intermédio da visão transcendente do amor.
Torna-se obsessão a expectativa pela presença da jovem, como se torna crítico o ciúme, manifesto na forma depreciativa como Bispo refere-se aos outros internos por ela atendidos.
Bispo passa a adiantar os ponteiros do relógio que já não funcionava, para satisfazer seu desejo de antecipar a chegada da estudante para um novo atendimento. Dedica-se a formular novas inserções na obra, marcas. Inicialmente, o nome da jovem povoa pedaços de papel e bordados e estimula novos símbolos. Depois, vai prevalecendo Maria, signo já presente desde as vozes dos delírios iniciais. Ele a presenteia com travesseiros, sabonetes, talco e outros elementos da intimidade feminina. Junta dinheiro que não tinha um valor real para presenteá-la. A relação dura dois anos. Mesmo assim, Bispo não perde o desejo de fazer a “passagem”. Continua se alimentando apenas de laranjas, por longos períodos, para tornar-se transparente.
A presença obsessiva do nome dessa mulher na obra de Bispo chega à expressão de uma confissão profunda do artista, quando escreve: “Diretora de tudo eu tenho.” Coloca-a como alter-ego em sua diária tarefa de organizar o mundo por meio dos objetos de sua realidade asilar.
Um acontecimento de grande repercussão na vida e na obra de Arthur é o fim do período de estágio da estudante, momento em que esta deve deixar de frequentar a Colônia Juliano Moreira.
Iniciou-se então o processo de separação. Nesse período, ele aparecia com uma faquinha, o tempo todo cortando, trabalhando, talhando a madeira na tentativa de entender a separação e recompor tudo isto como uma regressão.
O artista faz então uma óbvia tentativa de retê-la, ainda que simbolicamente, por meio de metáforas artísticas de forte expressão inconsciente. Quando descobre que ela está prestes a terminar o trabalho na Juliano Moreira, Bispo, sem qualquer procedimento criativo, mas com expressivo simbolismo, toma uma cadeira de metal e fórmica, na qual espera que ela venha a se sentar, como um trono. Prepara a cadeira com correntes e tenta retê-la concretamente no Trono acorrentado, uma última tentativa concreta de mantê-la consigo. Ela não desiste de que ele possa entender sua partida. Argumenta que ele não poderia acorrentá-la a ele, repete inúmeras vezes que estava ali para que ele se livrasse das próprias correntes.
“Senta na cadeira que eu não vou te acorrentar”, ele diz.
A cadeira era provida de rodas. A jovem senta-se e é empurrada e puxada, colocada longe e perto, na tentativa de Bispo se aliviar ritmicamente da angústia. Ele tentava experimentar o que sentia. E ela prossegue na explicação de que coisas que haviam vivido juntos ficariam com ele e nele, mesmo que ela fosse embora.
Ele diz: “está bom”.
Aparentemente aceitando a separação, Bispo diz que está preparando uma surpresa para ela. A partir disso, ele a proíbe de entrar na cela, para onde se transfere. Passa a dormir ali no chão, porque em seu quarto havia uma nova surpresa em preparação.
Ele a deixou entrar somente no penúltimo atendimento. Nesse dia ele trancou a porta, o que não era habitual. Havia duas portas: a primeira, de ferro, que ficava entreaberta, e a porta do quarto onde ele dormia. Fechou a porta de ferro e a levou até seu quarto. Lá estava a surpresa: uma cama com dossel e enfeites de cordões coloridos. Era a cama de Romeu e Julieta. Sobre ela havia uma camisola e o Manto da apresentação. Quando a jovem entrou, ele fez menção de fechar a última porta, mas ela, assustada, não permitiu.
A separação ainda não havia sido por ele elaborada e assimilada. A dificuldade da perda fez com que Bispo propusesse que os dois representassem, no último momento, a tragédia romântica de Romeu e Julieta.
Aceita, talvez, a separação física, restava ainda o símbolo, a representação como forma de união entre aquelas realidades incongruentes, a da lógica e a da dissociação. A paixão, o amor, a relação física surgiram como possibilidade de domínio do homem paradoxal sobre a realidade extramuros da mulher. A interface capaz de envolver universos tão díspares chega pelas mãos do teatro. A essência de Bispo tornou-se uma metáfora da representação da própria existência.
A jovem entendeu que o pequeno teatro seria o final, a tragédia, a separação, a dor, a morte, e não a história em si. Não era nem uma interpretação, mas algo interior que tomava forma e expressão.
Perguntou se ele sabia como terminava Romeu e Julieta. Ele entendeu: “(...) você nunca foi ao teatro? Eu só quero representar (...) eu aceito, eu sei que você vai embora. Você pode ir embora.”
Estava elaborada a separação nele. Sete anos depois voltariam a se ver quando mais uma vez Bispo deixou de se alimentar para se tornar transparente. Ela foi chamada pela direção da Colônia para conversar com ele. Lembrou o tempo que passaram juntos, as coisas que estavam dentro dele, as obras que ele fez, como que a indicar a importância do homem como artista. Disse que ele não estava abandonado, sozinho.
Bispo respondeu que ela poderia ir. Voltou a produzir e, até a morte, não permitiu que ninguém lhe prestasse qualquer cuidado terapêutico.

5. DESCRIÇÃO DA OBRA

Partidos estão os vasos harmoniosos, os pratos com a face grega, as cabeças douradas dos clássicos. Mas o barro e a água continuam a girar no casebre dos oleiros 
(Ernest Iande)

Nunca se soube que Bispo tenha se considerado artista: ele não tinha essa consciência. Sabe-se que possuía habilidades manuais e que desde a juventude arquitetava objetos e propunha alterações físicas nos lugares em que habitava, o que resultava em melhoria para a vida no entorno. No tempo em que teria vivido numa fazenda de café, no Estado do Rio de Janeiro, realizou mudanças no sistema de irrigação para que a água chegasse de forma mais eficaz aos locais a serem alcançados. A história, contada pelo crítico Frederico Morais, exemplifica, em teoria, uma vontade antiga do artista de manipular objetos, transformar o meio e operar ativamente sobre a fisicidade do mundo em que vivia.
Arthur não se afirmou artista, não se submeteu à sistemática de avaliação, mensuração, exibição e vontades do mercado da arte, que determinava e determina, valora e referenda o objeto artístico. Nunca pretendeu mostrar o que produzia, porque o fazia para si, a partir de uma pulsão interior e sem o desejo da revelação de talento. A propósito, o contato com sua obra era difícil, já que ele não permitia sua contemplação dentro dos parâmetros para o qual está rigidamente educado o olhar. Para se ver os seus trabalhos, a imensa instalação de uma vida, era necessário penetrar em sua intimidade e transitar pela sua loucura, decifrando enigmas perante o enigma gerador.
Realizava uma metáfora existencial para si e a ela se entregava para dela ser partícipe e fenômeno movente, dentro de um organismo vivo de representações. O homem e o seu fazer formam um sistema intercorrente, gerador de discursos, na dimensão em que permite desconstrução e leitura segundo variados paradigmas do conhecimento. À Antropologia, apresenta, por meio da série de objetos encapsulados, um exemplo de dispositivo ilustrador da expressão pictográfica primitiva. A presença do sagrado reveste a obra de um sentido sugestivo e transcendente. À Psicanálise, auxilia como possibilidade de contato com o inconsciente, objetivado de forma copiosa na trama de sentidos dos objetos. Para a Sociologia, significa a capacidade de resistência humana, a força anímica diante das tenazes das antigas instituições, fechadas sob a hegemonia de uma Psiquiatria do passado, utilizadora de neurolépticos, de surras, de doses maciças de insulina e de choques elétricos abusivamente aplicados. Para a Linguística, os feitos de Bispo são um copioso corpo de sinais, a ser decodificado por estudos sobre a afasia esquizofrênica. À Psiquiatria, interessa como paciente que se diferencia no universo dos iguais. Para a História da Arte, é um campo aberto de conhecimento, apenas em início de desbravamento. E, finalmente, para a Semió­tica, contribui com a variedade de conexões que se podem processar pela leitura integrada de todos esses campos de conhecimento, pela autonomia do signo.
O Bispo, na obra, são os sinais pessoais motivadores de uma emoção incomum para o observador. Os bordados trazem itinerários e vivências com as intenções do passado. O delírio auditivo determina, ordena ao homem a confecção da obra e constitui-se no moto-contínuo da operação artística. Em sua complexidade, a obra gera admiração imediata, pelo estranhamento trazido à percepção. Os objetos não culturalizados no âmbito da criação e a trágica história de vida do artista, com seus intransponíveis humores pessoais, vão, aos poucos, gerando uma hipnótica rede de significações que não se acomoda ao saber artístico tradicional do observador. Esse conhecimento, pelas mãos do louco, chega abrupto, sem amaciamentos estéticos, sem o ideal do belo ou do equilíbrio. Irrompe do inconsciente, formulando uma estética delirante, irreconhecível ao olhar primeiro.
O artista era, também, um compósito de sua arquitetura. Esta representava, para ele, uma trama magnética pessoal, totalitária, crescente e dominadora de espaços, que representava uma forma de vida fundada no trabalho e na produção. Evidencia-se que o atávico caráter de inutilidade da loucura passou ao largo de Bispo, quando se consideram o número de objetos que produziu e a forma como os produziu. Uma obra feita de algumas centenas de objetos para os quais o pouco tempo, desde sua morte, foi suficiente para desconstruir. Falta de recursos, instabilidade dos administradores, falta de uma política definitiva de manutenção e restauro, desconhecimento e desrespeito à memória fizeram-lhe uma coleção de fragmentos.
Para os outros, conhecer sua obra significava adentrar uma voragem de intangíveis horizontes a conspurcar a percepção observadora. Como um labirinto traiçoeiro, ela seduzia e afastava, envolvia e abandonava. Era forte como emblema do inconsciente, mas fina e frágil na particularidade de alguns materiais, como o papel, o pano, o barro e o plástico.
A descrição que ora se propõe é formulada com base em inúmeras visitas ao Museu Nise da Silveira, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá (RJ), em informações colhidas de pessoas que conviveram com o artista e na análise de vídeos realizados no Pavilhão Ulisses Viana. Deve-se lembrar que boa parte da obra foi destruída na passagem de um hospital para outro, conforme relata o dr. Hugo Denizart, um dos responsáveis pela divulgação do artista nos anos 80 e pessoa que registrou em vídeo e em fotografias já publicadas e expostas a vida e a situação dos internos da Colônia Juliano Moreira.
Na forma, há uma predileção pela tridimensionalidade. Embora desconheça a correta representação da proporção dos volumes, o artista realiza objetos para a ocupação de espaços nas dimensões do comprimento, largura e altura. São poucos os elementos feitos no plano: neles incluem-se os bordados em lençóis, alguns papéis escritos e uma folha de flandres furada, que resultou em forma de grande plasticidade. Sabe-se também que Arthur produziu um quadro, oferecido à psicóloga Rosângela Maria Magalhães, e outro, que já foi propriedade do artista Lula Wanderlei.
Em Bispo não há um elemento que determine uma posição de centro, da qual se possa partir como referencial para uma análise radial da obra. Há uma opção pelo irregular e por elementos de surpresa, que não se deixam captar logicamente dentro de estruturas rígidas de classificação e análise. Não há, igualmente, um aspecto evolutivo em que o procedimento amadurece pela pesquisa e pela autocrítica que os produtores de arte processam sobre o que fazem. O caminho para a interpretação desse labirinto de formas é pessoal, embora seja difícil dissociar o homem da obra. Há padrões expressivos que se repetem em algumas séries. O caráter de aparente descontinuidade acaba por se reforçar nelas, pela diversidade que apresentam. Mas há uma quantidade significativa de objetos autônomos, passíveis de análise. Remetem à leitura individual, mas demandam a relação com outros formalizadores da linguagem artística. É o caso das semelhanças com elementos produzidos pelas vanguardas do início do século. Nada disso tira da obra sua característica de imprevisibilidade e de abertura a formas inúmeras de descrição e análise.
As “leis internas da obra”, como as denomina Umberto Eco (1971), em muito se estabelecem a partir de sua materialidade casual. As substâncias constitutivas das bases e das possibilidades de formulações em Bispo são a variedade e o ocasional. Isso o leva a não processar um domínio viabilizador da evolução técnica pelo trato física dos materiais. Não se pode, também, analisar a obra a partir de sua competência evolutiva, se considerada a técnica. O obstáculo referenciado por Eco está na base do domínio artístico do homem sobre seus instrumentos de expressão. Bispo não tem um elemento de expressão único, mas um procedimento empírico no aproveitamento e manejo de matérias quaisquer. Por isso, entende-se que o obstáculo se apresenta na medida da escolha do material; entre as formas de solução encontradas para o domínio da matéria, está o arranjo e, nele, a técnica facilitadora da montagem. Montar é produzir um organismo a partir da disposição de suas partes constitutivas. É operação em que a originalidade deve se processar ao impregnar a unidade criada de personalidade única. Embora a montagem possa sugerir simplismo, demanda ineditismo pela transcriação que permite e pelo caráter de peça única que deve ter.
Em Bispo, estabelece-se como que um microcosmo de amplas possibilidades interpretativas. A primeira está na fonte geradora dessas formas, que vem a ser a loucura. Querendo-se ou não, esta é uma significação latente na obra. Pode-se afirmar, sem possibilidade de erro, que a loucura é o elemento positivo no reconhecimento de seu feito como objeto de arte. Se outro a produzisse, fora das condições de Bispo, dificilmente seria reconhecido como grande criador. Posteriormente, desconstruindo-a para a interpretação, verificam-se aspectos autônomos inter-relacionados que, no sentido semântico, falam a partir de quatro proposições que lhe são características: ordenar, catalogar, preencher, envolver.
Buscando-se a gênese criativa que determina a feitura da teia de significações de Bispo, chega-se a esses princípios como lei fundante. A razão dessa conduta criativa, imposta pela dissociação mental, é objeto para a análise da Psiquiatria e da Psicanálise. A obra denota procedimentos pautados nesses princípios, os quais acabam por constituir uma espécie de personalidade imutável, sustentando toda a ação do artista. Entende-se que esses princípios, balizadores da execução em Bispo, determinam, na obra, seu nascedouro de referência semântica. Não se trata aqui de uma teoria ampla de significados. Pretende-se, apenas, a revelação dos aspectos de significação da obra, que são sua faculdade exclusiva.
Ordenar é o procedimento que imediatamente comunica a obra como organismo. A ordem, como disposição, exige um princípio lógico de categorias hierárquicas. Para que se chegue a resultados, em geral, previstos, buscam-se elementos reguladores sob os quais se coloca, por similaridade, aquilo que tem a mesma origem, a mesma forma física e a mesma cor. A natureza tem essa inteligência para a formação de categorias. O processo evolutivo determina a formação de organismos que se agrupam em ordens, como lei geral autônoma. Delas vêm as subordens, classes e subclasses de seres viventes, por exemplo, descritos pela Biologia. A obra apresenta, nos grandes fragmentos seriados, essa tendência geral à ordem. Os objetos são estruturados de forma que a latência organizadora salta, em primeira instância, como identidade imediata do signo artístico. Sapatos em relação de semelhança com sapatos, pentes adotados como corpo para a ocupação ordenada do espaço, garfos dispostos na sequência que suas próprias dimensões determinam, identificam uma taxa de informações suficiente para clarificar o idioleto, essa marca pessoal e, por vezes, indizível de Bispo. Não há uma hierarquia estabelecida por uma matriz a ser dada como paradigma para a ordenação. Antes de tudo, é necessário ver que a ordenação existe como princípio, mas não como resultado lógico de categorização.
Catalogar, verifica-se, é um dos princípios de investigação para a arte conceitual, como os mapas de obras, os croquis ou a própria palavra como parte da pintura. Em Uma e três cadeiras, Joseph Kosuth torna claro esse princípio de relação entre o objeto em sua situa­ção natural, sua representação mimética no quadro e sua definição linguística. Os três momentos estão no plano, e o quadro explicita a situação de entrecruzar a escrita com a realidade e a representação, também na obra. Quando o signo verbal é aposto ao objeto ou ao signo da visualidade pura, na forma de explicitação, está-se diante de um processo de aderência de códigos, em geral com a superação do visual pelo escrito, se este tender à conexão, ao princípio hipotático. Dar nome ao visível, investindo-o voluntariamente com a palavra é criar um campo de experimentação no qual a incerteza deve cair por terra. Bispo assim tenta fazer, querendo estabelecer uma explicitação geral por intermédio da escrita e da numeração. Pode-se dizer que a sua criação está fundamentada, também, na utilização do léxico como princípio descritivo, quando não como princípio fundante. A escrita, o número, a pseudo-ordem numérica não fecham a significação. Ao contrário, somam-se ao objeto visual como possibilidade de indeterminação e abertura à interpretação. Sua catalogação não restringe a leitura do objeto e não o limita a se postar taxonomicamente ao lado de seus pares. Faz com que a indeterminação e a erraticidade se ampliem na tentativa de identificação do objeto catalogado. No catalogar de Bispo, sabe-se que uma lei ordenante está permeando a ordenação espacial, embora nunca estabeleça uma relação intrínseca de um objeto com o outro, como reza a lógica das ordenações conhecidas.
É esclarecedora a análise do quadro Les mots et les images, de René Magritte, em que o autor, por uma equivalência semântica, esclarece que Un objet ne fait jamais le même office que son nom ou que son image: cheval (“Um objeto não desempenha a mesma função de seu nome ou de sua imagem: cavalo”). A obra do artista belga conecta signos para apresentar enunciados no quadro, mostrando a prevalência do código verbal sobre aquela imagem que designa. O discurso escrito é signo com autonomia sobre a representação visual. Bispo apõe a letra e o número com o desejo de que o soma por ele produzido se estruture em alguma forma de ordem que não se sabe qual é. Buscar coerência nessa ordem seria uma viagem pelo mundo das possibilidades e nunca o resultado de uma possível pesquisa.
Há arranjos tridimensionais de Bispo nos quais não comparecem a escrita, o número ou a letra, nem se faz presente o desejo da catalogação. Mas este continua como princípio, inclusive nos bordados, nos quais se dispõe a memória do passado vivido. Está, também, nas obras moduladas em papelão, nas montagens que têm o plástico como páginas de expressão e nos encapsulados representando a geografia das ruas do Rio de Janeiro, uma série de estranhamento e alto teor de significação autônoma.
O catalogar é um sistema numérico e de escrita, transposto para o nível estético, que pode representar a vontade do controle sobre o todo e a referência espacial imediata aos microitens. A catalogação relaciona-se com o capítulo 8, sob a cifra “A Ordenação da Trama”, em que se busca a lógica de um processamento esquemático na interioridade da obra.
A terceira característica geral da obra, presente nas montagens, é a de preencher o espaço de expressão, aquela ambiência física determinada pela base material em madeira, plástico ou papelão. O preencher ocorre pela disposição dos corpos que se pretende sejam um extensão do outro ou uma complementação pela seletividade formal de cada um, quando a natureza desses corpos não se assemelha. Os bordados são elaborados com a técnica do preenchimento do espaço. Um pergaminho de memórias e de representações do entorno buscando a completude nos limites do branco. Preencher aí significa dominar o que está virgem pela inserção de uma gramática pessoal. É formular uma personalidade transformadora, mudando-se a natureza daquilo que é efêmero. Ao se bordar, o pano adquire outra natureza que não a de ser um mero lençol. Sobre ele está a pregnância do signo artístico. As montagens, com variedade de elementos, processam-se, assim, por uma possível complementaridade de formas. O preenchimento dos interiores quer a eliminação da lacuna, a elisão da fenda.
Sobre a fundamentação desses objetos em sua complexidade estrutural, evidencia-se o quarto princípio geral fundante, o envolver, ou encapsular, como qualidade constitutiva do alicerce sobre o qual o artista ergue sua arquitetura de lógicas próprias, ordenadas pela insensatez. Envolver está na base do estabelecer de um esboço pessoal de difícil esclarecimento, visto que baseado na experiência pessoal. É a supressão do que sempre foi e é, pela transformação taxonômica na exterioridade do outro. O que aparece ganha outra feição, um disfarce na aparência, sua tradução em outra coisa e a manutenção da forma. Significa, também, a marca do desejo de se colocar, como o guardião, aquele que é maior, pronto para proteger o envolvido. Bispo cerca o que se apresenta à vista como que lhe dissimulando a natureza. Nessa operação, a peça de ferro pesada e dura recebe uma carga de expressividade na qual o que primeiro se comunica é a maciez. Não se conhecendo o material que determina aquela forma original, pensa-se, ao primeiro olhar, tratar-se de objeto suave. Ao tocá-lo, sabe-se tratar de um disfarce, com a resistência do ferro, pelo peso. É o privilégio do tato que vai discernir entre o rugoso e o liso, o compacto e o poroso, como se o elemento da arte fosse uma extensão das mãos.
Envolver é assumir a guarda do que lhe está à mercê. É tornar-se essencial e próximo, pelo que falta ao outro. É dispor-se pelo que lhe é próprio e que ao outro falta. Está, também, na base de outra obsessão, a de colecionar. Pela amplitude numérica dos objetos que possuía, um apêndice da própria vida reclusa, infere-se que Bispo era um obsessivo colecionador: aquele que arrebanha o dessacralizado, que o organiza para nele projetar o sonho da desrazão como possibilidade de retenção da realidade. Uma realidade que não domina, mas na qual pode interferir, apropriando-se de seu restos e transformando-os em novas significações. Rouanet (1989) entende o hábito da coleção como maneira de tornar os objetos acessíveis à reminiscência. Cita a “irracionalidade da mera existência das coisas”, o que se aplica totalmente a Bispo, em sua compulsão por inserir elementos banais num sistema que se formatava e ganhava representatividade, na medida das próprias inserções. Colecionar pode ter significado para Bispo uma forma de contato afetivo com o que era exterior às suas celas, pela relação com as coisas do meio, nas quais interfere, contrariando o sentido usual de sua história.
Mudar a exterioridade dos corpos, pelo processo de encapsulamento, é um princípio cuja propriedade subjetiva pode estar nas origens da condição paradoxal do artista, com a cisão do eu e a projeção do inconsciente sobre a razão.
Adotamos, neste estudo, o princípio da base material e do procedimento sobre os objetos para a descrição sumária da obra.

6. A BASE MATERIAL

Things are on the saddle and they ride mankind.
(Emerson)

Para se inventariar a obra a partir de sua base material, é necessário esclarecer que na produção de Bispo não há uma anterioridade artística, uma seleção prévia norteando a preferência pelos suportes sobre os quais recai a expressão. O que o supre com a materialidade, além do próprio organismo de formas presentes no asilo, é o acaso, os demais internos e os visitantes. Por isso, grande parte da obra é feita de objetos incomuns e não seriais, como o lixo e outros resíduos da inutilidade física do dia-a-dia.
Os materiais utilizados são, em geral, os que lhe estão disponíveis, o que permeia o caráter físico da obra de Bispo de um aspecto criativo aleatório. Tais materiais não são aqueles dos quais a tradição artística lança mão, ou seja, não vêm da indústria da arte, como o acrílico, o papel, a tinta a óleo ou acrílica, a tela, o gesso e o bronze, para citar somente os mais usuais. A base material não se define a priori. Apenas nos lençóis bordados há essa competência seletiva e uma possível anterioridade do pensamento sobre o procedimento criativo. Uma agulha pode ter desencadeado o pensamento sobre esse processo expressivo incomum: o bordado. Sem as linhas, sem o providencial bastidor, sem o tecido, Bispo desfez os uniformes azuis, tomou os lençóis em uso na cama como base e sobre eles bordou frases patéticas, figuras e símbolos.
O alicerce físico na obra de Bispo fundamenta-se na medida da materialidade determinada pelo entorno. E o entorno não significa, apenas, o que está disponível no ambiente manicomial. Após décadas vivendo o enclausuramento, Bispo tornou-se o “xerife” organizador das filas para o almoço e o jantar e impôs aos outros internos uma mítica incomum em asilos. A mítica do comandante, aquele que lidera não apenas circunstancialmente o grupo, mas estabelece a supremacia de sua vontade e impõe-se como a voz mais forte, em torno da qual há uma conjugação de interesses. Não se pode comparar essa liderança com aquela das prisões, a que objetiva o crime, mesmo fora do ambiente do recluso. Nos asilos, liderar, se assim se pode dizer, significa apenas fazer-se respeitado. Era Bispo um referencial humano para os demais.
Sua qualidade de organizador, portanto, não se restringe à obra, mas à própria vida comunitária, que talvez carecesse de uma ordem interna informal, antes de sua sustentação como líder. Por isso, Bispo foi entronizado o chefe, o mediador, no momento em que todos, obrigatoriamente, deveriam estar juntos, ou seja, na hora de receber o alimento. Essa condição fez com que o artista fosse constantemente procurado por outros internos, os quais lhe traziam objetos para a composição da obra. A profusão de pratos, sapatos, congas, pentes, canecas, bolsas femininas, bonecas e tantos outros elementos díspares nas montagens justifica-se por essa romaria de loucos à caserna do chefe na Juliano Moreira.
As operações formais, fora das montagens, ocorrem pela via do artesanato. Há uma predileção pela formulação de objetos infantis, como que para finalidade lúdica. Em geral são carrinhos toscos, cuja confecção não exige mais que operações primárias sobre a forma e a estrutura, como cortar, serrar, colar e pregar. As formas são o quadrado ou, no máximo, o retângulo e o círculo, corporificado nas rodas. A matéria circular é recorrente no carrinho para suporte de bombas de gás antiincêndio, em carrosséis, na Roda da fortuna (uma cópia fiel da Roda de bicicleta, de Marcel Duchamp) ou em formas geométricas dos bordados.
Impossibilitado de acompanhar as alterações sociais no mundo externo, privado de ver a evolução da arte extramuros, o artista voltou-se para a própria estrutura física da realidade asilar e, operando sobre ela, encontrou e fundamentou sua gama própria de bases materiais. O que Goffman (1987) chama de “a profanação do eu”, pela perda seja da referência de uma cultura externa, seja do aporte cultural do interno, pode ter resultado em uma tentativa constante da formulação de uma individualidade, na medida ampla da formulação artística. A base material se faz na medida das limitações impostas pelo meio físico, por isso é aleatória. Mas, como possibilidade expressiva, abre-se como uma nova perspectiva material, determinada pela carência, como uma transcriação sobre o que já foi criado, utilizado e, em geral, tornado inútil.

A MADEIRA | É o suporte físico mais estável para outros materiais pesados, como ferros de passar roupas, latas, vidros de conservas, espelhos de luz, tomadas, frigideiras, tampos de fogão, estruturas internas de caixas de som, tampas de panelas, funis, partes de encanamentos, botões, chaves, vidros de faróis de carros, mangueiras para irrigação, carpetes enrolados, garrafas plásticas de detergente, copos plásticos, tampinhas de garrafas, garrafas de vidro, boias de redes de pesca, redes de pescar, rolos de papel kraft, colheres de pau, cestinhos de plástico para pão, ralos metálicos, torneiras e partes de torneiras, bocais de lâmpadas, brochas, pincéis, fivelas metálicas, abajures, facas, um relógio cuco, canivetes, forminhas de uso culinário, estatuetas em gesso da Pomba Gira, da Cabocla Jurema, de Nossa Senhora Aparecida, de Cosme e Damião, da cabeça de Nefertite, da bandeira do Brasil, de Santo Antonio, São Lázaro e São Sebastião, colares de contas plásticas, escovas de cabelo, uma Estrela de David, uma moldura de onde foram retiradas as fotos, azulejos, vasos, saca-rolhas, flores metálicas, espremedores de frutas, saleiros plásticos, bengalas encapsuladas, ancinhos, ratoeiras, escadinhas, carrinhos plásticos e de madeira e inúmeras outras formas inidentificáveis, circulares ou geométricas.
A madeira revela o caráter artesanal e, em muitos momentos, a vontade de domínio sobre a matéria que supera a própria habilidade manual na manipulação. O material resiste à consecução de formas. O lenho não se deixa dominar com facilidade. Demanda extensões técnicas da mão para que assuma formatos determinados. Talvez pela impossibilidade de obter essas ferramentas, Bispo tenha utilizado a madeira mais como base de sustentação e para a organização de formas com a solidez desejada. Operou minimamente sobre ela e, quando o fez, foi pelo corte com serrote ou faca e pela junção das peças, geralmente com pregos e, muito raramente, com cola ou com amarrilho.
Grande parte das montagens é, assim, elaborada a partir da estrutura física das formas em organização, formas estas que demandam a base sólida da madeira para o arranjo das partes da composição. Não há regularidade de tamanho nessas bases. Sua dimensão depende dos fragmentos que sobre elas serão arranjados. São estruturas pesadas, em geral retangulares e verticais, sobre as quais o artista vai organizando os objetos, selecionados por similaridade, como sapatos, canecas, garfos, pentes, garrafas de água mineral, ou por contiguidade, como plásticos diversos ou outros materiais vários.
Esses constructos individuais são os módulos da arquitetura de Bispo. Embora extremamente pesados e sólidos, eram transportáveis, podendo ocupar diferentes lugares nas celas do Pavilhão Ulisses Viana. Uma característica comum a todos é a continuação de duas partes da moldura, formando uma espécie de cabo que permitisse o manuseio. Esses cabos assemelham-se, rusticamente, àqueles das carriolas para transporte de areia ou cal. Esses cabos podiam funcio­nar também como um pé: se a obra fosse depositada no piso, a montagem ficaria protegida e distanciada do rés-do-chão.
Em instituições como a Colônia Juliano Moreira, a madeira está disponível na forma de caixotes de frutas, troncos do entorno rural, cabos de vassouras, vara, ripas, pedaços de portas e janelas, travas, varinhas, pequenos lenhos, pranchas, vigas, fragmentos de soalhos e uma barafunda de possibilidades determinadas pelo uso dado a esse material.
Na obra de Bispo, a madeira foi, também, utilizada como elemento expressivo autônomo, ou adicionada a outros materiais como forma escultórica. Quando não é tomada como base, é um componente em geral agregado à forma final, sem alterações substanciais, conservando a feição com a qual surge para o artista. Não sendo o suporte, passa a compor, mais do que transformar ou ser transformada.
Não se trata da madeira com possibilidade de modulação figurativa, com dureza pensada, resistência medida, durabilidade calculada em função da permanência da obra. Não se trata da madeira apropriada ao objeto da arte: é a madeira que sobrou, a lasca encontrada no lixo ou na sujeira crônica do ambiente asilar. O artista dela se apropria sem pensá-la como matéria-prima elementar a ser densamente transformada em sua natureza estrutural. O artesanato modificador que opera sobre essa base é pequeno, e para isso deve-se considerar a ausência de um ferramental mínimo para operações de transformação manual: formões, martelos, pregos, serrotes afiados, cola, serra tico-tico - os acessórios, enfim, que viabilizam a interferência eficaz sobre a madeira para transformá-la em elemento autônomo de expressão e com maior variedade de sustentação de formas.
Bispo utilizava-se de uma faquinha. Fora esse instrumento, há outros que foram encapsulados, como o martelo e o formão e que talvez fossem usados como viabilizadores da técnica.
Há um traço característico na estruturação da madeira, sobretudo na construção do esqueleto dos barcos/prateleiras. É o feitio do elemento vazado, que permanece na obra acabada como um frágil arcabouço visível.
A madeira, tomada como suporte, também está presente na forma de pedestais quadrados ou de tábuas retas, de onde sai o objeto elaborado em direção ascendente. Assim estão articuladas: A roda da fortuna; uma representação em gesso de Diana caçadora; a peça que Bispo catalogou como B-280 palanque; a base para o Sacco de boxe; a Cantoneira para flores plásticas; o Orador religioso - o Político; o Curral; o Timão com sino; o recorte 434 - Como é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa; e uma infinidade de outros objetos que parecem inacabados ou foram parcialmente destruídos ao serem transportados para o Museu Nise da Silveira, onde hoje estão.

O PANO | Este é um suporte tradicional que não é utilizado por Bispo de forma convencional. O quadro tendeu a constituir o aspecto de mobilidade da obra de arte e sua característica de objeto independente, fora de sua inserção como elemento da arquitetura ou da decoração de interiores, e foi delimitado em suas extremidades por outro elemento de sustentação, em geral a madeira. Os dois, pano e madeira, estabeleceram o espaço delimitador da expressão, do qual não houve transbordamentos até as modernas experimentações do Dadaísmo. Com este, o comportamento e a técnica da arte cederam a uma certa desordem na formulação do objeto artístico.
O quadro, após as experimentações vanguardistas, deixou de ser o espaço sagrado e único do artista. Bispo, como a vanguarda, utiliza o pano de forma inusitada, fora da sujeição à moldura, mesmo porque o tecido de que dispõe não está, tecnicamente, adequado à tradição das tintas e dos pincéis. São panos e não telas feitas com a urdidura adequada ao recebimento das demãos a serem aplicadas sobre a superfície-base. O pano, ao contrário da tela, não resulta de um desenvolvimento têxtil, relacionado à densidade da têmpera, do óleo ou da tinta acrílica, modernamente utilizada. Se Bispo usasse o algodão para a deposição de tintas, certamente não se criariam películas, aqueles delicados espelhos que se vitrificam sobre sua base mais adequada, a tela.
O pano, embora não tomado como base para a tinta, tem diferentes utilizações para Bispo. Pode ser suporte ou elemento de composição agregado, um elemento secundário para a formulação de outros objetos, conjugados a outros materiais. No primeiro caso, aquele em que atua como base, é interferido para que a linguagem se expresse em sua função de memória. Referimo-nos aqui aos bordados sobre lençóis e aos bordados sobre tecidos formatados em retângulos horizontais, juntados pelas extremidades, compondo os estandartes de fragmentos.
Pode, também, comparecer sob a forma de vestimentas. Aí, estamos diante de objetos cuja base é o pano, já não, porém, o algodão dos lençóis. Trata-se das fardas, uma possível rememoração da vivência do homem marinheiro. Essas fardas são tiradas de seu uso cotidiano e interferidas com bordados mínimos, carregados de elementos do delírio auditivo. Frederico Morais, que conviveu com o artista e realizou duas exposições quando este ainda vivia, lembra que uma das fardas tem, costuradas nas mangas, pequenas faixas retangulares horizontais, de cores diversas. Esclarece que essas inserções de retalhos são o resultado de respostas dadas por diversos visitantes às clássicas perguntas admissionais do artista: “Qual a cor da minha aura?”, “De que cor você me vê hoje?”, ou “Qual a cor do meu sembrante?”. Bispo apropriava-se da cor recebida em resposta como elemento formal para a composição estética, apondo-a sobre a farda. É possível que, na relação cuidadosa com esses objetos, tentasse estabelecer um controle ao ingresso em seu labirinto já ordenado e quisesse impregná-los com a representação da história e das vivências pessoais e do presente.
A ideia de uma tentativa de filtragem por meio de sinais ou senhas repete-se em muitos momentos na obra, pela conjugação da busca de uma ordenação racional que nem sempre acontece, sobretudo nas montagens, com o rememorar frequente do passado, pela utilização da escrita. O controle chega pela ordem e pela memória.
Esta seria a característica primeira do artista. Uma ordem que não encontra um resultado imediato, um fim esperado e, por isso, perpetua-se como procedimento. Não se trata de uma função, a de repetir, a serviço de uma finalidade, mas da organização pela tarefa obsessiva de organizar, que resulta em processo de criação de falas que se repetem. Entendendo-se a organização como qualidade sutil na mente paradoxal, não há um princípio lógico externo a ela. A organização em Bispo apenas é. Ela não tem uma utilidade que não seja interna ao artista, mobilizado, a partir do delírio, pela pulsão de representá-la. Trata-se de um organizar indiscriminado, insistente, que retém, na obra, o gesto geometrizado, não informal e pessoal do artista. Dessas molduras de ordem pode transbordar a desordem, como nas “Embarcações”, receptáculo de uma miríade de formas inusitadas que vão se derramando pela estrutura física do barco.
Os lençóis contêm o exagero dos elementos figurativos, também acentuado na escrita, pela frase paratática. Nesta, as conexões lógicas do pensamento, com a estrutura frasal organizada em sujeito, verbo e complementos, não conseguem se estruturar. O texto hipotático, de estruturação lógica, aparece apenas uma vez, no pano onde bordou a mensagem escrita por outra pessoa: os dizeres de propaganda da revista Veja, de 26 de março de 1986, relativos a uma posterior publicação de fascículos para venda em bancas de jornais.
O bordado figurativo é um preencher constante do espaço, um exercício de acumulação de formas aleatórias, como que a fugir do vazio. É uma possível representação do medo do nada. Uma agorafobia estética, um mórbido sair das grandes extensões espaciais. O que se verificou na tridimensionalidade, no Pavilhão Ulisses Viana, o que se repete no interior das “Embarcações”, é, novamente, expresso no bordado plano. Há que se considerar aqui os dificultadores e os facilitadores de cada técnica utilizada nesse preenchimento sem crítica.
No espaço, trata-se de arquitetar novas formas a partir da junção de outras preexistentes, fazendo-se uma aproximação, por alguns princípios de semelhança ou não, entre os componentes. No plano, principalmente nos bordados em que elabora a figura, há uma ordem geral, determinada pelas imposições da própria técnica do bordado. Este exige que se dimensione no pano a figura a ser impressa pelo entranhamento de outra linha e, assim, não facilita a casualidade que se faz presente nas montagens.
As montagens, por serem esquemáticas, são mais abertas à inserção de materiais. São edificações que permitem liberdade na escolha dos contornos, uma vez que trabalham com a forma livre e sua articulação. Em algumas, há uma tendência à abstração, pois as formas agregadas não se definem a priori. São raros esse momentos, mas eles estão em trânsito pela montagens, como estão alguns sinais bordados. No espaço, surgem como liberdade gestual na ordenação e escolha dos materiais aderentes. No bordado, não: ali a figura determina-se previamente e, ao exigir paciência e tempo em sua confecção, acaba por apresentar uma feição de maior clareza, de maior limpeza, sem ruídos na leitura e, aparentemente, uma menor entropia. Por essa razão, o bordado figurativo ganha autonomia estética em relação ao todo da obra de Bispo. É o segmento mais mostrado em exposições, porque se sustenta como técnica inusitada, como procedimento particular e como possibilidade de expressão própria, sem precedente na história da arte brasileira. É um trabalho complexo e de apelos aos sentidos. Sem ser agradável, é empático e surpreendente. A figura bordada é reduzida a sua forma primária, despida de adereços ou adornos. Ainda assim, os bordados figurativos, pela profusão de formas que os rodeiam, como um inventário do universo vivido ou imaginado, saturam a retina.
O pano, em sua variedade de tramas, pode ser utilizado como elemento adjunto. Há um berço rústico de madeira, onde o voile é o elemento de proteção a um suposto bebê, representado por folhas amassadas de jornal. Já o outro, o leito que criou como objeto de contemplação e que se assemelha, em sua ambiguidade, a uma nave, foi guarnecido com ampla peça de voile branco à guisa de mosquiteiro. Este foi decorado com fitas de lã azul e verde e cordões dourados e marrons. A cobertura do leito/nave é feita por uma colcha verde-água, ornada com geometrismos e motivos florais, arrematados por uma pequena franja. É um objeto cuja estrutura é a madeira e que pode ser usado para sua finalidade original. Mais do que elemento da representação, é realidade pouco interferida, porém, muito significada.

A MASSA, O BARRO | O barro oferece possibilidades inúmeras de expressão. Considerado pela cultura dos materiais como elemento menor, é um dos princípios mais maleáveis na elaboração de formas. Exige o contato direto das mãos. Moldar o barro demanda, apenas, a operação da mistura da alumina e da sílica ou da argila e da greda com a água. O processo de secagem pode ser natural e, embora lento, não exige, obrigatoriamente, a utilização de fornos ou catalisadores.
Bispo revela-se um artesão na manipulação do barro que processou. É o acabamento para sua base escultórica. Utiliza-o pouco, mas por meio dele revela seu potencial de criador e não só de ordenador da forma. Cria ícones da espacialidade, com a utilização dessa técnica milenar, simples, mas que exige a precisão no arremate. Com o barro, finaliza carrinhos tão ao gosto da criança da roça, do interior, ou de lugares onde a cultura dos brinquedos para meninos não era, ainda, ditada pela indústria. A Japaratuba de 1911 assim deveria ser. Um desses elementos referencia a diligência, meio de transporte dos filmes ambientados no Oeste americano. O que seria a cobertura desse veículo, em geral em tecido grosso, a lona, é cuidadosamente formatado em barro escuro, possivelmente o saibro, como se infere por sua tonalidade cinza enegrecida.
Outra pequena escultura, sustentada por uma barra de madeira, é, também, acabada sob esse princípio da cobertura com material de consistência de massa, desta vez branca, talvez a cal. Trata-se da Caixa d’água, elemento que não se explicita à primeira mirada, pois exige a dúvida como forma de identificá-lo. Por estar fora do chão, sustentada sobre três pilares, e não quatro, como manda a convenção, processa a indecisão no momento em que o receptor tenta percebê-la materialmente.

O PAPEL, O PAPELÃO, O PLÁSTICO | Estes são meios largamente utilizados como sustentação para a expressividade. Não como elementos escultóricos apenas, mas como base para a escrita em três dos quatro princípios anteriormente citados, ou seja, preencher, catalogar e ordenar. Segundo dados informalmente obtidos na Colônia Juliano Moreira, soube-se que Bispo mantinha em seu autocativeiro uma série de listas telefônicas. Com a obsessão pela re-presentação da ordem, realizou uma série de módulos em papelão recortado de caixas, que permitem o movimento e podem ser pendurados. Sobre as peças moduladas, transcreveu uma sequência de nomes, dos quais manteve a letra inicial, embora a ordem alfabética não tenha sido respeitada corretamente.
O objeto final lembra um estandarte, como aqueles que abrem as festas religiosas da Folia de Reis ou a Festa de São Gonçalo, referências culturais das populações rurais, hoje quase extintas, mas de forte inserção nas comunidades interioranas no passado. No capítulo I, especificamente na história de Japaratuba, há comentários de Eduardo Carvalho Cabral sobre as festas populares de origem africana realizadas naquela cidade. Nelas, o estandarte comparece, como também no Maracatu (com a Dama da Boneca) e no Reisado. O estandarte anuncia, emblematicamente, a chegada dos blocos, com os símbolos identificatórios de cada um; a entrada do estranho no espaço do conhecido, a vinda daquele que se anuncia em silêncio, que chega como um monarca em visita a outro reino, que sabe que vai embora, pois que de transitória passagem; cristaliza no instante a sua melhor qualidade, a beleza do movimento, a promessa das rezas, a música, a força da invocação.
O estandarte é a inscrição para que a memória, tão seletiva, lembre-se dos melhores momentos, como a boa hora nas angulosas riscas dos relógios de sol. O estandarte é o registro do que está no presente do outro, mas que pede para não ficar como corpo ordenado, assim poderá um dia voltar. Poderá voltar sempre, para depois se dissolver na desordem dos corpos que se tornam estranhezas enfeitadas, perdidos atavios no âmbito de quem o recebe.
O carnaval conserva essa situação do emblema como forma identificatória e de anunciação da chegada, antigamente, dos blocos, e hoje, das escolas de samba.
Outro elemento da escrita sobre o papelão é a notícia policial, o fato relacionado ao crime e ao castigo. O punido carrega para sempre a carga de sua punição, suporta a sua marca solitário. Leva-a consigo como qualidade definitiva de seus feitos. A punição é o que está e que não pode ser removido ou transferido ao outro. Ela é interioridade pura, instalada, entranhada inexoravelmente. Se o estandarte paira e passa para se tornar lembrança, a punição fica, pois sempre será relacionada a algo passado. A escrita é, pois, o engenho que plasma no estandarte a festa e a culpa.
O estandarte é, portanto, o marco maniqueísta de Arthur Bispo do Rosário, em quem o bem e o mal são referências dentro das quais o homem faz o seu melhor para chegar à casa do deus. O material da escrita é o pincel atômico com tinta preta ou branca:
Duque de Caxias - jornal dia 25 - de - maio - de - 1979 - depois de intensa troca de tiros - quatro assaltantes presos por uma turma - da policias na praça principal de Piabetá - a quadrilha é responsaves por uma seris de assaltos - foi reconhecida por umas da que procurou o delegado Rudá - Iguatemi
Foram identificados como Rubens Martins de Castro - 23 - anos-Rua do Relógio - sem numero Pibetá-Genivaldo Gonsalves da Silva-19 ano Rua Guarani-18-Piabetá-Cosme da Silva Santo-19-anos-Rua Guarani-quadra 1-lote-27-Fragoso-Aristides Moreira Filho-26- anos-foram apreendidos com eles tres revolveres
Calibre-38-calibre32-todos com carga deflagradas-depois de atuados e trancafidoconfessam ja possuir antecedentes criminais pela pratica de roubos e furto-no momento em que foram presos estavam planejando atacar um supermercado que fica à entrada da cidade. [6]
O plástico também é utilizado como base para a escrita com pincel. No mesmo segmento, há estandartes fixos sobre papelão, no qual foram apostos retângulos azuis e há uma série de nomes, seguidos das respectivas profissões. Comparecem dados de pugilistas brasileiros, portugueses, argentinos e uruguaios do passado.

7. PROCEDIMENTO PLÁSTICO

A história da arte pode ser descrita como o ato de forjar chaves-mestras para abrir fechaduras misteriosas dos nossos sentidos, cuja chave original só a natureza tinha. São fechaduras complexas, que apenas se deixam penetrar quando diversos parafusos ficam de prontidão e certo número de trincos são movidos simultaneamente.
(Gombrich, in Arte e ilusão)

AS “EMBARCAÇÕES” | São em pequeno número, mas de importância capital para a análise da obra e uma referência direta ao homem. Embora nem sempre se apresentem como elementos de identificação imediata, pela forma esquemática como são articuladas, trazem indícios do passado vivido do artista, enquanto jovem sinaleiro e grumete na Marinha. Alguns elementos com essa feição identificatória são cordões de bandeirinhas, presos às extremidades dos mastros e dos barcos. Ao mesmo tempo em que são percebidas como embarcações, inculcam a dúvida no receptor que examina mais detidamente esses objetos escultóricos. Estão estruturadas como prateleiras vazadas, em geral, de três níveis. Sob a base de cada um desses níveis, foram colocadas rodinhas aos pares, uma possibilidade de movimento orientado. Trata-se de embarcações babélicas, engendradas na fragilidade de ripas, mas com um interior orgiástico de formas. Estas se diferenciam nos materiais, mantendo, porém, a constância dos pequenos elementos emblemáticos que são as bandeirinhas, sinais de comunicação ou de países indeterminados. Seriam uma forma alegórica de cordões marinhos ou de festas juninas?
A madeira, tomada como base para a construção desses barcos, não é operada de maneira transformadora. Ela constitui a estrutura para a deposição dessas alegorias, com possibilidade concreta para a mobilidade do objeto, uma vez que guarnecida de rodas. A embarcação-mãe sugere-se, também, como uma prateleira, algo que sustenta as partes. Ela é seu próprio modelo, na medida em que contém o outro que tenta representar. Na forma geral, lembra um edifício, cujos módulos são aquilo que está no todo: um arquivo absurdo de si mesma. Nesse sentido, o barco representa o que é, mas vai além da realidade, fazendo da estrutura esquelética edificada por Bispo uma matéria que, na significação, se supera para sugerir uma ambivalência entre o todo e a parte. Há uma possibilidade de deslocamento da percepção observadora, visto que esse processo construtivista de objetos coloca em evidência as polaridades da ordem e da desordem. A ordem está na estrutura montada sobre a base material, que é a madeira, a prateleira, e nos cordões de banderinhas cuidadosamente dispostas umas ao lado das outras. A desordem surge como as vísceras da estrutura, aquele emaranhado de formas incomuns e que não dialogam entre si, um juntamento de materiais quaisquer que não se repetem. É a parte entrópica e intrínseca, limitada pela ordem estabelecida pela linha compacta que delimita o que é interior e o que é exterior. Esses objetos não estão na escala do homem, mas na desproporção que lhes garante a arte, e seu interior labiríntico não expressa qualquer relação de funcionalidade entre as partes.
Sua feição interior compõe-se de complexidade, desordenada pela natureza das peças que formam a embarcação. O barco, um sistema de proteção e de movimento feito para a imprecisão das águas, faz-se presente na obra como fixidez física. Por isso, foi guarnecido de rodas. Por sua estrutura geral, a embarcação denota o objeto que está nas lembranças do interno, que a quer expressar em sua completude de formas na relação com o espaço. Ao apresentar indícios que o qualificam como barco ou navio, chega ao repositório de signos conhecidos pelo observador, que o identifica como forma geral por meio de seus componentes. Mas, ao apresentar sua intimidade, remete a essa ambiência perceptual de ambiguidade, deslocando a lógica da interpretação para as demais metonímias de seu arcabouço, que bem podem ser elementos da realidade, como uma garrafa, uma bola de inflar ou, até mesmo, uma frase escrita, elemento que transita obsessivamente pela obra de Bispo. São objetos únicos.
Há outras embarcações, de fisionomia mais bem figurada, que, em geral, não possuem uma área como base. Para sustentar-se, devem ser encostadas em outro objeto.

AS MONTAGENS | O nível sintático de arranjo das montagens é definido pela relação entre as características materiais internas dos componentes que estruturam o código artístico. Este, segundo uma lógica própria, processa a composição ou a organização de objetos, operando ao modo do caleidoscópio: tal é o princípio da montagem.
Há uma infinita possibilidade de arranjos, na medida em que a disposição dos materiais fica à mercê de uma organização de cunho íntimo, e, embora se possa pensar uma previsibilidade sobre o universo de unidades componenciais, o resultado criativo acaba por recair no ineditismo, com a marca da pessoalidade em cada gesto.
Em Bispo, a desordem interior é um princípio de significação, pela organização de formas. Há nelas a substituição da mimesis por um princípio de semiosis, tais as variantes expressivas e os diálogos processados entre si pelos componentes das montagens, que podem impor a imprecisão como princípio. Há uma ambiguidade geral entre a definição imediata da figura e uma sua segunda identidade, como os barcos-prateleiras.
Nas montagens, o método é constante. Ele é taxonômico, é organizatório e é previsível no preenchimento/eliminação de espaços vazios e na ordenação obsessiva.
É fato que a cultura dos materiais artísticos, a partir de Duchamp, garantiu direitos sobre qualquer corpo para a expressão. No entanto, nota-se que Bispo os tomou de modo diferenciado. Em sua obra, os materiais já chegam impregnados de significação pela história que surpreende, eivada de seu nicho original. Suas unidades de referência, banalizadas em excesso pelo uso cotidiano, adquirem o status de objetos auráticos pela significação sobre elas prevalente, na medida em que estão circunscritas a um espaço inabitual para o universo da lógica.
O manicômio, cuja gênese está em Salamanca, no século XV, já é um nascedouro sugestivo, tanto para o interno quanto para um artista qualquer que queira ali buscar elementos de expressão, como um fotógrafo, um pintor, um confeccionador de objetos.
As montagens de Bispo adquirem referencial denso para a pesquisa e a interpretação, porque saem das mãos do artista com uma carga sígnica que não possuiriam, se arquitetadas pela razão. Este é um adendo inerente aos objetos que produz. Atualmente, outro artista de tendência expressionista está se impondo na Colônia Juliano Moreira como pintor. Sua condição de interno é seu diferencial, embora comprove talento e expressividade na criação.
Feitos inusitados, esses arranjos continuam dialogando entre si numa relação que se atualiza na medida da disponibilidade de materiais para a seriação. A possibilidade de utilização desses fragmentos é ampla e, ao mesmo tempo, uma finitude os envolve, mercê de sua previsibilidade estrutural, ditada pela ordenação e o preenchimento, duas das quatro características de Bispo.

OS BORDADOS | A série conjuga a figura à escrita. Enquanto técnica expressiva, acena com a possibilidade do desenho prévio, figura a figura, o que faz pressupor uma intervenção anterior mínima por parte do artista sobre seu meio de linguagem. É, nesse sentido, uma tentativa de ordenação da expressão.
Embora esquemático e de feição primitiva nas angulações e nos círculos, o desenho é vivo, pleno de saturação como uma cartografia de memórias. Destaca-se, em sua base expressiva como módulos, dentro dos quais o movimento se ordena. Nunca se estrutura como uma gramática. Novamente, o princípio de preencher está integrado ao espaço do pano, como recortes individuais em que a significação é autônoma e nem sempre dialoga com o recorde contíguo.
O preencher não nasce a partir de um centro hipotético no plano, em que estaria o motivo e de onde sairia uma radialidade com a qual as significações colaterais caminhariam para a saída periférica. Não há motivo, mas um elenco de intenções motivadoras.
É uma composição formal, de princípio aleatório, mas coerente enquanto microespaço. É una, se considerada na relação com as vivências do artista e seu quadro clínico de fragmentação dos sentidos, sua forma peculiar de percepção e recepção do meio. A ideia de espaço está impressa sob a forma de mapeamentos dos pavilhões da Colônia Juliano Moreira, vistos em plano aéreo. O esquema comparece no bordado da mesma forma que a figura, sem o princípio mimético que tanto depende da ilusão de profundidade.
Perdida a perspectiva espacial e considerado o fragmento bordado com suas situações individuais, o desenho geral conjuga no plano as quatro dimensões, ou seja, o comprimento, a largura, a altura e o tempo, como se todos se fundissem, irresistivelmente, na forma primordial que criam. É um dos princípios que a pintura primitiva contemporânea ainda conserva: o desrespeito à perspectiva e ao plasmar, no plano, de todas as dimensões dos objetos.
O que a montagem permite em termos de espacialidade, determinada pela própria natureza dos objetos utilizados e tirados à realidade, é negado pelo bordado, que não facilita a inserção do volume dentro do princípio da profundidade, para que o objeto seja visto em suas dimensões naturais. Há uma repetição temática, na constância de elementos que estão em trânsito por outros segmentos de expressão. O marinheiro, os códigos do sinaleiro, a referência a países, as divisões militares, a boiada, o ludismo (por meio da brincadeira de roda), os elementos físicos do entorno, as escadas, os números e o carrossel formam uma insistência barroca na forma. Algumas inidentificáveis, como símbolos neolíticos, sobre as quais o artista bordou a inscrição “Desenho Geométrico”, acompanham mapas canhestros, descrições cujos significados remetem ao ex-voto no plano e ao corpo humano, dissecado em palavras que designam órgãos ou feições exteriores, da cabeça aos pés.
Trata-se de um dos bordados de grande força expressiva, relacionado à leitura do corpo feita por Bispo. A peça é dominada por um homem de braços abertos, protegido por uma linha que lembra uma redoma. Desta sai, em curva ascendente, a descrição detalhada do corpo. No centro, como a queda de uma goteira embriagada, descem as letras:

ESPINHADORSAL

Nos pés da figura, a confissão de fé do artista na força sustentadora da palavra e da escrita:
Eu preciso destas palavras. Escrita.
A palavra pode comparecer, e em geral comparece, como elemento que tenta explicitar, conforme já visto anteriormente, ou chega com seus significados gerais e específicos, sem a companhia da figura.
Quanto à cor, preponderam o branco dos lençóis, como base, e o azul da roupa desfiada, no bordado. Esporadicamente, surge o vermelho, em geral preenchendo o começo de uma frase ou de um nome. Acredita-se que o uso da inicial maiúscula preenchida seja uma opção do artista e não um sintoma de economia de material. Diferentemente, o Manto, mais adiante descrito, é uma miríade de cores, sem parcimônia no amarelo, marrom, azul, verde, rosa, preto e branco. Para esse objeto, não lhe faltaram linhas. Quando o bordado tem como base apenas a descrição ordenatória do passado, revela a memória prodigiosa de Bispo. Nomes de médicos do Hospital Pedro II, no Engenho de Dentro, por onde havia passado há muito tempo, ou de boxeadores famosos nas décadas de 30 e 40, brasileiros ou estrangeiros, referências ao passado no interior do Rio de Janeiro ou em Japaratuba, nomes do pai e da mãe, de antigos prefeitos de cidades mineiras, de oficiais da Marinha, capitães, de navios de guerra, ruas, fortes, de pessoas, em ordem alfabética e acompanhados de suas profissões, compõem um dicionário existencial com uma profusão de formas como uma sucessão de filigranas da memória.
O sentido da ordem e da direção é um componente que forma uma condensação estética de signos escritos. Para manter a ordenação, o artista bordou as linhas sobre as quais repousam as palavras.

OS ENCAPSULADOS - PLACAS E OBJETOS DE USO | São elementos cuja exterioridade se tornou interior pela interferência de Bispo com o princípio do envolvimento, um abraçar a realidade por intermédio da operação artística. O encapsulamento é uma técnica de difícil finalização, pela demanda de paciência, destreza e abundância de linhas. Uma série completa, aludindo aos postes de indicação de ruas, foi realizada segundo esse procedimento. Desconhece-se a base envolvida pela lã ou sisal. Aqui, o princípio da catalogação é evidente. Na placa envolvida pelo fio, está bordado o nome da rua; no corpo do poste, um número ou uma letra. Na base, em geral, há um número.
Com isso, a obra permite duas análises. A primeira é a do uso do bordado como um metaprocedimento sobre a estrutura de base que foi criada pelo encapsulamento com o fio. A segunda remete à obsessão pela catalogação mediante o uso de letras e números. O princípio pode ser verificado nas montagens bordadas, que representam um inventário do universo do artista no Pavilhão Ulisses Viana. Esclarecedora é a inscrição de uma delas:

12.031.Folha de
frande 12.por 5
serve para ama
rração em sacco de platico com
biscoito dobra as
3.022. Cem moedas
de um centavo e um
cruzeiro.E conto

372 - Bolas de
vidro varias
cores - gude

8.008.Butoes
pretos para
barguilha [7]

Envolver esses objetos, criando sobre eles uma carga de sugestividade e mistério, transformando sua exterioridade histórica e sua aparência em mundo interior, é experimento de artistas contemporâneos como Christo Vladimiroff Javacheff (1935), que, em uma de suas últimas realizações de repercussão internacional, envolveu o Reichstag, em Berlim. Embora não se possa dizer que a operação realizada pelo artista búlgaro tenha precedente em Bispo (os primeiros pacotes daquele datam de 1958), o princípio estético da mutação efêmera de aparências que realizou é processo experimental corrente na arte contemporânea. Nele está também o desejo do ocultamento e do disfarce. Pelo toque da arte, a natureza dos materiais, em sua realidade finita, amplia a significação do objeto para além de sua fisicidade. Este perde sua qualidade funcional, tem eliminada a natureza da matéria e o objetivo para o qual foi produzido no universo das coisas práticas, para objetivar-se com a aura da matéria tocada por uma fonte de renovos.
Bispo processa uma mutação formal no objeto, dando-lhe uma feição de continuum, eliminando a imperfeição das superfícies (ao trabalhar com ferramentas encapsuladas); cria uma segunda pele, um outro limite entre aquilo que oculta e o que é exibido ao mundo exterior; opera a continuidade das superfícies; e alimenta uma nova matéria com a promessa da maciez física e de uma essencialidade pura. O objeto perde seu caráter utilitário. Ele apenas é, e não mais se define por tudo o que esconde. A matéria transmuda-se em essência. A verdade da forma ou do objeto torna-se sugestão e mistério, cujo deslindamento só se dará pela destruição da capa, da segunda pele, do véu grosseiro no qual o tempo se instala pela concreção escura, a pátina que sobre ele se deposita.
Para o discurso da arte, essas criações contrastantes respondem com o indicativo para a fala de princípio dialético. Esse contraste, como num poema japonês que diz: “Sobre o grande sino de bronze, pousou uma borboleta”, propõe cogitar sobre o perene e o transitório, o falso e o verdadeiro, o que é realidade física e conceito, o que é e o que emana, a vida e a morte. Essa polaridade entre o perdurável e o passageiro, a dureza e a maciez, a fixidez e a envolvência pelo movimento, o dentro e o fora, a desproteção e o envolvimento para sempre, é elemento metafísico que a técnica do encapsulamento revela. O que em Christo é experiência exterior memorável e efêmera, uma vez que oculta a natureza num grandiloquente empacotar de ilhas, pontes, estradas, rochas e vales, em Arthur Bispo do Rosário faz-se pela operação cirúrgica da minudência sobre pequenos somas, encontrados na interioridade do espaço asilar, e para sempre.

A CARTOGRAFIA DAS MISSES | O contraste é, novamente, determinante nessa série de 58 objetos que se remetem aos concursos internacionais para a escolha da mulher mais bela do mundo. No passado, tais concursos tinham grande repercussão e reforçavam um mito de beleza feminina preso a determinados padrões de medida. A palavra inglesa miss significa senhorita: aquela que não se casou. Na memória de Bispo, talvez quisesse reverenciar a virgem, a mulher santa que constantemente cita como “Nossa Senhora”, ou “A Mãe de Cristo”, aquela que não se entregou ao homem. São três os elementos do fetiche da miss: o cetro, objeto de conotação fálica, cuja posse é transmitida de uma eleita para aquela que a sucede no ano seguinte; o manto, símbolo da realeza, em geral vermelho e com acabamento em penugens de marabu branco; e, finalmente, a coroa.
A heráldica, com sua gama de significações potestativas e nobiliárquicas, é aplicada à mulher por seus atributos de beleza e feminilidade. Os três elementos constitutivos dessa aspiração à grandeza, à magnificência e à sublimidade estão presentes em grande medida na hagiografia cristã, sendo que a coroa, em geral, é substituída pela intangibilidade da aura nas representações pictóricas dos santos.
Em Bispo, há um delírio de discurso religioso monitorando o fazer artístico, conforme analisado n’a ordenação da trama. Os três símbolos da beleza, embora em sintoma com a religiosidade, não se repetem na dicção cristã do artista: são a expressão de algo que não foi verbalizado. Somente o conceito de virgindade, que impregna a idealização que Bispo faz da mulher e era atributo exigido às misses, aparece nessa série.
Em cada faixa de miss, Bispo bordou pontos da topografia do país representado: nomes de ruas, torres, construções. A mulher é identificada pelos indicativos de sua origem que traz sobre o corpo, não por seus atributos. Em nenhum momento, o nome de uma delas foi grafado pelo bordador.
Bispo realizou essa série a partir de uma leitura geográfica do mundo, possivelmente auxiliado pelo atlas encontrado entre seus pertences. Sobre a qualidade expressiva desses objetos, pode-se dizer que são uma taxidermia, formatada pelo cruzamento da leitura dos mapas com o desejo de ordenar a simbologia da beleza feminina: como uma escavação sobre significados, o bordado utiliza a palavra e o número como elementos de ordenação, catalogação, preenchimento e montagem.

O MANTO | Se a miss tem como atributos o cetro, a faixa e o manto, Bispo reserva para si apenas o símbolo maior da realeza: o Manto da passagem. Ele é o arabesco da loucura, o elemento aglutinador de toda a expressão e sentido da obra, com referenciais evidentes da vida do artista. É o objeto maior para a análise da obra e objetivo último da criação de Bispo. Realizado para o fim da transcendência, para a passagem do homem, significa a entrega à morte e a abertura das portas do reino da felicidade absoluta. Os elementos técnicos analisados anteriormente estão aqui externa e internamente impressos na complexidade de formas figurativas, algarismos arábicos e romanos, pequenas mandalas, minúsculos geometrismos, objetos de uso, navios, tabuleiros de damas e xadrez, cestas e samburás, tridentes, bules, televisores, mesas de pingue-pongue, redes de pescar, aviões, banquinhos, escadas, carrinhos de feira, estradas de ferro, anzóis, dados, corações, ferros de passar, formas irreconhecíveis e cores espoucando dos planejamentos, sobre os quais descem em profusão galardões e cordões dourados, negros, vermelhos e prateados. A parte interna do Manto também está tomada por sinais mnemônicos, em especial nomes femininos, símbolos do vivido relacionados a fatos e feitos de uma vida extra-asilo. O passado está impresso, como que reconstruindo o universo, por intermédio uma arquitetura feita de lembranças.
Arthur concentrou no Manto sua simbologia particular e solitária de religiosidade. É o ícone da passagem, que corporifica a fé como outra geratriz da obra e, também, a contenção humana, a sujeição do desejo à vontade da santificação. Nele comparecem os caminhos da escrita, inventariando a memória, trazendo ao presente a carga de transcendência que o artista perseguiu, jejuando para tornar-se transparente.
É o centro da mandala, para onde convergem todos os sentidos, para onde é dragada toda a técnica movente na obra. É a referência básica para as metonímias de Bispo, uma sorte de patchwork de sentidos em que foram impressos todos os ícones da criação e as expectativas do devir. Uma ressonância inesperada nas turvas recordações do homem de olhar intenso na juventude. Muito se falou desse objeto e aqui cabem análises complementares, de ordem mítica, estética e referencial à existência do artista.
O suporte material é o cobertor barato. Nele o bordado é a técnica mais utilizada, embora haja a sobreposição de galardões e a deposição de cordões na forma de meias elipses exteriores saídas de um repuxo, o que seria o plexo solar da peça. Há um movimento de origem central que ascende aos ombros nos quais os galões dourados estão apostos para dar maior desenvoltura e imponência ao andar. A profusão de pingentes vermelhos e brancos, tirados de cortinas, adorna as barras sobrepondo-se à linearidade do franjado. Tudo é movimento, do centro anterior aos ombros. Tudo sobe. No meio dessa fartura de formas, as palavras “universo”, “céu”, “em meu nome” e “Cristo” envolvem o pequeno coração hachurado em branco.
A técnica do bordado é a mais utilizada com o ponto cheio e o haste. No Manto está, também, o procedimento do preencher em andamento entrecortado, como se o artista pretendesse uma arqueologia das vivências em pedaços, expressa em morfologia transposta para o plano. O número está expresso como elemento auxiliar de catalogação e indefinição acompanhando a clareza particular de figuras delicadas, tiradas da realidade pequena com seus temas banais, sem importância, mas que o artista promove a outra categoria. É arquitetura de minudências que, como em Antoni Gaudi y Cornet (1852-1926), torna o resíduo possibilidade de organização e interferência no espaço. Ambos caracterizam-se pela originalidade e criação já na seleção de materiais e na introdução de novas formulações espaciais. Coerência e conflito movem-se no todo. O misticismo presentifica-se como qualidade que está sobreposta ao que o objeto comunica em sua imediatidade. Enquanto em outras séries Bispo utiliza-se do material que já transitou pela sua história de utilidades, e que são bases de segunda mão, no Manto há a qualidade do inaugural. As linhas têm um caráter de coisa nova, sem o desgaste do uso. Ainda hoje retêm a força do brilho no verde, no amarelo-ouro.
O Manto é o elemento denunciador do desejo de tornar-se grande, de sobrepor-se ao mero sentido da vida cotidiana. É o objeto que faz do corpo algo intangível, pois o desmaterializa, como nos santos e reis. O manto faz, naturalmente, realçar as expressões por meio do olhar e da fala e faz convergir, para quem o enverga, a atenção para o rosto. Quem o usa, em geral, esconde as mãos na luva ou na mitene e mostra o anel. O manto quer sobrepor a riqueza, a santidade e o luxo perenes à finitude do corpo que o porta. Pode-se dizer que ele protege o corpo perecível que o enverga. Representa a hierarquia e a dignidade supremas, qualidades que se sobrepõem ao físico para isolar o homem da pequenez do mundo. É a fina película, ou a pesada riqueza da separação, o arquétipo da passagem entre a matéria e a essência. Com ele os homens entregam-se à vida monacal e pronunciam votos que exigem a retirada para o mundo da contenção. Fuga das tentações é, também, renúncia aos instintos materiais. Vesti-lo significa entregar-se à sabedoria. O manto é o emblema da função papal. Ao portá-lo, o padre professa os votos de castidade, obediência, pobreza e humildade. Tem atributos dos deuses, e, na tradição celta (que também registra o nome Arthur ou Artus como já visto), quem o veste toma a forma que desejar. Por isso, o manto ou a capa simbolizam a metamorfose, permitindo ao homem a assunção da personalidade que o desejo determinar. São seus complementares o trono, o cetro e a coroa, elementos universais do equilíbrio e da harmonia.
O Manto de Bispo não foge a essas interpretações. O que agrega à rica simbolização dos outros é a qualidade de objeto de arte grandiloquente em sentidos. A escrita escorre-se para o seu dentro fazendo com que essa segunda pele não tenha avesso, nada a ser escondido. Avesso e direito são extensões e complementares sem a separação que a beleza ditada pela exterioridade, em geral, impõe. O dentro é continuidade elaborada de um fora no qual a riqueza de detalhes salta à percepção como urdidura barroca. Onde foi possível a inserção, ali está o bordado auxiliando a saturação do código. É o pergaminho a ser percorrido pelo estudioso, com o auxílio da ciência e da arte. Contrariamente a quase toda a produção do artista, o Manto é pleno de movimento, em oposição ao caráter de embalsamento, fixidez e imobilidade de outros objetos.
Pode ser vestido. Se a arte de Bispo pudesse transformar-lhe a vida e não fosse uma representação apenas, isso ocorreria pelo Manto. Porque é o objeto que, em seu desejo, representa a passagem de uma situação determinada para outra, desconhecida. A passagem, no âmbito da cultura, pode ser cristalizada em sucessão de etapas ditadas pelo corpo social por meio dos ritos. Congrega uma simbologia e estabelece atos coletivos relativos ao nascimento, à infância, à puberdade, ao noivado, ao casamento, à gravidez, à paternidade, à morte. Enquanto a passagem, no sentido geral das culturas, ocorre em consonância com a natureza das organizações e as necessidades de manutenção da ordem simbólica, em Bispo é individual e não ocorre por uma possível intermediação preestabelecida. A passagem à qual se refere é fruto da volição e está presa ao desejo de colocar-se como sujeito da modificação. Quer a purificação pela transposição da matéria à essência. O Bispo da passagem é o homem que quer fazer a passagem do morto, o que parte bruscamente da vida levando um sinal de bom augúrio. As sociedades primitivas muniam o ser em passagem com a miniatura da canoa e do remo para que em sua travessia inaudita tivesse acolhimento positivo em algum lugar de destino. O artista preparou uma passagem solitária, simbólica, que não aconteceu. Não conseguiu seu feito nas inúmeras vezes que vestiu seu manto de significações, ainda que auxiliado pelo jejum. A realidade, plena de alteridade, não se rendeu ao desejo de quem viveu fora do âmbito da razão. Apenas tornou-se outra, abrindo ao comentarista, ao crítico um sem-número de perguntas, muitas ainda sem resposta. Ao artista coube construir para que alguém o ressignifique, já que um ser de linguagem.

8. A ORDENAÇÃO DA TRAMA

Pange lingua gloriosi corporis misterium
(D liturgia católica)


O SER DAS VOZES

                                                                                              O LEITO
                                                                                              O TRONO ACORRENTADO
O SER DA FIGURA REAL                                                           CAIXINHA DE MÚSICA
                                                                                              FARDÕES
                                                                                              CARRINHOS

                                                                                              MONTAGENS
O SER DA FIGURA INTER‑FERIDA                                       ENCAPSULADOS
                                                                                              READY MADES

                                                                                              POEMEMÓRIA
O SER DA ESCRITA                                                       CARTOGRAFIA DAS MISSES
                                                                                              PLACAS
                                                                                              MANTO

O SER DA PAIXÃO                                                        O TRONO ACORRENTADO­

O SER DAS VOZES

Esta leitura busca identificar uma possível lógica, uma ligação interna entre os segmentos, para que se compreenda o todo da obra. O elemento primeiro, aquele que determina a realização da trama, são as vozes do delírio que acometeram Bispo na juventude. Estas lhe teriam ordenado reconstruir o mundo e salvar a humanidade de uma perdição citada em seu discurso difuso para então, como o Filho de Maria e envergando o manto, apresentar-se ao Pai no dia da passagem. São o elemento que deflagra, fecha, protege e delimita toda a realização artística de Bispo.
No filme O prisioneiro da passagem, de Hugo Denizart, Bispo refere-se às vozes como entidades que determinam o seu fazer. “Eu escuto Jesus Filho e para mim é o bastante”, afirma. Para efeito da classificação que aqui se propõe, as vozes são a gênese da obra. São o limite que encerra, em forma esquemática, a ordenação da trama. Pelo fato de obra e homem formarem uma unidade, os quatro segmentos serão grafados com a palavra “ser”. “O ser das vozes” é aquele que recebeu a incumbência de operar por meio da fisicidade do real, por via de um constructo pessoal que remete ao refazimento do universo. É como se suas realizações estéticas viessem de uma gênese metafísica. “No princípio era o verbo.”
Essa missão demanda de Bispo a auto-superação pelo jejum, criando uma estranha ambiguidade entre reconstruir o concreto pela via da arte e buscar fazer-se imaterial e transparente pela recusa à sujeição a uma necessidade imposta pela realidade: alimentar-se.
As vozes são o elemento obsessivo gerador de toda a trama, o motor de uma elaboração de linguagem e da criação de uma estética delirante, fundamentada, em grande parte, na repetição.
A partir da observação de uma repetição rítmica, estabelece-se uma qualidade formal nos objetos, tendo a figura como elemento de identificação imediata. A essa identidade, chamaremos “O ser da figura real”, por apresentar os objetos em sua materialidade intrínseca, imediata: cada objeto é o que é, porém tem agregada a si uma sugestividade única, determinada por uma interferência física mínima do artista, ou pela projeção de sua história pessoal sobre a matéria.
Os elementos principais desse segmento são O leito e o Trono acorrentado, que se referem ao envolvimento de Bispo com a estagiária de psicologia. São objetos da realidade prosaica, tomados para ressignificação pelo artista sem perda de sua função original. Despidos da relação com Bispo, podem voltar ao universo utilitário. Com a pequena série dos Fardões ocorre o mesmo. Estes são vestimentas que, por meio da pequena interferência física e pela relação com o passado de Bispo, adquirem densa significação. Um deles pode ter sido o que Bispo pretendeu usar na formatura da estudante.
A Caixinha de música (segundo consta, um objeto desaparecido em 1996) é outro elemento do real representado. Trata-se de uma caixa de madeira, preenchida com minúsculos fragmentos de papel crepom à guisa de notas musicais.
O segundo segmento da ordenação é “O ser da figura inter-ferida.” Evidencia-se nas montagens, sintáticas ou semânticas, de objetos reais, feridos em sua natureza e, até mesmo, inutilizados, descaracterizados na medida em que serviram como peças para compor algum espaço de representações. Exemplos desse procedimento são a utilização seriada de canecas, facas, congas, pentes ou bonecas e também as montagens híbridas com objetos de uso prático, ou partes destes, tomadas como elementos de composição.
Nesse segmento estão, também, o que se chamou de Encapsulados e os Ready mades. São objetos que se repetem à exaustão, expondo o ritmo e a ordem. Encapsulados são faturas sobre as quais Bispo aderiu uma pele ao envolvê-las com linha. Podem ser descritos como geometrismos resultantes da interferência do artista sobre instrumentos para a marcação de animais, pequenos esquadros, compassos, formas angulosas várias, conchas culinárias, quadrados, cachimbos, macetes, martelos, flechas e um sem-número de formas, tendendo a representar uma proto-escrita: uma reminiscência cuneiforme, como se a figura estivesse à beira de se tornar apenas sinal.
Nesse segmento, incluímos também o que se chamou de Ready mades, por apresentarem efetiva semelhança de procedimento com o discurso criador de Marcel Duchamp.
Desambientando o objeto de seu uso comum e introduzindo-o no espaço criacional, descontextualiza esse objeto e instaura-o como objeto de arte. O conceito impõe-se em detrimento da desimportância física da forma. Essa dessacralização do objeto vem-se operando desde o início deste século que, à beira de seu encerramento, reverencia Bispo como um artista de proposições amplas para a leitura crítica.
A propósito, dois elementos da obra de Bispo são semelhantes aos da obra do artista de Blainville. São eles a Roda da fortuna, um tridimensional feito com uma roda de tômbola, interferida por Bispo por meio de sua colocação sobre uma base de madeira, como a Roda de bicicleta (1913), e a pequena estrutura encapsulada, sem nome, idêntica ao Porta-garrafas (1914), de Duchamp.
No terceiro segmento da ordenação, “O ser da escrita”, tratamos de sinais e símbolos, sobretudo as palavras e os números desencadea­dos pela lembrança ou por textos e palavras de jornais e catálogos telefônicos disponíveis nas celas do criador, na Juliano Moreira. A “Cartografia das misses” situa-se neste segmento, por ser obra do Bispo escriba da vivência, assim como as “Placas de ruas” e o Manto.
O quarto e último segmento é “O ser da paixão”, em que se flagra o homem em sua desesperada tentativa de estabelecer um vínculo afetivo com o mundo livre, aquele onde a vontade pode ser satisfeita, por intermédio da estagiária de psicologia.
Manifestações da paixão citada é o Trono acorrentado, brevemente mencionado no capítulo I, obra de feitura tosca, porém plena de significações. Esse objeto, aliás, se insere em dois segmentos da ordenação, uma vez que também é “Figura real”. Mas o Trono acorrentado agrega valores meta-reais, na medida em que se liga à vivência do afeto.
O trono tem uma competência mítica e simbólica, inerentes à sua própria existência e denominação. É o signo arquetípico do rei ou do Bispo. É o ponto de onde o comando irradia e é sobre ele que se processa o ritual de passagem do poder de um monarca a outro.
Mas esse trono em particular, o de Bispo, com os carrinhos e algumas montagens primárias compõem uma parte da obra que, fora de seu contexto, é pouco expressiva em termos de qualidade artística. No entanto, na rede sígnica em que está inserido, é um objeto aurático, de forte dimensão qualitativa. Do mesmo modo, pouco significariam, isolados, cada um dos milhares de papeizinhos escritos com o nome da psicóloga, os horários de suas visitas e a dramática inscrição em peça especial:
Rosangela Maria diretora de tudo. Eu tenho.
Essa ordenação é apenas uma possível leitura geral da obra de Bispo, por meio do estabelecimento de conexões internas e de recorrências que transitam pelo interior do que se poderia chamar de a instalação de uma vida. A divisão da obra em quatro partes buscou propiciar a visualização do arcabouço sobre o qual Bispo articulou sua história pessoal num sistema de representação.
A presente ordenação quer reforçar a hipótese de que a obra deve ser lida como um totum, sustentado por partes que se comunicam, enredam-se, repetem-se e ordenam-se mutuamente. Infelizmente o que Bispo produziu está completamente descaracterizado de sua feição original. Não tendo elaborado sua rede de significações com o fim da expressão artística para o espaço sagrado das galerias, dos museus ou das praças, mas como metáfora da própria existência paradoxal, não se preocupou em fazê-los objetos para a contemplação. Ironicamente, foram descaracterizados em sua gênese para servir ao olhar no espaço lógico onde está hoje. Vê-los já desfigurados, por essa interferência, significa conhecer a obra. É como ler traduções, iguais ao beijo na noiva através do véu.

9. TRAÇOS DE MODERNIDADE

... la muerte de la pintura, la muerte del arte de caballete no significa ni mucho menos la muerte del arte en general.
El arte continua viviendo, no como forma determinada, sino como substancia creadora.
(Nikolai Tarabukin)

Espelhando o procedimento de Marcel Duchamp, que fez deslocar o eixo da observação do objeto para o artista, o caráter de obra aberta em Bispo também se projeta sobre o fruidor, fazendo-o processar seu próprio discurso sobre a coisa observada. Esta, uma das determinações absolutas da arte moderna, é conteúdo presente nos feitos do artista de Japaratuba. Na leitura desse feito surpreendente, é compulsório deparar-se com uma estética feita de banalidades que alguns não categorizam como arte. É compulsório, também, afirmar que ao artista coube construir. A outros compete recriar sua obra no tempo. Aos que vulgarmente questionam - e são inúmeros - “quem prova que o que ele fez é arte?”, deve-se lembrar que o artista constrói e o outro desconstrói a obra. Isso justifica a transepocalidade da grande obra. A temporalidade não objeta à juventude dos grandes feitos da arte. Las meninas (c. 1656), do sevilhano Diego Velázquez, ainda hoje fascina com sua complexa trama de relações espaciais. Em sua existência de mais de três séculos intriga e confirma a arte como signo nascido para ser revivido. O que dizer de Guernica (1937) ou do próprio cubismo que o tempo se incumbe de referendar como eventos que se abrem à interpretação nas épocas. Isto é o que aqui se faz e que não é nada, diante das possibilidades interpretativas sobre os códigos de Bispo. Em função do estoque de informações de cada observador, essa produção pessoal convida-o a refazê-la, germinando relações intrínsecas que ele descobre a partir da própria vivência.
A arte de Bispo é moderna porque pede para ser compreendida pela inteligência e não se limita a se instaurar como sedução pela forma. Ainda que abjeta para alguns, ainda que recusável pelo sentimento do belo educado pela lógica, demanda a razão para ser entendida. É uma obra para ser interpretada, mais que fruída.
A construção e montagem
Se há uma dicção peculiar em Bispo, esta se evidencia sob a forma de construção, que a arte moderna herdou do cubismo e do suprematismo, que relacionaram tempo e espaço como eixos para o corpo da expressão.
A ordem e a regularidade são elementos de uma necessidade de temporalidade inerente ao artista. Não se referem ao tempo como medida exterior, mas como interioridade à procura do ritmo; contribuem sensivelmente para a relação perceptual direta da qualidade do objeto fruído, como no exemplo da montagem com garrafas plásticas cheias de papel picado. Os objetos ordenados e regulares ocorrem episodicamente e diferenciam-se pela clareza de leitura e imediata decifração que possibilitam. Contrastam com a ordem barroca de outros objetos, em que há recorrências, volteios e a impressão de saturação do código. Uma mis-en-scène seletiva na qual o artista tem a liberdade de escolher os corpos com os quais quer estabelecer um sentido. Ao final, tem-se um organismo expressivo feito de justaposições que se integram como corpo. Trata-se de um princípio de construção, um procedimento artístico viabilizado pelas experimentações do cubismo, as quais, ainda hoje, têm ampla utilização. No Brasil, Farnese de Andrade Neto (1926/1996) é outro adepto desse procedimento. Realizou montagens de clima místico ou mórbido, utilizando-se de materiais vários, com obsessão por ex-votos.
A montagem, em Bispo, não pode ser dita totalmente abstracional, porque é a resultante de elementos identificáveis do real. Entendida como processo, é a contramão da divisão e da fragmentação. É a tendência de se encontrar a unidade pela composição engenhosa, de se juntar as partes na formulação de um todo estrutural na obra de arte.

A METONÍMIA E A FRAGMENTAÇÃO
A metonímia está presente nas montagens como padrão formador de linguagem. Sugere sem definir, aumentando a possibilidade da dúvida. Na técnica da montagem, permite a composição pela utilização de pedaços dos objetos para a formação de um todo do qual não são, originalmente, partes constitutivas. A indefinição convida o observador a estabelecer suas crenças próprias. É uma experiência que não pode ser generalizada porque estende-se a cada observador. Transposto o objeto para a montagem, ele entra na formação do conceito, abrindo significações ao objeto final. Em Bispo é o desnecessário que se transforma em fundamental, na medida em que se auto-referencia.
O objeto não se pretende a representação fiel da figura. O que o artista busca é a organização dos segmentos na obra, indefinível como forma, mas pessoal nas relações de contiguidade entre seus constituintes. Pela formulação metonímica, a organização de objetos em Bispo impede que se estabeleça uma hierarquia de formas ou um princípio fundador que não o simples ordenamento de corpos na rea­lização do todo.

A REPETIÇÃO DO MOTIVO
Repetir o motivo significa firmar a mensagem, estabelecer o código pela insistência em diminuir a sua entropia. Quando há materiais de mesma natureza, Bispo os utiliza ad nauseam, parecendo estabelecer uma matriz formal. Uma caneca vem seguida de outras e outras, até o momento em que se altera esse itinerário pela inserção de um elemento de indefinição, de estranhamento.
O mesmo ocorre na montagem feita com as congas: dispostas linearmente, presas em arames, constituem uma sequência de formas cuja característica maior é a monotonia. Esta é quebrada pela inserção de um novo elemento, um chumaço de cordões, que faculta uma outra leitura. O observador é conduzido pelo artista a um universo de formas iguais, repetidas, que se rompe com a inserção inesperada.
Nem todas as montagens são realizadas dessa maneira. Em algumas há variação de fragmentos, o que faz supor que o que determinou a constância ou a diversidade foi a disponibilidade de objetos na cela de Bispo. Algumas mantêm a repetição como princípio, assemelhando-se à pop art pela frieza e impessoalidade que denotam.

A CONSTÂNCIA E A RUPTURA / O CONTRASTE E A HARMONIA
Esta parece ser a tônica histórica do ato criador no Ocidente. Os processos de renovação da linguagem artística acontecem de forma pendular, pela ruptura de padrões preexistentes e estabelecimento de novos cânones, que, por sua vez, também serão derrubados.
Nesse sentido, o cosmos de Bispo é uma microestrutura histórica da arte em evolução no Ocidente. Talvez por uma questão de afasia, que deve ser estudada na esquizofrenia, Bispo borda o padrão linguístico e o rompe a cada pedaço de expressão. Isso ocorre também nas montagens, que são chacoalhadas em seu ritmo por uma invasão da forma alienígena, a qual chega para se estabelecer como um diferencial na monotonia rítmica. Constância e ruptura determinam o ritmo em Bispo.
O contraste ocorre na seleção das bases. Enquanto a madeira sugere a solidez, o papel escrito traduz o efêmero e o transitório. Se o voile traduz movimento e leveza, o paralelepípedo, muito utilizado como elemento para preencher carrinhos, sugere a permanência e o eterno. A harmonia está presente na repetição seriada, como em “A cartografia das misses”, “As placas de ruas”, “Os carrinhos”, “As garrafas de água mineral com papel picado” e “Os encapsulados cuneiformes”.

A ARTE EFÊMERA / A ARTE POBRE
Não há uma consciência do depois no artista. Ele não se expressa visando à posteridade, tanto do ponto de vista material quanto histórico. Grande parte de seus elementos não é resistente ao tempo, não tendo sido pensada para durar. A obra de Bispo é efêmera e foge aos padrões de consumo.
Pobre é o termo utilizado, depois dos anos 50, para definir uma arte realizada para ser expressiva, independentemente de sua base. Uma arte, portanto, voltada à expressão em detrimento de sua composição material. Por ser fruto da inquietude, mais que do tempo que desejaria perpetuar, pode estar fora da historicidade ou com ela não se preocupa.
Para o artista contemporâneo, processador desse conceito, os materiais são coadjuvantes da ideia e não mais os determinantes da realização. Bispo está em sintoma com esse princípio, na medida em que o que se lê em sua obra são os significados, mais que a realidade física de seus materiais. Mas ainda que fossem outros os seus materiais, o artista não deixaria de processá-los dentro dos princípios já estudados.
Tem um caráter de ineditismo, porque o usual de uma colônia de internos é ser um corpo de resquícios da realidade na qual esta se insere. Mesmo sob esse aspecto, a produção de Bispo se diferencia da de outros artistas que também se valem de objetos corriqueiros: seu banal é específico, pois torna-se uma linguagem expressiva, na medida em que será lida como expressão pura do psiquismo.
Bispo realiza uma carpintaria linguística expressiva. Os elementos são aleatórios e não apresentam um tema outro que não a vida, em sua história rasteira de acontecimentos.
A obra merece pesquisa fundada no discurso de quem a recebe.

OS “READY MADES”
O que Picasso representou em termos de ruptura com o passado fauve, com Les demoiselles d’Avignon (1907), Duchamp o fez com Nu descendent un escalier (1912) em relação ao próprio Cubismo Sintético. No experimento Dadá, Duchamp atuou sobre a ordem dos materiais, fazendo-os elementos de expressão, por meio de operações mínimas, como em A roda de bicicleta. Ao extrair um objeto de sua finitude material e depositá-lo sobre uma base, também retirada da banalidade cotidiana, o artista engendrou uma nova ideia, que se sustentaria como elemento do discurso artístico, mais que da morfologia estética.
Melhor que isso, essas formas industriais ajuntadas se fundaram como uma nova determinação discursiva, ao demonstrar que, abstraindo-se o elemento de sua finalidade, este pode se revestir de caráter artístico, por meio do conceito que gera. Duchamp, assim, dessacralizou a tradição das formas e apropriou-se de outras que, em sua previsibilidade utilitária, jamais poderiam ser pensadas ou tidas como expressivas.
Bispo opera uma volúpia de formas, uma cenografia do inconsciente dentro desse mesmo princípio e, embora não os pré-signifique, seus objetos pulsam significações para o olhar crítico. Uma “Roda de tômbola”, com algumas inscrições, é uma decorrência do famoso e intrigante objeto de Duchamp, assim como outro, já citado, é uma cópia encapsulada do Porta-garrafas. A comparação não implica que Bispo conhecesse a arte Dadá, que teorizasse previamente à realização do objeto. Trata-se, apenas, de reconhecer no louco uma capacidade produtiva cuja substância artística está referendada pela história.
Enquanto o Ready made de Duchamp é idealizado pelo trânsito da função, o de Bispo acontece pela apropriação e pela recuperação do objeto, a partir de sua qualidade de resíduo do mundo prático: o lixo. Duchamp processa a arte no âmbito da forma, ainda inserida em sua competência industrial, e Bispo, quando os objetos já cumpriram sua função e se tornaram inúteis, reintegra-os ao universo das formas, fazendo-os renascer para uma nova realidade espa­cial em formulação constante.

O AUTOMATISMO NA PRODUÇÃO
Esta é uma característica da arte, sobretudo a norte-americana, no século XX. A forma de produção agregou processos industriais para a formatação de algumas bases a serem interferidas manualmente pelo artista. A arte xerox é uma dessas formas que se utilizam da automação como possibilidade técnica. O mesmo ocorre com a arte postal e a serigrafia, que permitem a seriação (como a gravura em geral), utilizando processos em que a industrialização opera como coadjuvante do fazer individual, sem tirar-lhe a autonomia expressiva.
Esses procedimentos, sujeitos a um programa, encontram algo de comum em Bispo. Ele criou em resposta a uma necessidade íntima delirante, por meio de repetições dos princípios básicos mínimos. O que Bispo tem de automático é a repetição e a obsessão pelo ato criador.
A automação, porém, não se restringe somente à produção. Quer ser objeto banalizado, visto pelo maior número de pessoas. A pop art e a action painting foram além dos procedimentos indus­triais. Entraram no âmbito da comunicação de massa, renunciando à produção tradicional, típica do artesanato.
Bispo não está inserido nesse âmbito, por razões mais do que explicitadas. Apenas guarda com a modernidade da automação um traço de semelhança. Trabalhar e repetir obsessivamente a forma é onde está a similaridade.

A ARTE COMO OBJETO TÁTIL
Desfeito o princípio da arte para a pura contemplação, ela abriu-se à entrada do homem, permitiu-se o toque. A arte escultórica, feita no passado com a nobreza do bronze e do mármore, assumiu a fragilidade e a mistura de materiais antes impensáveis como entes de expressão. Chegou-se ao experimento como princípio da forma, tanto para o artista quanto para o observador. Experimentar parece ser a melhor forma de definir o objeto em sua plenitude de possibilidades táteis. Se a obra de Bispo estivesse intacta, seria adentrada, percorrida e tocada, como o ser que se entrega ao outro no entranhamento de sua interioridade.

O ACASO E A POSSIBILIDADE
O acaso revela-se pela materialidade da obra. Surge como uma característica determinada pelo local de vivência do interno Bispo. Como já dissemos, há uma previsibilidade nas formas, mas esta não é ameaça para a surpresa, uma vez que, sendo a Colônia Juliano Moreira, desde 1981, um espaço aberto, a forma poderia lá chegar pela entrada de visitantes ou pela saída de outros internos.
Bispo se recusava, nos últimos anos, quando sua obra se tornou mais consistente materialmente, a deixar suas celas. O acaso, também, se revela no modo como atua o artista, ajuntando objetos, compondo formas imprevisíveis e bordando sobre fatos que somente ele conhecia. O acaso é um dos princípios da colagem e da montagem, tal como realizada pelo artista Farnese de Andrade em operação de aglutinação de formas com características mórbidas e intrigantes.

A FRAGMENTAÇÃO DO DISCURSO ARTÍSTICO
À modernidade, coube reforçar o cotidiano como tema para a realização da arte. Essa foi uma das transformações operadas sobre a arte tradicional e que prevaleceria como ato criador. Para se realizar a grande obra, lança-se mão do cotidiano, toma-se o acessório como leitmotiv e a linguagem telegráfica em oposição à fala parnasiana. Marinetti já preconizava, em 1912, a destruição da sintaxe, no primeiro item de seu Manifesto Técnico: “É preciso destruir a sintaxe, colocando os substantivos a olho, conforme eles vão nascendo.”
Nas artes plásticas, o cubismo analítico fez essa exposição da figura pela utilização do escorço, estabelecendo novos valores para a percepção do objeto. Por meio do fragmento e da decomposição, a figura se expressa mais completa e complexamente do que em sua exterioridade natural.
Pode se dizer que Bispo realiza grande parte de sua obra sob esse prisma, o do fragmento. Salvo os objetos de uso prático, sobre os quais apenas interfere minimamente, entre eles o Trono acorrentado e O leito, não costuma haver uma totalidade discursiva. Os objetos falam, mais claramente, quando analisados como partes na composição da obra.
A arte-terapia preconiza a reorganização do caos intrapsíquico pelo ordenamento do espaço interior, para o quê a arte desempenha um fator de catálise. Bispo procede à organização de fragmentos dentro dos princípios já mencionados na explicitação da obra, mas não se assemelha, pelo menos até hoje na história da arte da loucura, a nenhum paradigma outro de criação. Sabe-se que os artistas do Engenho de Dentro e os de Stetten, na Alemanha, são orientados a atuar artisticamente em oficinas dirigidas por psiquiatras, psicólogos e educadores. Chegam a ser mestres da pintura e da escultura monitorados por profissionais da arte-terapia. Bispo produziu independentemente desses processos oficiais.
Bispo tem uma complexidade formal inédita, entre loucos, e rara, mesmo entre artistas. Utiliza a forma na complexidade em que ela se apresentar. E não a criação direcionada por arte-terapeutas.
Isso lhe confere ineditismo, mesmo na relação com a arte paradoxal, a art brut, a arte primitiva contemporânea.
Embora seu feito tenha o fragmento como princípio, tem busca da totalidade como fim.

A NEGAÇÃO DO OBJETO COMO ELEMENTO DE MERCADO
O fato de Bispo ter produzido objetos para transformar o inútil em desnecessário, a forma como os produziu, a natureza primitiva e perecível de muitos dos materiais utilizados e sua inadequação ao consumo pelos colecionadores, tudo isso evidencia a enorme dificuldade de trânsito desses objetos pelo mercado de arte.
Embora já se tenha realizado e publicado um levantamento de preços para os lençóis e para as montagens, isso não garante à obra de Bispo algum valor comercial. Esses objetos não transitaram pelo mercado, não cabem em leilões, resistem à característica de partes independentes, já que formam um compósito único, sem espaço no microambiente mercantil das galerias. A melhor clientela para a obra de Bispo é o Estado, que já a tombou, por entendê-la como de grande valor para o conhecimento da arte e da loucura.
Outro elemento que faz da obra uma recusa ao desejo de posse é o fato de ela não possuir um aspecto estético de equilíbrio constante de formas, tendência à beleza e simpatia para a convivência. Seu perfil grotesco afasta o desejo dos possíveis colecionadores. Mesmo aquele que, patologicamente, consome objetos de arte pelo prazer intelectual, encontra nas composições de Bispo pouca serventia. As séries são extensas, demandam espaços singulares para sua leitura pelos olhos e não se adequam ao espaço habitual das residências.

A ARTE COMO IDEIA
A característica de morfologia pura, qualidade da arte do passado, deu lugar a uma arte de ideias, sobretudo a partir dos experimentos de Marcel Duchamp, no início do século. A arte como possibilidade discursiva é um modelo formalista de tautologia, hermético, enaltecendo a semelhança consigo mesmo. O artista, mais que senhor das realidades aparentes, opera a possibilidade intrínseca do seu objeto tornar-se um conceito geral. Abandona o aspecto imediato e o comportamento dos objetos fazendo com que a arte e a ideia sobre a arte se aproximem e se confundam. Abre seu discurso à indagação e à reflexão do observador. Quem não prender a uma análise sob o aspecto morfológico pode dialogar em profundidade com essa obra alheia à arte como gosto e aparências.
É a possibilidade de se ter contato com o real do artista. Aqui não cabe a evasão, a viagem que a obra romântica pode permitir, não se sai do campo do conhecimento do objeto. Este indaga, questiona, comprime a razão em direção às significações pessoais, ao mesmo tempo em que desafia a imaginação. A forma instiga e afeta o espírito, com impressões e sensações incômodas. É um convite à reflexão, à penetração profunda em sua verdade porque transcende à temporalidade do mero aparecer. A inteligência não seduz porque tenta convencer. A obra de Bispo é um ato de vontade. Sem refletir a beleza fácil, convida ao saber. Para se saber o que nela há de belo.

10. A RASURA COMO ACABAMENTO

Quando uma obra apresenta diversos pretextos, muitos significados e sobretudo muitas faces e muitas maneiras de ser compreendida e amada, então certamente ela é interessantíssima, então é uma cristalina expressão da personalidade.
(Anceschi)

O século XX, pródigo com o progresso e a velocidade, tem sido de extrema receptividade com os aspectos primitivos da expressão humana. A razão dessa tendência instintiva a positivar o homem em sua rudeza expressiva advém, em boa extensão, dos caminhos de conhecimento abertos pelas teorizações sobre o inconsciente levadas a efeito por Sigmund Freud.
Não seria um exagero afirmar que este é o século do inconsciente, tal o vigor com que o homem passou a exercer seu ecletismo sobre os seus próprios meios de expressão e sobre o repositório de seu (auto)conhecimento, que se alarga entre a dúvida e a certeza. Ainda mais verdadeiro seria dizer que o século XX inaugurou um novo período sobre o indivíduo e este, em suas idiossincrasias e contradições, realizou sua nova história na medida em que fez nascer uma nova concepção de homem.
A história mostrou, durante séculos, que o ser era feito da dualidade entre a finitude do corpo e a grandeza sublime da alma. Esta, uma entidade sutil, intangível, mas possibilitadora de uma felicidade suprema, impalpável à experiência concreta da existência, pois que só realizável com a morte. A alma, em sua imortalidade, abasteceu e animou o corpo perecível com a diretriz dos valores do prazer, acenando com a infinitude do gozo para a curta passagem pelo “vale de lágrimas”, esse rio sem limites, de direção ignorada, por onde navega a dor necessária e onde se afogou o amargo desprendimento da carne.
Com o inconsciente revelado, o corpo, pátria da vontade dominada pela alma histórica e onde se esconde o instinto, foi também exposto pelo avesso. Não o reverso da forma, mas o lado também sugestivo, escondido e no qual moram as paixões, a vontade e o ser que escolhe, verdadeiro e único.
O experimento artístico, como um caleidoscópio, exibe o homem eterno em sua imediatidade. A arte é um dos fenômenos especulares do ser e das épocas. Nela está a expressão de totalidade do homem e por isso é um agregado fundamental para o entendimento da experiência humana pretérita. A experiência profunda do artista transita pelas obras, e estas são recurso para o conhecimento dele, das épocas, dos anseios gerais. Ieronimus Bosch (1450/1516) revela, em cerca de 40 pinturas a ele atribuídas, uma iconografia perturbadora, na qual o ser medeia entre o bem e o mal. Sua visão aterradora e original da existência coloca a nu a simbologia de sua época. Juntando do onírico ao real, fazendo da natureza uma representação distorcida, do mundo intocado do Renascimento uma experiência assustadora, conjuga a dureza do sonho à concreção da realidade. Desconcertante, Pieter Bruegel (?1525/1569) faz de sua paleta a expressão do desatino em Dulle Griet ou Margarida, a Louca (1562), dentro do período em que a razão clássica grega se impunha como verdade para que o saber entronizasse o homem como centro do universo.
Bispo, esse quixotesco ser em luta contra a realidade asilar, como um Sísifo cristão, abre sua época a outro prisma para a interpretação, que não aquele da formulação artística, apenas. Lê o pecado, essa entidade moral fundadora da crença histórica na alma como redenção do ser, e tenta uma nova taxonomia do universo. Não a do demiurgo, concreta, mas uma gramática se não uma classificação do universo por meio de representações. Bispo é o ser da expressão pura, por isso, um artista. Seu primitivismo é original, embora não inédito.
Modernamente, as vanguardas pós-impressionistas e o experimentalismo artístico subsequente objetivaram o despertar dos caracteres da primitividade e do inconsciente, como forma de se abastecer e renovar uma nova estética em fundamentação. Ao fauvismo e ao expressionismo coube a tarefa de fecundar no procedimento artístico uma forma gestual, livre do desenho e com liberdade das cores e temas. Estes deixaram de ser aqueles clássicos, como a morte, o amor, o absoluto, para ser o cotidiano com sua carga de expressividade inclusive das perturbações individuais. A aparência expressionista, em grande porção, é a revelação de um novo homem, não mais subjugado pela necessidade de inibir as suas vontades e paixões em nome do dever. Não mais cindido entre o mundo da cultura e do que se poderia entender como o espaço da natureza. Ele é o ser pleno, e aquilo que lhe é marco profundo brota como possibilidade de expressão universal. Nesse sentido, é esclarecedora a presença renovadora de Henri Rousseau, Le douanier, nas exposições impressionistas, como possibilidade na nova formulação estética nascente em sua época. Um autodidata incorpora ao mundo civilizado da arte a expressão natural do homem, sem o caráter civilizatório das academias. Agregue-se a isso a descoberta da art négre, da cultura tribal, pelos experimentos pessoais de Gauguin, um dos precursores do estudo do primitivismo na arte moderna do Ocidente, tanto como temática quanto como ineditismo na inserção de fragmentos da forma primitiva como agregados do quadro.
As vanguardas históricas fizeram a apropriação desses elementos trazidos para a cognição e fundamentaram um novo corpo de conhecimento para a arte moderna em que se positiva a expressão livre da vivência e do pensamento do artista, mais a liberdade de escolha do estoque de materiais sobre os quais quer transitar a linguagem. A liberdade modernista abriu os caminhos ao experimento como expressão, relegando ao passado a forma rígida determinada pela ciência do gosto e do estilo. O artista está à mercê de sua vontade na formação de sua cultura expressiva.
A sustentação de Arthur Bispo do Rosário como artista só é possível graças aos amplos caminhos da expressão, abertos pelo experimento da arte no século XX. No cenário de conjunções do saber que hoje se apresenta, Bispo surge como um aglutinador de teorias, um referencial concreto, um ponto final que permite reticências, sobre as quais se podem estruturar desdobramentos teóricos do fazer artístico. Faz da loucura possibilidade de produção de novos conhecimentos sobre a natureza humana e, finalmente, sobre a capacidade latente que o homem tem de criar representações.
Com Bispo, a rasura se faz acabamento e a imperfeição se instala como paradigma. Assim pensando, não seria abuso afirmar que o inconsciente revelado por Freud, mais sua relação intrínseca com o corpo, sem fendas e sem rasgos, é a alma do século.

NOTAS
1. Também são todos nomes nórdicos que foram incorporados ao italiano somente com as invasões bárbaras que se difundiram rapidamente no período medieval e colocaram à mostra, em parte, a onomástica latina e grega. (tradução do autor)
2. “Caber”, “ser devido ou merecido”, “ser peculiar a”, “ser jurisdição ou obrigação de alguém” são significados da palavra “pertencer”, que tem origem no termo latino pertinescere, incoativo de pertinere.
3. Informação incorreta.
4. Informação controversa.
5. Informação incorreta.
6. Transcrito como no original.
7. Transcrito como no original.


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Jorge Anthonio e Silva. Doutor em Estética pela Pontifícia Universidade Católica de 
São Paulo. Membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e Autor dos livros Ivonaldo 
(2002), O Fragmento e a Síntese - A Educação Estética do Homem (2003), Arthur Bispo do Rosário - Arte e Loucura (2003) e A Torre de Babel de Valdir Rocha (2007). Página ilustrada com obras de Arthur Bispo do Rosário (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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