Ao me debruçar sobre a
trajetória do pintor romântico francês François-Auguste Biard (1799-1882),
durante a pesquisa de doutorado centrada num levantamento sobre a trajetória do
artista e sua obra, saltou-me aos olhos a afinidade entre a posição que Biard e
a revista Musée des Familles se
propunham a ocupar na cena francesa por volta de 1840, no contexto de uma
indústria cultural em crescimento, sob a bandeira da aliança entre instrução e diversão.
As revistas
ilustradas do século dezenove apresentam um material privilegiado para a
análise dos avatares e transformações sucessivas do ideal iluminista de difusão
do conhecimento. A associação entre o pintor Biard e o Musée des familles, baseando-se na sobreposição de uma visada
enciclopédica a uma abordagem sensacionalista, seguia os parâmetros de uma
cultura de massa em processo acelerado de expansão.
Hoje um nome pouco
conhecido, François-Auguste Biard expôs nos Salões anuais de pintura em Paris
ao longo de seis décadas. Grande viajante, manteve na capital francesa um
"atelier-museu", que funcionava como gabinete de curiosidades e
vitrine de suas pinturas mostrando sítios e costumes dos quatro cantos do
mundo. Biard alcançou grande popularidade durante a chamada Monarquia de Julho
(1830-1848), mas a principal razão de seu sucesso não eram os quadros com
motivos exóticos, e sim pinturas de cenas cômicas, que conquistavam a
preferência do público, atraíndo pequenas multidões nos Salões anuais de
pintura. Tal sucesso, a que se somavam a aura romântica de explorador e certa
competência como retratista, acabou por aproximá-lo da corte do
"rei-burguês" Luís Felipe, que o favoreceu com encomendas de pinturas
destinadas a instituições públicas, museus e coleções oficiais. Em 1839,
participou de uma expedição ao Círculo Polar Ártico, indo da Lapônia ao
arquipélago groenlandês do Spitzberg. Entre 1859 e 1861, o pintor, então com
sessenta anos de idade, viajou pelo Brasil, onde frequentou a corte e excursionou
por florestas do Espírito Santo e Amazônia, realizando em nosso país seu último
grande empreendimento exploratório.
Nosso outro
protagonista é o Musée des Familles, revista
fundada em 1833 e que, passando por múltiplas encarnações, só deixou de circular
em 1900. A publicação, que pode ser considerada como uma versão mais modesta do
Magazin Pittoresque, outra consagrada
“enciclopédia popular” do período, era vendida em fascículos semanais por
alguns centavos. Segundo Émile de Girardin, seu fundador, o Musée des Familles tinha a intenção de
ser um "Louvre popular, acessível às famílias modestas, pouco cultivadas,
mais atraídas pelas imagens do que pelos textos": educar, dando ênfase à
ilustração (no sentido de “cultivo”) pela imagem. Os Museus constituíam, assim, um gênero de revista que conferia uma
função especial às imagens (embora em sua maior parte fossem gravuras de
divulgação, feitas mais ou menos às pressas); um sinal disso é que havia
possibilidade de destacar as estampas centrais, e colecioná-las. Atraindo a
atenção do público, as imagens acabavam também funcionando como uma espécie de
“selo de cultura”.
O Musée des Familles era dividido em
seções como episódios históricos, biografias de homens célebres,
"fisiologias" da vida moderna (gênero em voga na época, que conbinava
observação social a uma abordagem própria das ciências naturais, e
possivelmente alimentou o romance naturalista do século XIX), descrições de
culturas estrangeiras, temas de divulgação científica… As seções da revista
correspondiam de perto às categorias temáticas dos Salões de Pintura
frequentados pelo grande público durante todo o século XIX: assuntos
históricos, episódios da vida de personagens célebres, cenas de gênero ou de costumes (voltadas para as especificidades cuturais ou sociais),
representações de sítios naturais, curiosidades científicas, etc. Os textos
eram imbuídos de uma mensagem moral e embebidos de sentimentalismo, adotando um
tom paternal e didático. A seriedade de propósitos se estampava nos títulos das
seções: “estudos históricos", “estudos de ciências naturais",
"estudos de moral". Folhetins, contos e poesias também eram
publicados, pelo Musée des Familles,
que entre colaboradores de menor importância, chegou a recrutar escritores como
Balzac, Alexandre Dumas Pai, Théophile Gautier, Victor Hugo, Jules Verne e
Eugène Sue. Ilustradores célebres, como Gavarni, Granville, Johannot e Daumier,
também trabalharam para a revista.
Num de seus
reveladores prospectus, o Musée des Familles declarava intentar
fazer concorrer todos
os homens de imaginação e de talento à civilização gradual de todas as classes.
E explicava:
Os mistérios mais
árduos tomam aqui uma forma atraente; o saber faz-se pequeno e ajoelha-se
diante daqueles a quem ensina (…) o livro para todos (…) que pode ser posto
entre as mãos das meninas pequenas, enquanto os homens sérios nele encontram as
distrações que pedem à literatura. É uma Revista, mas uma Revista que não
apresenta perigo, e acima de tudo uma Revista divertida. [1]
O prospectus de 1840 também informava que
uma seção especial seria destinada a
fragmentos de viagens
habilmente enquadrados, extratos de obras curiosas, custosas ou raras, que
retraçam a história de povos longínquos e desconhecidos.
Entre os anos de 1838
e 1841 a revista publicou vários relatos de expedições polares, artigos de
divulgação sobre o ambiente polar e os costumes esquimós e lapões, assim como
ilustrações mostrando a fauna e paisagem das regiões glaciais. Uma gravura
anônima adaptada da tela Embarcação
atacada por ursos brancos, de Biard, foi publicada no mesmo número em que
uma resenha alardeava o sucesso da pintura no Salão de 1839. A repercussão
publicitária que Biard buscava já a partir da escolha e no tratamento de seus
temas se mostrava bastante compatível com a abordagem “simples e dramática” que
o Musée des Familles, também
fortemente interessado em aumentar suas vendas, optava por dar a assuntos
históricos ou científicos.
O sincronismo entre a
produção de Biard e os assuntos abordados nos artigos da revista remonta a
fevereiro de 1836, em que um texto sobre o tráfico negreiro é ilustrado por uma
xilogravura adaptada da pintura de 1835, que tentava sintetizar de forma cênica
e dramática a captura e venda de escravos na costa africana. São publicadas
notas sobre a atividade do pintor; uma delas refere-se à finalização da Sati hindu, “grande composição cheia de
poesia”, mostrando o sacrifício de uma jovem viuva na pira funerária do finado
brâmane. Na seção de crítica de arte são feitos comentários extensos sobre os
envios cômicos e dramáticos do pintor aos Salões. Nessas obras, como nos textos
publicados no Musée, o teor humanista
se convertia facilmente em sentimentalismo, a pesquisa etnográfica em apelo
exótico e a “reflexão moral” precisava de um contraponto humorístico.
Em sua política de
“popularizar a literatura e as artes”, os textos e as gravuras da revista
usavam às vezes como matéria prima as mais célebres pinturas da época. Um
comunicado editorial proclamava, em uma ocasião, seu orgulho por haver
publicado a história de Jane Grey alguns meses antes do Salão de 1834, em que
Delaroche exibia sua versão do episódio, “a obra mais popular da exposição”. [2]
O sucesso e o
prestígio oficial adquiridos por Biard na década de 1830 o tornavam um
colaborador precioso para o Musée des
Familles. Várias xilogravuras feitas a partir de suas pinturas foram
publicadas nas páginas centrais da revista, como Sati e Cabeças de Lapões,
entre 1837 e 1841. A revista publicaria também versões romanceadas de relatos
de viagem enviados por Biard da Dinamarca e Noruega. Esses textos, apresentados
pelo editor S. H. Berthoud, eram a perfeita introdução para um gênero de
pintura que o pintor passou a praticar em obras como A juventude de Lineu; Gulliver
na Ilha dos Gigantes e Descoberta de
um Mamute Congelado na Sibéria.
Biard encontrou um
aliado no editor-chefe da revista, Samuel Henry Berthoud (1804-1891), que viria
a ser seu padrinho de casamento em 1841. Especializado em temas ligados a
ciências naturais, ele praticava um jornalismo didático e também realizava a
produção em série de biografias de artistas célebres, que se espraiavam ao
longo de várias edições do Musée des
familles. Os “temas à la Berthoud”, a que mais tarde irá se referir
Baudelaire, [3] correspondem à
proliferação de quadros mostrando episódios da vida dos grandes artistas, que
eram expostos em grande quantidade nos Salões de pintura do século XIX. O Musée des Familles dá continuidade a
esse comércio introduzindo seus leitores “nos ateliers de Biard, [Victor]
Schnetz e Ary Scheffer ou entretendo-os com a biografia de Murillo ou
Géricault”. [4]
LE SINGE DE BIARD E A CULTURA DOS ALMANAQUES | Um texto curioso de
Berthoud intitulado Le singe de Biard marcou
o início da parceria entre o pintor e o Musée
des familles, em 1838. [5] Trata-se de uma espécie de conto
ambientado no atelier-museu de Biard. O autor alonga-se na descrição do atelier
da Place Vendôme, situado no último andar de um prédio antigo, um vasto saguão
repleto de curiosidades como jacarés empalhados, peles de tigre e caiaques
esquimós. Pontificando entre os freqüentadores habituais do atelier, um vieux savant toma a palavra para
defender a autoridade das narrativas tradicionais contra a “dúvida moderna
generalizada”:
Adeus a essas lendas ingênuas que se contavam desde muitos
séculos atrás!
O ancião põe-se em
seguida a enumerar algumas narrativas imbuídas de significado histórico e
moral, como o encontro de Diógenes e Alexandre, o episódio da espada de
Dâmocles e outras belas histórias, que de um momento para o outro passaram a
ser expostas a um ceticismo generalizado. Desafiado pelos convivas, o Velho
Sábio dá mostras de estar em sintonia com o espírito científico moderno ao
apresentar provas factuais da veracidade do relato sobre a aranha amestrada do
escritor Pélisson, aprisionado na Bastilha no século XVII.
Finda a intervenção
do “velho sábio”, Biard, apresenta à assistência sua própria aranha de
Pélisson: Mouniss, um macaquinho capaz de surpreender a todos com truques e
acrobacias. Brinda então seus convidados com relatos das andanças que
propiciaram seu encontro com o pequeno companheiro:
Às vezes rico, às vezes pobre, nunca em paz e sem
sobressaltos de fortuna…
O conto de Berthoud
termina, com o relato do fim trágico de Mouniss, ocorrido tempo depois da
reunião no atelier de Biard: excessivamente mimado pelos comensais do pintor,
ele acaba por morrer de indigestão. Sua carcaça empalhada será conservada junto
à gaiola de outra mascote: um camaleão, cuja história o autor reserva para
outra oportunidade. O destino do macaco fora talvez uma advertência sobre as
conseqüências nefastas de um sucesso fácil, fundado no simples entretenimento.
O ponto central do conto é o discurso
proferido pelo vieux savant,
exaltando o valor moral e instrutivo das "lendas ingênuas”, que formam uma
cultura de fait-divers da história
nacional e de diversas regiões do globo, espécie de arquivo de experiências que
serve de base para valores morais e saber científico. Até certo ponto
intrigante é o exaltado protesto contra a "dúvida moderna
generalizada". A que tal discurso estaria de fato reagindo? Talvez
estivesse menos voltado contra o espírito cético e positivista apontado no
texto, do que contra tendências iconoclastas de setores avant-garde da crítica artística e literária, cujo potencial de
negação ameaçava a credibilidade de um empreendimento como o Musée des Familles e da produção de
artistas como Biard, que buscavam agradar aos diversos setores de uma burguesia
em plena expansão. No momento mesmo em que os excessos da imaginação romântica
estavam se tornando mais palatáveis para o grande público e em que "O
macaco de Biard" foi publicado no Musée
des Familles, surgiam novelas como Fortunio
de Théophile Gautier (1837) e Capitaine
Pamphyle de Alexandre Dumas Père (1840), que parodiavam clichês românticos,
exacerbando-os até o non-sense. Por
volta de 1870, com o projeto de um Dicionário
das Ideias Feitas, Flaubert alcance o cume desse espírito paródico e
niilista, compilando os lugares comuns da “cultura de almanaque”, que fora
continuamente difundida e reproduzida ao longo das décadas passadas. Com isso,
surgia um gênero inédito de absurdo.
O “ALTO” E O “BAIXO” ROMANTISMOS | A carreira de Biard iria também sofrer
com tal processo de descrédito. Nos anos de 1840, o pintor seria qualificado
com ironia por Baudelaire de homem
universal, [6] devido à sua
capacidade de abordar com a mesma confiança tanto os gêneros considerados mais
nobres quanto os considerados mais vulgares. Um dos aspectos sintomáticos que
se apresentam em sua obra é o esforço para combinar elementos tidos como
trágicos e grotescos, seguindo os exemplos de Victor Hugo e de Delacroix. Desde
o início, Biard havia buscado formas de conciliar o sublime com o trivial, nos
termos da célebre fórmula de Victor Hugo no prefácio de Cromwell (1827). O modo como sobrepunha numa mesma tela componentes
cômicos e dramáticos podia desorientar o espectador e certamente exasperava a
crítica. Os comentadores dos quadros diziam que ficavam em dúvida se deviam
"rir ou tremer" diante das cenas representadas. A trajetória do
artista e a recepção crítica de sua obra tendem a expor a tensão entre o
"alto" romantismo e os “vulgarizadores”, que visavam, conscientemente
ou não, o consumo de massa. Um vínculo seminal entre e a produção artística e
literária do Romantismo e os estereótipos da cultura de massa, que floreciam
juntos no mesmo período foi denunciado pelo crítico de arte Clement Greenberg
em um texto de 1939, “Vanguarda e Kitsch”.
Aos poucos, os temas
exóticos foram se revelando também um terreno propício para o jogo com as
expectativas e emoções do público, acrescentando um elemento de estranhamento
cultural que podia fornecer uma espécie de álibi para a confusão dos gêneros
artísticos consolidados.
Um dos exemplos mais
notáveis disso é fornecido por As
conseqüências de um naufrágio, pintura exposta no Salão de 1837 reproduzida
numa xilogravura do Musée des Familles.
Ao escrever sobre o quadro na revista, um comentarista anônimo dizia sentir “o
coração apertado diante desse horrível espetáculo”, que “falava à alma pelo
terror e pela piedade”. [7] O
recurso à autoridade da fórmula de Aristóteles mostra, mais uma vez, o modo
como o Musée des Familles
(provavelmente refletindo o estilo do editor Berthoud) buscava apoiar-se
diretamente sobre paradigmas de reconhecida universalidade para legitimar suas
posições. Os partidários do modelo de arte “instrutiva” e “divertida” defendido
pelo pintor se mobilizaram naquele momento, uma vez que o Naufrágio exposto no Salão de 1837 estava sendo duramente atacado,
levado mesmo à beira do ridículo por críticos de destaque.
Gustave Planche, por exemplo, irritava-se com
a “literalidade” da obra:
Se fôssemos
testemunhas de um espetáculo semelhante, sem dúvida ficaríamos amedrontados,
tomados de piedade, mas não podemos suportar a literalidade de tais angústias e
calafrios: isso não é tragédia, é um horrível melodrama. [8]
A pintura é descrita
da maneira seguinte pelo poeta e crítico Auguste Barbier, que se revelaria em
diferentes ocasiões um aliado próximo de Biard:
Numa costa
tempestuosa, vemos uma massa de carne branca, uma massa de mulheres e crianças
nuas, tiritando de pavor à beira das ondas salgadas; e à volta dessa carne de
peixe, dessa maré humana, uma ronda de selvagens com corpos negros e disformes,
meio símios e meio homens, dançando, urrando, contorcendo-se e, a faca entre os
dentes, preparando-se para devorar todos esses restos aterrorizados do
naufrágio.
[9]
Na tela de Biard, a
representação do horror se misturava a um componente sexual: a cena mostrada
não era apenas a do prenúncio de um banquete antropofágico, mas de um estupro
coletivo. Agitando-se freneticamente diante da “massa de carne branca” (mulheres,
crianças e cadáveres), negros selvagens exibem sua bestialidade. A pintura pode
ser considerada um marco no encontro da reportagem sensacionalista com a ficção
de horror e o erotismo (com elementos racistas e sádicos), ajudando a criar o
modelo mais tarde explorado por Josephine Baker e King Kong.
Alguns comentadores
criticaram o pintor por estabelecer uma confusão entre gêneros inconciliáveis,
mesclando o horror à busca de efeitos cômicos. O resenhista da revista L’Artiste dizia não saber se devia “rir
ou tremer”, e concluía que “o quadro falha então na obtenção de seu efeito”.
Para rebater essas críticas e justificar a comunicação entre diferentes gêneros
estéticos, Barbier lançou mão de uma argumentação surpreendente:
(…) essa pintura
seria excessivamente aterrorizante, se o sentimento individual do autor não se
apresentasse, e temperasse a crueza pela silhueta cômica das figuras e o
aspecto grotesco dos antropófagos. Sob esse ponto de vista, a obra torna-se
notável. A aliança do grotesco e do terrível é possível: e a existência, na
natureza mesma, de um povo ao mesmo tempo feroz e risível legitima a obra e
produz uma marca profunda na arte. [10]
Théophile Gautier
qualificava As conseqüências de um
naufrágio como “o sucesso burguês do ano”, deblaterando contra a pintura
que visa excitar o riso através do “emprego da deformidade física”, “corcundas,
pançudos, beiçudos, bochechudos, com o nariz vermelho, um olho de cada cor,
pelo cinza, careta disforme”. Abria exceções para a produção dos mestres
flamengos e Jacques Callot, cujos “tipos bizarros” eram “belos e poéticos, à
sua maneira”. As conseqüências de um
naufrágio lhe faziam o efeito de
um espetáculo de ópera bufa, em que “alegres bembaras” dançam um balé
desenfreado.
Na cena africana
imaginada por Biard há um eco das obras de Louis Boulanger inspiradas em Victor
Hugo, como O sabá das bruxas (1827),
ou Fogo do céu (1831), onde o artista
acumulava “numa arquitetura imitada de [John] Martyn, inacreditáveis pencas de
seres humanos” . No romance Burg Jargal,
de Victor Hugo, um personagem feito prisioneiro por uma tribo africana assistia
a um espetáculo que era comparado a um sabá. O quadro de Biard exposto em 1837
remetia, para alguns, a “alguma coisa de dissimulado, de odioso, de monstruoso,
de grotesco”:
É isso que a pintura deve querer buscar? (…)
Não se pode, à vista deste quadro, exclamar-se com Shakespeare: “O’ horrible!
horrible! most horrible!”? [11]
ENTRE CHRISTIANIA E
TRONDHEIM | Dois
textos com a narrativa romanceada de episódios da viagem de Biard e sua jovem
esposa Léonie d’Aunet ao Spitzberg (Groenlândia) foram publicados no Musée des Familles, logo após o retorno
do casal a Paris. [12] O primeiro
texto é assinado por Berthoud, o segundo é apresentado por este último como
“simples notas” escritas por Biard, “que não as destinava à publicidade, e o
diretor do Musée des Familles deve
sua comunicação à amizade do artista, que é hoje citado com razão como um dos
nossos mais célebres pintores e mais intrépidos turistas”.
En
Chemin pour le Spitzberg” conta a visita, provavelmente fictícia, do pintor
e sua companheira “tão loura e tão corajosa” à masmorra da fortaleza de
Aggerbuys, em que estava aprisionado o célebre salteador norueguês Ouli-Eiland.
Famoso por fugir das prisões em que o encerravam, Ouli-Eiland não desapontaria:
meses depois, quando o casal já estava de volta da expedição ao Spitzberg, os
jornais anunciaram que o facínora havia novamente escapado.
O segundo texto
publicado pelo Musée des Familles tem
a forma de um extrato de diário de viagem do pintor. À medida em que os
viajantes se afastavam rumo ao extremo norte da Europa, a paisagem se tornava
cada vez mais espetacular e terrível. A carruagem subiu as montanhas escarpadas
do Dovre com o reforço de dois cavalos suplementares, e os viajantes
mergulharam em gargantas de aspecto “lúgubre muito variado”, troncos tortuosos
que barravam a passagem, “como enormes serpentes”,
… assim como grandes
pedras esverdeadas, meio escondidas pelos pântanos de águas lodosas, me
pareciam sapos monstruosos. Em um momento acreditei ver no meio da estrada um
espectro ainda envolvido em sua mortalha…
Amanhã veremos
Trondheim e o castelo de Munckholm, tornado tão célebre graças ao Han da Islândia, do Sr. Victor Hugo. Nós
trouxemos este livro. Nós o leremos nos locais mesmos em que o poeta dispôs a
cena de seu romance.
Biard costumava
enviar aos jornais e revistas “comunicados” de viagem, e uma notícia sobre um
acidente ocorrido na “horrível estrada que vai de Christiania a Trondheim”, foi
publicada em primeira mão na seção de faits
divers da revista l’Artiste. Na
nota se dizia que Biard, o “pintor costumeiro dos ursos brancos”, “este homem
que tem tanto espírito e alegria na ponta de seu pincel”, e sua jovem esposa,
que “há menos de seis semanas” assistia a uma representação teatral em Paris,
haviam ficado muito tempo “suspensos sobre o abismo”, até que camponeses, “com
precauções infinitas (…) puderam trazer de tão longe os dois estrangeiros sãos
e salvos”. O autor da nota acrescentava, de forma irônica, que a cena do
acidente, combinando elementos “terríveis” e “joviais”, se prestaria bem à
mistura de estilos característica do pintor, e que se este resolvesse incluí-la
entre os envios ao Salão de 1840 poderia expor ao público sua obra-prima. [13]
O “extrato de diário”
publicado no Musée des Familles
inclui a narrativa do acidente de carruagem do ponto de vista de um de seus
protagonistas: por pouco não haviam caído todos num precipício, após o cocheiro
ter perdido o controle da condução. Os passageiros escaparam sem um arranhão,
mas um dos cavalos teve que ser sacrificado…
Chovia, e, de tempos
em tempos, um pouco de granizo vinha nos arranhar a cara. Tentei mesmo assim
fazer um croquis de minha miserável condução e meus mais miseráveis cavalos,
cujas patas imitavam o telégrafo, deitados sobre as costas como se encontravam,
os infelizes! Foi preciso deixar o croquis inacabado. A chuva aumentava…
A passagem é típica
dos relatos do pintor repórter sobre as dificuldades para exercer seu talento
em campo, dificuldades que não faltariam durante a viagem ao Brasil, décadas
depois. Ao retornar a Paris, em 1862, Biard publicou um extenso relato
ilustrado de seu périplo brasileiro numa edição de luxo da editora Hachette,
que apareceu primeiro numa versão abreviada, na revista Le tour du monde, publicação bem mais sofisticada que o Musée des familles. Duas décadas depois
das colaborações com o Musée,
constata-se o ingresso do artista num mercado editorial marcado pela
especialização progressiva e por certo espírito positivo, distanciado dos
arroubos emocionais em que se compraziam os românticos. Não existe mais a
proposta ingênua combinando aventura e exotismo do Musée des familles, que buscava levar cultura a uma “massa de iletrados”,
mas um direcionamento para o público do Segundo Império, bem instalado em seus
privilégios sociais e enriquecido pela expansão do sistema colonial francês. A
descrição etnográfica ocupava um espaço maior tanto nos relatos de viagem
quanto nas pinturas dos artistas viajantes, e o impulso imaginativo, tão
presente na produção de Biard no momento de sua colaboração com o Musée des Familles, já não encontra
terreno para espraiar-se.
NOTAS
1.
Musée des Familles, “Prospecto” do
ano de 1840.
2.
A revista também destacava o fato da Jane
Grey ter sido “a primeira obra de artista contemporâneo reproduzida [na
revista]”, fazendo notar que “os quadros de Delaroche requerem, para serem
compreendidos, um público a par dos episódios que abordam.” Musée des Familles, vol. 1
(1833-1834), p. 137.
3. BAUDELAIRE, Ch.,
1845, Section IV: tableaux de genre.
4. ROSENTHAL, L.,
1989, p. 57.
5. BERTHOUD,
Samuel-Henry, “Le Singe de Biard”, Musée
des familles, 6, 1839, p. 276.
6. BAUDELAIRE,
Charles. “De quelques
douteurs”. Salon de 1846. Paris,
1846. É significativo que Baudelaire tenha empregado a mesma expressão, mas num
sentido positivo, para se referir a Eugène Delacroix.
7.
ANÔNIMO, “Salon de 1837” ,
Musée des Familles, t. 4, maio de
1837.
8.
PLANCHE, Gustave, “Salon de 1837” , Études sur l’école française, peinture et
sculpture (1831-1852), Paris, Michel-Lévy-frères, 1855, vol. II, pp. 88-89.
9.
BARBIER, Auguste, Salon de 1837,
Paris, 1837, pp. 161-163.
10. BARBIER, A.,
1837, op. cit.
11. JUBINAL,
Achille, “Exposition d’Anvers (septembre, 1843)”, L’Artiste, 3ème série, t. IV. p. 184.
12. En Chemin
pour le Spitzberg” Musée des Familles,
t. 7, abril de 1840, pp. 193-198,e “Entre Christiana et Drontheim (notes prises
à Konigswald, Norvège, le 10 juin 1839)”, Musée
des Familles, t. 8, setembro de 1841, pp. 368-373.
13. ANONIMO,
“Faits Divers”, in L’Artiste, t. 18, p. 224.
*****
Pedro de Andrade Alvim (1963). Artista e
professor universitário. Graduado em Educação Artística (1990) e Filosofia pela
Universidade de Brasília (1991). Mestre em História da Arte e da Cultura pela
UNICAMP (1997) e Doutor em História da Arte pela Universidade de Paris I
(2001). Professor adjunto no Departamento de Artes Visuais do Instituto de
Artes da Universidade de Brasília desde 2002. Contato: pedrand71@hotmail.com.
Página ilustrada com
obras de François Biard (França, 1799-1882).
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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