sábado, 21 de maio de 2016

CAIO SÍLVIO BRAZ | A linguagem musical de Alberto Nepomuceno


É comum, ao que se refere ao trabalho de Nepomuceno, a crítica observada no elogioso comentário de Neves, "…mesmo seguindo de perto as normas da tradição…", ou Renato Almeida quando diz: "Utilizou formas estrangeiras, que lhe sacrificaram, sem dúvida, os moldes brasileiros", como se fosse possível enclausurar um espírito arejado, multifacetado e visionário, como foi Aberto Nepomuceno, em um estigma de tradicionalista etc. Esse tipo de comentário merece algumas considerações.
Primeiro Alberto Nepomuceno não foi um músico moderno, mas sim um compositor consciente das transformações por que passava a música do seu tempo e o que é mais importante, um artista atento e progressista incorporando as conquistas musicais da sua época no seu trabalho, e em muitos momentos um revolucionário, senão vejamos:
- foi o primeiro compositor brasileiro a se utilizar da bitonalidade; utilizou a escala por tons inteiros de Debussy (ópera Abul, 1899), além de ser o responsável pelo "ingresso do Brasil no século XX" em termos de música; 
- traduziu do alemão e tentou implantar no Instituto de Música o "Tratado de Harmonia de Shöemberg", só não o fazendo devido à grande reação dos seus colegas;
- foi o primeiro compositor brasileiro a utilizar o sétimo grau abaixado dando um tratamento sinfônico à música nordestina; "Sesta na Rede" da "Série Brasileira” (1891); o que foi tentado com a Orquestra Armorial recentemente; 
- primeiro compositor brasileiro a usar o 4º grau aumentado na sua última composição "A Jangada" e "que seria usado exaustivamente pela corrente nacionalista de nossos dias".
- o responsável pela adoção do canto em português na música erudita; bem como pelo aportuguesamento deliberado das expressões musicais só ousado anos depois por Nazaré e fora da academia;
- o primeiro a levar para uma sala de concertos do Instituto Nacional de Música, a música popular com Catulo da Paixão Cearense; ousadia maior que a tão decantada apresentação de Ernesto Nazaré no mesmo Instituto de Música, em 1922, levado por Luciano Gallet, um dos mais fiéis seguidores de Nepomuceno.
Podemos ver, sem nenhum esforço o sentido e a intenção do trabalho de Nepomuceno. Talvez se estivesse vivo por ocasião da Semana de Arte Moderna, que aconteceu dois anos depois de sua morte, Nepomuceno teria seu trabalho hoje melhor reconhecido. Aliás, Villa-Lobos, o compositor adotado por Mário de Andrade e representante musical na "Semana de Arte Moderna" de 1922, já antes estava sob proteção de Nepomuceno quando este intercedeu, junto ao editor Sampaio Araújo, para imprimir as obras deste, "na época l’enfant terrible da música brasileira e uma personalidade musical extremamente controvertida. Durante anos, as publicações da Casa Napoleão continham na capa as composições de Nepomuceno e no verso as de Villa-Lobos". Nos seus últimos concertos sinfônicos Nepomuceno revela o "Concerto para violoncelo" de Villa-Lobos, em 1919, tendo no ano anterior, afirmado publicamente o gênio deste compositor incluindo várias de suas obras em seus concertos, dentre outras: "Elegia" e "Marcha religiosa". 
Mas voltemos às considerações anteriores, no que concerne à utilização das formas e moldes europeus em sacrifício dos moldes brasileiros. Pergunta-se: Que moldes? Não existiam moldes brasileiros. Segundo José Maria Neves, a música popular continha elementos da cultura negra e indígena, que caminhava para a nacionalização desses elementos constitutivos, mas podemos falar em arte erudita brasileira? No começo do século o país carecia de compositores e obras de estruturação sólida e Nepomuceno aspirava "colocar a música brasileira no âmbito universal" não apenas por meio de efeitos e temas característicos, mas do conteúdo estruturado no plano tradicional das grandes formas: Sonatas, Sinfonias… (Helza Cameu). O que se conclui é que, ao mesmo tempo em que procurava uma forma brasileira de expressão musical, Nepomuceno não abria mão do patrimônio musical deixado pelas gerações anteriores, o que é de fato, uma virtude.
A "Suite Antiga", como o nome sugere, composta dentro de forma tradicional, é citada pela crítica quando se quer comentar a descontinuidade da obra de Nepomuceno comparando-a a outras composições de caráter nacionalista, como a "Dança de Negros", composta em Fortaleza (1881) e outras composições. Primeiro não podemos deixar de ver o contexto em que esta obra foi escrita, como prova final do curso de composição em conservatório alemão, e depois o que aparece como "indecisões de comportamento" nos parece, refletir esse esforço no sentido de dominar a técnica composicional e de todo o metier da linguagem musical nos moldes acadêmicos, e a afirmação de uma musicalidade brasileira no universo musical de sua época. É bem verdade que esta linguagem passava por rupturas e transformações profundas que estavam sendo acompanhadas e absorvidas por Nepomuceno, que teve participação ativa neste processo. Seu trabalho representou para nós o que foi Grieg, Pedrell, Smetana e Glinka para suas respectivas pátrias.
O próprio Villa-Lobos, que no início de sua carreira compunha peças debussynianas etc., abdicaria depois da "auréola de ser um revolucionário para entrar na classe dos grandes mestres respeitáveis, ou seja, aqueles compositores que dominavam a linguagem clássica-romântica da música acadêmica como Nepomuceno, por exemplo. 
Mário de Andrade, orientador de vários compositores nacionalistas da geração posterior à Nepomuceno tinha consciência de que toda a técnica composicional, a estruturação melódica e harmônica, o tratamento orquestral e formal, é importada e dizia: "Brasil sem Europa não é Brasil não, é uma vaga assombração ameríndia, sem entidade nacional, sem psicologia técnica, sem razão de ser".
É intrigante a falta de atenção à obra de Nepomuceno por parte da crítica e estudiosos em geral. Ora lhe imputam o selo de precursor e mudam de assunto, ora comenta-se o fato de usar formas tradicionais sem situar historicamente o fato, e por aí vai. Tomemos por exemplo o comentário de Otto Maria Carpeaux na sua "Uma nova história da música" quando, ao referir-se ao início do nacionalismo, diz: "Precursor do nacionalismo no Brasil foi Alexandre Levy (1864-1892), inspirado pelo romantismo schumanniano, cujas obras significativas, o poema sinfônico Comala (1890) e a Suite Brasileira (1890) ficavam, porém, por enquanto inéditas. Nacionalista de inspiração mais moderna, pós lisztiana, foi Alberto Nepomuceno (1864-1920); sua Série Brasileira (1897), para orquestra, foi um triunfo".
Não se trata aqui de disputar quem começou primeiro o nacionalismo, se fosse este o caso, teríamos que incluir aqui Basílio Itiberê da Cunha, diplomata, músico diletante que compôs inspirado na canção popular gaúcha "Balaio", "A Sertaneja", em 1860, e pode-se tomar como marco inicial do nacionalismo.
Mas parece-nos desatenção com a obra de Nepomuceno o fato de citar a "Suite Brasileira" como sendo de 1897 quando esta data refere-se à estréia orquestral tendo a peça sido escrita em 1891 em Berlim. No entanto cita a "Série brasileira" de Levy na data de sua criação, o que está correto, e considera-o precursor do nacionalismo mesmo afirmando o ineditismo da obra. Ora, Alexandre Levy tinha de fato preocupações nacionalistas como compositor jovem que era e sensível às tendências musicais de sua época como podemos sentir por um depoimento de João Gomes de Araújo: "Discorria sobre a arte dos sons, dizendo que cada nação tinha a sua música característica e que o Brasil um dia haveria de revelar a sua. Afirmava que para escrever música brasileira era preciso estudar a música popular de todo o Brasil, sobretudo a do Norte do país". Nepomuceno, por ter nascido no Ceará, certamente estava melhor aparelhado no que concerne ao conhecimento da música popular do "Norte" a que almejava o jovem Levy.
Nepomuceno não foi um mero precursor. Deixou mais de 200 obras dentre elas uma centena de lieds, peças orquestrais trios etc. Fundou as bases da moderna música brasileira. Podemos antever Villa-Lobos ouvindo a "Brasileira" de 1919 ou Ernesto Nazaré em "A Galhofeira" de 1894, e tantas outras inspiradas na música popular, que tão bem conhecia e soube prestigiar como no episódio de Catulo referido anteriormente. Por isso e por tantas outras coisas o trabalho de Nepomuceno merece mais respeito e atenção por parte da crítica. Façam de conta que ele nasceu em São Paulo!
Para concluir gostaria de lembrar que Nepomuceno foi a figura central da cultura brasileira no seu tempo, idealista convicto, "o mais culto e mais capaz dos compositores do seu tempo", ansiava por colocar o Brasil no cenário universal e o fez através do seu trabalho "meditado, consciente, de profundidade evidente, resultante do conhecimento dos problemas artísticos brasileiros", e como educador, ensinando e mostrando aos brasileiros o que se passava com relação à música. Artista refinado e de personalidade forte, Nepomuceno lutou pelo reconhecimento dos compositores que trabalhavam no país na sua época. Não foi somente um pioneiro, quando ousou cantar em português, ou quando soube incorporar as conquistas musicais do seu tempo a serviço de uma expressão artística nacional, ao tentar introduzir o dodecafonismo no Brasil etc. Nepomuceno deixou uma grande obra que deve ser melhor divulgada e compreendida, sem preconceitos e rotulações que sempre diminuem e atrapalham a compreensão das mesmas, pois "não importa onde ou quando se produzam as obras, não importa se tenham ou não elementos nativos, não importa qual procedimento técnico se use, o importante para conseguir uma obra artística de alcance universal é a criação de algo que leve o selo inconfundível do pessoal, que se expressa com absoluta honradez de propósitos e que se diga na linguagem própria da época do autor, que contribui assim para a "consolidação do progresso atingido pelas disciplinas artísticas através dos anos" (Roque Cordero, compositor).
Maestro, compositor, pianista, folclorista, educador, Nepomuceno fez a sua parte. Cabe a nós, depositários do seu esforço, continuarmos o trabalho de construção dessa nossa pobre e desmemoriada nação sob a pena de estarmos sempre começando, do nada!

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Caio Sílvio Braz (Fortaleza, 1956). Compositor. Agulha Revista de Cultura # 2/3, Setembro de 2000.




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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Alberto da Veiga Guignard
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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