É comum, ao que se refere ao trabalho de Nepomuceno, a crítica
observada no elogioso comentário de Neves, "…mesmo seguindo de perto as
normas da tradição…", ou Renato Almeida quando diz: "Utilizou formas
estrangeiras, que lhe sacrificaram, sem dúvida, os moldes brasileiros",
como se fosse possível enclausurar um espírito arejado, multifacetado e
visionário, como foi Aberto Nepomuceno, em um estigma de tradicionalista etc.
Esse tipo de comentário merece algumas considerações.
Primeiro Alberto Nepomuceno não foi um músico moderno, mas sim um
compositor consciente das transformações por que passava a música do seu tempo
e o que é mais importante, um artista atento e progressista incorporando as
conquistas musicais da sua época no seu trabalho, e em muitos momentos um
revolucionário, senão vejamos:
- foi o primeiro compositor brasileiro a se utilizar da bitonalidade;
utilizou a escala por tons inteiros de Debussy (ópera Abul, 1899),
além de ser o responsável pelo "ingresso do Brasil no século XX" em
termos de música;
- traduziu do alemão e tentou implantar no Instituto de Música o
"Tratado de Harmonia de Shöemberg", só não o fazendo devido à grande
reação dos seus colegas;
- foi o primeiro compositor brasileiro a utilizar o sétimo grau abaixado
dando um tratamento sinfônico à música nordestina; "Sesta na Rede" da
"Série Brasileira” (1891); o que foi tentado com a Orquestra Armorial
recentemente;
- primeiro compositor brasileiro a usar o 4º grau aumentado na sua
última composição "A Jangada" e "que seria usado exaustivamente
pela corrente nacionalista de nossos dias".
- o responsável pela adoção do canto em português na música erudita; bem
como pelo aportuguesamento deliberado das expressões musicais só ousado anos
depois por Nazaré e fora da academia;
- o primeiro a levar para uma sala de concertos do Instituto Nacional de
Música, a música popular com Catulo da Paixão Cearense; ousadia maior que a tão
decantada apresentação de Ernesto Nazaré no mesmo Instituto de Música, em 1922,
levado por Luciano Gallet, um dos mais fiéis seguidores de Nepomuceno.
Podemos ver, sem nenhum esforço o sentido e a intenção do trabalho de
Nepomuceno. Talvez se estivesse vivo por ocasião da Semana de Arte Moderna, que
aconteceu dois anos depois de sua morte, Nepomuceno teria seu trabalho hoje
melhor reconhecido. Aliás, Villa-Lobos, o compositor adotado por Mário de
Andrade e representante musical na "Semana de Arte Moderna" de 1922,
já antes estava sob proteção de Nepomuceno quando este intercedeu, junto ao
editor Sampaio Araújo, para imprimir as obras deste, "na época l’enfant
terrible da música brasileira e uma personalidade musical extremamente
controvertida. Durante anos, as publicações da Casa Napoleão continham na capa
as composições de Nepomuceno e no verso as de Villa-Lobos". Nos seus
últimos concertos sinfônicos Nepomuceno revela o "Concerto para
violoncelo" de Villa-Lobos, em 1919, tendo no ano anterior, afirmado
publicamente o gênio deste compositor incluindo várias de suas obras em seus
concertos, dentre outras: "Elegia" e "Marcha
religiosa".
Mas voltemos às considerações anteriores, no que concerne à utilização
das formas e moldes europeus em sacrifício dos moldes brasileiros. Pergunta-se:
Que moldes? Não existiam moldes brasileiros. Segundo José Maria Neves, a música
popular continha elementos da cultura negra e indígena, que caminhava para a
nacionalização desses elementos constitutivos, mas podemos falar em arte
erudita brasileira? No começo do século o país carecia de compositores e obras
de estruturação sólida e Nepomuceno aspirava "colocar a música brasileira
no âmbito universal" não apenas por meio de efeitos e temas
característicos, mas do conteúdo estruturado no plano tradicional das grandes
formas: Sonatas, Sinfonias… (Helza Cameu). O que se conclui é que, ao mesmo
tempo em que procurava uma forma brasileira de expressão musical, Nepomuceno
não abria mão do patrimônio musical deixado pelas gerações anteriores, o que é
de fato, uma virtude.
A "Suite Antiga", como o nome sugere, composta dentro de forma
tradicional, é citada pela crítica quando se quer comentar a descontinuidade da
obra de Nepomuceno comparando-a a outras composições de caráter nacionalista,
como a "Dança de Negros", composta em Fortaleza (1881) e outras
composições. Primeiro não podemos deixar de ver o contexto em que esta obra foi
escrita, como prova final do curso de composição em conservatório alemão, e
depois o que aparece como "indecisões de comportamento" nos parece,
refletir esse esforço no sentido de dominar a técnica composicional e de todo o
metier da linguagem musical nos moldes acadêmicos, e a afirmação de uma
musicalidade brasileira no universo musical de sua época. É bem verdade que
esta linguagem passava por rupturas e transformações profundas que estavam
sendo acompanhadas e absorvidas por Nepomuceno, que teve participação ativa
neste processo. Seu trabalho representou para nós o que foi Grieg, Pedrell,
Smetana e Glinka para suas respectivas pátrias.
O próprio Villa-Lobos, que no início de sua carreira compunha peças
debussynianas etc., abdicaria depois da "auréola de ser um revolucionário
para entrar na classe dos grandes mestres respeitáveis, ou seja, aqueles
compositores que dominavam a linguagem clássica-romântica da música acadêmica
como Nepomuceno, por exemplo.
Mário de Andrade, orientador de vários compositores nacionalistas da
geração posterior à Nepomuceno tinha consciência de que toda a técnica
composicional, a estruturação melódica e harmônica, o tratamento orquestral e
formal, é importada e dizia: "Brasil sem Europa não é Brasil não, é uma
vaga assombração ameríndia, sem entidade nacional, sem psicologia técnica, sem
razão de ser".
É intrigante a falta de atenção à obra de Nepomuceno por parte da
crítica e estudiosos em geral. Ora lhe imputam o selo de precursor e mudam de
assunto, ora comenta-se o fato de usar formas tradicionais sem situar
historicamente o fato, e por aí vai. Tomemos por exemplo o comentário de Otto
Maria Carpeaux na sua "Uma nova história da música" quando, ao
referir-se ao início do nacionalismo, diz: "Precursor do nacionalismo no
Brasil foi Alexandre Levy (1864-1892), inspirado pelo romantismo schumanniano,
cujas obras significativas, o poema sinfônico Comala (1890) e
a Suite Brasileira (1890) ficavam, porém, por enquanto
inéditas. Nacionalista de inspiração mais moderna, pós lisztiana, foi Alberto
Nepomuceno (1864-1920); sua Série Brasileira (1897), para
orquestra, foi um triunfo".
Não se trata aqui de disputar quem começou primeiro o nacionalismo, se
fosse este o caso, teríamos que incluir aqui Basílio Itiberê da Cunha,
diplomata, músico diletante que compôs inspirado na canção popular gaúcha
"Balaio", "A Sertaneja", em 1860, e pode-se tomar como
marco inicial do nacionalismo.
Mas parece-nos desatenção com a obra de Nepomuceno o fato de citar a
"Suite Brasileira" como sendo de 1897 quando esta data refere-se à
estréia orquestral tendo a peça sido escrita em 1891 em Berlim. No entanto cita
a "Série brasileira" de Levy na data de sua criação, o que está
correto, e considera-o precursor do nacionalismo mesmo afirmando o ineditismo
da obra. Ora, Alexandre Levy tinha de fato preocupações nacionalistas como
compositor jovem que era e sensível às tendências musicais de sua época como
podemos sentir por um depoimento de João Gomes de Araújo: "Discorria sobre
a arte dos sons, dizendo que cada nação tinha a sua música característica e que
o Brasil um dia haveria de revelar a sua. Afirmava que para escrever música
brasileira era preciso estudar a música popular de todo o Brasil, sobretudo a
do Norte do país". Nepomuceno, por ter nascido no Ceará, certamente estava
melhor aparelhado no que concerne ao conhecimento da música popular do
"Norte" a que almejava o jovem Levy.
Nepomuceno não foi um mero precursor. Deixou mais de 200 obras dentre
elas uma centena de lieds, peças orquestrais trios etc. Fundou as bases da
moderna música brasileira. Podemos antever Villa-Lobos ouvindo a
"Brasileira" de 1919 ou Ernesto Nazaré em "A Galhofeira" de
1894, e tantas outras inspiradas na música popular, que tão bem conhecia e
soube prestigiar como no episódio de Catulo referido anteriormente. Por isso e
por tantas outras coisas o trabalho de Nepomuceno merece mais respeito e
atenção por parte da crítica. Façam de conta que ele nasceu em São Paulo!
Para concluir gostaria de lembrar que Nepomuceno foi a figura central da
cultura brasileira no seu tempo, idealista convicto, "o mais culto e mais
capaz dos compositores do seu tempo", ansiava por colocar o Brasil no
cenário universal e o fez através do seu trabalho "meditado, consciente,
de profundidade evidente, resultante do conhecimento dos problemas artísticos
brasileiros", e como educador, ensinando e mostrando aos brasileiros o que
se passava com relação à música. Artista refinado e de personalidade forte,
Nepomuceno lutou pelo reconhecimento dos compositores que trabalhavam no país
na sua época. Não foi somente um pioneiro, quando ousou cantar em português, ou
quando soube incorporar as conquistas musicais do seu tempo a serviço de uma
expressão artística nacional, ao tentar introduzir o dodecafonismo no Brasil
etc. Nepomuceno deixou uma grande obra que deve ser melhor divulgada e
compreendida, sem preconceitos e rotulações que sempre diminuem e atrapalham a
compreensão das mesmas, pois "não importa onde ou quando se produzam as
obras, não importa se tenham ou não elementos nativos, não importa qual
procedimento técnico se use, o importante para conseguir uma obra artística de
alcance universal é a criação de algo que leve o selo inconfundível do pessoal,
que se expressa com absoluta honradez de propósitos e que se diga na linguagem
própria da época do autor, que contribui assim para a "consolidação do
progresso atingido pelas disciplinas artísticas através dos anos" (Roque
Cordero, compositor).
Maestro, compositor, pianista, folclorista, educador, Nepomuceno fez a
sua parte. Cabe a nós, depositários do seu esforço, continuarmos o trabalho de
construção dessa nossa pobre e desmemoriada nação sob a pena de estarmos sempre
começando, do nada!
*****
Caio Sílvio Braz
(Fortaleza, 1956). Compositor. Agulha
Revista de Cultura # 2/3, Setembro de 2000.
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Alberto
da Veiga Guignard
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
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