Passados os momentos difíceis da perda dolorosa, todo o Cerimonial se
movimenta para receber na capela do Palácio o corpo do artista querido. Findas
as exéquias, o mestre é levado para Ouro Preto, por sua própria escolha. Com
sua morte, começa uma trajetória de valorização de sua obra que ele imaginava
ocorrer apenas em 2062, cem anos após sua morte.
Alberto da Veiga Guignard não é somente o nome de um artista
insubstituível. É o primeiro verso de uma saga pessoal ainda não escrita. Ela
começa em 25 de fevereiro de 1896, em Nova Friburgo (RJ), onde nasce o menino
com defeito congênito e termina com a morte do artista no dia 26 de junho de
1962. O lábio leporino dificulta a ingestão de alimentos e a respiração do
infante, causando profunda angústia na jovem mãe. Ela, impotente, via a dificuldade
do filho em aprender a se alimentar para sobreviver. Essa deformidade marca sua
forma de se colocar no mundo para sempre.
Filhos com defeitos congênitos aprendem a se ver e o horror que causam
através do olhar materno, que funciona como um espelho. É provável que Dona
Leonor tenha demorado algum tempo para elaborar no seu psiquismo o defeito do
filho, a aceitá-lo e a amá-lo. Seria desumano exigir dela uma atitude diferente
porque, no imaginário de todos os pais, os filhos nascem saudáveis e perfeitos.
Desumano, também, seria exigir do filho que não se sentisse no mundo como um
convidado inadequado em função da sua diferença. O mundo pregou-lhe uma peça,
fazendo-o sofredor de algo que o fez desigual para sempre. Ele sente a falta, o
vazio na alma, que é sublimado para a pintura, tão logo ele pode executá-la e
entendem-no como jovem talentoso. Se a natureza não lhe deu a capacidade de
respirar e deglutir como os outros, compensou-o com a habilidade para olhar e
ver, como artista, a natureza, a paisagem, as cidades, as pessoas. Essa
habilidade é o tempero necessário para desenvolver a dádiva recebida dos deuses
para desenhar e pintar.
Com dificuldades financeiras, o pai morre num “acidente” com arma de
fogo, quando Alberto era ainda muito jovem. Angustiante é a vida de filhos de
pai suicida. Este episódio abre um vácuo emocional na vida deles, impossível de
ser coberto. E é com o peso da dupla carga emocional do problema congênito e da
morte do pai em circunstâncias tão trágicas, que nosso mestre segue para a Europa
com a mãe e o detestado padrasto. Lá, este liquida com o que restava do
dinheiro da viúva, a mostrar como o mundo podia ser irônico: Guignard passa da
experiência de pai morto por dificuldades financeiras e, em seguida, a de ter
padrasto perdulário. O dinheiro é, desde sempre, uma dificuldade a mais desse
viajante da vida com bagagem cheia de falta, ausência e vácuo. O restante de
sua permanência na
Europa ainda precisa ser melhor descoberto e relatado, mas sabe-se por biografias dele, escritas por Frederico Morais, Lélia Coelho Frota, Ivone Luzia Vieira e por depoimentos de amigos, que o mestre viveu em Munique, onde, com disciplina germânica, aprendeu as técnicas do desenho e da pintura. Ali expôs pela primeira vez. Roma e Florença foram suas amantes de sempre. Paris foi outra presença amiga onde dividiu quarto com Fernand Léger de quem recebeu, com dedicatória, dois óleos lindíssimos pertencentes ao acervo de conhecida coleção belo-horizontina. Tudo isso, antes de se mudar de vez para o Brasil.
Europa ainda precisa ser melhor descoberto e relatado, mas sabe-se por biografias dele, escritas por Frederico Morais, Lélia Coelho Frota, Ivone Luzia Vieira e por depoimentos de amigos, que o mestre viveu em Munique, onde, com disciplina germânica, aprendeu as técnicas do desenho e da pintura. Ali expôs pela primeira vez. Roma e Florença foram suas amantes de sempre. Paris foi outra presença amiga onde dividiu quarto com Fernand Léger de quem recebeu, com dedicatória, dois óleos lindíssimos pertencentes ao acervo de conhecida coleção belo-horizontina. Tudo isso, antes de se mudar de vez para o Brasil.
Guignard vai sentir ao longo da vida outra falta: a de constituir a sua
própria família. A tentativa de existência dela começa com um casamento de
curta duração com Ana Döring e continua com amores mineiros como Amalita e
Celina Ferreira. Conta a lenda que ele foi abandonado pela mulher meses depois
do casamento, com o casal ainda em lua-de-mel. Ela, musicista, não deve ter
suportado a voz com pouca sonoridade do marido e a constante dificuldade dele
para se alimentar. Mesmo abandonado, ele sente a fundo a morte dela, anos
depois. A falência do casamento fica registrada como mais um ardil da sua vida.
É possível que os deuses tenham feito um acordo com ele: enquanto mortal, terás
uma vida difícil; depois de morto, serás imortal.
Pode-se levar um tempo enorme nas intermináveis pesquisas sobre sua
biografia; o resultado delas será a descoberta do mesmo mistério que se repete
em suas obras. Nestas, é o enigma interminável que procuramos decifrar cada vez
que miramos seus quadros, na esperança de que, dessa vez, o solucionaremos.
Inútil, esperamos uma resposta da tela, quando ela apenas faz a pergunta, a
demonstrar que a resposta está na sensibilidade de cada um. É um jogo de
espelho sedutor e de intrigante lirismo. Sua pintura contém a influência do
pintor Dufy, a quem ele considerava seu mestre. Dele herdou a coragem do uso
das cores e do pincel fino, privilégio de quem conhece a técnica do desenho.
Desenvolveu a transparência, sua marca registrada, e a deixou como parte de seu
legado intelectual a um grupo de alunos que se utilizam dela até hoje: Yara
Tupinambá, Sara Ávila e Maria Helena Andrés. Tinha ainda a singularidade do
estilo inconfundível do desenho, feito com lápis de grafite duro.
Ouro Preto, uma constante em sua obra a partir de 1944, marca-o para
sempre. Ambos têm a sorte de terem se encontrado várias vezes do seu alto, em
frias manhãs cheias de névoas que vão, aos poucos e em frente a seus olhos,
despindo-se pela diluição, expondo a beleza de suas montanhas, casas e igrejas
que surgem como se flutuassem do espaço mágico. A cena é eletrizante e a
paixão, fulminante. Guignard cai de amores pela cidade e pela suave luz, a
qual, refletida pelas montanhas, reverencia o barroco puro. E ela, reconhecendo
a grandeza dele, aceita, cheia de gratidão, aquele que estava a seus pés e que
mostraria sua beleza ao mundo, acolhendo-o para sempre. Ela se entrega e ele
torna-se seu dono. Guignard pinta suas “imaginantes” ou “imaginárias” paisagens
de Ouro Preto, como as chamou Lélia Frota, hoje, uma consagrada referência poética.
Mas não se imagine que essas paisagens surgiram de sua fantasia de artista.
Elas estão lá nesse momento, concretas, objetivas e esperançosas como uma
adolescente apaixonada, esperando pela volta do poeta que as imortalizou; no
mesmo local onde, um dia, se conheceram e se amaram. Se o leitor tiver a
paciência de um fantasma, poderá ficar de tocaia no lugar onde ele pintava e
presenciar, numa dessas arrefecidas madrugadas de inverno, o idílio entre o
velho artista que volta, flutuando numa nuvem de suas paisagens soprada por
zéfiro e emoldurado por guirlandas de querubins, para a repetição do encontro
imortal do gênio com a natureza.
Seus retratos, um tema que merece teses de doutorado, são um capítulo à
parte de sua carreira. A força e a comovente simplicidade deles podem ser
comprovadas no retrato do garoto Rodrigo Assunção Gontijo. Conhecedor das
dificuldades da técnica do desenho, da qual era um mestre absoluto, tinha
consciência de que o retrato era a “arte mais difícil”. É nele que o artista se
projeta e convence o público do seu talento. É um Midas moderno que, tocando,
vira esplendor, ternura e arte, Guignard brilhava até mesmo nas encomendas dos
retratos objetivos. Naqueles subjetivos, como no retrato de Geraldo Andrada (“O
Príncipe Orsini”), demonstrou toda sua afeição de amigo e o talento de artista
definitivo, fazendo dele uma iconografia de sua pintura. Naqueles de meninas ou
mulheres adultas, mostra como era galante associando-as às flores colocadas nos
cabelos ou na roupa, como se elas, sendo mensageiras da sua posteridade,
devessem se lembrar de que, para ele, elas seriam sempre “minhas flores”. Fazia
algumas exceções. No retrato de Celina Ferreira pintou o Parque Municipal de
Belo Horizonte no fundo da tela, como se dissesse que dela, ele esperava mais
que ser uma flor na vida dele. Deixava em cada tela apenas uma leve camada de
tinta, suficiente para mostrar a grandeza do artista e tudo que ele queria
dizer do modelo. Nos retratos de crianças, fazia questão de retratá-las com a
simplicidade do infante que sabe pouco do mundo. Pinta-as com olhos ingênuos,
de quem imagina ser o mundo apenas o que é visto objetivamente, projetando-se
num jogo de espelhos entre modelo e artista.
Sara Ávila se lembra da recomendação fundamental do professor Guignard a
seus alunos nas aulas de desenho: “Aprendam a ver, procurem tatear o objeto e a
paisagem com os olhos, usem todos os seus sentidos, muita atenção nas linhas”.
Chama a atenção de todos para os detalhes de cada coisa, demonstrando como o
somatório deles faz o conjunto brilhar, marcando, em si mesmos, a presença de
Deus. Lições simples são difíceis de ser elaboradas, porque há uma condensação
de ensinamentos que requer experiência,
pertinácia e muito trabalho para ser compreendida e aproveitada. Apenas com a lenta elaboração do conteúdo de cada lição, adicionada à maturidade pessoal, entende-se a dimensão das palavras de lentes inesquecíveis. O ensino maior do professor Guignard foi a liberdade de deixar criar. Ele acreditava que, se os alunos são talentosos e aprendem as técnicas do desenho, da pintura e da aquarela, serão reconhecidos e valorizados.
pertinácia e muito trabalho para ser compreendida e aproveitada. Apenas com a lenta elaboração do conteúdo de cada lição, adicionada à maturidade pessoal, entende-se a dimensão das palavras de lentes inesquecíveis. O ensino maior do professor Guignard foi a liberdade de deixar criar. Ele acreditava que, se os alunos são talentosos e aprendem as técnicas do desenho, da pintura e da aquarela, serão reconhecidos e valorizados.
Guignard foi um mestre altruísta, privilégio de professor sem medo de
concorrência futura; por isso nunca escondeu conhecimento. Os alunos de mestres
com esse perfil ganham ainda mais quando se colocam em lugares de humildade,
reconhecendo que, sem ela, não há aprendizagem. Ser aluno deles é estar
preparado para recebê-los como mensageiros dos deuses. Se o aluno percebe a
dimensão do que é ensinado e da importância do lente, aprende a desenvolver o
olhar e a ver com seus olhos aquilo que o mestre vê com os dele. Assim, ganha
anos de experiência em pouquíssimo tempo. É um raro privilégio encontrar juntos
os dois elementos desse processo, porque, na nossa cultura, o conhecimento é
adquirido ainda pelo método mais difícil: a dura experiência pessoal. Jovens e
tolos, despreparados e ingênuos, acreditamos pouco nos mestres definitivos de
nossas vidas.
Guignard nasceu diferente; diferença que contribuiu para criar um estilo
único de desenhar e pintar. Suas criações constituem-se numa das mais
brilhantes da pintura brasileira. Ao morrer deixou, para seus amigos, saudade
eterna; para o Brasil, um acervo que faz dele um artista definitivo e
imortal.
*****
Carlos Perktold (Brasil,
1943). Ensaísta e crítico de arte. Autor de Ensaios
de pintura e de psicanálise (2003).
Agulha Revista de Cultura # 46, Julho
de 2005.
*****
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Alberto
da Veiga Guignard
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
Visite a
nossa loja
Nenhum comentário:
Postar um comentário