sábado, 21 de maio de 2016

FLÁVIA NASCIMENTO | Errância e acaso, angústia e morte em Les Dernières nuits de Paris, de Philippe Soupault


Soupault e o surrealismo
Em 1928, quando Philippe Soupault (1897-1990) publicou Les Dernières nuits de Paris, seu sétimo romance, ele já não fazia parte do grupo surrealista. Sua expulsão do movimento ocorrera em 23 de novembro de 1926, após uma agitada reunião no Café du Prophète, na qual Louis Aragon foi o introdutor da moção que levou à exclusão do antigo companheiro. Entre outras acusações, o tribunal surrealista considerava que Soupault não vinha participando o bastante das atividades coletivas, que resistia à adesão ao Partido Comunista e, sobretudo, que tinha tendência a prosseguir, solitariamente, em sua “estúpida aventura literária” [1] (colaborando com revistas literárias, etc.). Nem por isso, no entanto, Philippe Soupault perderia posteriormente sua legitimidade como surrealista, ele que, juntamente com André Breton e Louis Aragon, havia formado, desde os anos 1917-1918, a tríade dos surrealistas de primeira hora. Como se sabe, foi ele o “descobridor”, lado a lado com Breton, da escrita automática, tendo redigido a quatro mãos com o amigo de juventude o primeiro texto surrealista, Les Champs magnétiques, publicado em 1919.
A exclusão de Soupault do movimento evidencia a existência de duas vertentes surrealistas, ambas autênticas, e originadas numa fonte comum: de um lado um surrealismo com vocação para o coletivo e o revolucionário, vertente da qual André Breton foi o guia e o teórico e, de outro, um surrealismo todo feito de libertação pessoal, com acentos líricos, do qual a obra de Soupault é um exemplo notável. O fato de que Les Dernières nuits de Paris tenha sido publicado após a exclusão do movimento acaba, assim, não tendo lá grande importância. Afinal o que conta, sobretudo, é que esse romance forma, juntamente com O Camponês de Paris (1926), de Aragon, e Nadja (1928), de Breton, uma trilogia da maior importância do ponto de vista da geopoética surrealista, na qual Paris figura não somente como um palco para aquilo que é narrado, mas também como um verdadeiro personagem. Os três textos constituem, portanto, para além das diferenças entre eles e seus autores, uma contribuição essencial para a mitologia literária parisiense segundo a ótica surrealista, no período entre as duas guerras mundiais.

Falso romance policial
A hora do início da ação, nesse romance, é difusa: acabou-se o dia, mas a noite ainda não chegou, e tudo o que rodeia o narrador parece estar à espera de algo que ainda não foi nomeado. Ele está num espaço fechado, ao lado de Georgette, uma enigmática prostituta do “rosto lunar”, que encontrara por acaso: “O café cochilava. A hora do aperitivo tinha passado e a dos sanduíches chocolate ainda não soara” (p. 7). [2] É Georgette que introduz algum movimento nesse mundo em suspensão, onde os garçons “assemelhavam-se a estátuas” (p. 7), quando toma a iniciativa de levantar-se e dirigir-se à rua. A noite ganha então a cidade, e o narrador-personagem (não nomeado) passa a descrever uma trajetória que vai da rive gauche à rive droite, indiferentemente. Pouco depois, os dois assistem a uma estranha cena: nas redondezas da Biblioteca Mazarine, prestigioso lugar da cultura oficial, [3] eles vêem um grupo de homens extorquirem a uma mulher a delação de um crime. Após a cena de delação, tendo se separado de Georgette, o narrador, espectador noturno [4] que é, continua sua errância urbana e se dirige à gare d’Orsay, onde encontra um marinheiro. No dia seguinte ele lê nos jornais que “um marinheiro era o suspeito (…) do assassinato de um jovem, cujo corpo, cortado em pedaços, fora encontrado sob umas das pontes sobre o Sena (p. 28). Segue-se a isso uma série de encontros, todos eles devidos ao acaso, o que faz com que o narrador creia Georgette implicada no crime, razão pela qual passa a segui-la, noite após noite, no intuito de descobrir o que ele chama de “mistério”. Tem-se aí um romance de aventuras, pois, cujo esquema inicial sugere aquela inversão própria ao romance policial que, como é sabido, inicia-se amiúde pelo fim, isto é, pelo crime, para depois chegar à sua causa, que é a razão de ser da intriga. No centro da exploração espacial empreendida pelo narrador posteriormente ao crime, encontram-se, por um lado, o tema surrealista, comum a vários autores, da errância urbana, em companhia de uma mulher ou seguindo-a (nesse contexto é que se entende o interesse quase obsessivo do narrador por Georgette) e, por outro, imagens pertencentes ao fundo comum geral dos surrealistas, tais como a sombrinha, a luva feminina, ou seja: objetos perdidos num lugar público e que irrompem no texto – trazidos pela mão do acaso – como signo ou sinal de algo.
O aceno ao universo do romance policial e aos folhetins a ele aparentados (pondo em cena um herói detetive), eloqüente o bastante no romance de Soupault para passar despercebido, também está em conformidade com o movimento surrealista: muitos de seus integrantes foram admiradores de personagens extremamente populares durante as três primeiras décadas do século vinte, como Fantômas (herói do folhetim epônimo, criado por Pierre Souvestre e Marcel Allain, e levado ao cinema por Louis Feuillade), Rouletabille (de Gaston Leroux) e Rocambole (personagem mais antigo, criado no século XIX por Ponson du Terrail, cujas aventuras também foram publicadas em folhetim). Vítima do desdém dos críticos da época, que a consideravam “mal escrita”, essa prolífica literatura popular, cujos heróis são personagens emblemáticos de uma relação simbiótica com a cidade de Paris, foi valorizada pelos jovens surrealistas, e tão mais valorizada, aliás, quanto desprezada pelos homens de letras bem pensantes de então. A geração rebelde dos anos vinte aparentava-se, nisso, àquela que se revoltara no final do Segundo Império: afinal, Maldoror é um herói que Lautréamont criou calcado, também, em personagens de roman noir e, por isso, uma “leitura policial” dos Cantos pode ser tão necessária e proveitosa quanto o desvendamento de seu bestiário ou o de sua simbologia sexual. [5]
Certos clichês reforçam, de quando em quando, o clima de romance ou filme policial do texto de Soupault: é o caso do “sobretudo de gola levantada” (pp. 17 e 60), ou da coincidência entre a “hora do crime” e a meia-noite (p. 14), mesmo sendo verdade que esta última não passa de uma “brincadeira clássica”, como diz o próprio narrador, ou seja, de um artifício estético, deliberadamente inserido no texto com propósitos lúdicos. Les Dernières nuits de Paris é, todavia, um falso romance policial, pois à medida em que a narrativa evolui ao longo de seus quatorze capítulos, o interesse da resolução do enigma inicial vai se esvaziando para ceder lugar a uma busca que diz respeito, muito mais, às projeções subjetivas do narrador, projeções que ele persegue numa Paris noturna, cheia de signos, de encontros, de acasos e de “achados” semelhantes a “objets trouvés” descobertos num Marché aux Puces. Assim a exploração incessante do espaço citadino pelo personagem narrador acaba por figurar muito mais uma geografia interior, do que uma descrição propriamente topográfica. O “mistério” do qual está em busca esse detetive atípico nada tem a ver com as narrativas policiais: ele não deseja encontrar a solução do crime, mas, sim, descobrir “o segredo inviolável de Paris” (p. 26). A cidade noturna que percorre incansavelmente revela-se, porém, inapreensível, furtiva como um universo de brumas e como o corpo de Georgette, que se confunde com o da própria cidade, e cuja realidade material sempre lhe escapa. Assim é que, mesmo depois de ter tomado a decisão de dormir com ela, uma “banal prostituta”, “para tirar as coisas a limpo”, ato que com efeito concretiza pouco mais tarde, ele se dá conta da ineficácia de um tal procedimento:

“Enquanto eu a estreitava em meus braços, enquanto colava meus lábios contra os dela e fixava no dela o meu olhar, ela vivia alhures, talvez em algum outro aposento, e apenas sua sombra respondia a minhas perguntas e meus pedidos” (p. 80).

Errância, acaso
O acaso não passa de nossa ignorância das causas” (p. 27). [6] Por essa epígrafe reveladora Soupault introduz nesse romance um tema surrealista capital, antes mesmo que a expressão “acaso objetivo” aparecesse teorizada nos textos surrealistas. Embora o acaso já fosse importante para André Breton na década de vinte, foi apenas em dezembro de 1933 (em Minotaure) que ele propôs uma teorização para o mesmo, definindo-o então como uma “forma de manifestação da necessidade exterior que abre para si mesma um caminho no inconsciente humano”. O acaso seria, portanto, um instrumento para chegar à objetivação do desejo do sujeito. Embora não mencione explicitamente a importância do olhar na percepção do acaso, a definição de Breton a supõe. Não se trata de um olhar qualquer, mas sim daquele que lembra a câmera fotográfica, naquilo que ela tem de revelador dum inconsciente ótico do qual os olhos normalmente não se dão conta, exatamente como a psicanálise é reveladora do inconsciente pulsional. [7] Há uma prática do acaso que já se verifica entre os surrealistas bem antes de sua teorização, tal como aparece emNadja, ou ainda nos passeios “ao acaso” que faz Aragon em companhia de Breton e Marcel Noll, relatados n’O Camponês de Paris (1926) e, claro, em Les Dernières nuits de Paris. Essa prática conta com um certo número de técnicas, entre as quais a da errância urbana é privilegiada entre todas. Tema literário parisiense tradicional – e tão antigo que já se encontrava presente nas longínquas obras de François Villon (século XV) e Rutebeuf (século XIII) – a errância fixa-se como motivo literário da modernidade por excelência durante a segunda metade do século XIX, com oflâneur de Baudelaire.
Sempre vinculada ao “mistério” urbano que, por sua vez, está em estreita ligação com o crescimento demográfico da cidade e o poder do anonimato sobre as imaginações (na grande cidade tudo pode acontecer), a errância torna-se uma técnica surrealista posta a serviço da escritura literária. O flâneur surrealista, tal como aparece em Les Dernières nuits de Paris, é aquele cujo olhar, através duma exploração voluntária do delírio, realiza um movimento revelador de trocas entre o subjetivo e o objetivo. Seu olhar apreende os objetos e, simultaneamente, é apreendido por eles. Nessa perspectiva, o “mistério” desvendado pelo flâneursurrealista é compreendido em sua dimensão de “iluminação profana”, para retomar uma expressão de Walter Benjamin, segundo o qual só é possível desvendar o mistério à medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. [8] É oportuno lembrar aqui que André Breton não gostava da palavra “mistério”, chegando a ter o cuidado de intitular um de seus artigos “Le merveilleux contre le mystère” (Minotaure n° 9), com a finalidade de estabelecer uma oposição entre o imanente e o transcendental. Louis Aragon, por sua vez, fala n’O Camponês de Paris do “maravilhoso cotidiano”. Quanto a Soupault, não hesita em utilizar o vocábulo “mistério”, que na verdade é pré-surrealista, tendo sido comum nos títulos de vários romances noirs e em folhetins populares do século XIX, como Les Mystères de Paris, de Eugène Sue. Seja como for, o que importa é que o “mistério”, também para Soupault, é exclusivamente de ordem imanente, e encontra-se sub-jacente à realidade do cotidiano.
O narrador de Les Dernières nuits de Paris conhece o poder de revelação dos lugares urbanos: “eu sabia que os lugares e os décors têm sobre a memória e a imaginação uma influência profunda e esperava, naquela noite, encontrar a palavra do enigma (…). Eu contava, para isso, com Paris, com a noite e com o vento” (p. 93). O narrador atribui ao acaso um papel preciso: “Mais uma vez o acaso expulsava o esquecimento e conferia novamente realidade àquilo que eu considerava, de bom grado, como sonhos” (p. 74). É preciso insistir no fato de que se trata de conferir novamente(em francês, “redonner”) realidade aos sonhos, o que atribui a esses últimos um status de realidade primordial (idéia que resume bem uma tarefa surrealista por excelência, semelhante, de certo modo, àquela búsqueda del comienzo de que falou Octavio Paz a propósito de André Breton). [9] O olhar do caminhante noturno deve estar pronto para a exploração da delirante natureza urbana, repleta de signos que podem levar à realização de uma transformação do mundo. Assim, o jornal pousado nas mãos da República (entenda-se a estátua La République) pelo acaso do vento (p. 12) tornar-se-á “arauto” dos acontecimentos, bem como certos objetos perdidos pelas ruas – “uma sombrinha”, “uma luva esquecida” (essa predileção surrealista) – terão ares de cúmplices (p. 40). E o próprio passeio será, na verdade, “o deambular sofreado” dos pensamentos do narrador, que busca, sem sucesso, delimitar a “a fronteira entre [sua] imaginação e [sua] memória” (p. 34).

Angústia do tempo, morte
Devido à ambivalência do desejo evocado, há um outro lado da exploração do acaso que se manifesta quando o que ocorre é exatamente aquilo que era objeto de algum temor (e não de desejo) por parte do sujeito: o acaso é então de ordem trágica. Em Les Dernières nuits de Paris, o trágico é encarnado pela morte, que resvala incessantemente essa Paris de sombras noturnas, semelhante a um “grande corpo doente” (p. 116); a morte, que se difunde por toda a narrativa, é nomeada aqui por meio de um acontecimento preciso, o crime (e não somente por um crime):

“de fato, era a época em que todo dia se descobria, no canal Saint-Martin, ou sob o pórtico de uma igreja, ou ainda sob qualquer outra entrada de imóvel, uma coleção de membros cuidadosamente serrados e cortados, colocados dentro dum saco (…). Os canais eram inspecionados em vão, buscas sem sucesso eram feitas pela cidade. A cabeça, as mãos e o assassino, ninguém podia encontrá-los, e a polícia se descabelando.” (p. 27)

O crime se torna uma ameaça urbana impalpável e constante, já que o assassino não é descoberto, e a alusão ao esquartejamento das vítimas lembra os faits divers ligados ao famoso caso de Landru, que ainda alimentavam a imaginação dos parisienses no final dos anos vinte. [10] A atmosfera de angústia que se difunde por todo o romance também é estreitamente ligada à marcha inexorável do tempo: “Georgette passava suavemente através dos obstáculos erigidos pelas horas da noite, obstáculos que pareciam ter sido formados pelos cadáveres dessas mesmas horas” (p. 57). O tempo é opressivo e até o ritmo da narrativa dá conta disso: a linha temporal de Les Dernières nuits de Paris descreve a alternância perpétua dos dias e das noites, num vai-e-vém de aspiração e expiração que entrecorta toda a narrativa. Um desvio de ritmo só se torna possível devido à presença de Georgette, cujo nome é o único meio capaz de “separar o passado do presente” e de “moer o tempo” (p. 49). É nesse instantâneo que Paris é desvendada, e o narrador confessa, então, que vê a cidade pela primeira vez.
A consciência angustiante da morte estampa-se na verdade desde o título que, além de estabelecer uma oposição com Les Nuits de Paris (1788), de Restif de la Bretonne, parece querer profetizar um funesto destino para a capital francesa, aludindo igualmente ao terrível soterramento de Pompéia sob as lavas do Vesúvio – sob o fogo, portanto –, devido à alusão implícita ao título do romance publicado em 1906 por Edward Bulwer-Lytton, The Last Days of Pompeii. A angústia da morte, atravessando a narrativa inteira, reaparece no final, em forma de uma pergunta deixada em aberto: “Paris, mestra da ilusão, mestra do tempo, mas por quanto tempo?” Essa precariedade da vida urbana, que também é um tema da modernidade, tem sido uma obsessão para muitos escritores de Paris ao longo dos séculos, quer sejam eles poetas, prosadores ou cronistas. Em seu ensaio sobre Baudelaire, Walter Benjamin lembra que Maxime du Camp teve a ideia de escrever sua copiosíssima obra Paris, ses organes, ses fonctions et sa vie dans la seconde moitié du 19ème siècle (6 volumes de crônicas jornalísticas, publicados entre 1869 e 1875, que oferecem um exaustivo quadro descritivo da capital francesa) numa tarde de 1862 em que, encontrando-se numa das pontes sobre o rio Sena, ele contemplava o espetáculo provocado pelos trabalhos de reforma da capital, conduzidos pelo administrador Haussmann sob Napoleão III:

“Veio-lhe a idéia do interesse prodigioso que teria hoje um quadro exato e completo de uma Atenas dos tempos de Péricles, de uma Cartago dos tempos dos Barca, de uma Alexandria dos tempos dos Ptolomeus, de uma Roma dos tempos dos Césares… (…). Por uma dessas intuições fulgurantes em que um magnífico tema de trabalho surge diante do espírito, ele percebeu claramente a possibilidade de escrever sobre Paris esse livro que os historiadores da Antiguidade não escreveram sobre suas cidades.” [11]

Salvar a cidade pelo verbo
O exemplo acima é de grande interesse porque desvenda o sentido da relação entre a experiência da cidade e sua escritura, essa última aparecendo como um meio para “salvar” a cidade da destruição. A “salvação”, porém, só é possível pela adesão à tradição (moderna, paradoxo incontornável). Disso parece dar conta também o adágio que serve de epígrafe ao romance: Choisir, c’est vieillir (“Escolher é envelhecer”), frase que pode ser lida como mais uma alusão a Restif. Uma vez escolhido este antepassado e eis Soupault “envelhecido”, porque comprometido com a tradição literária da errância noturna em Paris, ao sabor do acaso e de um certo voyeurismo, [12] etc. Outros elementos evidenciam tal “escolha”, como o título, fato que comentei anteriormente. Há ainda os procedimentos “investigativos” do narrador de Soupault, que poderiam muito bem ter sido inspirados pela biografia de Restif. Esse desempenhou, a partir de 1764, um papel de “espião amador” junto à polícia do Antigo Regime e era em troca dessa atividade nada digna de louvor que Restif assegurava para si mesmo o direito de deambular livremente por Paris – de onde tirava a matéria-prima de seus escritos – e, também, o de publicar seus textos, escapando à censura. Existem certos vestígios que atestam suas relações com a polícia, e Restif pode ser considerado assim como uma espécie de “detetive” avant la lettre. Apresso-me a dizer que Philippe Soupault não tinha ligação alguma com a polícia. Esses aspectos da biografia do escritor antepassado foram aproveitados pelo romancista de maneira não linear, e parecem funcionar como projeções do próprio Soupault, como são também projeções suas diversos outros personagens do romance. Ao contemplar a cidade do alto da colina de Bellevue, o narrador conclui que ela não passa de um “panorama do tempo e do espaço” que abriga “personagens mecânicas que [lhe] dão a ilusão da vida”. Vistos assim à distância, os diversos personagens parecem ao narrador “manequins de madeira”, e ele diz a si mesmo que caso se olhasse num espelho, dar-se-ia conta de que era, também, um desses personagens (entre outros: Georgette ou seu irmão piromaníaco Octave, que ateará fogo à periferia parisiense, o poderoso e manipulador Volpe, que é bookmaker, “policial amador e jornalista”, interessante conjugação profissional que também evoca Restif, etc.). Como é sabido, pelo mecanismo psíquico da projeção, um sujeito atribui a terceiros ou ao mundo que o rodeia seus erros ou desejos pessoais; seria interessante utilizar essa definição básica para propor uma leitura da representação que nos dá Soupault, nesse romance, de sua experiência pessoal no seio do movimento surrealista, do funcionamento interno do grupo (que contou de certa maneira com uma espécie de “polícia” encarregada de expulsar membros que não se comportassem de acordo com os preceitos estabelecidos por Breton), da autoridade de Breton, etc. (pista que faço apenas apontar aqui, e que não é objeto desse artigo).
Restif de la Bretonne acabará sendo nomeado claramente no final do texto, tornando-se portanto, concretamente, um de seus personagens. A projeção se faz por meio de uma figura do bas-fonds parisiense, um ladrão chamado Verbaut: trata-se de um “velhote” cuja silhueta “lembrava a de um dicionário” (p. 106). Este personagem é um livro ambulante cujo modelo é… Restif! Verbaut/Restif é capaz de contar todas as histórias possíveis da cidade medieval, bem como da Paris dos séculos XVII e XVIII: uma verdadeira enciclopédia da capital francesa. [13] Seu nome próprio é duplamente significativo: por um lado, no antropônimo “Verbaut” ecoa a palavra “verbe” e, por outro, ele remete, graças à rima, ao autor-narrador: Soupault. Assim nomeado, Verbaut se torna uma encarnação da cidade pelo verbo, na qual se projeta Philippe Soupault, cujo romance conduz de fato o leitor por um longo percurso através de “bairros de herança” em que a “virtuosidade das palavras” (p. 9) é sempre surpreendente. Nessa Paris noturna, o caminhante/leitor esbarra nas ruas, por toda a parte, em palavras, e “aquelas que escapam das casas têm reflexos de mercúrio, as que se ocultam por trás das rachaduras das paredes são simplesmente fosforescentes” (p. 10). O espaço citadino, impregnado pela história e pela memória dos homens e, sobretudo, por milhares de camadas de palavras sobrepostas umas às outras, é o plano virtual dos mais variados achados, que se tornam possíveis graças ao caráter hereditário da mitologia literária parisiense e à perpetuação de sua tradição. Escrever a cidade é salvá-la da precariedade a que está condenada, e assim é que o verbo substitui a pedra, como disse também Victor Hugo, outro grande escritor de Paris, ao intitular o capítulo II do Livro V de Notre-Dame de Paris: “Ceci tuera cela” (“Isso matará aquilo”). Assim consolida-se a tradição que faz de Paris uma “grande sala de biblioteca atravessada pelo rio Sena”, como notou Walter Benjamin, que utilizou a metáfora do espelho para dar conta do fenômeno [14] de auto-representação do mito, pelo qual os temas e motivos parisienses se refletem em incontáveis imagens, até o infinito.
Num belo ensaio intitulado Le Droit à la ville, [15] Henri Lefèbvre mostra como a cidade – aqui se trata da cidade de pedra – pode ser compreendida por sua vez enquanto texto, à medida em que ela é a projeção daquilo que ele chama de “ordem longínqua” (a esfera do poder, a Igreja, o Estado) no domínio da “ordem próxima” (as relações entre os indivíduos e os grupos que estruturam a sociedade). A cidade é texto porque ela é o lugar em que a “ordem longínqua” torna-se visível, justamente porque é nela que essa ordem se inscreve e escreve. Mas Lefèbvre enfatiza também as dificuldades para elaborar uma metalinguagem da cidade-texto sem que se conheça seu contexto, isto é: tudo o que está sob o texto a decifrar, tal como a vida cotidiana, as relações imediatas, o inconsciente do urbano, tudo o que não se diz e, ainda menos, escreve-se, tudo, enfim, que se oculta nos espaços habitados (ele cita o exemplo da vida sexual e familiar, que é amiúde da ordem do não-dito).
Penso que a literatura é capaz de elaborar essa metalinguagem, e que a isso se consagraram todos esses textos surrealistas nos quais a errância por Paris é posta em cena. Neles se opera uma decodificação do universo da vida latente da cidade, entre outras razões pelo fato de a terem representado por meio de uma topografia profanada e profanadora. Assim é que o romance de Soupault faz tábula rasa dos mais prestigiosos lugares da cultura oficial, isto é, aqueles em que se pode ler o que Lefèbvre chama de “ordem longínqua”: o sisudo Institut de France (que abriga a Biblioteca Mazarine e as cinco academias: Francesa, das Inscrições e Belas-Letras, das Ciências, das Belas-Artes e das Ciências Morais e Políticas) é reduzido a mero palco da delação de um crime, da prostituição e de uma “paixão sem objeto” (p. 25), que é o passeio urbano noturno. Outros lugares emblemáticos da Cultura, do poder e do Estado são igualmente profanados, como o Petit-Palais, nos Champs-Elysées, construção típica da prodigiosa arquitetura de vidro e ferro fundido do século XIX, inaugurada em 1900 para a Exposição Universal e destinada, desde então, a abrigar os tesouros das Belas-Artes, que se reduz, no romance, a um lugar de prostituição (p. 24). Em todos esses lugares profanados é projetada, assim, a “ordem próxima”, isto é, aquela em que de fato se inscrevem as relações do cotidiano, o não-dito, enfim, o inconsciente urbano, para continuar falando como Lefèbvre. Recorrente, a admirável coincidência entre a cidade e Georgette confirma o desígnio profanador que anima o romance. É significativo que uma prostituta se torne alegoria de Paris: há aí uma intenção manifesta de de-sacralização que é tão mais interessante quando se pensa que, durante os anos vinte, “Paris era uma festa” (como dizia o conhecido título de Hemingway), verdadeiro cadinho da cultura e das Artes, com seus pintores, escritores, escultores, músicos e dramaturgos das mais diversas nacionalidades concentrados na rive gauche, em Montparnasse, bairro do qual os surrealistas tomaram desde muito cedo suas distâncias. [16]
A periferia também aparece no romance de Soupault, e sua representação enquanto “projeção de Paris” (p. 82) corrobora a vontade de de-sacralização da capital: “região das fábricas”, ela é vista como uma “lepra oleosa e gigantesca que parece querer atacar a cidade”. E numa imagem ainda mais violenta, aparece exibindo “suas pústulas, como uma prostituta sua sífilis” (p. 82). Alain Meyer, num estudo sobre as representações do centro e da periferia de Paris de 1926 a 1932, [17] mostra o “desarranjo e o apodrecimento” do centro da cidade em diversos textos, entre os quais este, de Soupault, no qual, segundo o autor, o motor do desarranjo urbano vem do subúrbio, ameaça pustulenta que avança rumo ao centro, do qual partirá o fogo que ameaça Paris. É possível se perguntar qual o sentido da “fumaça” e do “lento fluxo de homens, mulheres e animais que entravam em Paris” (p. 170) vindos da periferia (e atravessando a Porte de Versailles), que aparece no final do romance. Alain Meyer entende que a periferia é uma espécie de poder que vai consumar a destruição de Paris. Quanto a mim, observo que a capital não é destruída. Ao contrário, a ameaça de destruição que paira sobre ela constantemente e que atinge o apogeu quando do desaparecimento de Georgette é suspensa desde que a prostituta reaparece, ao final do texto. Nesse momento, diz o narrador: “Paris estava diante de nossos olhos. Não esperávamos mais ninguém” (p. 169). E um pouco mais adiante, depois da alusão ao fogo (“uma casa pegara fogo”, p. 169) e à fumaça que ganhava a cidade, a ordem natural das coisas, rompida pela ausência de Georgette, aparece como restabelecida por sua presença. O texto se termina por uma reparação de ritmo: “O dia e a noite retomavam sua ronda” (p. 170). Meyer se pergunta se “o tumulto de um êxodo que invade a cidade” não seria a “irrupção dos Bárbaros”, “a destruição da Cultura e da História ou a revanche da Natureza”. Entretanto, repito: a destruição não é consumada. O que chamei acima de reparação de ritmo parece demonstrar que a “catástrofe final” sugerida pelo título do romance não chega a se cumprir. O dia e a noite, retomando “sua ronda”, parecem, antes, levar a uma enigmática perpetuação das Últimas noites de Paris: pelo verbo, sem dúvida, a cidade é salva da destruição purificadora do fogo. E pelo verbo, ainda, solidifica-se, qual Pompéia intacta sob lavas, porque tornada texto.

NOTAS
[1] Au grand jour, panfleto surrealista coletivo, maio de 1927.
[2] Todas as citações, que traduzi eu mesma (não existe tradução brasileira desse romance), foram retiradas da edição publicada em 1975 por Pierre Seghers. 
[3] Trata-se da mais antiga biblioteca pública francesa, criada em meados do século XVII pelo cardeal Mazarin.
[4] Como o “Mocho-Espectador”, essa ave noturna de rapina criada por Restif de la Bretonne.
[5] V. Marie-Claire Bancquart, Paris des surréalistes, Paris, Seghers, 1972.
[6] Essa epígrafe antecede o capítulo II do romance.
[7] V. a esse respeito Walter Benjamin, “Pequena história da fotografia”, in Obras escolhidas. Magia e técnica, Arte e política, S.P., Brasiliense, 1987.
[8] V. Walter Benjamin, “O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”, in Obras escolhidas. Magia e técnica, Arte e política, S.P., Brasiliense, 1987.
[9] Octavio Paz, “André Breton o la búsqueda del comienzo”, in Los Signos en rotación y otros ensayos, Madrid, Alianza Tres, 1983.
[10] N’O Camponês de Paris, Aragon também alude a Landru, dizendo que o “Alfaiate Mundano”, loja estabelecida à passagem da Ópera, teria sido a casa em que se vestia esse “experimentador sensível”. Henri Désiré Landru, preso em 1919, ficou famoso por ter sido acusado de seduzir e, em seguida, estrangular, esquartejar e assar no forno de sua casa, dez mulheres. Embora jamais tenha confessado os crimes, foi guilhotinado em 1922.
[11] Paul Bourget, Discours académique du 13 juin. Succession à Maxime Du Camp. L’Anthologie de l’Académie Française, Paris, 1921, apud Walter Benjamin, Charles Baudelaire. Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1979.
[12] Tanto no livro de Restif quanto no de Soupault, verifica-se um gosto especial pelo que é da ordem do privativo (em algumas passagens os narradores espiam, às escondidas, a vida íntima de certos personagens).
[13] Ao escrever Les Nuits de Paris, Restif de la Bretonne foi de fato motivado por uma ambição enciclopédica : ele desejava compor um quadro exaustivo da cidade, de tudo o que pudesse ser observado nela durante “mil e uma noites”.
[14] Em Rua de mão única, S.P., Brasiliense, 1987.
[15] Paris, Anthropos, 1968.
[16] N’O Camponês de Paris, para o passeio noturno “ao acaso” que empreenderá em companhia de Breton e Marcel Noll, Aragon exclui desde o início este bairro parisiense então mundano e, ao mesmo tempo, boêmio. Montparnasse reunia de fato uma multidão de artistas, mas também milionários vindos do mundo todo e, já, marchands que fariam fortuna.
[17] Alain Meyer, “L’Espace parisien littéraire en crise”, in La Ville: histoires et mythes, Institut de Français de l’Université de Paris X – Nanterre, s/d. 

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Flávia Nascimento (Brasil, 1959). Autora de Paris dans la littérature française des années 20: contribution à l’histoire de la représentation (1998). Publicou também, na França e no Brasil, diversos ensaios sobre narrativas francesa, portuguesa e brasileira. Traduziu O Camponês de Paris, de Louis Aragon (1996), Alá e as crianças soldados, de Ahmadou Kourouma (2003), As cores da infâmia, de Albert Cossery (2004).  Agulha Revista de Cultura # 54, Novembro de 2006.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Alberto da Veiga Guignard
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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