Em 1928, quando Philippe Soupault (1897-1990)
publicou Les Dernières nuits de Paris, seu sétimo romance, ele já
não fazia parte do grupo surrealista. Sua expulsão do movimento ocorrera em 23
de novembro de 1926, após uma agitada reunião no Café du Prophète,
na qual Louis Aragon foi o introdutor da moção que levou à exclusão do antigo
companheiro. Entre outras acusações, o tribunal surrealista considerava que
Soupault não vinha participando o bastante das atividades coletivas, que
resistia à adesão ao Partido Comunista e, sobretudo, que tinha tendência a
prosseguir, solitariamente, em sua “estúpida aventura literária” [1]
(colaborando com revistas literárias, etc.). Nem por isso, no entanto, Philippe
Soupault perderia posteriormente sua legitimidade como surrealista, ele que,
juntamente com André Breton e Louis Aragon, havia formado, desde os anos
1917-1918, a tríade dos surrealistas de primeira hora. Como se sabe, foi ele o
“descobridor”, lado a lado com Breton, da escrita automática, tendo redigido a
quatro mãos com o amigo de juventude o primeiro texto surrealista, Les
Champs magnétiques, publicado em 1919.
A exclusão de Soupault do movimento evidencia a existência de duas
vertentes surrealistas, ambas autênticas, e originadas numa fonte comum: de um
lado um surrealismo com vocação para o coletivo e o revolucionário, vertente da
qual André Breton foi o guia e o teórico e, de outro, um surrealismo todo feito
de libertação pessoal, com acentos líricos, do qual a obra de Soupault é um
exemplo notável. O fato de que Les Dernières nuits de Paris tenha
sido publicado após a exclusão do movimento acaba, assim, não tendo lá grande
importância. Afinal o que conta, sobretudo, é que esse romance forma,
juntamente com O Camponês de Paris (1926), de Aragon, e Nadja (1928),
de Breton, uma trilogia da maior importância do ponto de vista da geopoética
surrealista, na qual Paris figura não somente como um palco para aquilo que é
narrado, mas também como um verdadeiro personagem. Os três textos constituem,
portanto, para além das diferenças entre eles e seus autores, uma contribuição
essencial para a mitologia literária parisiense segundo a ótica surrealista, no
período entre as duas guerras mundiais.
Falso romance policial
A hora do início da ação, nesse romance, é difusa: acabou-se o dia, mas
a noite ainda não chegou, e tudo o que rodeia o narrador parece estar à espera
de algo que ainda não foi nomeado. Ele está num espaço fechado, ao lado de
Georgette, uma enigmática prostituta do “rosto lunar”, que encontrara por
acaso: “O café cochilava. A hora do aperitivo tinha passado e a dos sanduíches
chocolate ainda não soara” (p. 7). [2] É Georgette que introduz algum movimento
nesse mundo em suspensão, onde os garçons “assemelhavam-se a estátuas” (p. 7),
quando toma a iniciativa de levantar-se e dirigir-se à rua. A noite ganha então
a cidade, e o narrador-personagem (não nomeado) passa a descrever uma
trajetória que vai da rive gauche à rive droite,
indiferentemente. Pouco depois, os dois assistem a uma estranha cena: nas
redondezas da Biblioteca Mazarine, prestigioso lugar da cultura oficial, [3]
eles vêem um grupo de homens extorquirem a uma mulher a delação de um crime.
Após a cena de delação, tendo se separado de Georgette, o narrador, espectador
noturno [4] que é, continua sua errância urbana e se dirige à gare d’Orsay,
onde encontra um marinheiro. No dia seguinte ele lê nos jornais que “um
marinheiro era o suspeito (…) do assassinato de um jovem, cujo corpo, cortado
em pedaços, fora encontrado sob umas das pontes sobre o Sena (p. 28). Segue-se
a isso uma série de encontros, todos eles devidos ao acaso, o que faz com que o
narrador creia Georgette implicada no crime, razão pela qual passa a segui-la,
noite após noite, no intuito de descobrir o que ele chama de “mistério”. Tem-se
aí um romance de aventuras, pois, cujo esquema inicial sugere aquela inversão própria
ao romance policial que, como é sabido, inicia-se amiúde pelo fim, isto é, pelo
crime, para depois chegar à sua causa, que é a razão de ser da intriga. No
centro da exploração espacial empreendida pelo narrador posteriormente ao
crime, encontram-se, por um lado, o tema surrealista, comum a vários autores,
da errância urbana, em companhia de uma mulher ou seguindo-a (nesse contexto é
que se entende o interesse quase obsessivo do narrador por Georgette) e, por
outro, imagens pertencentes ao fundo comum geral dos surrealistas, tais como a
sombrinha, a luva feminina, ou seja: objetos perdidos num lugar público e que
irrompem no texto – trazidos pela mão do acaso – como signo ou sinal de algo.
O aceno ao universo do romance policial e aos folhetins a ele aparentados
(pondo em cena um herói detetive), eloqüente o bastante no romance de Soupault
para passar despercebido, também está em conformidade com o movimento
surrealista: muitos de seus integrantes foram admiradores de personagens
extremamente populares durante as três primeiras décadas do século vinte, como
Fantômas (herói do folhetim epônimo, criado por Pierre Souvestre e Marcel
Allain, e levado ao cinema por Louis Feuillade), Rouletabille (de Gaston
Leroux) e Rocambole (personagem mais antigo, criado no século XIX por Ponson du
Terrail, cujas aventuras também foram publicadas em folhetim). Vítima do desdém
dos críticos da época, que a consideravam “mal escrita”, essa prolífica
literatura popular, cujos heróis são personagens emblemáticos de uma relação simbiótica
com a cidade de Paris, foi valorizada pelos jovens surrealistas, e tão mais
valorizada, aliás, quanto desprezada pelos homens de letras bem pensantes de
então. A geração rebelde dos anos vinte aparentava-se, nisso, àquela que se
revoltara no final do Segundo Império: afinal, Maldoror é um herói que
Lautréamont criou calcado, também, em personagens de roman noir e,
por isso, uma “leitura policial” dos Cantos pode ser tão
necessária e proveitosa quanto o desvendamento de seu bestiário ou o de sua simbologia
sexual. [5]
Certos clichês reforçam, de quando em quando, o clima de romance ou
filme policial do texto de Soupault: é o caso do “sobretudo de gola levantada”
(pp. 17 e 60), ou da coincidência entre a “hora do crime” e a meia-noite (p.
14), mesmo sendo verdade que esta última não passa de uma “brincadeira
clássica”, como diz o próprio narrador, ou seja, de um artifício estético,
deliberadamente inserido no texto com propósitos lúdicos. Les Dernières
nuits de Paris é, todavia, um falso romance policial, pois à medida em
que a narrativa evolui ao longo de seus quatorze capítulos, o interesse da
resolução do enigma inicial vai se esvaziando para ceder lugar a uma busca que
diz respeito, muito mais, às projeções subjetivas do narrador, projeções que ele
persegue numa Paris noturna, cheia de signos, de encontros, de acasos e de
“achados” semelhantes a “objets trouvés” descobertos num Marché aux
Puces. Assim a exploração incessante do espaço citadino pelo personagem
narrador acaba por figurar muito mais uma geografia interior, do que uma
descrição propriamente topográfica. O “mistério” do qual está em busca esse
detetive atípico nada tem a ver com as narrativas policiais: ele não deseja
encontrar a solução do crime, mas, sim, descobrir “o segredo inviolável de
Paris” (p. 26). A cidade noturna que percorre incansavelmente revela-se, porém,
inapreensível, furtiva como um universo de brumas e como o corpo de Georgette,
que se confunde com o da própria cidade, e cuja realidade material sempre lhe
escapa. Assim é que, mesmo depois de ter tomado a decisão de dormir com ela,
uma “banal prostituta”, “para tirar as coisas a limpo”, ato que com efeito
concretiza pouco mais tarde, ele se dá conta da ineficácia de um tal
procedimento:
“Enquanto eu a estreitava em meus braços, enquanto colava meus lábios
contra os dela e fixava no dela o meu olhar, ela vivia alhures, talvez em algum
outro aposento, e apenas sua sombra respondia a minhas perguntas e meus
pedidos” (p. 80).
Errância, acaso
O acaso não passa de nossa ignorância das causas” (p. 27). [6] Por essa
epígrafe reveladora Soupault introduz nesse romance um tema surrealista
capital, antes mesmo que a expressão “acaso objetivo” aparecesse teorizada nos
textos surrealistas. Embora o acaso já fosse importante para André Breton na
década de vinte, foi apenas em dezembro de 1933 (em Minotaure) que
ele propôs uma teorização para o mesmo, definindo-o então como uma “forma de
manifestação da necessidade exterior que abre para si mesma um caminho no
inconsciente humano”. O acaso seria, portanto, um instrumento para chegar à
objetivação do desejo do sujeito. Embora não mencione explicitamente a
importância do olhar na percepção do acaso, a definição de Breton a supõe. Não
se trata de um olhar qualquer, mas sim daquele que lembra a câmera fotográfica,
naquilo que ela tem de revelador dum inconsciente ótico do qual os olhos
normalmente não se dão conta, exatamente como a psicanálise é reveladora do
inconsciente pulsional. [7] Há uma prática do acaso que já se verifica entre os
surrealistas bem antes de sua teorização, tal como aparece emNadja, ou
ainda nos passeios “ao acaso” que faz Aragon em companhia de Breton e Marcel
Noll, relatados n’O Camponês de Paris (1926) e, claro, em Les
Dernières nuits de Paris. Essa prática conta com um certo número de
técnicas, entre as quais a da errância urbana é privilegiada entre todas. Tema
literário parisiense tradicional – e tão antigo que já se encontrava presente
nas longínquas obras de François Villon (século XV) e Rutebeuf (século XIII) –
a errância fixa-se como motivo literário da modernidade por excelência durante
a segunda metade do século XIX, com oflâneur de Baudelaire.
Sempre vinculada ao “mistério” urbano que, por sua vez, está em estreita
ligação com o crescimento demográfico da cidade e o poder do anonimato sobre as
imaginações (na grande cidade tudo pode acontecer), a errância torna-se uma
técnica surrealista posta a serviço da escritura literária. O flâneur surrealista,
tal como aparece em Les Dernières nuits de Paris, é aquele cujo
olhar, através duma exploração voluntária do delírio, realiza um movimento
revelador de trocas entre o subjetivo e o objetivo. Seu olhar apreende os
objetos e, simultaneamente, é apreendido por eles. Nessa perspectiva, o
“mistério” desvendado pelo flâneursurrealista é compreendido em sua
dimensão de “iluminação profana”, para retomar uma expressão de Walter
Benjamin, segundo o qual só é possível desvendar o mistério à medida em que o
encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como
impenetrável e o impenetrável como cotidiano. [8] É oportuno lembrar aqui que
André Breton não gostava da palavra “mistério”, chegando a ter o cuidado de
intitular um de seus artigos “Le merveilleux contre le mystère” (Minotaure n°
9), com a finalidade de estabelecer uma oposição entre o imanente e o
transcendental. Louis Aragon, por sua vez, fala n’O Camponês de Paris do
“maravilhoso cotidiano”. Quanto a Soupault, não hesita em utilizar o vocábulo
“mistério”, que na verdade é pré-surrealista, tendo sido comum nos títulos de
vários romances noirs e em folhetins populares do século XIX,
como Les Mystères de Paris, de Eugène Sue. Seja como for, o que
importa é que o “mistério”, também para Soupault, é exclusivamente de ordem
imanente, e encontra-se sub-jacente à realidade do cotidiano.
O narrador de Les Dernières nuits de Paris conhece o
poder de revelação dos lugares urbanos: “eu sabia que os lugares e os décors têm
sobre a memória e a imaginação uma influência profunda e esperava, naquela
noite, encontrar a palavra do enigma (…). Eu contava, para isso, com Paris, com
a noite e com o vento” (p. 93). O narrador atribui ao acaso um papel preciso:
“Mais uma vez o acaso expulsava o esquecimento e conferia novamente realidade
àquilo que eu considerava, de bom grado, como sonhos” (p. 74). É preciso
insistir no fato de que se trata de conferir novamente(em francês,
“redonner”) realidade aos sonhos, o que atribui a esses últimos um status de
realidade primordial (idéia que resume bem uma tarefa surrealista por
excelência, semelhante, de certo modo, àquela búsqueda del comienzo de
que falou Octavio Paz a propósito de André Breton). [9] O olhar do caminhante
noturno deve estar pronto para a exploração da delirante natureza urbana,
repleta de signos que podem levar à realização de uma transformação do mundo.
Assim, o jornal pousado nas mãos da República (entenda-se a estátua La
République) pelo acaso do vento (p. 12) tornar-se-á “arauto” dos
acontecimentos, bem como certos objetos perdidos pelas ruas – “uma sombrinha”,
“uma luva esquecida” (essa predileção surrealista) – terão ares de cúmplices
(p. 40). E o próprio passeio será, na verdade, “o deambular sofreado” dos
pensamentos do narrador, que busca, sem sucesso, delimitar a “a fronteira entre
[sua] imaginação e [sua] memória” (p. 34).
Devido à ambivalência do desejo evocado, há um outro lado da exploração
do acaso que se manifesta quando o que ocorre é exatamente aquilo que era
objeto de algum temor (e não de desejo) por parte do sujeito: o acaso é então
de ordem trágica. Em Les Dernières nuits de Paris, o trágico é
encarnado pela morte, que resvala incessantemente essa Paris de sombras
noturnas, semelhante a um “grande corpo doente” (p. 116); a morte, que se
difunde por toda a narrativa, é nomeada aqui por meio de um acontecimento preciso,
o crime (e não somente por um crime):
“de fato, era a época em que todo dia se descobria, no canal
Saint-Martin, ou sob o pórtico de uma igreja, ou ainda sob qualquer outra
entrada de imóvel, uma coleção de membros cuidadosamente serrados e cortados, colocados
dentro dum saco (…). Os canais eram inspecionados em vão, buscas sem sucesso
eram feitas pela cidade. A cabeça, as mãos e o assassino, ninguém podia
encontrá-los, e a polícia se descabelando.” (p. 27)
O crime se torna uma ameaça urbana impalpável e constante, já que o
assassino não é descoberto, e a alusão ao esquartejamento das vítimas lembra
os faits divers ligados ao famoso caso de Landru, que ainda
alimentavam a imaginação dos parisienses no final dos anos vinte. [10] A
atmosfera de angústia que se difunde por todo o romance também é estreitamente
ligada à marcha inexorável do tempo: “Georgette passava suavemente através dos
obstáculos erigidos pelas horas da noite, obstáculos que pareciam ter sido
formados pelos cadáveres dessas mesmas horas” (p. 57). O tempo é opressivo e
até o ritmo da narrativa dá conta disso: a linha temporal de Les
Dernières nuits de Paris descreve a alternância perpétua dos dias e
das noites, num vai-e-vém de aspiração e expiração que entrecorta toda a
narrativa. Um desvio de ritmo só se torna possível devido à presença de
Georgette, cujo nome é o único meio capaz de “separar o passado do presente” e
de “moer o tempo” (p. 49). É nesse instantâneo que Paris é desvendada, e o
narrador confessa, então, que vê a cidade pela primeira vez.
A consciência angustiante da morte estampa-se na verdade desde o título
que, além de estabelecer uma oposição com Les Nuits de Paris (1788),
de Restif de la Bretonne, parece querer profetizar um funesto destino para a
capital francesa, aludindo igualmente ao terrível soterramento de Pompéia sob
as lavas do Vesúvio – sob o fogo, portanto –, devido à alusão implícita ao
título do romance publicado em 1906 por Edward Bulwer-Lytton, The Last
Days of Pompeii. A angústia da morte, atravessando a narrativa inteira,
reaparece no final, em forma de uma pergunta deixada em aberto: “Paris, mestra
da ilusão, mestra do tempo, mas por quanto tempo?” Essa precariedade da vida
urbana, que também é um tema da modernidade, tem sido uma obsessão para muitos
escritores de Paris ao longo dos séculos, quer sejam eles poetas, prosadores ou
cronistas. Em seu ensaio sobre Baudelaire, Walter Benjamin lembra que Maxime du
Camp teve a ideia de escrever sua copiosíssima obra Paris, ses organes,
ses fonctions et sa vie dans la seconde moitié du 19ème siècle (6
volumes de crônicas jornalísticas, publicados entre 1869 e 1875, que oferecem
um exaustivo quadro descritivo da capital francesa) numa tarde de 1862 em que,
encontrando-se numa das pontes sobre o rio Sena, ele contemplava o espetáculo
provocado pelos trabalhos de reforma da capital, conduzidos pelo administrador
Haussmann sob Napoleão III:
“Veio-lhe a idéia do interesse prodigioso que teria hoje um quadro exato
e completo de uma Atenas dos tempos de Péricles, de uma Cartago dos tempos dos
Barca, de uma Alexandria dos tempos dos Ptolomeus, de uma Roma dos tempos dos
Césares… (…). Por uma dessas intuições fulgurantes em que um magnífico tema de
trabalho surge diante do espírito, ele percebeu claramente a possibilidade de
escrever sobre Paris esse livro que os historiadores da Antiguidade não
escreveram sobre suas cidades.” [11]
O exemplo acima é de grande interesse porque desvenda o sentido da
relação entre a experiência da cidade e sua escritura, essa última aparecendo
como um meio para “salvar” a cidade da destruição. A “salvação”, porém, só é
possível pela adesão à tradição (moderna, paradoxo incontornável). Disso parece
dar conta também o adágio que serve de epígrafe ao romance: Choisir,
c’est vieillir (“Escolher é envelhecer”), frase que pode ser lida como
mais uma alusão a Restif. Uma vez escolhido este antepassado e eis Soupault
“envelhecido”, porque comprometido com a tradição literária da errância noturna
em Paris, ao sabor do acaso e de um certo voyeurismo, [12] etc. Outros
elementos evidenciam tal “escolha”, como o título, fato que comentei
anteriormente. Há ainda os procedimentos “investigativos” do narrador de
Soupault, que poderiam muito bem ter sido inspirados pela biografia de Restif.
Esse desempenhou, a partir de 1764, um papel de “espião amador” junto à polícia
do Antigo Regime e era em troca dessa atividade nada digna de louvor que Restif
assegurava para si mesmo o direito de deambular livremente por Paris – de onde
tirava a matéria-prima de seus escritos – e, também, o de publicar seus textos,
escapando à censura. Existem certos vestígios que atestam suas relações com a
polícia, e Restif pode ser considerado assim como uma espécie de
“detetive” avant la lettre. Apresso-me a dizer que Philippe
Soupault não tinha ligação alguma com a polícia. Esses aspectos da biografia do
escritor antepassado foram aproveitados pelo romancista de maneira não linear,
e parecem funcionar como projeções do próprio Soupault, como são também
projeções suas diversos outros personagens do romance. Ao contemplar a cidade
do alto da colina de Bellevue, o narrador conclui que ela não passa
de um “panorama do tempo e do espaço” que abriga “personagens mecânicas que
[lhe] dão a ilusão da vida”. Vistos assim à distância, os diversos personagens parecem
ao narrador “manequins de madeira”, e ele diz a si mesmo que caso se olhasse
num espelho, dar-se-ia conta de que era, também, um desses personagens (entre
outros: Georgette ou seu irmão piromaníaco Octave, que ateará fogo à periferia
parisiense, o poderoso e manipulador Volpe, que é bookmaker,
“policial amador e jornalista”, interessante conjugação profissional que também
evoca Restif, etc.). Como é sabido, pelo mecanismo psíquico da projeção, um
sujeito atribui a terceiros ou ao mundo que o rodeia seus erros ou desejos
pessoais; seria interessante utilizar essa definição básica para propor uma
leitura da representação que nos dá Soupault, nesse romance, de sua experiência
pessoal no seio do movimento surrealista, do funcionamento interno do grupo (que
contou de certa maneira com uma espécie de “polícia” encarregada de expulsar
membros que não se comportassem de acordo com os preceitos estabelecidos por
Breton), da autoridade de Breton, etc. (pista que faço apenas apontar aqui, e
que não é objeto desse artigo).
Restif de la Bretonne acabará sendo nomeado claramente no final do
texto, tornando-se portanto, concretamente, um de seus personagens. A projeção
se faz por meio de uma figura do bas-fonds parisiense, um
ladrão chamado Verbaut: trata-se de um “velhote” cuja silhueta “lembrava a de
um dicionário” (p. 106). Este personagem é um livro ambulante cujo modelo é…
Restif! Verbaut/Restif é capaz de contar todas as histórias possíveis da cidade
medieval, bem como da Paris dos séculos XVII e XVIII: uma verdadeira
enciclopédia da capital francesa. [13] Seu nome próprio é duplamente
significativo: por um lado, no antropônimo “Verbaut” ecoa a palavra “verbe” e,
por outro, ele remete, graças à rima, ao autor-narrador: Soupault. Assim
nomeado, Verbaut se torna uma encarnação da cidade pelo verbo, na qual se
projeta Philippe Soupault, cujo romance conduz de fato o leitor por um longo
percurso através de “bairros de herança” em que a “virtuosidade das palavras”
(p. 9) é sempre surpreendente. Nessa Paris noturna, o caminhante/leitor esbarra
nas ruas, por toda a parte, em palavras, e “aquelas que escapam das casas têm
reflexos de mercúrio, as que se ocultam por trás das rachaduras das paredes são
simplesmente fosforescentes” (p. 10). O espaço citadino, impregnado pela história
e pela memória dos homens e, sobretudo, por milhares de camadas de palavras
sobrepostas umas às outras, é o plano virtual dos mais variados achados, que se
tornam possíveis graças ao caráter hereditário da mitologia literária
parisiense e à perpetuação de sua tradição. Escrever a cidade é salvá-la da
precariedade a que está condenada, e assim é que o verbo substitui a pedra,
como disse também Victor Hugo, outro grande escritor de Paris, ao intitular o
capítulo II do Livro V de Notre-Dame de Paris: “Ceci tuera cela”
(“Isso matará aquilo”). Assim consolida-se a tradição que faz de Paris uma
“grande sala de biblioteca atravessada pelo rio Sena”, como notou Walter
Benjamin, que utilizou a metáfora do espelho para dar conta do fenômeno [14] de
auto-representação do mito, pelo qual os temas e motivos parisienses se
refletem em incontáveis imagens, até o infinito.
Num belo ensaio intitulado Le Droit à la ville, [15] Henri
Lefèbvre mostra como a cidade – aqui se trata da cidade de pedra – pode ser
compreendida por sua vez enquanto texto, à medida em que ela é a projeção
daquilo que ele chama de “ordem longínqua” (a esfera do poder, a Igreja, o
Estado) no domínio da “ordem próxima” (as relações entre os indivíduos e os
grupos que estruturam a sociedade). A cidade é texto porque ela é o lugar em
que a “ordem longínqua” torna-se visível, justamente porque é nela que essa
ordem se inscreve e escreve. Mas Lefèbvre enfatiza também as dificuldades para
elaborar uma metalinguagem da cidade-texto sem que se conheça
seu contexto, isto é: tudo o que está sob o texto a decifrar,
tal como a vida cotidiana, as relações imediatas, o inconsciente do urbano,
tudo o que não se diz e, ainda menos, escreve-se, tudo, enfim, que se oculta
nos espaços habitados (ele cita o exemplo da vida sexual e familiar, que é
amiúde da ordem do não-dito).
Penso que a literatura é capaz de elaborar essa metalinguagem, e que a
isso se consagraram todos esses textos surrealistas nos quais a errância por
Paris é posta em cena. Neles se opera uma decodificação do universo da vida
latente da cidade, entre outras razões pelo fato de a terem representado por
meio de uma topografia profanada e profanadora. Assim é que o romance de
Soupault faz tábula rasa dos mais prestigiosos lugares da cultura oficial, isto
é, aqueles em que se pode ler o que Lefèbvre chama de “ordem longínqua”: o
sisudo Institut de France (que abriga a Biblioteca Mazarine e
as cinco academias: Francesa, das Inscrições e Belas-Letras, das Ciências, das
Belas-Artes e das Ciências Morais e Políticas) é reduzido a mero palco da
delação de um crime, da prostituição e de uma “paixão sem objeto” (p. 25), que
é o passeio urbano noturno. Outros lugares emblemáticos da Cultura, do poder e
do Estado são igualmente profanados, como o Petit-Palais, nos Champs-Elysées,
construção típica da prodigiosa arquitetura de vidro e ferro fundido do século
XIX, inaugurada em 1900 para a Exposição Universal e destinada, desde então, a
abrigar os tesouros das Belas-Artes, que se reduz, no romance, a um lugar de prostituição
(p. 24). Em todos esses lugares profanados é projetada, assim, a “ordem
próxima”, isto é, aquela em que de fato se inscrevem as relações do cotidiano,
o não-dito, enfim, o inconsciente urbano, para continuar falando como Lefèbvre.
Recorrente, a admirável coincidência entre a cidade e Georgette confirma o
desígnio profanador que anima o romance. É significativo que uma prostituta se
torne alegoria de Paris: há aí uma intenção manifesta de de-sacralização que é
tão mais interessante quando se pensa que, durante os anos vinte, “Paris era
uma festa” (como dizia o conhecido título de Hemingway), verdadeiro cadinho da
cultura e das Artes, com seus pintores, escritores, escultores, músicos e
dramaturgos das mais diversas nacionalidades concentrados na rive
gauche, em Montparnasse, bairro do qual os surrealistas tomaram desde muito
cedo suas distâncias. [16]
A periferia também aparece no romance de Soupault, e sua representação
enquanto “projeção de Paris” (p. 82) corrobora a vontade de de-sacralização da capital:
“região das fábricas”, ela é vista como uma “lepra oleosa e gigantesca que
parece querer atacar a cidade”. E numa imagem ainda mais violenta, aparece
exibindo “suas pústulas, como uma prostituta sua sífilis” (p. 82). Alain Meyer,
num estudo sobre as representações do centro e da periferia de Paris de 1926 a
1932, [17] mostra o “desarranjo e o apodrecimento” do centro da cidade em
diversos textos, entre os quais este, de Soupault, no qual, segundo o autor, o
motor do desarranjo urbano vem do subúrbio, ameaça pustulenta que avança rumo
ao centro, do qual partirá o fogo que ameaça Paris. É possível se perguntar
qual o sentido da “fumaça” e do “lento fluxo de homens, mulheres e animais que
entravam em Paris” (p. 170) vindos da periferia (e atravessando a Porte
de Versailles), que aparece no final do romance. Alain Meyer entende que a
periferia é uma espécie de poder que vai consumar a destruição de Paris. Quanto
a mim, observo que a capital não é destruída. Ao contrário, a ameaça de
destruição que paira sobre ela constantemente e que atinge o apogeu quando do
desaparecimento de Georgette é suspensa desde que a prostituta reaparece, ao
final do texto. Nesse momento, diz o narrador: “Paris estava diante de nossos
olhos. Não esperávamos mais ninguém” (p. 169). E um pouco mais adiante, depois
da alusão ao fogo (“uma casa pegara fogo”, p. 169) e à fumaça que ganhava a
cidade, a ordem natural das coisas, rompida pela ausência de Georgette, aparece
como restabelecida por sua presença. O texto se termina por uma reparação de
ritmo: “O dia e a noite retomavam sua ronda” (p. 170). Meyer se pergunta se “o
tumulto de um êxodo que invade a cidade” não seria a “irrupção dos Bárbaros”,
“a destruição da Cultura e da História ou a revanche da Natureza”. Entretanto,
repito: a destruição não é consumada. O que chamei acima de reparação de ritmo
parece demonstrar que a “catástrofe final” sugerida pelo título do romance não
chega a se cumprir. O dia e a noite, retomando “sua ronda”, parecem, antes,
levar a uma enigmática perpetuação das Últimas noites de Paris:
pelo verbo, sem dúvida, a cidade é salva da destruição purificadora do fogo. E
pelo verbo, ainda, solidifica-se, qual Pompéia intacta sob lavas, porque
tornada texto.
NOTAS
[1] Au grand jour, panfleto surrealista coletivo, maio de
1927.
[2] Todas as citações, que traduzi eu mesma (não existe tradução
brasileira desse romance), foram retiradas da edição publicada em 1975 por
Pierre Seghers.
[3] Trata-se da mais antiga biblioteca pública francesa, criada em
meados do século XVII pelo cardeal Mazarin.
[4] Como o “Mocho-Espectador”, essa ave noturna de rapina criada por
Restif de la Bretonne.
[5] V. Marie-Claire
Bancquart, Paris des surréalistes, Paris, Seghers, 1972.
[6] Essa epígrafe antecede o capítulo II do romance.
[7] V. a esse respeito Walter
Benjamin, “Pequena história da fotografia”, in Obras escolhidas. Magia
e técnica, Arte e política, S.P., Brasiliense, 1987.
[8] V. Walter Benjamin, “O
Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”, in Obras escolhidas. Magia e técnica, Arte e política, S.P., Brasiliense, 1987.
[9] Octavio Paz, “André Breton o la búsqueda del
comienzo”, in Los Signos en rotación y otros ensayos,
Madrid, Alianza Tres, 1983.
[10] N’O Camponês de Paris, Aragon também alude a Landru, dizendo
que o “Alfaiate Mundano”, loja estabelecida à passagem da Ópera, teria sido a
casa em que se vestia esse “experimentador sensível”. Henri Désiré Landru,
preso em 1919, ficou famoso por ter sido acusado de seduzir e, em seguida,
estrangular, esquartejar e assar no forno de sua casa, dez mulheres. Embora
jamais tenha confessado os crimes, foi guilhotinado em 1922.
[11] Paul Bourget, Discours
académique du 13 juin. Succession à Maxime Du Camp. L’Anthologie de l’Académie
Française, Paris, 1921, apud Walter Benjamin, Charles
Baudelaire. Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, Paris, Petite
Bibliothèque Payot, 1979.
[12] Tanto no livro de Restif quanto no de Soupault, verifica-se um
gosto especial pelo que é da ordem do privativo (em algumas passagens os narradores
espiam, às escondidas, a vida íntima de certos personagens).
[13] Ao escrever Les Nuits de Paris, Restif de la Bretonne
foi de fato motivado por uma ambição enciclopédica : ele desejava compor
um quadro exaustivo da cidade, de tudo o que pudesse ser observado nela durante
“mil e uma noites”.
[14] Em Rua de mão única, S.P., Brasiliense, 1987.
[15] Paris, Anthropos, 1968.
[16] N’O Camponês de Paris, para o passeio noturno “ao acaso” que
empreenderá em companhia de Breton e Marcel Noll, Aragon exclui desde o início
este bairro parisiense então mundano e, ao mesmo tempo, boêmio. Montparnasse
reunia de fato uma multidão de artistas, mas também milionários vindos do mundo
todo e, já, marchands que fariam fortuna.
[17] Alain Meyer,
“L’Espace parisien littéraire en crise”, in La Ville: histoires et
mythes, Institut de Français de l’Université de Paris X – Nanterre, s/d.
*****
Flávia Nascimento (Brasil, 1959). Autora de Paris dans la littérature française
des années 20: contribution à l’histoire de la représentation (1998). Publicou também, na França e no Brasil, diversos
ensaios sobre narrativas francesa, portuguesa e brasileira. Traduziu O Camponês de Paris, de Louis
Aragon (1996), Alá e as
crianças soldados, de Ahmadou Kourouma (2003), As cores da infâmia, de Albert
Cossery (2004). Agulha
Revista de Cultura # 54, Novembro de 2006.
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Alberto
da Veiga Guignard
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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