quarta-feira, 18 de maio de 2016

KJELL A. JOHANSSON | Guillermo Cabrera Infante: entrevista & meta-final para Três Tristes Tigres


A presente entrevista com Cabrera Infante foi realizada em Londres, no verão de 1969, por Kjell A. Johnsson, para o jornal sueco Expressen, onde foi publicada no ano seguinte. Neste mesmo ano de sua publicação na Suécia, a revista Alacrán Azul, em seu número de estreia, a reproduz. Esta revista - feita em Miami (EUA) pelos poetas cubanos José A. Arcocha e Fernando Palenzuela - circula em apenas duas edições, porém deixa uma marca bastante consistente nas letras latino-americanas, pela definição de seu projeto editorial e, sobretudo, por sua concretização. Décadas depois - uma vez mais animada pelo mesmo Fernando Palenzuela, mas agora com a cumplicidade do crítico Vicente Jiménez - Alacrán Azul volta a sair, em circulação virtual, ou seja, bem mais abrangente em seu alcance. Seus novos editores vêm colaborando com a Agulha Revista de Cultura e com alguns outros projetos editoriais nossos. Cabrera Infante tem boa parte de sua obra traduzida e publicada no Brasil. Eu mesmo traduzi Delito por dançar o chá-chá-chá (Ediouro, 1998). Em 1980 tivemos a tradução de Três tristes tigres (Ed. Global), por Stella Leonardos. Referente a este romance, trazemos para o leitor de nossa revista seu trecho final que o autor não incluiu na edição original. Ao confiá-lo aos amigos editores de Alacrán Azul, lhes dirigiu uma nota, onde se lê: “O fragmento de romance que lhes envio é o final de Três tristes tigres, que nunca incluí no livro porque havia demasiada simetria para ainda acrescentar essa paródia. Por casualidade, há pouco me chegaram uns baús deixados em Bruxelas que tinham muitas notas e fragmentos meus. Aí vinha este pedaço. Eu o passei a limpo apenas para vocês, acrescentando uma outrografia nova aqui, uma mal apropriação ali, alguma dose de anacoluto e o título, que é possivelmente a única coisa realmente nova. Passado a limpo, o texto agora me agrada, com sua ferocidade humorística e sua retorcida homenagem a Monk Lewis, Melville e Conrad.” Publicamos conjuntamente a entrevista e o final do romance, ambos os textos por mim traduzidos, com o reiterado agradecimento aos amigos Fernando Palenzuela e Vicente Jiménez. [FM]

UMA ENTREVISTA COM CABRERA INFANTE

KAJ Eu gostaria que você me contasse algo de suas primeiras experiências como escritor no ambiente cultural de Cuba nos anos 50.

GCI Minhas primeiras experiências nos anos 50 tiveram relacionadas mais com a lei do que com a literatura. Em outubro de 1952 fui preso por publicar um conto que tinha umas tantas más palavras - e estavam escritas em inglês! Mais tarde dediquei quase meu tempo a ganhar a vida como jornalista e arriscar a vida em contatos políticos. Não sei qual das duas atividades pode ser mais catastrófica para um escritor. Porém se tiver que escolher hoje em dia, escolheria certamente o jornalismo.

KAJ Por que?

GCI Porque o jornalismo exige facilismo e frivolidade, e em troca entrega um estilo transparente, imediato. (Porém quem quer escrever claramente? É fácil comprovar que por trás da “prosa clara” - cf. Maugham, Hemingway, Pavese - há sempre uma triste chatice de pensamento.) Enquanto que a política obriga a desenvolver o sentimento nacional, o patriotismo e o conceito do dever (ou pior ainda, da obediência cega, o espírito de partido) como imperativos categóricos. Já sabemos que ao fim de tais práticas históricas (ou seja, contra natura) é possível encontrar Auschwitz - ou seus equivalentes siberianos e tropicais. É evidente que prefiro que o escritor naufrague entre folhas de jornais do que o intelectual realizar-se como comissário ou burocrata ou verdugo de intelectuais.

KAJ Porém o que você fez como escritos nesses anos?

GCI De 1953 a 1960 fui um crítico de cinema talvez demasiado popular. Uma ocupação concorrente foi a de chefe de redação do semanárioCarteles, cargo que em outro tempo teria prestigiado - ou talvez humilhado - Alejo Carpentier. Desde 1º de janeiro de 1959 se acrescentou o vertiginoso tráfego revolucionário, ocupando simultaneamente diferentes cargos na cultura e no jornalismo oficiais. Assim, ao terminar a década havia escrito somente uma vintena de contos - dos quais apenas uma dezena valia a pena recolher em um volume - e construído um labirinto de opiniões críticas. Este balanço se chama Así en la paz como en la guerra e Un oficio del Siglo XX, livros publicados em 1960 e 1963, e que são respectivamente uma coleção de contos e uma suíte de críticas de cinema.

KAJ Por que começou a trabalhar - como diplomata - para o governo de Fidel Castro e por que o deixou?

GCI O cargo de adido cultural em Bruxelas - que aceitei em outubro de 1962 - foi o que se chama em inglês um consolation prize. A consolação da diplomacia, que é mais triste que a da filosofia. Como você sabe, o suplemento Lunes de Revolución, que eu fundei e dirigi, se viu envolta em uma polêmica com os dirigentes da cultura e do governo revolucionário. Este ato de desobediência culminou com as hoje famosas Conversas da Biblioteca Nacional, na raiz das quais foi enclausurado Lunes - “escassez de papel” foi a razão oficial, embora o suplemento tenha sido imediatamente suplantado por três publicações controladas diretamente pelo governo e o partido - ao final de 1961. Desde este momento até setembro do ano seguinte estive sem trabalho porque em um país comunista todos os cargos são oficiais, embora uns sejam mais oficiais que outros. Durante esses oito largos meses me dediquei a viver do salário que ganhava minha mulher, então atriz de teatro e televisão. Não me cansava de dizer onde quer que estivesse que eu era o primeiro proxeneta criado pelo socialismo. Outras opiniões como estas e o fato de que em minha casa se reuniram todos os dissidentes - pintores abstratos, homossexuais perseguidos, beatniks visitantes, trotskistas amateurs, poetas herméticos - que cabem em um apartamento moderno, me conseguiram essa forma de exílio oficial que é um cargo diplomático para um partidário em desgraça. Como você conhece, esta é uma fórmula clássica para construir uma ponte de prata ao inimigo que foge nos países da América latina - isto é: Caamaño, da República Dominicana; Astúrias, da Guatemala; Paz, do México etc. Ainda que esta prática tenha terminado oficialmente em Cuba, não é difícil encontrar hoje em dia estranhos bolsistas de organismos fantasmas que vivem em Paris ou Genebra ou em Madri, aqueles que embora apenas privadamente criticam o regime de Castro com mais violência de palavra que eu, não faltam na celebração de cada 26 de julho em embaixada cubana de turno. As regras do jogo obrigam mais que a nobreza. Estas respostas minhas às suas perguntas são um testemunho a mais de que detesto qualquer compromisso - ou engagement. Outras francas entrevistas anteriores me custaram o cargo diplomático, me levaram ao exílio e me ganharam a inimizade de muitos agentes (pagos ou gratuitos) da internacional comunista.

KAJ Qual foi sua atitude frente à revolução cubana desde o princípio até agora?

GCI Minha atitude variou sempre diante de cada manobra (democracia burguesa, nacional-socialismo, socialismo pro-soviético/pro-chinês/pro-soviético, socialismo “em um só povoado” etc.) de navegação histórica desse Titanic político, a nave insubmergível destinada a afundar. No começo a revolução foi justa e necessária e como tal teve o apoio da quase totalidade do povo cubano. Observe que digo povo e não proletariado, campesinadoburguesia ou inteligentzia. (Parafraseando Mark Twain posso dizer: não me fale de pobres nem de ricos, fale-me do homem - não pode haver animal político mais torpe!) Esta revolução foi imprescindível, impostergável e se vivêssemos em um ano platônico, ao chegar outro 1958, meu outro eu escolheria outra revolução de 1959. Quando, como disse o Mexicano, a revolução degenerou em governo, minha atitude se fez primeiramente dubitativa, depois desencantada e finalmente hostil - é que havíamos chegado à etapa do poder absoluto de Fidel Castro. Se é certo que o poder corrompe, o poder subdesenvolvido corrompe subdesenvolvidamente. “Um só homem livre” há em Cuba. Como não pode haver dois, escolhi o exílio. Não escolhi a liberdade, mas sim rejeitei a liberdade absoluta (e, portanto, opressiva) do outro. Quanto à filosofia oportuna adotada por Castro (recordo, sem ânimo de analogias, que Perón da Argentina e Trujillo de Santo Domingo escolheram, em seu tempo, os modelos nazi e fascista), há muito que é letra tão morta como os números-chave dos pitagóricos. A cada dia estou mais convencido de que toda ideologia é reacionária. Para mim, o comunismo não é mais que o fascismo do pobre. O fato de que Cuba apoiou tão decisivamente como a Alemanha Oriental a invasão russa da Checoslováquia demonstra que Castro é outro avatar de Ulbricht - com mais sorte que este último, porque não teve que construir sua muralha chinesa: a Natureza o fez por ele, essa providência dos materialistas: o mar Caribe é nosso muro de Berlim.

KAJ Você tem algum comentário a fatos como a discussão em torno da poesia de Heberto Padilla atualmente em Cuba?

GCI O correspondente comunista do Le Monde, Saverio Tutino (que foi enviado a Cuba originalmente pelo jornal italiano L’Unité) disse quase a última palavra sobre o caso de Padilla et alli: “…é uma mostra de que a trégua de dez anos entre o regime de Castro e os intelectuais terminou” (Le Monde, 08/11/68). A estas rivelazioni d’un partigiano quero agregar nada mais que a resposta de amigo divorciado “depois de sete anos de feliz casamento” segundo a desconsolada esposa. Eu lhe perguntei quando se havia iniciado este processo dissolvente e ele me confiou: “quando pronunciava o sim que dei ao padre”.

KAJ Quais influências literárias e extraliterárias foram decisivas para o que você escreveu e o que está escrevendo?

GCI De minhas influências literárias talvez a maior tenha sido o cinema. Entre as extraliterárias posso nomear uma infância pobre e feliz, uma adolescência infeliz e pobre, e já de adulto: a timidez, o exibicionismo, a fluência, a gagueira, o talento, as respostas da escada, a coragem, a covardia, a facilidade para brincar com as palavras, a dificuldade para me expressar, a vontade de contar contos, detestar a literatura narrativa, a linguagem, o silêncio, o amor, as mulheres, o medo do sexo, a obsessão pelo sexo, a sensualidade, a noite, os terrores noturnos, o medo de sonho, os sonhos, a memória, a nostalgia que é a metafísica da recordação, o esquecimento, a vontade de viver, o medo de viver, o ódio e a pena pelos mortos, a fascinação da morte, a imitação, o afã de originalidade e se o espaço me condenasse a uma só palavra diria o ser - para imediatamente acrescentar, mas também o nada.

KAJ Parece que há razões para falar de um novo romance latino-americano?

GCI Não creio que se possa falar de um “novo romance latino-americano”, mas sim de outra encarnação do romance. Esta metempsicose já foi produzida outras vezes, em outros lugares: Inglaterra, França, Rússia, EUA, Itália, Japão etc. Porém é possível dizer que o romance latino-americano não existe, que existem apenas alguns romances escritos por latino-americanos. Ou, melhor dizendo, escritos por escritores que vivendo em continentes distintos e pertencentes a lugares diferentes, compartem essa degenerada linhagem que é o espanhol falado em vastas zonas geográficas unidas pelo que seria um fenômeno raro, a recolher nos anais de uma ciência que não existe: a genética das línguas. Esse monstro é um mesmo mestiço de diferentes raças. Nosso híbrido assombraria mais facilmente se soubéssemos que uma mesma mula é filho possível não somente de burro e égua, mas também de cavalo e zebra. O espanto do futuro do romance latino-americano só consigo expressá-lo com um verso de meu compatriota, Lezama Lima. Eis aqui o que disse o vate cantando aparentemente a si mesmo quando na realidade profetizava a via crucis do romance na América Latina: “Com que seguro passo a mula no abismo…”.

KAJ Como você vê os escritores latino-americanos de gerações anteriores: Gallegos, Astúrias, Borges, Carpentier etc.?

GCI De acordo com as leis (e os costumes) anglo-saxões, o delito de libelo acaba com a vida do difamado. Isto tira toda a diversão do jogo das reputações. Morto Gallegos há pouco, não vale a pena falar dele agora. Prefiro ser caritativo a ser desapiedado - ou mentiroso, que é pior. Astúrias tem sido difamado (em privado, sempre, muitas vezes em público, amiúde em letra impressa) por um gesto político muito celebrado em Carpentier: aceitar um cargo diplomático em Paris enviado por um governo que não representa o povo. Essa figura de retórica das sinecuras se chama exile doré. Em honra à verdade tenho que dizer que não vim a estas páginas nem para enterrar nem para louvar Astúrias, mas sim para desagravar a Borges. É bom que um jornal sueco me permita dizer a mim o que penso do prêmio Nobel de 1967. Tenho que começar por dizer que meu primeiro conto, minha primeira tentativa de literatura escrita e publicada a fiz imitando, copiando servilmente, plagiando quase a El Señor Presidente. Conheci Astúrias em Cuba, sei das penúrias que ele sofreu em seu ostracismo (agora o sei melhor do que nunca), e me alegro por sua pessoa, que tenha obtido o prêmio sueco e tudo o que isto representa em dinheiro contado e em fama, que é dinheiro sonante. Porém lamento pela literatura, a latino-americana e outras. Dar o prêmio a Astúrias acima de Carpentier é uma cegueira literária, já que não pode ser política - Videlicet Sholojov. Não dar esse prêmio a Pablo Neruda é um atentado contra a Academia, ou seja, um auto-atentado. Não dar nunca o prêmio a Borges é um crime contra a literatura. Para dizê-lo mais explicitamente, se Jorge Luis Borges não merece o prêmio Nobel de literatura é que o prêmio (como se disse tantas vezes) não nada que ver com a literatura ou que a literatura, segundo a definem os cânones do prêmio, não merece Borges.
Creio que foi Carlos Fuentes quem disse que os dois únicos escritores originais da velha geração eram Borges e Astúrias. Se eu não tivesse dito o que disse acima, então subscreveria esta opinião ousada. Carpentier é a resposta cubana a Heredía: um escritor francês que escreve em espanhol. O fato de que este herdeiro direto de Hugo tenha escolhido o espanhol da América me enche do mesmo assombro com que os italianos devem ter visto a editio princeps da Commedia. Tal sincretismo romanesco e ter visto - e ouvido - os discursos do general De Gaulle me convencem de que o francês começa a ser uma língua literariamente morta. De Borges apenas se pode dizer o que ele disse (injustamente) de Quevedo: não é um escritor, é uma literatura. Outra literatura - para os acadêmicos.

KAJ Qual lugar você ocupa entre os escritores da velha e da nova geração?

GCI Se lugar nesta pergunta é sinônimo de alinhamento no ranking literário latino-americano, a imodéstia, a modéstia e mesmo a falsa modéstia me impedem de responder por triplicado. Se por lugar devo entender posição estética, estado anímico ou direção espiritual, posso responder assim.
Esteticamente estou situado ao norte-nordeste de Borges, no mesmo meridiano criador de Cortazar, porém em outro paralelo, e em um quadrante por vezes coincidente nas cartas pop com o de Fuentes. García Márquez está decididamente em outro hemisfério, enquanto que Vargas Llosa se coloca em minhas antípodas, de mútuo acordo. Carpentier, me disseram, pensa que eu habito o anti-romance. Creio que se dissesse meta-romance tomaria melhor direção.
Os mesmos frescos ventos alísios de frivolidade que acariciam constantemente a Sarduy e Manuel Puig, refrescam minhas costas ocidentais de vez em quando. Como se pode notar, descrevo a mim mesmo como uma ilha, mesmo que flutuante ou talvez voadora, como Laputa. Minha bússola é por demasiadas vezes Nabokov, essa estrela de primeira magnitude que, desaparecida a stella polaris joyceana, serve para nos orientar na longa noite do exílio.
Porém não me assombraria nada que algum erudito latino-americano decidisse, em algum dia do século XX, que minha única contribuição de mérito à literatura seriam, imitadores reais do fingido manuscrito de Mono y Esencia, meus screen plays que jamais chegaram a screen e ficaram todos em plays. Ou seja, jogos de palavras (inúteis posto que estas estavam destinadas a converter-se em imagens, em luta incerta contra uma proporção de 1000 para 1) escritos em inglês! Animicamente me sinto muitas vezes como Calvert Casey, esse pobre homem e grande escritor cubano exilado em Roma que acaba de suicidar-se no mês passado. Resgatam-me desse destino não somente as obrigações adquiridas de pai de família, de exilado político e de cabeça de fila literária, mas também três paixões inatas: a curiosidade, o humor e o medo. Salva-me também esse instinto da história que é o amor. Ou seja, o sexo. Ou seja, as mulheres. Ou seja, minha mulher.
Espiritualmente me sinto cada dia mais cético, cada dia mais livre.
Finalmente, se lugar quer dizer classificação para os tratados de literatura (latino-americana) posso afirmar que sou o único escritor (latino-americano) que declara que seus livros não são mais que um gracejo que dura um número dado de páginas. Minha primeira e última intenção ao escrever é conseguir a diversão - primeiro a própria, depois a desse próximo que se chama leitor.

KAJ Para você, como escritor, é um problema viver fora de Cuba?

GCI Viver fora de Cuba suscita problemas para meu corpo, que, como se sabe, contém e sustém e detém o escritor. Mas são problemas somente de latitude: sou um homem do trópico. Não tenho problemas de terra ou de pátria porque (como disse Juan Goytisolo) o homem não é uma árvore e (como disse o Dr. Johnson) o patriotismo é o último refúgio do pícaro - cf. Retamar, Lisandro Otero. A primeira declaração poderia ser completada dizendo que se um homem necessita de terra, já não a necessita. A segunda se complementa dizendo que o patriotismo, muitas vezes, costuma ser também o primeiro refúgio do pícaro - i.e. Mussolini, Hitler, Fidel Castro. Viver em Cuba suscitava problemas para minha psique, porque me contagiava com esse mal dos estados policiais assumidos - que não é a paranoia, mas sim a esquizofrenia. Pior ainda, me induzia esse câncer do espírito que é a má fé e a hipocrisia, uma enfermidade mais atroz que as da mente ou do corpo, porque é um mal do ser.

KAJ Você poderia me dizer algo do que está escrevendo agora?

GCI Há muitos anos que escrevo um romance (todas as noites na cabeça, alguns dias sobre o papel) que se titulará ou titularia Cuerpos Divinos. Sugiro que não se traduza este título porque uma visão central do livro o explica. É a alucinação do herói quando mergulha do alto de um trampolim em uma piscina que no meio do caminho se enche de mulheres nuas. Por não poder nadar, o que sonha se afoga entre pernas, seios e bundas. Meu livro (e seu título) tenta fazer desse pesadelo um sonho.


GUILLERMO CABRERA INFANTE | META-FINAL [PARA TRÊS TRISTES TIGRES]

Te equivocaste em um detalhe me disse Walter Socarrás, socarrão, para acrescentar socorrido, corrido, correndo, corrigindo, te equisbotaste. O que este queria dizer é que não era verdade o que disse de La Estrela, o terceiro a me dizer que não era verdade o que disse, porém ele não falava da mentira de sua vida, mas sim de sua morte. Não de sua morte, mas sim da morte de La Estrela. Ao que Silvestre replicou, como é possível?, há vidas inautênticas, porém todas as mortes são autênticas. E aí parou, se dando conta demasiado tarde para seu ser de que não dava pé porque havia dado pé ao bem cretino Socarrás para que dissesse socorrendo, Nem todas as mortes são autênticas, Silvério. Há mortes ortodoxas.
Mas tinha razão Walter Socarrás, de verdadeiro nome Gualterio Suárez, que é o marido de Gloria Pérez quando ela se chama Cuba Venegas, esse que não se vocês sabem é regente de orquestra ou um condutor como dizem seus piores amigos querendo dizer que este está melhor em um ônibus de pé cobrando a passagem do que orquestrando uma paisagem parada sobre o podium o pódio ou poial ou como quer que se chame essa tribuna de gestos, salvado no último engodo pelo Defunto que costumava dizer sozinho que em definitivo ir de pé no ônibus, com aquilo da velocidade, os tombos e as maneiras de ser dos motoristas não é mais do que estar sobre um podium que caminha. O certo é que Dobleve Esse é arranjador e ele mesmo diz de si mesmo no mesmo disco de chumbo de La Estrela para o que devia haver uma borracha de apagar sons, escreveu ele dele: “Walter Socarrás reclama, ao lançar este disco, o posto do melhor arranjador da América”. Discóbolo que dá razão a Carpentier (ou à Condessa de Marlín, não sei: talvez a ambos) quando disse que os cubanos estavam todos bebuns, dizendo assim talvez em francês que Cuba é uma ilha rodeada (por todas as partes) por um mal de gênios ou gênios do mar. Mesmo que Silvestre quando ele se chama Ilha diga que as ilhas sempre terminam por (ao menos tratar de) dominar o continente, como o líquido que contém uma garrafa. Ao que o Diphunto respondia citando, recitando as ilhas do Maregeo, essa ilha de Cretinos, creta, a Sim-cilia, a Ingalaterra e ultimadamente disse Ele ao Japão, conhecido também como Nipão, Nihão ou Império do Sol Na Sente.
Porém voltando a dar voltas neste disco ou melhor em sua envoltura ou quadratura do círculo onde dizem ou diz WalSoc coisas como estas que há que lê-las para crê-las e sic sic sic A cadeia de avocações que chega a cada amante da música do sotaque autêntico de Cuba, leva ao público uma voz de mulher, a de La Estrela. A Rainha, a Monarca absoluta da música cubana em todas as suas manifestações. Nas modalidades e estilos dentro de um mesmo ritmo, na expressão definitiva, no alarde acentuado de uma realidade indiscutida desde o ontem distante ao presente e, quem sabe no futuro, há uma só estrela: La Estrela (do caralho! mais que do pobre Gualterio Suárez que depois de tudo talvez não tenha escrito isto porque interrogação o permitiria Cuba fecha interrogação fecha parênteses e ponto e contínuo Porém sim foi WSeguro quem escreveu o que segue sobre si sobre a capa encapada do disco “Neste álbum Walter Socarrás faz um alarde inusitado do perfeito domínio que tem sobre as distintas combinações orquestrais imaginavelmente (assim mesmo!) possíveis e traça pautas na orquestração moderna” merda, traçar pautas na orquestração! “Assim vemos como consegue magníficas combinações de cordas e metais, quintetos de trombones com piano, baixo e ritmo” para terminar dizendo que aspas atualmente dirige a orquestra de um luxuoso Cassino habanero para a qual faz os arranjos orquestrais além de fazer os arranjos orquestrais para outro faustuoso Cassino sempre com c maiúsculo fecha aspas e tomando o todo pelo rabo da parte faz da orquestra cassino (não confundir por favor com a Orquestra cassino da praia) e converte ou se converte a si mesmo em suas notas nada musicais em Walter Socarrás o crupiê que orquestra, além de que me cago! TODOS bebuns. Até os cassinos ou Cassinos. Cacassinos.
Estás equivocagando, me disse Walter Socarrás nessa ou esta ocasião. (Ou cassino!) La Estrela não está enterrada no México, me disse embora não assim, mas sim com jota. Não, lhe disse, gritei eu: NÂO? não, me respondeu ele, não está enterrada no México com jota. Então onde perguntei eu interrogante. Ela não está enterrada no México nem em parte alguma. Como! disse eu perguntando com duplo sinal de exclamação, à frente e atrás, a palavra colhida, como o general Custer, entre flechas. Ela não está morta então? Que NÃO está morta!?! me disse ele interrogante assombrado ainda que não estivesse assombrado nem interrogante, mas sim bem mais arrogante, abrogante, atorrante. Está mais morta que o mar morto me disse e se riu. O que afinal não é tão mal acorde, disse-me, não senhor. Embora fosse melhor fazer um acorde invertido, morto o mar, assim e neste caso é um acorde perfeito ou maior se dizemos morta no mar. Porque é assim me disse e me disse muito mais.
La Estrela morreu de verdade no México e seu secretário com o neceser fez o impossível para trazê-la a enterrar em Cuba, e já se sabe o que passa quando se faz o impossível possível que tudo termina no caos. A coisa ou o caos começou quando tentaram embalsamá-la e uns amigos do amiguinho de La Estrela buscaram o embalsamador adequado, de nome Inocente Adequado, que era o que tinha mais fama no México porque não era outro (ou seja, era o mesmo) que o que embalsamou o cavalo de Zapata. Porém o que se passa é que este embalsamador Adequado era agora uma múmia ele mesmo, um velho velho, porém muito velho que sequer via a quem embalsamar e talvez tenha até começado a auto-embalsamar-se, e como todos os embalsamadores estava bastante tocado ou talvez todo o contrário: ou seja, intocável. O certo é que este taxidermista mexicano tinha a teoria de que a melhor maneira de embalsamar é a natural, que não é tão desatinado como soa ou como se lê, mas sim que é mais, porque este doutor em taxidermia de Oaxaca disse ou dizia o talvez diga ainda (nunca se sabe quando um embalsamador está de todo embalsamado), dizia diz que a melhor tajidermia, assim disse, é feita pela Mãe Natura e aí estão os mamutes, dizem que disse e os amigos do amiguinho e o amiguinho que não era outro senão o necessário com seu secreter se tornaram agitados para eludir o alude de manutes, o estampido, antes que o velho tivesse tempo de agregar “que apareceram na Sibéria”. E com esta confidência mais o suspiro aliviado da concorrência começou sua conferência com a inferência de que era uma teoria a tomar com consideração pela congregação. Em uma palavra (que é só por dizer: já verão) sua texe era embalsamar as pessoas tal e como estão, ou seja, mortas, porém sem destripá-las nem limpar suas vísceras (que o velho pronunciava viceiras) nem formolizá-las, porém tendo cuidado de colocá-las em uma torteira de zinco ad hoc e jogando em cima celofane derretido, porém não derretido ao calor, mas sim ao frio, liquefeito, disse o velho, e com este plástico fazer um molde transparente rodeando o cadáver por todas as partes menos por uma que se chama torta. Ilha incorrupta em um mar de plástico, disse o velho. Sim, disse um amigo entre os amigos, como a Bela Adormecida. E para que disse, porque o sectário recordou La Estrela antes de tê-la esquecida e cobriu os olhos com uma mãozinha, assim, dizendo Que não quero vê-la, porém disse Ai não! Noque o velho mumificante pôs ponto final à sua fala dizendo, E isto é o que custa, filhinho, um olho da cara! Aí não estava o ponto final da fala, mas sim um pouco mais adiante quando o velho disse seu preço, este taxidermista pondo o taxis à frente da dermia e ver que ninguém tinha dinheiro suficiente sequer para iniciar o processo que depois de tudo era absoluta e totalmente experimental no sentido de que, como dizia o Dinfundido, és perimental como toda teoria sem prajis. (Entre parênteses) se os amigos de La Estrela não tinham dinheiro La Estrela mesma não tinha muito tempo e já se sabe que time is money como money is time e o que é pior ainda e terrível: time is time.
De maneira que, a múmia aconselhou que depois de tudo ele estava pelo positivo, que era aqui o natural e que tão bom como o gelo plástico era o gelo verdadeiro e se não se podia conseguir gelo glacial ou siberiano o gelo ainda que fosse seco gelo era e melhor que nada ou que o Nada. Em seguida deu duas injeções de cavalo (zapatista) de formol a La Estrela que esteve ali de corpo presente o tempo todo e recomendou (o velho taxidérmico) que aceitassem a oferta de enviá-la pelo mar, que afinal o mar é salgado e o sal cura. Além de ser o transporte marítimo muito mais barato, disse. E em seguida falou da calma oceânica, do iodo, do ar puro e de como se ganha perspectiva quando se está rodeado de horizonte e se torna ilha. Terminou. Porém antes, uma menção comercial. São dez pesos. Digo dólares, no câmbio atual. Pela consulta. E passem bem.
O secresectário de La Estrela a embarcou por trem até Veracruz onde a caixa ou como diz o Grande Bê não um ataúde, mas sim um alaúde, um cataratafalso, o esféretro, onde seria embarcado rumo a La Habana. A CompanhiaNacionalTransporte Esse A havia concordado que na alfândega mexicana depois que abrissem a caixa para a inspeção (vocês já sabem: prata possível, o Sagrado Patrimônio Artístico da Nação asteca sendo saqueado seguramente, maconha para fumar) poriam mais geloseco, antes de fechá-lo claro está. E em Ver-a-Cruz abriram e fecharam o, o, o caixão sem maior problema que o pequeno, quase insignificante, desagradável esquecimento de um adjetivo que, a quem quer que ocorra jovem que cause dano que falte diga-me você. Ou seja que enviaram um garoto de recados colocar geloseco dentro e este foi e comprou gelo a secas no mar de frente e o regou bem por todas as partes da ilha de aço macabro que tinha dentro a pérola negra barroca. Foi quando lhe perguntaram (não à perolada, mas sim ao pelado) se era geloseco que disse, Que seco nemque seco” Mas tem que ser geloseco! Seco ou molhado, jovem, tudo é gelo, e seguiu colocando o gelo, embora frappé, ao redor do estojo de metal que encerrava a suma mortal de La Estrela. Depois fechou a caixa e disse que já podiam embarcá-la gritando, Pracima com La Escarchada!
Não sei se vocês sabem que quando se diz que há calor em Veracruz quer dizer que a onda do golfo ferve sob o sol e que vem da selva um vapor tórrido que converte o porto em água para banho-maria, Esse dia fez calor em Veracruz e o barco esteve atracado desde manhã cedo com o ataúde com La Estrela encerrado na adega, uma caixa com gelo dentro de uma marmita em água em banho-maria cozinhando a fogo violento na onda do golfo esquentada a vapor selvático.
O barco zarpou às quinze dois pontos zero zero horas. Duas horas mar afora o fedor se sentia em todo o barco cobrindo todas as zonas da roda dos ventos fétidos e souberam que o barco era o centro universal da peste. Em suas entranhas encontraram a caixa jorrando água pútrida, soltando vapor hediondo, chiando metífica. O médico de bordo declarou que não chegaria a La Habana e se chegasse o ataúde não chegava o barco. A disjuntiva impressionou o capitão quem fazendo uso de suas prerrogativas navais rompeu em pedaços o manifesto de carga fúnebre e ordenou o único possível, entregar o morto a outro. Neste caso à água.
Içaram com grande trabalho a caixa à coberta e a deixaram sobre a ponte enquanto, em deferência por sua condição de mulher (a do cadáver não do féretro), buscavam uma bandeira cubana, com respeito à sua condição de tal, com que cobri-la (a caixa não o cadáver), ações que foram gestos desnecessários ou sentimentais porque dentro da caixa não havia um cidadão cubano nem uma mulher, mas sim uma incrível massa de carniça ao vapor. Quase como quem diz carne assada. Para acrescentar grotesco ao absurdo ocorreu que ninguém a bordo sabia como era uma bandeira cubana, coisa nada estranha em um barco canadense fretado por um armador grego que navega sob bandeira panamenha com uma tripulação composta de mexicanos, argentinos, um galego, um liberiano, a gentalha de sete continentes e cinco mares (ou é o contrário? A gentalha de cinco mares e sete continentes?) mais o capitão, polaco exilado e um clandestino de Pernambuco nascido na ilha de Malta que ninguém detectou até que o barco chegasse à Madeira. Finalmente, o capitão decidiu ou determinou que a bandeira de Havana, assim disse, devia ser da cor habana já que esse era o nome e a cor de um bom cigarro, e da adega trouxeram um pedaço de lã da cor de chocolate sujo na qual envolveram o ataúde, de acordo com a tradição marinha. Mas ainda não o lançaram ao mar.
Antes de fazê-lo decidiram buscar lastre. Que lastre ou não lastre! disse um dos mexicanos ou o outro. Não estão vendo nada que não há cristão que erga esse fardo! Se vai ao fundo, disse, predisse, ao mero fundo que se vá como vão as arengas ao mal! Deram-lhe razão, sempre dão razão ao hiperbólico: em todo caso muito mais caso que ao parabólico. Toda a tripulação, menos o capitão, o timoneiro e o clandestino, teve que dar uma mão e logo a outra para erguer o ataúde, enquanto que o mexicano dizia, declarava, gritava, Não disse, não disse! Não disse, não disse! Não disse, não disse!, várias vezes e finalmente exclamou: Não disse! justo antes de tropeçar com um cabo, cair para a frente, empurrar o cozinheiro galego em sua queda que na própria prendeu a caixa ao tempo em que também caía (como todos os cozinheiros galegos quando são empurrados por trás enquanto levam em  andor um ataúde pesado a bordo de um barco de carga para lançá-lo ao mar porque fede) para a frente, conseguindo em sua gestão cadente tombar o primeiro padioleiro  e ambos servirem de propulsor ao corpo inerte convertendo-o graças ao impulso em projétil e fazerem com que saísse disparado sobre coberta enquanto os demais padioleiros, em reflexa ação tardia, primeiro agarravam ar vazio e finalmente lenço vazio e ainda da cor habana entre as mãos, fitando inúteis como a bala de lata envolta em madeira, o balão quadrado, o míssil inverso caía de regresso à coberta, escovava as pranchas de ferro, deslizava livre e rompia a varanda da ponte para voltar a ser foguete segundos antes de decidir converter-se em torpedo e mergulhar em arco de trajetória e cair na água com um ruído de barrigada tão alto como a coluna de doze metros de altura por quatro de largura que ergue água, borrifo e salitre até as caras aliviadas do peso e da responsabilidade dos padioleiros e seu capitão enquanto o marujo mexicano, novamente de pé e mostrando-se à água, gritava outra vez Não disse, filhos da, não disse! Ay Chihuagua!
Já iam ocupar seus postos os membros da tripulação, a reparar a ponte alguns, o capitão a fumar seu cachimbo, o cozinheiro ao caldeirão, quando o silêncio abrupto do mexicano entre dois Nãodisse!   Não disse! fez com que virassem a cabeça e depois os corpos respectivos para onde estava este olhando com a boca aberta debaixo do arco de seus bigodes mexicanos. Ou seja, para o arco aberto debaixo do barco. Viram, como o mexicano, um pouco depois, um pouco mais, surgir primeiro uma extremidade obscura e agoureira e depois todo o féretro como um submarino de madeira, como um peixe morto e obsceno e não é verdade que narro bem? perguntou Socarrás, socarrando, olhando para Silvestre. Ninguém lhe respondeu nem ninguém teve tempo de fazê-lo porque em seguida explicou, outrorrinolaringologista, que evidentemente, assim disse, com a água do gelo feita vapor dentro do vapor a madeira havia inchado e agora o estojo do féretro tecnicamente era impermeável, navegante e flutuava. Ou seja, disse, era uma nave do tempo exterior.
Os mexicanos Não disse! e seu carnal e um estivador liberiano viram no ataúde flutuante um castigo se não do céu pelo menos do mar insultado, um seguro signo de mal agouro, o sinal da profecia e decidiram por sua conta (e riscos) que havia que afundar aquele navio satélite que insistia em navegar junto à sua rampa de lançamento. Sem consultar a ninguém começaram a atirar-lhe várias coisas, todas lançáveis: um pedaço de varanda quebrada da ponte como se fosse flecha, lanças de pedaços de madeira da mesma origem, um sapato de baqueta, uma sandália, um jorro de insultos, várias balas de saliva e finalmente seu desespero individual e coletivo e seu ódio cego e mudo. Finalmente, alguém lhes socorreu trazendo uma escopeta com que disparar uma, duas, várias descargas. Porém as balas (de chumbo) ou caíam próximas ou bem longe e não acertavam nunca o alvo tão visível e obscuro ou acertavam todas em alvorada se o alvo era o mar. Enfim um chumbo pegou na embarcação e ricocheteou até a água, a madeira não somente se tornara impermeável como também impenetrável. O capitão contagiado (esse não era seu nome, seu nome, completo, era capitão Josef Teodor Achabowski, nascido em Korzeniev na Ucrânia Russa, então sob domínio polaco, a 3 de dezembro de 1857, pelo que contaria, mediante ábaco, com 101 anos de idade, segundo o novo calendário. Seu pai, um latifundiário de gostos literários, foi exilado para o norte da Prússia por haver participado nos movimentos pela independência russa do jugo polaco. Os pais de Achabowski morreram antes que este nascesse, de maneira que foi dado à luz por seus avós. Depois de navegar muitos anos pelas águas que circundam os continentes, decidiu espanholar ou apocopar seu nome pelo que era conhecido agora ou antes, ou seja, no momento em que ocorre esta história como o Capitão José Acá ou Capi Acá ou Pele el Poloco, porém esta é outra história.) decidiu ordenar baixar um bote e deixou sua ordem sem efeito ou com efeito retroativo. Os mexicanos e o liberiano embarcaram com os archotes de incêndio na mão e após alguma indecisão decidiram depositá-los no fundo da embarcação para remar, cuidando para que não ficassem com o fio para baixo. Como o barco teve que reduzir a marcha para descer o bote, quando este tocou água o féretro levava já alguma vantagem até a proa e se viram obrigados a remar duramente e contra o vento, conseguindo com sua perícia e esforço diminuir a vantagem do ataúde boiante. Já estavam lhe alcançando quando um golpe de mar, a mudança de vento, o rastro do barco, a corrente, o trópico de câncer ou o acaso (ou todas essas coisas juntas) fizeram com que o ataúde barlaventasse bruscamente, girando em redondo e investisse contra o bote, abrindo-lhe uma brecha de tamanho regular antes que alguém pudesse evitar o choque dos corpos e muito menos descarregar um golpe de archote salvador ou bom para paralisar o agressor, e foi o bote que fez água, inclinou-se e ia a pique entre o silêncio do mar e os marujos. Silêncio que durou pouco porque outra investida do ataúde raspou com um chiado como uma chiadeira triunfal a popa do bote que afundava ao mesmo tempo que os dois mexicanos nadavam com fúria até o barco e o liberiano se debatia, engolia água, parecia que se afogava e finalmente nada também até o barco ansiosamente. Os outros marujos não puderam fazer outra coisa senão recolhê-los os três com cabos e salva-vidas enquanto o capitão Acá ordenava, Chamem Ismaelzinho o médico de bordo antes de tornar a ver afastando-se La Estrela em sua tumba flutuante que para ele era um destino invejável: o insubmergível, o navio perfeito, o anti-Titanic ou talvez fosse o mito: um María Celeste de carne e osso e madeira, a holandesa errante, e fascinado a viu primeiro a olho limpo de lobo do mar, depois com olhos de marinheiro, depois com olhos sujos de pranto, depois com seu binóculo, depois com sua catarata e viu como a Nau se fazia Nada: primeiro foi baleia de madeira e graxa, depois peixe fúnebre, depois crista de onda negra, em seguida mosca dos olhos até ser tragada pela distância e perder-se no mar, em nossa eternidade Silvestre, navegando viajando flutuando no Gulf Stream a 13 nós por hora com rumo nor-noroeste.
Isto foi o que me contou Walter Ego antes de anunciar o inevitável, que não era o anticlímax, mas sim o clima, E por aí deve andar ainda, dando a volta ao globo, e acrescentou, Um matías pérez marinheiro. Bom, disse Silvestre, um pós-data é uma forma de epitáfio. Ou vice-versa. O que é um retoque disse eu. Ou seja, disse Silvestre, permissão para um leva sobressalto. Casar a verdade com o final. Ou como diria o Huno, um epitalafio.
Porém o verdadeiro epitáfio, a epifania, o epifonema, a epístola, a epígrafe, o epigrama ou a epítase não o disse o epífito nem o Epígono, mas sim falsar. Citei, re-citei: Sicus Vita Finis Ita. Só que realmente pronunciei Si Cubita Finisita



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Jorge de Lima
Matéria traduzida por Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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