A presente entrevista com Cabrera Infante foi realizada em Londres,
no verão de 1969, por Kjell A. Johnsson, para o jornal sueco Expressen,
onde foi publicada no ano seguinte. Neste mesmo ano de sua publicação na
Suécia, a revista Alacrán Azul, em seu número de estreia, a
reproduz. Esta revista - feita em Miami (EUA) pelos poetas cubanos José A.
Arcocha e Fernando Palenzuela - circula em apenas duas edições, porém deixa uma
marca bastante consistente nas letras latino-americanas, pela definição de seu
projeto editorial e, sobretudo, por sua concretização. Décadas depois - uma vez
mais animada pelo mesmo Fernando Palenzuela, mas agora com a cumplicidade do
crítico Vicente Jiménez - Alacrán Azul volta a sair, em
circulação virtual, ou seja, bem mais abrangente em seu alcance. Seus novos
editores vêm colaborando com a Agulha Revista de Cultura e
com alguns outros projetos editoriais nossos. Cabrera Infante tem boa parte de
sua obra traduzida e publicada no Brasil. Eu mesmo traduzi Delito por
dançar o chá-chá-chá (Ediouro, 1998). Em 1980 tivemos a tradução
de Três tristes tigres (Ed. Global), por Stella Leonardos.
Referente a este romance, trazemos para o leitor de nossa revista seu trecho
final que o autor não incluiu na edição original. Ao confiá-lo aos amigos
editores de Alacrán Azul, lhes dirigiu uma nota, onde se lê: “O
fragmento de romance que lhes envio é o final de Três tristes tigres,
que nunca incluí no livro porque havia demasiada simetria para ainda
acrescentar essa paródia. Por casualidade, há pouco me chegaram uns baús
deixados em Bruxelas que tinham muitas notas e fragmentos meus. Aí vinha este
pedaço. Eu o passei a limpo apenas para vocês, acrescentando uma outrografia nova
aqui, uma mal apropriação ali, alguma dose de anacoluto e o título, que é
possivelmente a única coisa realmente nova. Passado a limpo, o texto agora me
agrada, com sua ferocidade humorística e sua retorcida homenagem a Monk Lewis,
Melville e Conrad.” Publicamos conjuntamente a entrevista e o final do romance,
ambos os textos por mim traduzidos, com o reiterado agradecimento aos amigos
Fernando Palenzuela e Vicente Jiménez. [FM]
UMA
ENTREVISTA COM CABRERA INFANTE
KAJ Eu gostaria que você me contasse algo de suas
primeiras experiências como escritor no ambiente cultural de Cuba nos anos 50.
GCI Minhas primeiras experiências nos anos 50
tiveram relacionadas mais com a lei do que com a literatura. Em outubro de 1952
fui preso por publicar um conto que tinha umas tantas más palavras - e estavam
escritas em inglês! Mais tarde dediquei quase meu tempo a
ganhar a vida como jornalista e arriscar a vida em contatos políticos. Não sei
qual das duas atividades pode ser mais catastrófica para um escritor. Porém se
tiver que escolher hoje em dia, escolheria certamente o jornalismo.
KAJ Por que?
GCI Porque o jornalismo exige facilismo e
frivolidade, e em troca entrega um estilo transparente, imediato. (Porém quem
quer escrever claramente? É fácil comprovar que por trás da “prosa clara” - cf.
Maugham, Hemingway, Pavese - há sempre uma triste chatice de pensamento.)
Enquanto que a política obriga a desenvolver o sentimento nacional, o
patriotismo e o conceito do dever (ou pior ainda, da obediência cega, o
espírito de partido) como imperativos categóricos. Já sabemos que ao fim de
tais práticas históricas (ou seja, contra natura) é possível encontrar
Auschwitz - ou seus equivalentes siberianos e tropicais. É evidente que prefiro
que o escritor naufrague entre folhas de jornais do que o intelectual
realizar-se como comissário ou burocrata ou verdugo de intelectuais.
KAJ Porém o que você fez como escritos nesses
anos?
GCI De 1953 a 1960 fui um crítico de cinema
talvez demasiado popular. Uma ocupação concorrente foi a de chefe de redação do
semanárioCarteles, cargo que em outro tempo teria prestigiado - ou
talvez humilhado - Alejo Carpentier. Desde 1º de janeiro de 1959 se acrescentou
o vertiginoso tráfego revolucionário, ocupando simultaneamente diferentes
cargos na cultura e no jornalismo oficiais. Assim, ao terminar a década havia
escrito somente uma vintena de contos - dos quais apenas uma dezena valia a
pena recolher em um volume - e construído um labirinto de opiniões críticas.
Este balanço se chama Así en la paz como en la guerra e Un
oficio del Siglo XX, livros publicados em 1960 e 1963, e que são
respectivamente uma coleção de contos e uma suíte de críticas de cinema.
KAJ Por que começou a trabalhar - como diplomata
- para o governo de Fidel Castro e por que o deixou?
GCI O cargo de adido cultural em Bruxelas - que
aceitei em outubro de 1962 - foi o que se chama em inglês um consolation
prize. A consolação da diplomacia, que é mais triste que a da filosofia.
Como você sabe, o suplemento Lunes de Revolución, que eu fundei e
dirigi, se viu envolta em uma polêmica com os dirigentes da cultura e do
governo revolucionário. Este ato de desobediência culminou com as hoje famosas
Conversas da Biblioteca Nacional, na raiz das quais foi enclausurado Lunes -
“escassez de papel” foi a razão oficial, embora o suplemento tenha sido
imediatamente suplantado por três publicações controladas
diretamente pelo governo e o partido - ao final de 1961. Desde este momento até
setembro do ano seguinte estive sem trabalho porque em um país comunista todos
os cargos são oficiais, embora uns sejam mais oficiais que outros. Durante
esses oito largos meses me dediquei a viver do salário que ganhava minha
mulher, então atriz de teatro e televisão. Não me cansava de dizer onde quer
que estivesse que eu era o primeiro proxeneta criado pelo socialismo. Outras
opiniões como estas e o fato de que em minha casa se reuniram todos os
dissidentes - pintores abstratos, homossexuais perseguidos, beatniks
visitantes, trotskistas amateurs, poetas herméticos - que cabem em um
apartamento moderno, me conseguiram essa forma de exílio oficial que é um cargo
diplomático para um partidário em desgraça. Como você conhece, esta é uma
fórmula clássica para construir uma ponte de prata ao inimigo que foge nos
países da América latina - isto é: Caamaño, da República Dominicana; Astúrias,
da Guatemala; Paz, do México etc. Ainda que esta prática tenha terminado
oficialmente em Cuba, não é difícil encontrar hoje em dia estranhos bolsistas
de organismos fantasmas que vivem em Paris ou Genebra ou em Madri, aqueles que
embora apenas privadamente criticam o regime de Castro com mais violência de
palavra que eu, não faltam na celebração de cada 26 de julho em embaixada
cubana de turno. As regras do jogo obrigam mais que a nobreza. Estas respostas
minhas às suas perguntas são um testemunho a mais de que detesto qualquer
compromisso - ou engagement. Outras francas entrevistas anteriores
me custaram o cargo diplomático, me levaram ao exílio e me ganharam a inimizade
de muitos agentes (pagos ou gratuitos) da internacional comunista.
KAJ Qual foi sua atitude frente à revolução
cubana desde o princípio até agora?
GCI Minha atitude variou sempre diante de cada
manobra (democracia burguesa, nacional-socialismo, socialismo
pro-soviético/pro-chinês/pro-soviético, socialismo “em um só povoado” etc.) de
navegação histórica desse Titanic político, a nave insubmergível destinada a
afundar. No começo a revolução foi justa e necessária e como tal teve o apoio
da quase totalidade do povo cubano. Observe que digo povo e não proletariado,
campesinado, burguesia ou inteligentzia.
(Parafraseando Mark Twain posso dizer: não me fale de pobres nem de ricos,
fale-me do homem - não pode haver animal político mais torpe!) Esta revolução
foi imprescindível, impostergável e se vivêssemos em um ano platônico, ao
chegar outro 1958, meu outro eu escolheria outra revolução
de 1959. Quando, como disse o Mexicano, a revolução degenerou em governo, minha
atitude se fez primeiramente dubitativa, depois desencantada e finalmente
hostil - é que havíamos chegado à etapa do poder absoluto de Fidel Castro. Se é
certo que o poder corrompe, o poder subdesenvolvido corrompe
subdesenvolvidamente. “Um só homem livre” há em Cuba. Como não pode haver dois,
escolhi o exílio. Não escolhi a liberdade, mas sim rejeitei a liberdade
absoluta (e, portanto, opressiva) do outro. Quanto à filosofia oportuna adotada
por Castro (recordo, sem ânimo de analogias, que Perón da Argentina e Trujillo
de Santo Domingo escolheram, em seu tempo, os modelos nazi e fascista), há
muito que é letra tão morta como os números-chave dos pitagóricos. A cada dia
estou mais convencido de que toda ideologia é reacionária. Para mim, o
comunismo não é mais que o fascismo do pobre. O fato de que Cuba apoiou tão
decisivamente como a Alemanha Oriental a invasão russa da Checoslováquia
demonstra que Castro é outro avatar de Ulbricht - com mais sorte que este
último, porque não teve que construir sua muralha chinesa: a Natureza o fez por
ele, essa providência dos materialistas: o mar Caribe é nosso muro de Berlim.
KAJ Você tem algum comentário a fatos como a
discussão em torno da poesia de Heberto Padilla atualmente em Cuba?
GCI O correspondente comunista do Le
Monde, Saverio Tutino (que foi enviado a Cuba originalmente pelo jornal
italiano L’Unité) disse quase a última palavra sobre o caso de
Padilla et alli: “…é uma mostra de que a trégua de dez anos entre o
regime de Castro e os intelectuais terminou” (Le Monde, 08/11/68). A
estas rivelazioni d’un partigiano quero agregar nada mais que a
resposta de amigo divorciado “depois de sete anos de feliz casamento” segundo a
desconsolada esposa. Eu lhe perguntei quando se havia iniciado este processo
dissolvente e ele me confiou: “quando pronunciava o sim que
dei ao padre”.
KAJ Quais influências literárias e
extraliterárias foram decisivas para o que você escreveu e o que está
escrevendo?
GCI De minhas influências literárias talvez a
maior tenha sido o cinema. Entre as extraliterárias posso nomear uma infância
pobre e feliz, uma adolescência infeliz e pobre, e já de adulto: a timidez, o
exibicionismo, a fluência, a gagueira, o talento, as respostas da escada, a
coragem, a covardia, a facilidade para brincar com as palavras, a dificuldade
para me expressar, a vontade de contar contos, detestar a literatura narrativa,
a linguagem, o silêncio, o amor, as mulheres, o medo do sexo, a obsessão pelo sexo,
a sensualidade, a noite, os terrores noturnos, o medo de sonho, os sonhos, a
memória, a nostalgia que é a metafísica da recordação, o esquecimento, a
vontade de viver, o medo de viver, o ódio e a pena pelos mortos, a fascinação
da morte, a imitação, o afã de originalidade e se o espaço me condenasse a uma
só palavra diria o ser - para imediatamente acrescentar, mas também o nada.
KAJ Parece que há razões para falar de um novo
romance latino-americano?
GCI Não creio que se possa falar de um “novo romance
latino-americano”, mas sim de outra encarnação do romance. Esta metempsicose já
foi produzida outras vezes, em outros lugares: Inglaterra, França, Rússia, EUA,
Itália, Japão etc. Porém é possível dizer que o romance latino-americano não
existe, que existem apenas alguns romances escritos por latino-americanos. Ou,
melhor dizendo, escritos por escritores que vivendo em continentes distintos e
pertencentes a lugares diferentes, compartem essa degenerada linhagem que é o
espanhol falado em vastas zonas geográficas unidas pelo que seria um fenômeno
raro, a recolher nos anais de uma ciência que não existe: a genética das
línguas. Esse monstro é um mesmo mestiço de diferentes raças. Nosso híbrido
assombraria mais facilmente se soubéssemos que uma mesma mula é filho possível
não somente de burro e égua, mas também de cavalo e zebra. O espanto do futuro
do romance latino-americano só consigo expressá-lo com um verso de meu
compatriota, Lezama Lima. Eis aqui o que disse o vate cantando aparentemente a
si mesmo quando na realidade profetizava a via crucis do
romance na América Latina: “Com que seguro passo a mula no
abismo…”.
KAJ Como você vê os escritores latino-americanos
de gerações anteriores: Gallegos, Astúrias, Borges, Carpentier etc.?
GCI De acordo com as leis (e os costumes)
anglo-saxões, o delito de libelo acaba com a vida do difamado. Isto tira toda a
diversão do jogo das reputações. Morto Gallegos há pouco, não vale a pena falar
dele agora. Prefiro ser caritativo a ser desapiedado - ou mentiroso, que é pior.
Astúrias tem sido difamado (em privado, sempre, muitas vezes em público, amiúde
em letra impressa) por um gesto político muito celebrado em Carpentier: aceitar
um cargo diplomático em Paris enviado por um governo que não representa o povo.
Essa figura de retórica das sinecuras se chama exile doré. Em honra
à verdade tenho que dizer que não vim a estas páginas nem para enterrar nem
para louvar Astúrias, mas sim para desagravar a Borges. É bom que um jornal
sueco me permita dizer a mim o que penso do prêmio Nobel de 1967. Tenho que
começar por dizer que meu primeiro conto, minha primeira tentativa de
literatura escrita e publicada a fiz imitando, copiando servilmente, plagiando
quase a El Señor Presidente. Conheci Astúrias em Cuba, sei das
penúrias que ele sofreu em seu ostracismo (agora o sei melhor do que nunca), e
me alegro por sua pessoa, que tenha obtido o prêmio sueco e tudo o que isto
representa em dinheiro contado e em fama, que é dinheiro sonante. Porém lamento
pela literatura, a latino-americana e outras. Dar o prêmio a Astúrias acima de
Carpentier é uma cegueira literária, já que não pode ser política - Videlicet
Sholojov. Não dar esse prêmio a Pablo Neruda é um atentado contra a Academia,
ou seja, um auto-atentado. Não dar nunca o prêmio a Borges é um crime contra a
literatura. Para dizê-lo mais explicitamente, se Jorge Luis Borges não merece o
prêmio Nobel de literatura é que o prêmio (como se disse tantas vezes) não nada
que ver com a literatura ou que a literatura, segundo a definem os cânones do
prêmio, não merece Borges.
Creio que foi Carlos Fuentes quem disse que os dois únicos escritores
originais da velha geração eram Borges e Astúrias. Se eu não tivesse dito o que
disse acima, então subscreveria esta opinião ousada. Carpentier é a resposta
cubana a Heredía: um escritor francês que escreve em espanhol. O fato de que
este herdeiro direto de Hugo tenha escolhido o espanhol da América me enche do
mesmo assombro com que os italianos devem ter visto a editio princeps da Commedia.
Tal sincretismo romanesco e ter visto - e ouvido - os discursos do general De
Gaulle me convencem de que o francês começa a ser uma língua literariamente
morta. De Borges apenas se pode dizer o que ele disse (injustamente) de
Quevedo: não é um escritor, é uma literatura. Outra literatura
- para os acadêmicos.
KAJ Qual lugar você ocupa entre os escritores da
velha e da nova geração?
GCI Se lugar nesta pergunta é
sinônimo de alinhamento no ranking literário latino-americano, a imodéstia, a
modéstia e mesmo a falsa modéstia me impedem de responder por triplicado. Se
por lugar devo entender posição estética, estado anímico ou direção espiritual,
posso responder assim.
Esteticamente estou situado ao norte-nordeste de Borges, no mesmo
meridiano criador de Cortazar, porém em outro paralelo, e em um quadrante por
vezes coincidente nas cartas pop com o de Fuentes. García Márquez está
decididamente em outro hemisfério, enquanto que Vargas Llosa se coloca em
minhas antípodas, de mútuo acordo. Carpentier, me disseram, pensa que eu habito
o anti-romance. Creio que se dissesse meta-romance tomaria melhor direção.
Os mesmos frescos ventos alísios de frivolidade que acariciam
constantemente a Sarduy e Manuel Puig, refrescam minhas costas ocidentais de
vez em quando. Como se pode notar, descrevo a mim mesmo como uma ilha, mesmo
que flutuante ou talvez voadora, como Laputa. Minha bússola é por demasiadas
vezes Nabokov, essa estrela de primeira magnitude que, desaparecida a stella
polaris joyceana, serve para nos orientar na longa noite do exílio.
Porém não me assombraria nada que algum erudito latino-americano
decidisse, em algum dia do século XX, que minha única contribuição de mérito à
literatura seriam, imitadores reais do fingido manuscrito de Mono y
Esencia, meus screen plays que jamais chegaram a screen e
ficaram todos em plays. Ou seja, jogos de palavras (inúteis posto
que estas estavam destinadas a converter-se em imagens, em luta incerta contra
uma proporção de 1000 para 1) escritos em inglês! Animicamente me
sinto muitas vezes como Calvert Casey, esse pobre homem e grande escritor
cubano exilado em Roma que acaba de suicidar-se no mês passado. Resgatam-me
desse destino não somente as obrigações adquiridas de pai de família, de
exilado político e de cabeça de fila literária, mas também três paixões inatas:
a curiosidade, o humor e o medo. Salva-me também esse instinto da história que
é o amor. Ou seja, o sexo. Ou seja, as mulheres. Ou seja, minha mulher.
Espiritualmente me sinto cada dia mais cético, cada dia mais livre.
Finalmente, se lugar quer dizer classificação para os tratados de
literatura (latino-americana) posso afirmar que sou o único escritor
(latino-americano) que declara que seus livros não são mais que um gracejo que
dura um número dado de páginas. Minha primeira e última intenção ao escrever é
conseguir a diversão - primeiro a própria, depois a desse próximo que se chama
leitor.
KAJ Para você, como escritor, é um problema viver
fora de Cuba?
GCI Viver fora de Cuba suscita problemas para meu
corpo, que, como se sabe, contém e sustém e detém o escritor. Mas são problemas
somente de latitude: sou um homem do trópico. Não tenho problemas de terra ou
de pátria porque (como disse Juan Goytisolo) o homem não é uma
árvore e (como disse o Dr. Johnson) o patriotismo é o último refúgio do pícaro
- cf. Retamar, Lisandro Otero. A primeira declaração poderia ser completada
dizendo que se um homem necessita de terra, já não a
necessita. A segunda se complementa dizendo que o patriotismo, muitas vezes,
costuma ser também o primeiro refúgio do pícaro - i.e.
Mussolini, Hitler, Fidel Castro. Viver em Cuba suscitava problemas para minha
psique, porque me contagiava com esse mal dos estados policiais assumidos - que
não é a paranoia, mas sim a esquizofrenia. Pior ainda, me induzia esse câncer
do espírito que é a má fé e a hipocrisia, uma enfermidade mais atroz que as da
mente ou do corpo, porque é um mal do ser.
GCI Há muitos anos que escrevo um romance (todas
as noites na cabeça, alguns dias sobre o papel) que se titulará ou
titularia Cuerpos Divinos. Sugiro que não se traduza este título
porque uma visão central do livro o explica. É a alucinação do herói quando
mergulha do alto de um trampolim em uma piscina que no meio do caminho se enche
de mulheres nuas. Por não poder nadar, o que sonha se afoga entre pernas, seios
e bundas. Meu livro (e seu título) tenta fazer desse pesadelo um sonho.
GUILLERMO CABRERA
INFANTE | META-FINAL [PARA TRÊS TRISTES TIGRES]
Te equivocaste em um detalhe me disse Walter
Socarrás, socarrão, para acrescentar socorrido, corrido, correndo, corrigindo,
te equisbotaste. O que este queria dizer é que não era verdade o que disse de
La Estrela, o terceiro a me dizer que não era verdade o que disse, porém ele
não falava da mentira de sua vida, mas sim de sua morte. Não de sua morte, mas
sim da morte de La Estrela. Ao que Silvestre replicou, como é possível?, há
vidas inautênticas, porém todas as mortes são autênticas. E aí parou, se dando
conta demasiado tarde para seu ser de que não dava pé porque havia dado pé ao
bem cretino Socarrás para que dissesse socorrendo, Nem todas as mortes são
autênticas, Silvério. Há mortes ortodoxas.
Mas tinha razão Walter Socarrás, de verdadeiro nome Gualterio Suárez,
que é o marido de Gloria Pérez quando ela se chama Cuba Venegas, esse que não
se vocês sabem é regente de orquestra ou um condutor como dizem seus piores
amigos querendo dizer que este está melhor em um ônibus de pé cobrando a
passagem do que orquestrando uma paisagem parada sobre o podium o pódio ou
poial ou como quer que se chame essa tribuna de gestos, salvado no último
engodo pelo Defunto que costumava dizer sozinho que em definitivo ir de pé no
ônibus, com aquilo da velocidade, os tombos e as maneiras de ser dos motoristas
não é mais do que estar sobre um podium que caminha. O certo é que Dobleve Esse
é arranjador e ele mesmo diz de si mesmo no mesmo disco de chumbo de La Estrela
para o que devia haver uma borracha de apagar sons, escreveu ele dele: “Walter
Socarrás reclama, ao lançar este disco, o posto do melhor arranjador da
América”. Discóbolo que dá razão a Carpentier (ou à Condessa de Marlín, não
sei: talvez a ambos) quando disse que os cubanos estavam todos bebuns, dizendo
assim talvez em francês que Cuba é uma ilha rodeada (por todas as partes) por
um mal de gênios ou gênios do mar. Mesmo que Silvestre quando ele se chama Ilha
diga que as ilhas sempre terminam por (ao menos tratar de) dominar o
continente, como o líquido que contém uma garrafa. Ao que o Diphunto respondia
citando, recitando as ilhas do Maregeo, essa ilha de Cretinos, creta, a
Sim-cilia, a Ingalaterra e ultimadamente disse Ele ao Japão, conhecido também
como Nipão, Nihão ou Império do Sol Na Sente.
Porém voltando a dar voltas neste disco ou melhor em sua envoltura ou
quadratura do círculo onde dizem ou diz WalSoc coisas como estas que há que
lê-las para crê-las e sic sic sic A cadeia de avocações que chega a
cada amante da música do sotaque autêntico de Cuba, leva ao público uma voz de
mulher, a de La Estrela. A Rainha, a Monarca absoluta da música cubana em todas
as suas manifestações. Nas modalidades e estilos dentro de um mesmo ritmo, na
expressão definitiva, no alarde acentuado de uma realidade indiscutida desde o
ontem distante ao presente e, quem sabe no futuro, há uma só estrela: La
Estrela (do caralho! mais que do pobre Gualterio Suárez que depois de
tudo talvez não tenha escrito isto porque interrogação o permitiria Cuba fecha
interrogação fecha parênteses e ponto e contínuo Porém sim foi WSeguro quem
escreveu o que segue sobre si sobre a capa encapada do disco “Neste álbum
Walter Socarrás faz um alarde inusitado do perfeito domínio que tem sobre as
distintas combinações orquestrais imaginavelmente (assim mesmo!) possíveis e
traça pautas na orquestração moderna” merda, traçar pautas na
orquestração! “Assim vemos como consegue magníficas combinações de
cordas e metais, quintetos de trombones com piano, baixo e ritmo” para terminar
dizendo que aspas atualmente dirige a orquestra de um luxuoso Cassino habanero para
a qual faz os arranjos orquestrais além de fazer os arranjos orquestrais para
outro faustuoso Cassino sempre com c maiúsculo fecha aspas e tomando o todo
pelo rabo da parte faz da orquestra cassino (não confundir por favor com a
Orquestra cassino da praia) e converte ou se converte a si mesmo em suas notas
nada musicais em Walter Socarrás o crupiê que orquestra, além de que me cago!
TODOS bebuns. Até os cassinos ou Cassinos. Cacassinos.
Estás equivocagando, me disse Walter Socarrás nessa ou esta ocasião. (Ou
cassino!) La Estrela não está enterrada no México, me disse embora não assim,
mas sim com jota. Não, lhe disse, gritei eu: NÂO? não, me respondeu ele, não
está enterrada no México com jota. Então onde perguntei eu interrogante. Ela
não está enterrada no México nem em parte alguma. Como! disse eu perguntando
com duplo sinal de exclamação, à frente e atrás, a palavra colhida, como o
general Custer, entre flechas. Ela não está morta então? Que NÃO está morta!?!
me disse ele interrogante assombrado ainda que não estivesse assombrado nem
interrogante, mas sim bem mais arrogante, abrogante, atorrante. Está mais morta
que o mar morto me disse e se riu. O que afinal não é tão mal acorde, disse-me,
não senhor. Embora fosse melhor fazer um acorde invertido, morto o mar, assim e
neste caso é um acorde perfeito ou maior se dizemos morta no mar. Porque é
assim me disse e me disse muito mais.
La Estrela morreu de verdade no México e seu secretário com o
neceser fez o impossível para trazê-la a enterrar em Cuba, e já se sabe o que
passa quando se faz o impossível possível que tudo termina no caos. A coisa ou
o caos começou quando tentaram embalsamá-la e uns amigos do amiguinho de La
Estrela buscaram o embalsamador adequado, de nome Inocente Adequado, que era o
que tinha mais fama no México porque não era outro (ou seja, era o mesmo) que o
que embalsamou o cavalo de Zapata. Porém o que se passa é que este embalsamador
Adequado era agora uma múmia ele mesmo, um velho velho, porém muito velho que
sequer via a quem embalsamar e talvez tenha até começado a auto-embalsamar-se,
e como todos os embalsamadores estava bastante tocado ou talvez todo o
contrário: ou seja, intocável. O certo é que este taxidermista mexicano tinha a
teoria de que a melhor maneira de embalsamar é a natural, que não é tão
desatinado como soa ou como se lê, mas sim que é mais, porque este doutor em
taxidermia de Oaxaca disse ou dizia o talvez diga ainda (nunca se sabe quando
um embalsamador está de todo embalsamado), dizia diz que a melhor tajidermia,
assim disse, é feita pela Mãe Natura e aí estão os mamutes, dizem que disse e
os amigos do amiguinho e o amiguinho que não era outro senão o necessário com
seu secreter se tornaram agitados para eludir o alude de manutes, o estampido,
antes que o velho tivesse tempo de agregar “que apareceram na Sibéria”. E com
esta confidência mais o suspiro aliviado da concorrência começou sua
conferência com a inferência de que era uma teoria a tomar com consideração
pela congregação. Em uma palavra (que é só por dizer: já verão) sua texe era
embalsamar as pessoas tal e como estão, ou seja, mortas, porém sem destripá-las
nem limpar suas vísceras (que o velho pronunciava viceiras) nem formolizá-las,
porém tendo cuidado de colocá-las em uma torteira de zinco ad hoc e jogando em
cima celofane derretido, porém não derretido ao calor, mas sim ao frio,
liquefeito, disse o velho, e com este plástico fazer um molde transparente
rodeando o cadáver por todas as partes menos por uma que se chama torta. Ilha
incorrupta em um mar de plástico, disse o velho. Sim, disse um amigo entre os
amigos, como a Bela Adormecida. E para que disse, porque o sectário recordou La
Estrela antes de tê-la esquecida e cobriu os olhos com uma mãozinha, assim,
dizendo Que não quero vê-la, porém disse Ai não! Noque o velho mumificante pôs
ponto final à sua fala dizendo, E isto é o que custa, filhinho, um olho da
cara! Aí não estava o ponto final da fala, mas sim um pouco mais adiante quando
o velho disse seu preço, este taxidermista pondo o taxis à frente da dermia e
ver que ninguém tinha dinheiro suficiente sequer para iniciar o processo que
depois de tudo era absoluta e totalmente experimental no sentido de que, como
dizia o Dinfundido, és perimental como toda teoria sem prajis. (Entre
parênteses) se os amigos de La Estrela não tinham dinheiro La Estrela mesma não
tinha muito tempo e já se sabe que time is money como money is time e o que é
pior ainda e terrível: time is time.
De maneira que, a múmia aconselhou que depois de tudo ele estava pelo
positivo, que era aqui o natural e que tão bom como o gelo plástico era o gelo
verdadeiro e se não se podia conseguir gelo glacial ou siberiano o gelo ainda
que fosse seco gelo era e melhor que nada ou que o Nada. Em seguida deu duas
injeções de cavalo (zapatista) de formol a La Estrela que esteve ali de corpo
presente o tempo todo e recomendou (o velho taxidérmico) que aceitassem a
oferta de enviá-la pelo mar, que afinal o mar é salgado e o sal cura. Além de
ser o transporte marítimo muito mais barato, disse. E em seguida falou da calma
oceânica, do iodo, do ar puro e de como se ganha perspectiva quando se está
rodeado de horizonte e se torna ilha. Terminou. Porém antes, uma menção
comercial. São dez pesos. Digo dólares, no câmbio atual. Pela consulta. E
passem bem.
O secresectário de La Estrela a embarcou por trem até Veracruz onde a
caixa ou como diz o Grande Bê não um ataúde, mas sim um alaúde, um
cataratafalso, o esféretro, onde seria embarcado rumo a La Habana. A
CompanhiaNacionalTransporte Esse A havia concordado que na alfândega mexicana
depois que abrissem a caixa para a inspeção (vocês já sabem: prata possível, o
Sagrado Patrimônio Artístico da Nação asteca sendo saqueado seguramente,
maconha para fumar) poriam mais geloseco, antes de fechá-lo claro está. E em
Ver-a-Cruz abriram e fecharam o, o, o caixão sem maior problema que o pequeno,
quase insignificante, desagradável esquecimento de um adjetivo que, a quem quer
que ocorra jovem que cause dano que falte diga-me você. Ou seja que enviaram um
garoto de recados colocar geloseco dentro e este foi e comprou gelo a secas no
mar de frente e o regou bem por todas as partes da ilha de aço macabro que
tinha dentro a pérola negra barroca. Foi quando lhe perguntaram (não à
perolada, mas sim ao pelado) se era geloseco que disse, Que seco nemque seco”
Mas tem que ser geloseco! Seco ou molhado, jovem, tudo é gelo, e seguiu
colocando o gelo, embora frappé, ao redor do estojo de metal que encerrava a
suma mortal de La Estrela. Depois fechou a caixa e disse que já podiam
embarcá-la gritando, Pracima com La Escarchada!
Não sei se vocês sabem que quando se diz que há calor em Veracruz quer
dizer que a onda do golfo ferve sob o sol e que vem da selva um vapor tórrido
que converte o porto em água para banho-maria, Esse dia fez calor em Veracruz e
o barco esteve atracado desde manhã cedo com o ataúde com La Estrela encerrado
na adega, uma caixa com gelo dentro de uma marmita em água em banho-maria
cozinhando a fogo violento na onda do golfo esquentada a vapor selvático.
O barco zarpou às quinze dois pontos zero zero horas. Duas horas mar
afora o fedor se sentia em todo o barco cobrindo todas as zonas da roda dos
ventos fétidos e souberam que o barco era o centro universal da peste. Em suas
entranhas encontraram a caixa jorrando água pútrida, soltando vapor hediondo,
chiando metífica. O médico de bordo declarou que não chegaria a La Habana e se
chegasse o ataúde não chegava o barco. A disjuntiva impressionou o capitão quem
fazendo uso de suas prerrogativas navais rompeu em pedaços o manifesto de carga
fúnebre e ordenou o único possível, entregar o morto a outro. Neste caso à
água.
Içaram com grande trabalho a caixa à coberta e a deixaram sobre a ponte
enquanto, em deferência por sua condição de mulher (a do cadáver não do
féretro), buscavam uma bandeira cubana, com respeito à sua condição de tal, com
que cobri-la (a caixa não o cadáver), ações que foram gestos desnecessários ou
sentimentais porque dentro da caixa não havia um cidadão cubano nem uma mulher,
mas sim uma incrível massa de carniça ao vapor. Quase como quem diz carne
assada. Para acrescentar grotesco ao absurdo ocorreu que ninguém a bordo sabia
como era uma bandeira cubana, coisa nada estranha em um barco canadense fretado
por um armador grego que navega sob bandeira panamenha com uma tripulação
composta de mexicanos, argentinos, um galego, um liberiano, a gentalha de sete
continentes e cinco mares (ou é o contrário? A gentalha de cinco mares e sete
continentes?) mais o capitão, polaco exilado e um clandestino de Pernambuco
nascido na ilha de Malta que ninguém detectou até que o barco chegasse à
Madeira. Finalmente, o capitão decidiu ou determinou que a bandeira de Havana,
assim disse, devia ser da cor habana já que esse era o nome e a cor de um bom
cigarro, e da adega trouxeram um pedaço de lã da cor de chocolate sujo na qual
envolveram o ataúde, de acordo com a tradição marinha. Mas ainda não o lançaram
ao mar.
Antes de fazê-lo decidiram buscar lastre. Que lastre ou não lastre!
disse um dos mexicanos ou o outro. Não estão vendo nada que não há cristão que
erga esse fardo! Se vai ao fundo, disse, predisse, ao mero fundo que se vá como
vão as arengas ao mal! Deram-lhe razão, sempre dão razão ao hiperbólico: em
todo caso muito mais caso que ao parabólico. Toda a tripulação, menos o
capitão, o timoneiro e o clandestino, teve que dar uma mão e logo a outra para
erguer o ataúde, enquanto que o mexicano dizia, declarava, gritava, Não disse,
não disse! Não disse, não disse! Não disse, não disse!, várias vezes e
finalmente exclamou: Não disse! justo antes de tropeçar com um cabo, cair para
a frente, empurrar o cozinheiro galego em sua queda que na própria prendeu a
caixa ao tempo em que também caía (como todos os cozinheiros galegos quando são
empurrados por trás enquanto levam em andor um ataúde pesado a bordo de
um barco de carga para lançá-lo ao mar porque fede) para a frente, conseguindo
em sua gestão cadente tombar o primeiro padioleiro e ambos servirem de
propulsor ao corpo inerte convertendo-o graças ao impulso em projétil e fazerem
com que saísse disparado sobre coberta enquanto os demais padioleiros, em
reflexa ação tardia, primeiro agarravam ar vazio e finalmente lenço vazio e
ainda da cor habana entre as mãos, fitando inúteis como a bala de lata envolta
em madeira, o balão quadrado, o míssil inverso caía de regresso à coberta,
escovava as pranchas de ferro, deslizava livre e rompia a varanda da ponte para
voltar a ser foguete segundos antes de decidir converter-se em torpedo e
mergulhar em arco de trajetória e cair na água com um ruído de barrigada tão
alto como a coluna de doze metros de altura por quatro de largura que ergue
água, borrifo e salitre até as caras aliviadas do peso e da responsabilidade
dos padioleiros e seu capitão enquanto o marujo mexicano, novamente de pé e
mostrando-se à água, gritava outra vez Não disse, filhos da, não disse! Ay
Chihuagua!
Já iam ocupar seus postos os membros da tripulação, a reparar a ponte
alguns, o capitão a fumar seu cachimbo, o cozinheiro ao caldeirão, quando o
silêncio abrupto do mexicano entre dois Nãodisse! Não disse! fez
com que virassem a cabeça e depois os corpos respectivos para onde estava este
olhando com a boca aberta debaixo do arco de seus bigodes mexicanos. Ou seja,
para o arco aberto debaixo do barco. Viram, como o mexicano, um pouco depois,
um pouco mais, surgir primeiro uma extremidade obscura e agoureira e depois
todo o féretro como um submarino de madeira, como um peixe morto e obsceno e
não é verdade que narro bem? perguntou Socarrás, socarrando, olhando para
Silvestre. Ninguém lhe respondeu nem ninguém teve tempo de fazê-lo porque em
seguida explicou, outrorrinolaringologista, que evidentemente, assim disse, com
a água do gelo feita vapor dentro do vapor a madeira havia inchado e agora o
estojo do féretro tecnicamente era impermeável, navegante e flutuava. Ou seja,
disse, era uma nave do tempo exterior.
Os mexicanos Não disse! e seu carnal e um estivador liberiano viram no
ataúde flutuante um castigo se não do céu pelo menos do mar insultado, um
seguro signo de mal agouro, o sinal da profecia e decidiram por sua conta (e
riscos) que havia que afundar aquele navio satélite que insistia em navegar
junto à sua rampa de lançamento. Sem consultar a ninguém começaram a atirar-lhe
várias coisas, todas lançáveis: um pedaço de varanda quebrada da ponte como se
fosse flecha, lanças de pedaços de madeira da mesma origem, um sapato de
baqueta, uma sandália, um jorro de insultos, várias balas de saliva e
finalmente seu desespero individual e coletivo e seu ódio cego e mudo.
Finalmente, alguém lhes socorreu trazendo uma escopeta com que disparar uma,
duas, várias descargas. Porém as balas (de chumbo) ou caíam próximas ou bem
longe e não acertavam nunca o alvo tão visível e obscuro ou acertavam todas em
alvorada se o alvo era o mar. Enfim um chumbo pegou na embarcação e ricocheteou
até a água, a madeira não somente se tornara impermeável como também
impenetrável. O capitão contagiado (esse não era seu nome, seu nome, completo,
era capitão Josef Teodor Achabowski, nascido em Korzeniev na Ucrânia Russa,
então sob domínio polaco, a 3 de dezembro de 1857, pelo que contaria, mediante
ábaco, com 101 anos de idade, segundo o novo calendário. Seu pai, um
latifundiário de gostos literários, foi exilado para o norte da Prússia por
haver participado nos movimentos pela independência russa do jugo polaco. Os
pais de Achabowski morreram antes que este nascesse, de maneira que foi dado à
luz por seus avós. Depois de navegar muitos anos pelas águas que circundam os
continentes, decidiu espanholar ou apocopar seu nome pelo que era conhecido
agora ou antes, ou seja, no momento em que ocorre esta história como o Capitão
José Acá ou Capi Acá ou Pele el Poloco, porém esta é outra história.) decidiu
ordenar baixar um bote e deixou sua ordem sem efeito ou com efeito retroativo.
Os mexicanos e o liberiano embarcaram com os archotes de incêndio na mão e após
alguma indecisão decidiram depositá-los no fundo da embarcação para remar,
cuidando para que não ficassem com o fio para baixo. Como o barco teve que
reduzir a marcha para descer o bote, quando este tocou água o féretro levava já
alguma vantagem até a proa e se viram obrigados a remar duramente e contra o
vento, conseguindo com sua perícia e esforço diminuir a vantagem do ataúde
boiante. Já estavam lhe alcançando quando um golpe de mar, a mudança de vento,
o rastro do barco, a corrente, o trópico de câncer ou o acaso (ou todas essas
coisas juntas) fizeram com que o ataúde barlaventasse bruscamente, girando em
redondo e investisse contra o bote, abrindo-lhe uma brecha de tamanho regular
antes que alguém pudesse evitar o choque dos corpos e muito menos descarregar
um golpe de archote salvador ou bom para paralisar o agressor, e foi o bote que
fez água, inclinou-se e ia a pique entre o silêncio do mar e os marujos.
Silêncio que durou pouco porque outra investida do ataúde raspou com um chiado
como uma chiadeira triunfal a popa do bote que afundava ao mesmo tempo que os
dois mexicanos nadavam com fúria até o barco e o liberiano se debatia, engolia
água, parecia que se afogava e finalmente nada também até o barco ansiosamente.
Os outros marujos não puderam fazer outra coisa senão recolhê-los os três com cabos
e salva-vidas enquanto o capitão Acá ordenava, Chamem Ismaelzinho o médico de
bordo antes de tornar a ver afastando-se La Estrela em sua tumba flutuante que
para ele era um destino invejável: o insubmergível, o navio perfeito, o
anti-Titanic ou talvez fosse o mito: um María Celeste de carne e osso e
madeira, a holandesa errante, e fascinado a viu primeiro a olho limpo de lobo
do mar, depois com olhos de marinheiro, depois com olhos sujos de pranto,
depois com seu binóculo, depois com sua catarata e viu como a Nau se fazia
Nada: primeiro foi baleia de madeira e graxa, depois peixe fúnebre, depois
crista de onda negra, em seguida mosca dos olhos até ser tragada pela distância
e perder-se no mar, em nossa eternidade Silvestre, navegando viajando flutuando
no Gulf Stream a 13 nós por hora com rumo nor-noroeste.
Isto foi o que me contou Walter Ego antes de anunciar o inevitável, que
não era o anticlímax, mas sim o clima, E por aí deve andar ainda, dando a volta
ao globo, e acrescentou, Um matías pérez marinheiro. Bom, disse Silvestre, um
pós-data é uma forma de epitáfio. Ou vice-versa. O que é um retoque disse eu.
Ou seja, disse Silvestre, permissão para um leva sobressalto. Casar a verdade
com o final. Ou como diria o Huno, um epitalafio.
Porém o verdadeiro epitáfio, a epifania, o epifonema, a epístola, a
epígrafe, o epigrama ou a epítase não o disse o epífito nem o Epígono, mas sim
falsar. Citei, re-citei: Sicus Vita Finis Ita. Só que realmente
pronunciei Si Cubita Finisita.
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Jorge de Lima
Matéria
traduzida por Floriano Martins
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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