Nos Dispersos de Cecília Meireles, publicados pela primeira vez em 1997,
no Rio de Janeiro, lê-se um longo e tocante poema que começa apontando abruptamente
que, na prisão, se encontram quatro mulheres. E, à medida que o poema avança, o
número de mulheres enclausuradas vai-se multiplicando freneticamente: de quatro
para quarenta, de quarenta para quatrocentas, de quatrocentas para quatro mil e,
destas, para quatro milhões – dando-nos conta de que, afinal, no caso do feminino,
o encarceramento não é um estado de exceção.
Leio a última estrofe:
Quatro mil mulheres, no cárcere,
e quatro milhões – e já nem
sei a conta,
em cidades que não se dizem,
em lugares que ninguém sabe,
estão presas, estão para
sempre
- sem janela e sem esperança,
umas voltadas para o presente,
outras para o passado, e
as outras
para o futuro, e o resto
– o resto,
sem futuro, passado ou presente,
presas em prisão giratória,
presas em delírio, na sombra,
presas por outros e por si
mesmas,
tão presas que ninguém as
solta,
e nem o rubro galo do sol
nem a andorinha azul da lua
podem levar qualquer recado
à prisão por onde as mulheres
se convertem em sal e muro. [1]
Trago para aqui este poema (que tem indicialmente o título de “Prisão”) como
uma espécie de umbral de entrada (e espero que de saída) desta questão sobre as
Damas, de que quero me ocupar agora. Porque,
tal como estas mulheres de Cecília (egressas de todos os tempos) e tal como a Mariana
Alcoforado (madre seis-septcentista), também as visadas Damas (medievais) de Maria Teresa Horta e de Ana Luísa Amaral se encontram
em cárcere privado. Delas, só Mariana parece estar (digamos) “legitimamente” retida,
visto que é freira, e que o convento tornou-se, embora contra a sua vontade, o seu
lar. No entanto, sabemos, é pelo seu corpo, cuja voz as Três Marias enunciam e traduzem
pouco a pouco nessa incisiva escrita de alforria feminina que são as Novas Cartas Portuguesas (1972), que esta
Sóror se evadirá do claustro, estorcendo-se em prazeres nunca dantes ousados, multiplicando-se
em mulheres de ventre e orgasmo sem peias.
Exemplário de liberação feminina, tal obra é certamente referência e espelho,
mensagem e novas cartas para as Damas que habitam os derradeiros livros de
Horta e de Amaral, vindos a lume no ano passado. Acrescentando-lhes mais e mais
imagens e perspectivas, elas atualizam agora essa “epistolografia” (em que todas
nós, mulheres, nos inscrevemos e nos escrevemos), revisitando a nossa história,
vasculhando-a então a partir da Idade Média, para transmitir um novo grito de guerra
às gerações vindouras. Não é, pois, uma simples coincidência que uma das Três Marias
seja a autora de uma das duas produções que trago agora, e que Ana Luísa Amaral,
a mais insigne dos comentadores dessa fundante obra de 1972, seja a outra.
Assim como as Cartas da Freira
Portuguesa foram, para as três mencionadas escritoras, a “sombra ligeira”, a “sílaba”
que ficou decantada no fundo do “cesto” esvaziado, para que elas o pudessem preencher
com mais e mais “sílabas” e mais “outras palavras” - também as Novas Cartas parecem ter-se tornado resíduo
comum aos “cestos” de Maria Teresa Horta e de Ana Luísa Amaral, já então enquanto
“rastilhos” e “bombas”, propiciando-lhes os respectivos “momentos de ladrão”. Pois
não é exatamente essa a operação literária de escrita?!
“Pá, limpa o cesto!” – eis a palavra de ordem de Ana Luísa Amaral, implícita
em seu poema “Palimpsesto”, incluído nesse seu mais recente livro, Vozes. [1] E é nessa obra, entre trovas e sextinas, que a sua Dama se encontra presidiária. Ela se acha
atada às malhas da… escrita, lugar, afinal, bem acolchoado, verdadeiro ninho de
“algodão em rama”. O problema é que as folhas de papel pertencem ao Cavaleiro, são
sua propriedade e por ele manipuladas. E o Cavaleiro, malgrado seja seu senhor,
quer tirar de lá de dentro a nossa Dama; e ela, que tem razões e argumentos próprios,
não vai fazer-lhe a vontade: insiste, na contramão do desejo dele, em ali permanecer.
Bem, essa é a cena dialogada que os quatro longos poemas de “Trovas de memória”
descerram ao nosso entendimento, providenciando, entre os dois contendores, um bate-boca
muito significativo, e ao qual tentarei dar voz.
Já em Maria Teresa Horta, a Dama
que, durante todo o percurso dos poemas, se vê livre para ir de um para outro canto,
acaba por restar perpetuamente amarrada, embaraçada e presa pela linha, pela lã,
pelos laços, pela tinta, pela trama ardilosa das tapeçarias, onde, afinal, ela vai
exibir para a eternidade a “infindável e incomensurável cadeia” que a agrilhoa ao
Unicórnio. [3]
Em Horta, o vocábulo de base, que aciona a passagem da Dama para diferentes destinos, para um e
outro dos diversos estratos em que ela se desloca com desenvoltura, é a “fresta”:
a fenda entreaberta, o intervalo, o sulco, a fissura da tela em processo de bordadura,
que providencia a comunicação entre os vários componentes da tapeçaria.
Se, de um lado, essa brecha metaforiza o corpo feminino e seu sexo, sua entrada
e abertura para o mundo, pois que é o “aceso vulcão/da boca do seu corpo”, por outro,
e paradoxalmente, encerra o destino histórico e fatal da mulher, seu fechamento
e cárcere. Não nos esqueçamos que o Unicórnio, seu comparsa nessa trama, [4] e cujo corne tem “o poder do delito”,
também se associa, num de seus mitos, à virgindade – corrente que a tem algemado
por eras e eras. Assim, a propensão da mulher à abertura, ao movimento, ao trânsito,
acaba por convocá-la à prisão que a Dama
da tapeçaria tem ostentado durante séculos para a humanidade: a da imobilidade perene,
a do amordaçamento, a de alguém que, embora emita uma “fala”, não encontra para
esta o “mundo” que a ouça e que lhe dê sentido - axioma que, afinal, encarna um
signo só significante, sem significado ainda, muito semelhante à concepção do “não-toda”
lacaniano. E descrevo o livro de Horta a fim de que possam me acompanhar nessa especulação.
Composto por 72 peças, a obra divide-se em seis grandes quadros, à imitação
do número dessas mencionadas tapeçarias medievais: “Arte e ofício”, “As personagens”,
“As tapeçarias”, “O mito”, “À mon seul désir” e “A eternidade”. Tais conjuntos de
poemas ficam resguardados por outros: pelo que os antecipa e pelo que os finaliza,
de maneira a que estes componham um cadre,
uma moldura que vai tanto conter os grupos que perfazem o fulcro da obra, quanto
evitar que a Dama se solte e se escapula
para todo o sempre. Cada conjunto se apresenta intervalado por outro grupo de poemas
sempre intitulado “Ad limina”, e que fazem as vezes de divisórias, de biombos, de
anteparos entre uma parte e outra. Sua função é semelhante à da didascália: tais
grupos realizam um escrito poético paralelo, com índole crítica, informativa ou
explicativa acerca dos blocos adjacentes.
Além disso, agrega-se aos poemas um aparato das artes visuais, da música
e do canto: as fotos das célebres tapeçarias de Cluny, recortadas com vistas a cada
poema; a “cantata profana” de Antonio de Sousa Dias; e a “recitação” do livro por
Ana Brandão – ambos acoplados ao volume como cd anexo. Tais apetrechos e mais a
estrutura que os poemas desenham vão conferir ao livro de poemas de Horta o aspecto
de um espetáculo e, mais que isso, um espectro lírico-teatral de auto-medieval (digamos)
pós-moderno. Vejamos.
Na sua grande maioria, os versos dos inúmeros poemas se apresentam em medida
dita “pequena”: em quadrissílabos, em hexassílabos, em redondilhas menores e maiores
e, excepcionalmente, em octassílabos, para culminarem numa mistura entre decassílabos
e alexandrinos na massa de encerramento, que, por isso mesmo, parece ostentar uma
feição classicizante. Aliás, a preocupação latente no título deste derradeiro quadro,
“A eternidade”, vem acentuar tal perfil com a persistente interrogação da Dama, no início de cada um dos seis últimos
poemas, que vem à boca de cena para nos indagar em desespero: – “O que faço da minha
eternidade?”
De resto, tem-se a impressão que a medida dos versos revisita as eras, os
tempos literários, começando pela faixa temporal da confecção das tapeçarias na
Idade Média (segunda metade do século XV), até trazê-las para a nossa contemporaneidade,
que se estampa na desmesura das sílabas poética e nos versos brancos. Ora, todos
esses recursos confluem para flexionar uma caleidoscópica leitura lírica da condição
feminina através de diferentes retomadas de cada uma das seis tapeçarias medievais
francesas conhecidas como “La Dame à la Licorne”: “A vista”, “O ouvido”, “O gosto”,
“O olfato”, “O tato”, “À mon seul désir. E a tal ponto, que aquilo que pertence
a um dos tantos patamares de existência da tapeçaria fica sempre disponível e prestes
a entrar em contato com outro e outro patamar, muitas vezes praticando uma interessantíssima
intersecção de camadas, prodígio da tal mencionada “fresta” que, assim, se revela
um eficaz expediente técnico-semântico propiciador dos trânsitos do feminino.
Eis como os objetos do plano material (oficina, tear, lãs, linha, agulha,
tinta, bobinas, artesãs, artista, pontos de bordado, desenhista, talagarça, tela,
etc), daquilo que diz respeito ao “entrançamento” da tapeçaria, do seu universo
infra-estrutural, passam a se cruzar e a conviver com os materiais do nível da “urdidura”
da tela. Ou seja: com os seres, os objetos, os animais e as vegetações do enredo,
bem como com todos os estratos sócio-culturais e míticos que foram se apensando
aos quadros ao longo dos séculos - trâmite que alcança até mesmo a escrita dos poemas.
É quando a poesia se torna, então, trabalho manual de desenredamento, de
desconstrução, de desocultação e de reorganização dos materiais anteriores, e, para
o caso - tanto dos componentes das tapeçarias quanto daqueles do poema. De maneira
que a obra de Horta vai, assim, localizando agudas visões sobre a condição da mulher,
interrogando sobre o comportamento dos gêneros, ao mesmo tempo que, metalinguisticamente,
se põe buscando dar conta daquilo que vai produzindo pouco a pouco. Já se vê que
é nessa agitação interna que a Dama ganha
vida própria.
É assim que os nós dos pontos tropeçam nos dedos das artesãs diante do olhar
da Dama e das meadas de lã; é assim que as dobras dos vestidos da Dama escondem
interditos; que as bordadeiras tocam o corpo da Dama e esta se entrega ao afago;
que os sons do verso assimilam o ruído do bosque onde habita o Unicórnio; que as
tecedeiras ondulam diante do Unicórnio como a seduzi-lo; que o fole da harpa tangida
pela Aia ajuda na voz da frase; que as fiandeiras tentam capturar com suas linhas,
no afã de materializá-lo, ao Unicórnio; que a destreza do artesão toca o modelo,
que vibra; que o ritmo do vento no bosque ingressa no zunido do verso; que Geneviève
de Nanterre e Claude Le Viste, mãe e filha, confundidas pelo artista numa só mulher,
tornar-se-ão muitas - o próprio Eterno Feminino: Helena de Tróia, Dalila, Medusa,
Penélope, Artemísia, Alice, Eurídice; e que o Unicórnio se transmuta em Pégaso,
em cisne, anjo, noviço, cordeiro, narciso, Estrela Polar e em todos os símbolos
da água, espelhando a operação de transfiguração – alegoria do próprio trabalho
poético. Afinal, a poesia de Horta, desmanchando o referencial existente, dissolvendo-o,
acaba por rearranjá-lo de um outro modo, realizando o prodígio do “solve et coagula”
da Opera Magna que, simbolicamente, o conjunto das tapeçarias ensina:
“visita interiora terrae,
rectificando invenies occultum lapidem” [5]
Muito embora todo esse mundo esteja prenhe de vida e dinamismo por baixo,
por dentro e à superfície da tapeçaria, nada, na sua rasura, parece fulgir ou mexer.
Porque é dali, daquele limiar, que a Dama, como mulher, nos olha impassível, naquela
referida “fala sem mundo” – muito embora traga no peito o coração amotinado. Ela
se acha perdida na mesma floresta de utopias que o Unicórnio, e nos exibe a mesma
eterna história sem saída, personagem de uma fábula que a inventa:
As tapeçarias fecham-na.
As tapeçarias
acorrentam-na, as tapeçarias
encarceram-na
Já em Ana Luísa Amaral, é o Cavaleiro quem quer desenjaular a Dama, que se encontra presa na… sua letra,
na sua tinta, entre rimas impuras – enfim, confinada nos seus cadernos. [6] Atada à escrita, à cola e ao papel, ostentando
“esculturas de arame” sobre o corpo – o espartilho? a espiral da brochura? –, a
Dama parece desconfiar do convite, visto
que resiste e que, até o fim do arranca-rabo, não vai ceder.
Ela, pelos vistos, deve ter sido muito importante: causou conspirações e
espantos, até disputas na arena. Talvez por isso mesmo, o nosso Cavaleiro nada possa
contra ela, porque, durante os quatro longos poemas, dois em redondilha menor, dois
em hexassílabos, as intenções, promessas e argumentos desse senhor não serão em
nada suficientes para demovê-la de seus propósitos de ali permanecer embutida. E,
para o caso, é bem isso: os arrazoados dele são inoperantes para tirá-la do seu
lugar, muito embora ele tenha se esforçado demais para retê-la ou – sabe-se lá?
– para espantá-la dali, visto que até já a atravessara com a caneta… Índice erótico?!
O Cavaleiro é decisivamente muito dúbio.
Para induzi-la a saltar do caderno e a vir ter com ele, ele vai contar, dentre
os seus recursos, com o de utilizar métrica diversa e, mais ousadamente, com um
outro método mais original: o da língua… inglesa e… francesa. E olhem que a língua,
neste caso, não é apenas a falada ou escrita, mas também aquela matizada de “fogo”
e “mel de lume”! A intenção do Cavaleiro, como sublinhei, não é nem um pouco unívoca!
E seu discurso se mostra ser, também, muito persuasivo. É mesmo mutante,
bem ao sabor das conveniências: deslizante, camaleônico, despistante. De um lado,
ele arroga não querer vê-la morrer ali embutida nas folhas, ao que ela retruca,
desdizendo-o, não estar lá dentro o inferno, mas sim fora do texto. De outro, ele
reclama contra o lança-chamas que ela direciona para ele (porquanto ele preferisse
a luz da lua), e se queixa do efeito ótico (hipnótico?) que ela (certamente ao torná-lo
seu leitor) exerce sobre ele.
Mas a Dama pretende mesmo é despedi-lo,
livrar-se dele: quer deixar de ser seu apêndice e deseja ser esquecida por ele.
Que ele arranje outro caderno, outra senhora e… um frasco de sais – aliás, dois
destes quatro poemas têm por título este enigmático “sal de memórias“. Quanto a
si, a Dama escolhe permanecer perdida entre as folhas do caderno, tão macias quanto
já foram um dia as mãos dele, das quais, aliás, ela abdica de vez: não quer nenhuma
proteção que lhe ofereça, insiste! E se ele não aceita a sua decisão, que a expurgue,
que a queime junto com o caderno, como na Inquisição, e que espalhe suas cinzas
pelos mares do sul…
Bem. Como na língua nativa e em redondilhas, a coisa não avança, o Cavaleiro
passa então para as sextinas, em inglês e em francês. E, já agora, não lhe pede
mais a mão, mas afirma que se contenta apenas com… um dedo! Jura que não passará
dos limites e que nem sonha em encontrá-la de corpo inteiro páginas à frente! Que
seu amor é apenas platônico, blábláblá, e assim por diante: que até aceita dela
um mísero sorriso, contanto que seja em… folha. Mas logo se contradiz: seu instinto
de posse torna a aflorar, e o novo argumento é que, embora sejam dela as linhas,
afinal o caderno é dele – autoridade é autoridade! O fato é que, seja em inglês
ou em francês, o Cavaleiro pretende mesmo é levá-la para outro continente, pra lá
onde há “quase uma cordilheira/de nada e de silêncio” – quer amordaçá-la com o seu
suposto amor?
Na folha de que é cativa, tentada e tocada pelo acento francês e pela palavra
em inglês, a Dama se acha, por momentos, indecisa, desalentada. Mas não demora a
se resolver: regressa logo à língua (que é sua), à redondilha (medida que é sua)
e à acolchoada e santa folhinha. Mas o digno Cavaleiro parece não desistir e ainda
tenta tirá-la mais uma vez para fora do caderno, e, desta feita, puxando-a (deselegantemente)
pelo nariz!
Para além da irreverência, finura da discussão e das deliciosas insinuações,
enfim, para além do “sal” picante, não há dúvida que tais poemas procuram revisitar,
através do tempo, códigos literários ancestrais: aliás, em todas as quatro nomeações,
a palavra “memória” está sempre nos advertindo disso. E, neste caso específico,
Ana Luísa Amaral quer mesmo é pôr em crivo, empenhada e implicitamente, um dado
estético da Idade Média: o estatuto cortesão da Cantiga d´Amor medieval e, através
dele, a condição feminina incrustada e confinada há séculos nesse gênero.
Dando direito de voz à mulher engaiolada em tal convenção, ela nos leva a
ouvirmos as suas expressões de vontade, escarafunchando também o seu desejo que,
nestes poemas, é posto em prova. De maneira que, por este viés, a convenção amorosa
vai definitivamente para as cucuias: a pretensa “cantiga d´amor” se transforma numa
quase altissonante “cantiga de tenção”, aquela que comporta uma disputa em pé de
igualdade. A Dama não é, em Ana Luísa Amaral, o fantoche, o modelo feminino obediente,
reverente e passivo, a quem o Trovador presta homenagem feudal simulando ser vassalo
– e não seria também esta a convenção entre Unicórnio e Dama? Aqui, ao contrário
das senhas amorosas e da mesura, ele não consegue disfarçar o seu poder sobre ela,
já que pretende, por toda a lei, passar por cima dos ditames da Dama, pois que não
se capacita a convencê-la de suas razões.
Dama e Cavaleiro se apresentam um diante do outro, desvestidas as máscaras
convencionais (embora se forjem outras de mera estratégia de relação): tanto ela
quanto ele querem coisas diversas e, porque não concordam e nem entram em pacto,
tem início o estágio de medição de forças de que os poemas são, afinal, o campo
de batalha. De fato, ele tentara seduzi-la com medidas próprias: com formas poéticas,
com expedientes lingüísticos, com imperialismos literários, com lábia e até com
erotismo. E quer nos passar a impressão de que luta contra si mesmo: afinal, o texto
é de sua lavra, é seu espaço particular; os cadernos também, a caneta, a tinta,
a cola, as folhas. De modo que, emancipar do seu território privativo a Dama, pode
parecer ser, da parte dele, um grande ato de bravura!
Por outro lado, a situação da Dama é muito delicada e complexa, e ela se
vê num impasse. Sim, porque permanecer ali, que é o que ela quer contra a vontade
dele, pode significar perpetuar-se à mercê de seu senhor, eternizar-se sob a sua
tutela, seu domínio. Saltar do caderno pode significar, ao contrário, a alforria
total.
No entanto, a sábia Dama não se engana. Ela se dá conta de que o que está
em questão não é um simples problema maniqueísta de sim e de não, e, muito menos,
uma exclusão de contrários. O nó é outro. E daí que ela opte por algo muito mais
significativo e louvável. De modo que ela se decide por uma terceira alternativa.
Ou seja: ela se decide pelo direito de decidir, de escolher onde quer estar - expediente
que até então lhe era estranho e ilegítimo. Reparem que tal diligência ultrapassa,
em muito, o estado de passividade e de submissão em que se situava até agora.
Por esse viés, a prisão dentro da página passa a ser, ao contrário do que
antes parecia, uma forma de libertação! Para a Dama da Cantiga d´Amor, a determinação
de continuar a permanecer recolhida, em vez de se deixar emancipar pelo seu Cavaleiro,
parece ser o único modo de, no contexto medieval que a rodeia, obter a sua autonomia.
E é assim que, nessa nova acepção de Ana Luísa Amaral, a cela feminina acaba
se tornando sinônimo de… liberdade. Porque, reparem, não é a Dama que salta do texto,
mas é ela quem, por vontade e decisão próprias, expulsa do seu texto o Trovador:
Pronto, agora, sim,
que bem que aqui estou:
sapatinho raso
a verso feliz.
Já disse: não quero,
ide-vos daqui.
Ufa! Ainda bem que trouxe para este desembocar a graça e o humor negro de
Ana Luísa Amaral. Só assim o citado poema de Cecília Meireles não nos fica ecoando
tão funéreo quanto nos pareceu no princípio da minha fala, quando o “sal” era, apenas
e tão-somente, um ácido componente do “muro” das prisões em que se encarceram as
mulheres.
NOTAS
1. MEIRELLES, Cecília – “Prisão”. Obra
Completa (org. António Carlos Secchin, intr. Miguel Sanches Neto, biogr. Eliane
Zagury, fort. crít. Ana Maria Domingues de Oliveira). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1997, 4 vols, pp.1759-1760.
2. AMARAL, Ana Luísa. “Palimpsesto”.
Vozes (posfácio de Vinicius Dantas, orelhas de Yara Frateschi Vieira). São Paulo:
iluminuras, 2013, p. 41.
3.
HORTA, Maria Teresa. “O que faço da minha eternidade”. A Dama e o Unicórnio (com CD contendo Cantata Profana de Antonio de Sousa Dias e poesia dita por Ana Brandão).
Lisboa: Dom Quixote, 2013, p. 139.
4. Mariana Ianelli vê, com propriedade, nessa obra de Horta, a cumplicidade
entre Unicórnio e Dama como uma alternância de imagens: “Maria Teresa Horta abre
sua longa série de poemas, alternando os papéis da dama e do unicórnio num jogo
de espelhos” (p.34). IANELLI, Mariana. “O mundo da dama e do unicórnio”. Valor n. 687, Ano 14. São Paulo, 10, 11 e
12 de janeiro de 2014, pp. 35-36.
5.
Cf. EVOLA, Julius. La Tradición Hermética. Barcelona: Martinez
Roca, 1975, trad. Carlos Ayala.
6. Com razão, em sua resenha sobre este livro de Amaral, Mariana Ianelli
reflete que “suas paisagens se fazem de entranhas, de possibilidades de ser, são
paragens de reflexão em meio aos mares navegáveis da escrita”. IANELLI, Mariana.“Reinvenção
de mitologias”. Prosa. O Globo. Rio de
Janeiro, 09/11/2013.
MARIA LÚCIA
DAL FARRA (Brasil,
1944). Poeta e ensaísta. Autora de livros como Livro de auras (1994), Livro
de possuídos (2002) e Alumbramentos (2012). Página ilustrada com obras de Ana Mendoza (Venezuela), artista convidada
desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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