Um padre ateu da França
do século XVIII escreveu tudo o que pensava a respeito da sociedade em que
vivia, com um simples intuito: mudar o mundo. Deu a seu livro o nome de Memória, a qual foi publicada, a seu
pedido, após sua morte em 1729. Ele não era um intelectual, um erudito,
escritor ou filósofo, assim, seu livro não contém nem os rigores da lógica, nem
um estilo literário. Sua preocupação central era com a injustiça. Enxergava a
sociedade nua e crua, sem se deixar enganar pelas aparências, pelas palavras
difíceis, pelo poder ou pela riqueza. Em Memória
despejou seus pensamentos, que não podiam ser transmitidos para ninguém, sob
pena de morte. Mas, o que havia de tão grave assim em um simples livro de
memória de um padreco dos confins da França do século XVIII?
Homem simples, sem
erudição, nascido em Mazerny, uma pequena aldeia da França, em 1664, Jean
Meslier não tinha muitas opções para o futuro. Acabou entrando no seminário de
Reims, onde torna-se padre. Até aí tudo muito igual e normal, não fosse sua
capacidade de ver o que se passa por trás das fachadas, ter a iniciativa de
registrar seus pensamentos em mais de seiscentas páginas e fazer duas cópias
para, antes de morrer, torná-las públicas. Meslier vivia sua rotina de padre,
cumprindo suas tarefas e obrigações, mas, nas horas vagas, registrava tudo o
que pensava e não tinha coragem de dizer. François Marie Arouet, mais conhecido
como Voltaire (1694-1778), teve acesso aos manuscritos e contribuiu, mais do
que ninguém, para a sua divulgação; porém, com um detalhe: antes de divulgar,
cuidou de deturpar o que lá estava escrito.
Meslier mantinha a profissão de padre apenas
como meio de sobrevivência, uma vez que não acreditava em nada do que pregava.
Neste livro revela a sua verdadeira postura, o seu verdadeiro modo de pensar
com relação ao comportamento do homem, em especial no que diz respeito ao
governo e à religião, que, para ele, tem uma ligação direta. Ao descrever a
sociedade de sua época, expõe abertamente sua indignação perante tanta
injustiça, impiedade e mentira por parte dos governantes: "Uma vez que os
reis querem, sobretudo, enriquecer e tornar-se os senhores absolutos de todas
as coisas, é preciso que as pobres gentes façam tudo o que lhes é exigido e que
lhes deem tudo o que lhes é pedido, e isto sob pena de a isso serem obrigados
por todos os tipos de meios rigorosos: por sequestros e execuções dos seus
móveis, pelo encarceramento das suas pessoas e por todos os outros tipos de
violência" (Jean Meslier, Memória,
Portugal: Editora Antígona, 2003 – todas as citações aqui são desta edição).
Se por um lado parece
estranho desempenhar essa função e ao mesmo tempo ser contra tudo o que lhe diz
respeito, por outro lado, devemos reconhecer que o melhor lugar para conhecer a
fundo um inimigo é dentro de sua própria casa. Se Meslier não tivesse estudado
para ser padre, permanecendo na Igreja por tantos anos, não poderia atacá-la
com tanta propriedade. Afinal, quem iria desconfiar de um padre? Sendo padre, e
estando por dentro, se não de tudo, pelo menos de muitas das mentiras e
armações da Igreja, Meslier pode constatar que a religião estava a serviço do
poder. Assim como, em seu materialismo, afirmou que Descartes estava errado,
pois, segundo ele, não há duas substâncias, uma espiritual e outra material,
mas uma só, material, Meslier constatou que não há duas instituições separadas,
uma política e uma religiosa, mas que estão unidas: "A religião apoia o
governo político, por mais pernicioso que este seja. E, por seu lado, o governo
político apoia a religião, por mais inútil e falsa que esta possa ser. Por um
lado os padres, que são os ministros da religião, recomendam, sob pena de
maldição e de danação eterna, a obediência aos magistrados, aos príncipes e aos
soberanos, como estando investidos por Deus da missão de governar os outros, e
os príncipes, por seu lado, fazem respeitar os padres. Garantem-lhes bons
vencimentos e bons rendimentos, e mantêm-nos nas funções vãs e abusivas do seu
falso ministério, obrigando os povos ignorantes a olharem como santo e como
sagrado tudo o que eles fazem e tudo o que mandam aos outros crer e fazer, sob
esse belo e enganador pretexto da religião e do culto divino". Meslier
confessa sentir aversão pelo humor "trocista e cômico" dos que só
pensam em garantir uma boa vida e zombar dos mistérios e das cerimônias vazias
da sua religião, zombando da ingenuidade dos que neles creem. Relata ainda que
o papa Bonifácio VIII "dizia, gracejando com os seus amigos: 'Ah!, como
enriquecemos com esta fábula de Cristo!'".
Para um padre ateu, obviamente Deus não
existe, e sua prova para tal inexistência é a seguinte: “…sendo evidente que o
mundo se encontra repleto , em quase todo o lado, de males, de misérias, de
vícios, de malevolências, de embustes, de injustiças, de roubos, de
latrocínios, de crueldades, de tiranias, de imposturas e de mentiras, de
discórdias e de confusões, etc., isto constitui uma prova indubitável de que
não existe nenhum Ser infinitamente bom e infinitamente sábio capaz de lhe
fornecer um remédio conveniente, e, por consequência, não há nenhum Ser
todo-poderoso que seja infinitamente bom e infinitamente sábio, como pretendem
os nossos cristícolas".
Assim, Meslier conclui que a religião é uma
invenção do homem: "É claro e evidente que constitui um abuso, um erro,
uma ilusão, uma mentira e uma impostura querer fazer passar leis e instituições
puramente humanas por leis e por instituições sobrenaturais e divinas. Ora, não
há dúvida que todas as religiões que existem no mundo são apenas, como disse,
invenções e instituições puramente humanas, e não há dúvida que aqueles que as
inventaram só se serviram do nome e da autoridade de Deus para melhor e mais facilmente
fazerem aceitar as leis e as ordenanças que quiseram estabelecer".
Em seu livro, Meslier escreve que desde a
infância se indignava com a injustiça no mundo. Depois de uma vida de
constatação, indignação e reflexão, conclui que a natureza existe por si
própria, sem nenhum poder sobrenatural, e que está aí para ser compartilhada
pelos homens de forma igual. Para ele, todos deveriam trabalhar na mesma
proporção, todos deveriam comer bem, se vestir bem, morar bem, e uns ajudar aos
outros. Não só dentro de uma comunidade, mas também entre as comunidades
vizinhas. Dessa forma a humanidade toda seria feliz e viveria em paz. Meslier,
o padre ateu, vê com seus próprios olhos que os camponeses com os quais convive
em sua aldeia vivem na miséria, trabalham como escravos sem ter quase o que
comer, enquanto a realeza e a nobreza vivem no ócio e desfrutam de toda riqueza
e conforto, às custas destes camponeses sofredores. Conclui Meslier que a razão
dessa injustiça não vem da natureza, mas do próprio homem, pois nascemos livres
e iguais, e depois essa igualdade é dizimada pelos homens inescrupulosos, que
criaram as religiões. Para ele, a aristocracia e a monarquia é herdeira de um
passado de tiranos cruéis e sanguinários. Só se adquire títulos com atos de
violência. Só se mantém os títulos mantendo-se uma sociedade escrava. Mas como
uma minoria pode obrigar uma maioria a ser sua escrava? É aí que entra a
religião. Para Meslier, a religião é apenas um instrumento de dominação do
povo. Os governantes e o clero estão unidos, trabalham juntos. Os homens de
batina dizem que todos devem obedecer ao rei porque ele foi enviado por Deus.
Justificam a pobreza do povo com a promessa da felicidade eterna nos céus. O
discurso moral religioso tem como objetivo manter o povo submisso e servo. Ele
instiga o medo com a ameaça de um inferno que não existe. "Pouco a pouco,
os homens habituaram-se à escravatura, e agora estão tão acostumados a ela que
quase não pensam em recuperar a sua antiga liberdade. A escravatura representa
para eles uma condição da sua natureza. É por isso também que o orgulho destes
detestáveis déspotas vai sempre aumentando e é também por isso que eles todos
os dias tornam mais pesado o jugo insuportável do seu domínio tirânico".
Enquanto a religião cristã instiga o povo a temer o diabo, Meslier diz que os
únicos diabos que devem temer são os parasitas do governo e da Igreja, que
vivem as suas custas. Meslier admite uma dependência e uma subordinação na
sociedade, mas não admite que isso leve à divisão desigual de bens e
satisfações. Não sendo anarquista, para ele deve haver uma justa subordinação,
na qual os mais honestos esclarecidos devem governar.
Jean Meslier diz que "como a forma
destes tipos de governos tirânicos só subsiste pelos mesmos meios e pelos mesmos
princípios que serviram para os estabelecer, e é perigoso pretender combater as
leis fundamentais de um Estado ou de uma República, não nos devemos surpreender
se as pessoas sábias e esclarecidas se conformarem com as leis gerais do
Estado, por mais injustas que possam ser, nem que elas se conformem (pelo menos
na aparência) com o uso e a prática de uma religião que consideram um fato
estabelecido, embora reconhecendo suficientemente os seus erros e a
inconsistência; com efeito, por maior que seja a repugnância que sintam pelo
fato de a ela se submeterem, é-lhes certamente muito mais útil e muito mais
vantajoso viverem tranquilamente, conservando o que podem ter, do que
exporem-se voluntariamente a condenarem-se a si próprios pretendendo opor-se à
corrente dos erros comuns ou querendo resistir à autoridade de um soberano que
deseja tornar-se senhor absoluto de todos". Vemos que Meslier tinha total
consciência de que as pessoas esclarecidas enxergavam os erros do governo e da
religião, mas que preferiam viver na hipocrisia do que se expor e correr o
risco de perder o que tinham. Por isso no centro de sua política estava o
campesinato, trabalhadores que não tem consciência que as classes dominantes
devem toda a sua riqueza a eles. Meslier quer conscientizar esse povo de que
está sendo enganado, e que devem se unir para acabar com todos os que vivem as
suas custas: a aristocracia, o clero, os abades, pregadores, cônegos, monges, o
alto clero, os grandes agrários e os cobradores de impostos. Ele diz: "Vós
sois sobrecarregados não apenas com os fardos dos vossos Reis e Príncipes que
são os vossos primeiros tiranos, mas sois ainda sobrecarregados por toda a
Nobreza, por todo o Clero, por todos os monges, por todos os homens de Leis,
por todos os homens da guerra, por todos os desonestos, todos os guardas de sal
e do tabaco e, enfim, por todos os mandriões do mundo. Porque é do fruto do
vosso trabalho que todos esses indivíduos vivem". (Edição de Amsterdão,
1864, vol. 2, p.171, retirado de um artigo de Abram Debórine, publicado em 1956
na França).
Enquanto Etiene La Boétie (França, 1530-1563)
sugere a desobediência civil, Jean Meslier indica uma solução, embora sem
muitos detalhes de como colocá-la em prática. Uma vez que toda a miséria e
injustiça provinham da tirania, ele propunha uma revolução para acabar com a
realeza e a aristocracia. Meslier incita o povo: "Uni-vos pois, povos, se
fordes sensatos. Uni-vos todos, se tendes coragem, para vos libertardes de
todas as vossas misérias comuns. Entusiasmai-vos e encorajai-vos uns aos outros
para uma tão nobre, tão generosa, tão importante e tão gloriosa missão como
essa. Começai em primeiro lugar por comunicar secretamente uns aos outros os
vossos pensamentos e os vossos desejos. Espalhai por todo o lado, e da forma mais
hábil que imaginar se possa, textos semelhantes, por exemplo, a este, que deem
a conhecer a toda a gente a vacuidade dos erros e das superstições da religião,
e que tornam odioso em toda a parte o governo tirânico dos príncipes e dos reis
da Terra. Apoiai-vos uns aos outros numa causa tão justa e tão necessária, em
que o que está em jogo é o interesse comum de todos os povos". Sua frase
mais famosa, que muitas vezes foi usada em protestos e manifestos e vem sendo
usada até hoje é a que diz que devemos "enforcar o último rei com as
tripas do último padre". Enquanto que um reformista diria para elaborar
novas leis, Meslier diz que primeiro há que destruir tudo, para depois fazer
boas leis. Em Memória, como num
desabafo, diz que "desejaria ter o braço, a força, a coragem e a massa de
um Hércules para expurgar o mundo de todos os vícios e de todas as iniquidades,
e para ter o prazer de abater todos estes monstros de tiranos de cabeça
coroada, e todos os outros monstros, ministros de erros e de iniquidade, que fazem
sofrer tão impiedosamente todos os povos da terra".
O falso padre Meslier queria que sua obra
fosse divulgada e lida porque acreditava que se o povo se conscientizasse de
que estava sendo enganado e se unisse para terminar com a tirania, poderia construir
um mundo diferente, livre de desigualdades e injustiças. Ele afirma que "a
malícia da mentira e da impostura, tal como a da injustiça e da tirania, que
destroem e aniquilam nos homens tudo o que poderia haver de melhor neles, e que
por essa razão são fontes fatais não só de todos os vícios e de todas as
malevolências de que estão imbuídos, mas também as causas desgraçadas de todos
os males e de todas as misérias que os afetam na vida". Ele diz que
deveria caber a todas as pessoas cultas esclarecer os povos, para que não se
submetessem a autoridade dos tiranos e que se persuadissem de duas verdades
fundamentais: seguir a luz da razão para se aperfeiçoar nas ciências e nas
artes, e seguir as regras da prudência e da sabedoria humana para estabelecer
boas leis: as regras da probidade, da justiça e da equidade natural, "sem
perder tempo com o que dizem os impostores, nem com o que fazem os idólatras e
supersticiosos deístas, o que proporcionaria a todos os homens mil vezes mais
bens, mais contentamento e mais repouso de corpo e de espírito do que o que
seriam capazes todas as falsas máximas e todas as vãs práticas das suas
supersticiosas religiões".
Meslier queria que seus futuros leitores
vissem a inutilidade e a falsidade de tudo o que os padres, pregadores e
doutores os fazem acreditar sob pena de condenação eterna. Em seu artigo de
1956, Abram Debórine diz que Memória,
ou Testamento, como ficou conhecido, "desempenhou um grande papel na luta
revolucionária contra a religião e o despotismo na preparação da Revolução
Francesa de 1789".
Jean Meslier, assim como Mikhail Bakunin
(1814-1876), Karl Marx (1818-1883) e Jean-Paul Sartre (1905-1980), faz parte de
uma tradição libertária igualitária ateísta. Pensador comunista, materialista e
ateu, foi o primeiro a expor uma tese de que não há Deus, combatendo a
religião, a tirania e a propriedade privada. Foi precursor do Iluminismo, assim
como Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e Denis Diderot (1713-1784).
Com tudo isso, pode-se dizer que o falso
padre Jean Meslier é a expressão mais radical do pensamento libertário e
revoltado. Mas só do pensamento, pois na prática ele não fez nada. Queria que
os camponeses arriscassem suas vidas para conseguir um mundo igualitário, mas
ele próprio não arriscou um fio de cabelo, para não correr o risco de perder
seu confortável emprego de padre. Ele próprio preferiu viver na hipocrisia do
que se expor e correr o risco de perder o que tinha.
Desde que a sociedade se organizou
politicamente, todas as formas de governo só diferiram e diferem no nome. Na
prática são todas iguais – nenhuma forma de governo se constitui para facilitar
o bem estar e o bem viver em sociedade. Em todos os tempos tivemos homens bem
intencionados, mas ingênuos como Jean Meslier, acreditando em mudanças vindas
de fora, através de revoluções. Não percebem que a única revolução é a
interior. Quando a humanidade se der conta disto, e cada um fizer a sua
revolução interior, trabalhando e integrando o bem e o mal que tem dentro de
si, não mais haverá espaço para governos tiranos, uma vez que nem mais será
necessário governo, pois cada um saberá governar a si mesmo, cooperando com os
demais no lugar de competir. Uma sociedade assim é composta por pessoas que
atingiram a maioridade que nos dizia Kant, também no século XVIII, em sua
famosa resposta à pergunta: O que é o Iluminismo?
***
ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora,
pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem
Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da
Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de
Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Nelson Screnci (Brasil),
artista convidado desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 28 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO
SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o
pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de
material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário