Belchior esteve em Porto Alegre nesta semana, recebendo
prêmio de um programa de tevê e promovendo o seu próximo disco, Coração Selvagem, que será lançado
aqui no dia 10. Em quatro anos de carreira no centro do País, o terceiro elepê do
compositor e cantor é também o título inaugural do cast brasileiro da gravadora
Warner – Belchior foi seu primeiro contratado, o que provocou discussões, no ano
passado, porque ele ainda estava vinculado à Phonogram, selo de seu segundo disco,
Alucinação, um grande sucesso popular.
Coração Selvagem terá três músicas já conhecidas (Galos, Noites e Quintais, Paralelas e Todo Sujo de Batom), mais seis inéditas: Caso Comum de Trânsito, Pequeno Mapa do Tempo, Clamor no Deserto, Populus, Carisma e a faixa-título. Nesta
entrevista, o cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, 30 anos,
volta a falar de seu assunto preferido: a arte e o artista.
JF | Você é um dos artistas que mais receberam espaço no ano passado, inclusive
em reportagens. Quando saiu o segundo disco, Alucinação, crítica e público
o receberam com muita disponibilidade, inclusive por suas opiniões sobre a função
da arte e do artista. Depois, vieram críticas como a de que alguns de seus questionamentos
não encontram correspondência na música que você faz em si.
B | Bom, primeiro eu acho que as pessoas todas têm plena,
total e irrestrita liberdade de manifestar a sua opinião contra e a favor. A essa
altura, eu tô pensando que o despertar da crítica, em termos positivos ou negativos,
é muito eficiente, na medida em que ele revela o trabalho. Claro que ele tem coisas
que as pessoas gostam e outras que elas não gostam. Essa diversificação, do ponto
de vista crítico, colocado na imprensa, é importantíssima. Se há unanimidade total
a respeito de uma coisa, não sei como pensar sobre ela. Eu gosto quando a informação
se manifesta na dialética que tem a colocação do meu trabalho. Se as minhas atitudes
têm correspondido às minhas declarações, disso eu não tenho o menor receio, porque
sei onde quero chegar com o meu trabalho e sei que tipo de atitude eu tomo quando
faço determinada coisa. Então, eu quero que isso se manifeste publicamente. O meu
trabalho é muito recente, ainda tem um caminho enorme para andar. A minha expectativa
é que quando ele chegar à plenitude, esteja plenamente conhecido. Quer dizer, o
fato de haver crítica eu acho positivo e importantíssimo, principalmente porque
sou a favor da liberdade total de opinião.
JF | Muitas vezes eu faço perguntas que não correspondem necessariamente ao que
penso, pois quero colocar na roda opiniões diversas e provocar o entrevistado.
B | Eu acho essa coisa incrível, porque devemos fazer um
longo papo nacional, geral, sobre todas as situações da música popular brasileira.
Não seria eu a pessoa a restringir o diálogo, em nenhum nível. E eu não levo isso
à omissão, mas até a confrontação pessoal com a crítica, não só do ponto-de-vista
do pensamento, como de enfrentar qualquer pergunta. Como pessoa pública que hoje
eu sou, devo explicações, e elas serão dadas, todas, desde que propostas.
JF | Eu gosto da sua música, não só porque carrega em si a qualidade. O que mais
me motiva a gostar não é o nível de qualidade, mas a fertilidade.
B | Sinceramente, uma coisa que está me agradando, e até
me espantando um pouco, é a minha colocação sobre o trabalho. Essa coisa de fertilidade
do trabalho é a coisa que mais me toca. Eu não vou dizer, por exemplo, que os assuntos
das minhas músicas sejam agradáveis para mim. Eu parto mais para a afloração, no
sentido de observar as correntes emergentes do tempo, as palavras das pessoas, fatos,
situações, e de colocar isso do ponto-de-vista estético, mesmo dando uma volta por
cima naquela ideia de que a arte deve sempre gratificar. Então, a gente põe em xeque
diversas coisas. É uma forma de exuberância, mesmo. Acho legal essa consideração.
JF | Acho saudável a contradição. Mas uma das críticas que fizeram a você, por
exemplo, é que uma música sua diz "um tango argentino me vai bem melhor que
um blues". Noutra, você canta muito semelhante a Bob Dylan, um folk mesmo.
B | Primeiramente, a crítica tem que saber com clareza o
que eu tô dizendo quando falo que "um tango argentino vai bem melhor que um
blues". Em segundo lugar, o fato de eu cantar parecido com alguém depende da
opinião das pessoas. Umas acham parecido, outras não. Do ponto de vista da opinião,
eu me permito observar a liberdade das pessoas, que estão no seu direito de achar
diversas coisas. O significado é que me preocupa: quando a gente diz "um tango
argentino vai bem melhor que um blues", tá citando o poema é Pneumotorax,
de Manuel Bandeira, que identifica o desespero humano máximo com o tango: "Agora
só resta tocar um tango argentino". Eu estava fazendo uma música sobre o desespero
íntimo e geral que, de repente, tomou conta de todos e que a gente procura mudar.
Eu me servi então de um verso de Bandeira. Claro que eu não tenho predileções por
blues ou tango, prefiro os dois. Mas, como artista, eu me permito fazer essa colocação,
pra citar o poeta e identificar um sentimento. Estou falando de uma coisa bem mais
profunda que os simples gêneros da música e bem mais ligada à vida do que à arte.
Isso não significa que eu não vá cantar blues ou tango, ou que não me permita incorporar
elementos criativos estrangeiros, novos, abstratos, aleatórios etc.
JF | Há pouco, você questionava a arte que se propõe à gratificação.
B | Olha, eu gostaria de dizer coisas agradáveis às pessoas
e de cantar o amor. Mas eu não sou mensageiro de coisas agradáveis. Estamos ficando
cada vez mais silenciosos, mudos, ensurdecidos com o silêncio ensurdecedor. Então,
eu quero testemunhar isso na minha obra. Do mesmo modo em que eu modifiquei, sem
a menor reverência, um trabalho já estabelecido, de 1973 pra 1976, porque eu achava
– e ainda acho – que a situação em 1973 tava igual à de 1975, desse ponto de vista
que a música coloca, agora eu diria tranquilamente "o desespero de 77"
(Nota da Redação [em 1977]: A Palo Seco,
lançada por Fagner, em 1973, foi regravada por Belchior três anos depois, com um
trecho atualizado da letra, dizendo que "Esse desespero é moda em 1976...").
JF | Você já pensou na diferença de enunciados entre o primeiro disco, feito pouco
tempo depois que você saiu do Nordeste, e esse terceiro, que envolve uma vivência
de quatro ou cinco anos no centro do País?
B | Basicamente, o meu universo de pensamento não mudou,
só que eu estou me aproximando cada vez mais de uma significação mais – vamos dizer
– compreensível da continuidade do trabalho. Aquilo que estava contido formalmente
nas letras e tal, hoje eu prefiro dizer direta e abertamente, sem recursos vulgarmente
conhecidos por estéticos. Eu procuro violentar o arcabouço da melodia ou da letra,
pra colocar mais significado dentro. E quando eu digo significado, é significado
mesmo, que as pessoas possam compreender com maior facilidade.
JF | No novo disco, Coração Selvagem, as letras continuam discursivas?
B | Continuam bem discursivas, como sempre, e eu cheguei
ao extremo de musicar um trecho em prosa, prosa mesmo, fora da formulação poética
tradicional. Com isso daí você já radicaliza esse fato.
JF | Quando conversamos na outra vez em que você esteve aqui, em outubro de 1975,
o elepê Alucinação ainda não tinha sido lançado e não havia um maior contato
seu com o público. Já no ano passado você deve ter feito muitas apresentações...
B | Eu estive em cerca de 60 cidades e fiz mais de cem shows,
nos mais diversos lugares e condições. Em sala de aula, penitenciária, praça pública,
igreja, televisão, teatro, festa, calçada, museu. Então, eu tenho uma experiência
vasta, não digo profunda, desse percurso de contato com o público. As apresentações
foram sempre estimulantes, do ponto de vista de que o público sempre se manifestava,
provocadoramente, fazendo perguntas, querendo saber coisas, pedindo explicações
e – vamos dizer – explanações sobre o meu trabalho. De forma que os shows sempre
foram completados assim, com conversas, discussões, algumas até violentas. Foi uma
barra enfrentar essa situação, depois de toda a estimulação pública que aconteceu
com o trabalho. Eu nunca tinha imaginado uma confrontação pública nesse nível. Ao
mesmo tempo em que havia uma aceitação irrestrita, o trabalho desperta ódios, interesses
e paixões: as pessoas que amam até o extremo e as que odeiam. Esse tipo de dialética
eu acho que prova a profundidade do trabalho. Ele tem trilhos e está andando.
JF | Você tem algo mais ou menos formulado a respeito da continuidade desse trabalho?
Isso é suposição, especulação, mas como ele poderá se desenvolver?
B | Eu sempre penso no meu trabalho em termos longos mesmo.
Hoje fazer uma coisa, amanhã outra, dar continuidade ao pensamento do trabalho...
Aliás, você deve estar admirado com o quanto eu insisto na palavra "pensamento",
não é? Porque eu acho que, basicamente, o meu modus cantandi, o método de
fazer música, é um modo de pensar a realidade. Então me preocupo nesse nível, da
obra, de vê-la mais ou menos acabada, finalizada, de forma que eu penso isso em
termos de uma vida toda. Eu sou uma pessoa que não tem a mínima condição de me afastar
voluntariamente do exercício de cantar, de fazer música, sabe? Eu quero cantar até
quando tiver 120 anos. E de cantar com todo o humor, negro ou branco, incorporar
os elementos humanos, sem complicações. Tudo o que é humano me diz respeito, então
incorporo isso no meu trabalho, sem pensamentos elitistas e tal. A minha obra pretende
ser um símbolo de liberdade em todos os níveis. A previsão pro meu trabalho é de
que ele continue, vigoroso e estimulante, porque eu nunca penso em acomodar uma
vida à carreira. O meu trabalho é uma coisa em movimento, dinâmica, que simplesmente
se vai aprendendo com o que acontece e projetando o que vem depois.
JF | Não me oponho à música estrangeira, de forma xenófoba, e sim à invasão internacional
que impede o surgimento de novos valores. De qualquer forma, há muitos exemplos
– e estou diante de um deles – de caras que conseguem emergir.
B | O artista luta contra essa fatalidade de que os novos
não podem, de que o que é bom não pode, de que o pensamento certo não pode. Essa
é uma mistificação do sistema para manter o status de quem já se sentou nas cadeiras.
Não vamos pretender que o sistema dê colher-de-chá, porque ele não tá a fim de dar
sopa pra ninguém. O artista tem que batalhar, encontrar a sua linguagem, fazer uma
música tão forte que o sistema se sinta obrigado a incorporá-la ao sistema de produção,
mesmo com toda a sujeira que é isso. Sou uma pessoa que acredita no poder do artista.
E depois, ele vai conseguir o seu espaço, em que poderá desenvolver o seu trabalho
criativo. Isso envolve problemas de economia seríssimos, de grana em cima, que a
gente não vai nem discutir aqui porque não é só problema de gravadora, mas do sistema
em geral. Mas o artista vive nesse meio e tem que fazer a sua obra. A dificuldade
dos novos eu não interpreto como uma interinidade, porque compreendo arte como uma
coisa profundamente humana, que acompanha o homem de forma radical, em qualquer
circunstância. É um poder humano, inalienável de sua realidade. O problema é que
os emergentes dependem das comunicações, da indústria do disco e da diversão, mas
também de certa batalha do artista, de querer fazer o disco e que o disco apareça,
de ter paciência consigo mesmo e com o seu trabalho. Claro que eu também dou o meu
irrestrito apoio aos artistas que não têm saco pra isso, que não querem transar
com o sistema, que acham que gravar disco não é uma coisa condizente com a sua obra.
Eu acho que esses são os sublimes, os radicais que chegaram à desobediência civil
e à omissão voluntária. Bom, mas quem está querendo fazer discos e aparecer (no
sentido próprio da palavra) sente as dificuldades nos veículos de comunicação, na
produção fonográfica, na compreensão do seu trabalho, por ser uma coisa nova. As
gravadoras não querem investir em quem elas não tenham certeza de sucesso. A imprevisibilidade
do talento, com que o artista joga, não é a mesma ideia da gravadora, que pensa
mais horizontalmente sobre isso. Investimento, lucro, novo investimento, maior lucro:
é uma coisa que faz parte do sistema de produção. Se o artista não entra com rigor
nessa linha de montagem, atrasa o trabalho dele com respeito à empresa, né? Então
ele tem que traçar estratégicas ofensivas para o seu trabalho.
JF | Na música popular internacional de hoje, é dada muita importância à indústria
do disco, que produz artistas como quem fabrica sabonetes. O disco é um veículo,
um tentáculo, mas o artista existe antes e depois da indústria.
B | Exatamente. O artista tem que ter essa noção clara de
que a obra é mais importante que sua veiculação, pelo amor de Deus! Então ele precisa
ter a consciência de que a empresa é simplesmente um dado nesse trabalho todo. E,
naturalmente, seria até uma certa inutilidade falar de artistas pré-fabricados,
porque também são desfabricados e absorvidos pelas novas embalagens, novos perfumes.
Eu sou tão apaixonado quando falo da figura do artista, que até me omito sobre os
fabricados. Claro, eu sei que existem e que chegam a sensibilizar diversas áreas,
não é? Da televisão, do rádio, do jornal e tal, mas não me interessam.
JF | Como você veria a possibilidade desses novos talentos desenvolverem e mostrarem
o seu trabalho fora da indústria da diversão? Viajar pelo Interior, cantar nas ruas?
B | Eu acho incríveis as alternativas do trabalho. O disco
é uma delas. Nós somos tão novos com respeito a ele, que ainda temos uma reverência
assim, mística, quando o trabalho do artista não deveria ser apenas o disco. O cara
pode nunca gravar e mesmo assim ser um grande artista, fazer show, cantar nos cafés,
boates, bocas, ruas, em todos os locais. As alternativas estão abertas, desse ponto-de-vista
da escolha particular: "As gravadoras não estão interessadas em minha obra,
então eu vou cantar nas universidades", essas coisas.
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JUAREZ FONSECA (Brasil, 1946). Jornalista e crítico
de música com passagem pelos jornais Folha
da Tarde e Zero Hora (1974-1996), onde foi editor do Segundo Caderno e do suplemento Cultura. Autor de uma biografia do trovador
Gildo de Freitas e do livro Ora bolas
– o humor de Mario Quintana. Entrevista originalmente publicada no jornal Zero Hora. Porto Alegre, 01/05/1977, aqui
reproduzida com autorização do jornalista. Página
ilustrada com obras de Nelson Screnci (Brasil), artista convidado desta edição de
ARC.
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Fase II | Número
28 | Junho de 2017
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