quinta-feira, 4 de maio de 2017

ESTER FRIDMAN | Todos os nomes do bem e do mal


Há aproximadamente vinte e cinco séculos vivemos o desenvolvimento de uma supremacia da consciência e da razão socrática. Neste período, o inconsciente e os processos instintivos têm recebido pouca atenção. No entanto, de acordo com Nietzsche, “a maior parte de nossa atuação espiritual nos transcorre inconsciente”, [1] enquanto que a consciência não faria propriamente parte de nossa existência individual, mas coletiva. Para este filósofo,

...o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (...) vão de mãos dadas (...) o tomar-consciência de nossas impressões dos sentidos em nós mesmos, a força de poder fixá-las e como que colocá-las fora de nós, aumentaram na mesma medida em que cresceu a urgência de transmiti-las a outros por signos. (...) Somente como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si mesmo – ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. – Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de rebanho… [2]

De acordo com o aforismo supracitado, transmitimos aos outros por signos nossas impressões dos sentidos. Dessa forma, a linguagem de signos, a linguagem que permite aos homens se comunicarem entre si, segundo Nietzsche, se desenvolveu e se desenvolve junto com a consciência e com o viver em sociedade. Ou seja, conforme o homem foi tomando consciência de si, foi sentindo a necessidade de comunicar impressões, sensações, desejos. Trata-se, portanto, de uma linguagem gregária, criada a partir daquilo que temos consciência. Para tudo aquilo que não temos consciência, não foram inventados signos, palavras. As palavras, então, com as quais falamos e pensamos, são signos de comunicação:

...o homem, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: - pois somente esse pensamento consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência. (...) a natureza da consciência animal acarreta que o mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado, vulgarizado – que tudo que se torna consciente justamente com isso se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com tornar-consciente, está associada uma grande e radical corrupção, falsificação, superficialidade e generalização. [3]

Não se pode esquecer que o próprio pensamento consciente, para Nietzsche, é instintivo: ”A maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas...” [4] Se, como ele diz, somente uma pequena parte do pensamento se torna consciente, e ainda por cima é a pior parte, a mais superficial; nos perguntamos: haveria uma maneira de acessar a outra parte do pensamento, aquela que não se torna consciente? Esta pensaria um mundo que não é de superfícies e de signos?
Além disso, em Nietzsche, a linguagem de signos não se restringe somente à função de comunicação. Segundo o filósofo,

a significação da linguagem para o desenvolvimento da civilização está em que, nela, o homem colocou um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou bastante firme para, apoiado nele, deslocar o restante do mundo de seus gonzos e tornar-se senhor dele. Na medida em que o homem acreditou, por longos lances de tempo, nos conceitos e nomes das coisas como em aeternae veritates, adquiriu aquele orgulho com que se elevou acima do animal: pensava ter efetivamente, na linguagem, o conhecimento do mundo. O formador da linguagem não era tão modesto de acreditar que dava às coisas, justamente, apenas designações; mas antes, ao que supunha, exprimia com as palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é o primeiro grau do esforço em direção à ciência. [5]

Ao longo do tempo o homem foi se esquecendo que os nomes que deu às coisas são apenas nomes, designações, e passou a acreditar que as conhece porque sabe seus nomes. Assim, a linguagem foi o primeiro passo em direção à ciência. Temos então uma linguagem nomeante de verdades como base dos saberes. Ao nomear um objeto, acreditamos não só saber sobre ele, mas que esse saber é verdadeiro e universal. Se a linguagem gregária, nomeante de verdades, é a base dos saberes; nos perguntamos: haveria uma outra linguagem, não gregária e não nomeante de verdades?
Enquanto a linguagem do consciente é uma linguagem de signos, e consciência, para Nietzsche, “é propriamente apenas uma rede de ligação entre homem e homem”, [6] os símbolos, de acordo com a habitualmente denominada “psicologia”, seriam a linguagem do inconsciente, [7] que não ligam um homem com outro homem, mas o homem com ele mesmo. Não estamos aqui falando de símbolos matemáticos, ou de símbolo como sinônimo de alegoria, emblema, sinal, etc. Trata-se do símbolo em seu sentido etimológico, do grego symbolon, que denota um sinal de reconhecimento, uma vez que symbálein quer dizer reunir, juntar, encontrar. Na Grécia antiga era costume, quando dois amigos se separavam, quebrar um pequeno objeto de argila, ficando cada um com uma metade. No reencontro, como senha de reconhecimento, cada um apresentava seu pedaço. Através da união das partes, de seu perfeito encaixe, era revelada a identidade do amigo. Essa senha é a tessera dos romanos. Assim, é nesse sentido original da palavra símbolo que opera a linguagem simbólica do inconsciente, uma linguagem de reconhecimento, de união do que estava temporariamente separado. Essa é a linguagem dos sonhos e dos poetas. Poeta aqui no sentido original grego, poietes, que significa criador.
Segundo C.G. Jung, “uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. (...) Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão.” [8] A razão exige definições, explicações, mas o símbolo, como diz Jung, “é uma expressão indeterminada, ambígua, que indica alguma coisa dificilmente definível...” [9] A expressão simbólica seria a expressão de algo desconhecido. É importante dizer que uma coisa conhecida jamais pode ser simbolizada, pois o que é conhecido é consciente, e símbolos, de acordo com Jung, “nunca foram inventados conscientemente; foram produzidos sempre pelo inconsciente pela via da chamada revelação ou intuição.”. [10]
De acordo com Mircea Eliade, o pensamento simbólico é inerente ao homem, precedendo a linguagem e a razão discursiva, e, tanto nosso pensamento discursivo, quanto nossa experiência imediata, não acessam a realidade total revelada pelo símbolo. [11] A afirmação de Eliade de que o pensamento simbólico precede a linguagem e a razão discursiva, a meu ver, aproxima-se da seguinte colocação de Nietzsche com respeito aos tempos passados: “Em tempos passados, o espírito não era solicitado pelo pensamento rigoroso; ocupava-se em urdir formas e símbolos. Isso mudou; a ocupação séria com o simbólico tornou-se distintivo da cultura inferior; assim como nossas artes mesmas se tornam cada vez mais intelectuais e nossos sentidos mais espirituais...” [12]
Esse aforismo de Nietzsche me parece sintetizar a passagem do pensamento simbólico para o pensamento conceitual. O segundo não anula o primeiro, mas o rebaixa a um plano inferior. Pode-se vislumbrar essa passagem na Grécia antiga, quando tínhamos Ésquilo e Sófocles e suas criações do coro trágico, permeadas de simbolismo. Em Eurípides, contudo, parece ter ocorrido uma transformação na linguagem: a linguagem simbólica teria sido substituída pela linguagem de signos. Segundo Nietzsche, “um demônio de recentíssimo nascimento, chamado SÓCRATES”, [13] é que falava pela boca de Eurípides, afugentando Dionísio do palco trágico. A tragédia, então, deixa de ser arte, e passa a ser argumentação. O desenvolvimento da supremacia da consciência tem início. Para Sócrates, não bastava saber intuitivamente, devia-se justificar através de argumentos. O conhecimento que se tinha de algo, para ele, não era instintivo. De acordo com Nietzsche, o famoso “daimon de Sócrates”, aquela voz divina que ele ouvia nos momentos que seu entendimento lhe faltava, é uma chave para entender Sócrates, uma vez que essa voz sempre vinha para dissuadir:

A sabedoria instintiva só se mostra, nessa natureza inteiramente anormal, para contrapor-se aqui e ali ao conhecer consciente, impedindo-o. Enquanto em todos os homens produtivos o instinto é precisamente a força criadora-afirmativa e a consciência se porta como crítica e dissuasiva, em Sócrates é o instinto que se torna crítico e a consciência, criadora – uma verdadeira monstruosidade per defectum! [14]

Ao detectar essa inversão feita por Sócrates, Nietzsche nos relata o que talvez tenha sido o acontecimento mais importante de toda a história ocidental. Ele nos fornece a chave para a compreensão de uma cultura que se desenvolveu a partir do que ele chama de “uma verdadeira monstruosidade per defectum”. Em Nietzsche, assim como nos gregos anteriores ao socratismo, e em todos os homens produtivos, o instinto é criativo e a consciência é crítica. Em Sócrates, assim como em todos os socráticos, a consciência passa a ser criativa e o instinto crítico.
Em decorrência dessa inversão socrática, e na medida em que o pensamento simbólico foi dando lugar ao pensamento discursivo, argumentativo, oriundo do consciente, os símbolos, que, segundo Jung, são produzidos pelo inconsciente, foram sendo “conduzidos para baixo”. No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche constata que “É preciso ser prudente, claro, luminoso a qualquer preço: toda e qualquer concessão aos instintos, ao inconsciente, conduz para baixo...” [15] Se, como diz Nietzsche, “a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história da má compreensão, gradativamente mais grosseira, de um simbolismo original”, [16] é porque o homem, gradativamente, foi perdendo sua capacidade de compreender símbolos. Segundo Jung, o racionalismo da consciência impede que a energia se transforme pacificamente e produza símbolos, pois a razão trabalha com opostos separados: bem e mal, egoísta e altruísta, dentro e fora, e assim por diante; enquanto que o símbolo opera na base da união. [17] Sabemos que, em Nietzsche, trata-se de um preconceito achar que os opostos têm origens diferentes:

“Como poderia algo nascer de seu oposto? Por exemplo, a verdade, do erro? (...) Tal gênese é impossível (...) as coisas de supremo valor têm de ter uma outra origem, uma origem própria – desse mundo perecível, aliciante, enganoso, mesquinho, desse emaranhado de ilusão e apetite é impossível deduzi-las! Pelo contrário, é no seio do ser, no imperecível, no Deus escondido, na ‘coisa em si’ – é ali que tem de estar seu fundamento, ou em nenhuma outra parte!” – Esse modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual se reconhecem os metafísicos de todos os tempos; (...) Pode-se, com efeito, duvidar, em primeiro lugar, se há em geral oposições e, em segundo lugar, se aquelas vulgares estimativas e oposições de valor sobre as quais os metafísicos imprimiram seu selo não seriam talvez apenas estimativas de fachada, apenas perspectivas provisórias (...).[18]

Para Nietzsche, os opostos não têm origens diferentes; são as mesmas forças que transitam de um polo a outro. Assim, um ateu tem sua referência em Deus, anti-metafísico em metafísico, anticristo em Cristo, anti platônico em Platão. Entre dois polos há apenas diferenças de graus. O problema estaria na linguagem gregária, que não pode “ir além de sua rudeza” e fala em oposições “onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações...”. [19]
Para Nietzsche, a razão socrática surge tiranizando os instintos em um momento no qual estes estavam em anarquia, uns se voltando contra os outros, [20] e “o fanatismo, com o qual toda a reflexão grega se lança para a racionalidade, trai uma situação desesperadora. Estava-se em risco, só se tinha uma escolha: ou perecer, ou ser absurdamente racional...” [21] A cultura ocidental se desenvolve, então, a partir desse fanatismo pela racionalidade. A própria filosofia se desenvolve com um predomínio da razão. Por outro lado, tudo o que não passa pelo crivo da razão socrática é conduzido para baixo, é desprezado, desvalorizado. Com esse fanatismo pela racionalidade, perdeu-se toda a riqueza criativa dos instintos, que Nietzsche procura resgatar. Para ele, a razão é importante, mas não se pode continuar negando a existência e importância também dos instintos, que guiam secretamente o pensamento consciente de um filósofo, [22] e que são a fonte da qual “provém a força motriz do símbolo”, [23] segundo Jung.
A partir da crítica nietzscheana a essa exclusividade da razão socrática, podemos detectar a presença de uma linguagem simbólica em alguns escritos de Nietzsche; linguagem esta que acessaria conteúdos que estão fora do alcance da razão. Uma tal linguagem em seus escritos estaria ainda relacionada à sua crítica ao cristianismo, posto que a linguagem simbólica tem uma orientação historicamente oposta à tendência alegórica deste:

o cristianismo inicial utiliza apenas conceitos judaico-semitas (...) Mas guardemo-nos de ver nisso mais que uma linguagem de sinais, uma semiótica, uma ocasião para metáforas. Para esse anti-realista, a precondição para poder falar é justamente que nenhuma palavra seja tomada literalmente. (...) ele não faz caso do que é fixo: a palavra mata, tudo que é fixo mata. O conceito, a experiência “vida”, no único modo como ele a conhece, nele se opõe a toda espécie de palavra, fórmula, dogma, fé, lei. Ele fala apenas do que é mais íntimo: “vida”, “verdade”, “luz” é sua palavra para o que é mais íntimo – todo o resto, a realidade inteira, toda a natureza, a própria linguagem, tem para ele apenas o valor de um signo, de uma metáfora. – Não se pode absolutamente errar nesse ponto, embora seja grande a sedução que há no preconceito cristão, isto é, eclesiástico: um tal simbolismo par excellence está fora de toda religião, de todos os conceitos do culto, toda história, toda ciência natural, toda experiência do mundo, todos os conhecimentos, toda política, toda psicologia, todos os livros, toda arte – seu “saber” é justamente a pura tolice quanto ao fato de que algo assim existe. [24]

Lemos, no aforismo supracitado, que deveríamos nos guardar de ver no cristianismo inicial “mais que uma linguagem de sinais, uma semiótica, uma ocasião para metáforas.” O que seria essa linguagem de sinais? Segundo Jung, há uma grande diferença entre símbolos e sinais: “O símbolo é uma expressão indeterminada, ambígua, que indica alguma coisa dificilmente definível, não reconhecida completamente. O ‘sinal’ tem um significado determinado, porque é uma abreviação (convencional) de alguma coisa conhecida ou uma indicação correntemente usada da mesma.” [25] Quanto à semiótica:

Toda concepção que explica a expressão simbólica como analogia ou designação abreviada de algo conhecido é semiótica. Uma concepção que explica a expressão simbólica como a melhor formulação possível, de algo relativamente desconhecido, não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica, é simbólica. (...) Explicar a cruz como símbolo do amor divino é semiótico, pois “amor divino” designa o fato que se quer exprimir, bem melhor do que uma cruz que pode ter ainda muitos outros sentidos. Simbólica seria a explicação que considerasse a cruz além de qualquer explicação imaginável (...) Uma expressão usada para designar coisa conhecida continua sendo apenas um sinal e nunca será símbolo. [26]

Quanto às metáforas, para Nietzsche, elas eram originalmente intuitivas. Posteriormente foram enrijecidas e petrificadas em conceitos. [27] Segundo o filósofo, a precondição para Cristo falar é que “nenhuma palavra seja tomada literalmente”, já que a palavra mata, como tudo que é fixo. “Ele fala apenas do que é mais íntimo”. O que não for íntimo, ou seja, “a realidade inteira, toda a natureza, a própria linguagem, tem para ele apenas o valor de um signo, de uma metáfora.” De acordo com minha leitura, ao chamar Cristo de “grande simbolista”, Nietzsche estaria acenando o abismo existente entre o que este pregava e o que prega o Cristianismo; o primeiro falando com o coração, simbolicamente, o segundo, com a razão, alegoricamente: [28]

Se entendo algo desse grande simbolista, é que ele tomou apenas realidades internas como realidades, como “verdades” – que entendeu todo o resto, tudo natural, temporal, espacial, histórico, apenas como signo, como ocasião para metáforas. O conceito de “filho do homem” não é de uma pessoa concreta que faz parte da história, de algo individual, único, mas uma “eterna” factualidade, um símbolo psicológico redimido do conceito de tempo. O mesmo vale novamente, e num sentido supremo, para o Deus desse típico simbolista, para o “reino de Deus”, o “reino do céu”, os “filhos de Deus”. (...) O “reino do céu” é um estado do coração – não algo que virá “acima da Terra” ou “após a morte”. [29]

A linguagem de signos, linguagem da comunicação, que fala do que é concreto, do que é histórico, é a linguagem conceitual, comumente adotada pela filosofia tradicional. Nietzsche, contudo, já em um de seus primeiros escritos, diz que “Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única, à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes...” [30] E, em um de seus últimos livros, dirá: “Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos.” [31]
Ao adotar o estilo simbólico, Nietzsche, a meu ver, não só estaria criticando a exclusividade da linguagem conceitual na filosofia, [32] a exclusividade da razão socrática e o cristianismo, mas, acima de tudo, estaria acessando aquela parte do pensamento que não se torna consciente. Em outras e suas palavras, não estaria trabalhando com o que é “da natureza de comunidade e de rebanho”, com “um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado, vulgarizado”, “raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo”, [33] uma vez que a linguagem simbólica não é uma linguagem do consciente, não é gregária, não é nomeante de verdades. 
Vimos que, segundo Nietzsche, “a linguagem é o primeiro grau do esforço em direção à ciência”, [34] ou seja, o primeiro passo para a ciência foram as designações que o homem deu as coisas. Enquanto as ciências visam sempre um saber através da linguagem conceitual, a linguagem simbólica não traz nenhum saber. De acordo com Zaratustra de Nietzsche, ela fala dos nomes das virtudes: “Símbolos são todos os nomes do bem e do mal: não declaram, só acenam. Tolo é quem deles quer tirar saber. [35]
Nietzsche faz uso do estilo simbólico em vários de seus escritos, mas é no Zaratustra que encontramos uma profusão de símbolos sem precedentes. Vimos que, para Nietzsche, não há oposições; são as mesmas forças que transitam de um polo a outro. Não por acaso que no Anticristo Nietzsche dirá: “A ‘boa nova’ é justamente que não mais existem oposições...”. [36] A linguagem simbólica, como diz Todorov, “realiza a fusão dos contrários”, [37] unindo assim o que estava em aparente oposição. Ora, todo o Zaratustra parece se compor a partir de elementos de aparente oposição, visando sempre a uma totalidade. O texto todo se tece em antagonismos: luz e sombra, vida e morte, declínio e ascensão, altura e abismo. É justamente a tensão permanente entre os opostos que fornece a dinâmica e a estrutura do livro. Através do jogo de oposições, Zaratustra traz uma mensagem redentora do mundo e da vida em sua totalidade. De acordo com Eliade, “a função de um símbolo é justamente revelar uma realidade total”. [38] Assim, a linguagem simbólica revelaria a totalidade que Zaratustra quer transmitir. Enquanto os signos expressam fragmentos, os símbolos nos permitiriam experimentar a totalidade.
Além disso, Nietzsche, pela boca de Zaratustra, parece querer nos dizer algo maior do que aquela “mínima parte” do pensamento tornado consciente. [39] Para tanto, não bastariam os signos. Se o demônio Sócrates afugentou Dionísio do palco trágico pela boca de Eurípides, Nietzsche, pela boca de Zaratustra, parece trazê-lo de volta. A meu ver, Zaratustra evoca o deus da vegetação para garantir a fertilidade necessária para o cultivo de uma árvore que cobrirá a Terra inteira. O cultivo dessa árvore é, segundo Nietzsche, a grande tarefa da humanidade. [40] O cumprimento dessa grande tarefa garantirá a renovação e transformação da vida; garantirá, como garantia entre os helenos os mistérios dionisíacos, o eterno retorno da vida:

...Pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco enuncia-se o fato fundamental do instinto helênico – sua “vontade de vida”. O que o heleno garantia a si mesmo com esses mistérios? A vida eterna (das ewige Leben), o eterno retorno da vida (die ewige Wiederkert des Lebens); (...) a verdadeira vida como sobrevivência coletiva pela geração, pelos mistérios da sexualidade. (...) Isso tudo significa a palavra Dioníso: não conheço nenhum simbolismo mais alto do que esse simbolismo grego, o das Dionísias. Nele o mais profundo instinto da vida, o do futuro da vida, da eternidade da vida, é sentido religiosamente – o caminho mesmo para a vida, a geração, como o caminho santo... Somente o cristianismo, com seu ressentimento contra a vida no fundamento, fez da sexualidade algo impuro: lançou lodo sobre o começo, sobre o pressuposto de nossa vida... [41]

A frase nietzscheana: “Dionísio contra o Crucificado”, [42] a meu ver, seria a reafirmação e a ressacralização da vida, com tudo que lhe é inerente, como a fertilidade, a sexualidade, a dor, o sofrimento, a alegria, e seu eterno retorno. O símbolo dionisíaco seria a antípoda do cristianismo e seu ressentimento contra a vida: afirmação versus negação da vida. Assim, Dionísio, o deus da árvore, como a própria árvore, seriam os “símbolos do eterno retorno nietzscheano”.    
Parece que, a despeito da inversão socrática, [43] da separação entre razão e instinto, de acordo com Nietzsche, a humanidade continua tendo como guia uma razão instintiva. Isso seria a “razão em prol da razão” de que nos fala Nietzsche: a razão instintiva, inconsciente, criativa, em prol da razão consciente, argumentativa, crítica. Apesar da “decrépita miopia” da razão consciente, a humanidade poderá cumprir sua grande tarefa: preparar a Terra para uma vegetação fecunda, semear e tornar-se a árvore do porvir, a árvore que cobrirá a Terra inteira. [44]
Todo o Zaratustra é rico em símbolos. Temos, por exemplo, a águia, a serpente, o leão, o camelo, a criança, a montanha, a caverna, o sol, o meio-dia, o eremita, a ponte, o barco, a ilha, o lago, o mar. Mas a árvore, a nosso ver, “simbolizando o eterno retorno”, ocuparia um lugar central na obra. Nas palavras de Mircea Eliade, “O mistério da inesgotável aparição da Vida corresponde à renovação rítmica do Cosmos. É por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob a forma de uma árvore gigante: o modo de ser do Cosmos, e sobretudo sua capacidade infinita de se regenerar, é expresso simbolicamente pela vida da árvore.” [45]
Desta perspectiva, a árvore, cujo deus é Dionísio, com seu aspecto cíclico de nascimento e morte evoca a ideia de vida eterna. Simboliza assim a vitalidade, a transformação, renovação e regeneração. Além disso, há um outro aspecto importante da árvore no Zaratustra: sua relação com a virtude da doação: “Mas eu sou dos que dão: agrada-me dar: como amigo que presenteia os amigos. Quanto aos estranhos e aos pobres, que colham por si sós os frutos de minha árvore: isto envergonha menos.” [46]
Assim como Dionísio, que distribui riquezas, também Zaratustra tem a virtude da doação, que é, para ele, a virtude mais elevada: “Rara é a virtude mais alta, e inútil, e resplandecente, e suave em seu brilho: uma virtude que dá presentes é a virtude mais alta.” [47] Podemos ler no aforismo subsequente, que Zaratustra roga a seus irmãos que sirvam ao sentido da terra com seu amor que dá presentes e seu conhecimento. [48] O amor que dá presentes, ou seja, a virtude da doação, e o conhecimento, já haviam sido acenados por Zaratustra no início do primeiro aforismo de “Da virtude que dá presentes”, pelo símbolo do bastão, presente que Zaratustra ganhou de seus discípulos: um bastão, cujo remate superior é feito em ouro, que contém uma serpente enroscada em volta do sol. No final desse primeiro aforismo, Zaratustra fala: “Poder é essa nova virtude; um pensamento dominante é, e, em torno dele, uma alma inteligente: um sol de ouro e, em torno dele, a serpente do conhecimento.” [49] A nova virtude, como diz Zaratustra, é poder. Esse poder seria amor e conhecimento, cujo símbolo é o bastão: o sol é o amor, pois está sempre se doando, ou seja, é a vida em abundância, é o pensamento dominante; e a serpente em sua volta é o conhecimento de uma alma inteligente. Ora, a nosso ver, Nietzsche está aqui acenando para um dos mais altos graus da vontade de poder: a doação. [50]
Assim, o simbolismo da árvore no Zaratustra teria uma relação direta com o pensamento do eterno retorno, entendido como a vida eterna, cujo simbolismo mais elevado, segundo Nietzsche, é o simbolismo grego dos rituais dionisíacos; guardaria relações ainda com a vontade de poder, não só em seu mais alto grau, que seria a virtude da doação, mas também quando indica uma vontade elevada e forte que quer sempre aumentar seu poder. Nesse caso, a árvore é o próprio Zaratustra, como podemos ler em “A saudação”: “Nada mais alentador, oh Zaratustra, cresce na terra do que uma vontade elevada e forte: essa é a planta mais forte da terra. Toda uma paisagem inteira se reconforta com uma só de tais árvores. Ao pinheiro eu comparo quem cresce como tu, oh Zaratustra: alto, silencioso, duro, solitário, feito da melhor e da mais flexível madeira, soberbo...” [51]



NOTAS
1. F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, Livro IV, aforismo 333, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. 1, p. 162. (Col. Os pensadores).
2. Ibid., livro V, aforismo 354, trad. de R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 173.
3. Ibid., p. 173, 174.
4. IDEM, Além do bem e do mal, cap.1, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 10.
5. IDEM, Humano, Demasiado Humano, vol. I, cap. I, aforismo 11, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 48, 49.
6. IDEM, A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 354, trad. de Rubens R. T, Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 172.
7. De acordo com Jung, “Os símbolos nunca foram inventados conscientemente; foram produzidos sempre pelo inconsciente pela via da chamada revelação ou intuição.” (C.G. JUNG, Obras Completas, vol. VIII / 1 - A Energia Psíquica, parágrafo 92, p. 47). Na introdução do livro organizado por Jung, O Homem e seus Símbolos, John Freeman, colaborador da confecção do livro, escreveu: “... A linguagem e as ‘pessoas’ do inconsciente são os símbolos, e os meios de comunicação com este mundo são os sonhos.” (C.G. JUNG, O Homem e seus Símbolos, p. 12). Jung foi não apenas leitor de Nietzsche, como também estudioso de seus escritos. Além das inúmeras citações do filósofo em sua obra, proferiu seminários, de 1934 a 1939, sobre o Zaratustra de Nietzsche, que, posteriormente foi editado por James L. Jarrett, professor de filosofia da Universidade de Berkeley, Califórnia, sob o título de Nietzsche’s Zarathustra: Notes of the Seminar Given in 1934-1939 by C.G.Jung.
8. Carl G. JUNG, O Homem e seus Símbolos, p. 20, 21.
9. IDEM, Obras Completas, Vol. V - Símbolos da Transformação, parágrafo 180, p. 112.
10. Ibid., vol. VIII / 1 - A Energia Psíquica, parágrafo 92, p. 47. Ver nota 7.
11. Mircea ELIADE, Imagens e Símbolos, prefácio.
12. F. NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, vol. 1, cap. 1, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 17.
13. IDEM, O nascimento da tragédia, seção 12, trad. de J. Guinsburg , p. 79.
14. Ibid., seção 13, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 12.
15. IDEM, Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”, aforismo 10, trad. de Marco Antonio Casa Nova, p. 25.
16. IDEM, O Anticristo, aforismo 37, trad. de Paulo C. de Souza, p. 43.
17. C.G. JUNG, Obras Completas, vol. VIII / 1 - A Energia Psíquica, parágrafo 47, p. 24.
18. F. NIETZSCHE, Para além de bem e mal, cap. I, aforismo 2, trad. Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 49.
19. Ibid., cap. 2, aforismo 24, trad. de Paulo C. de Souza, p. 29.
20. IDEM, Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”, aforismo 9, trad. de Marco Antonio Casa Nova, p. 24.
21. Ibid., aforismo 10, trad. de Marco Antonio Casa Nova, p.25.
22. IDEM, Além do bem e do mal, cap.1, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p.11.
23. C.G. JUNG, Obras Completas, vol. V - Símbolos da Transformação, parágrafo 338, p. 217.
24. F. NIETZSCHE, O Anticristo, aforismo 32, trad. de Paulo C. de Souza, p 39.
25. C. G. JUNG, Obras Completas, Vol. V - Símbolos da Transformação, parágrafo 180, p. 112.
26. Ibid., Vol. VI – Tipos Psicológicos, parágrafos 904, 906, p. 444, 445.
27. F. NIETZSCHE, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, aforismo 1.
28. Dentro da concepção goetheana de símbolo, podemos dizer que a alegoria atende às exigências da razão, enquanto que o símbolo não. Sobre a diferença entre símbolo e alegoria em Goethe, ver: Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, especialmente da página 251 à 260, onde Todorov comenta alguns fragmentos do Jubiläumsausgabe de Goethe, nos quais o poeta expõe as referidas diferenciações.
29. F. NIETZSCHE, O anticristo, aforismo 34, trad. de Paulo C. de Souza, p. 41.
30. IDEM, Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, aforismo 1, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 34.
31. IDEM, Crepúsculo dos ídolos, “A ‘razão’ na filosofia”, aforismo 1, trad. de Marco Antonio Casa Nova, p. 27.
32. Isso já estaria sendo feito ao adotar uma maneira própria de escrever, diferente da tradicional.
33. F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, livro V, aforismo 354, trad. Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 173, 174.
34. IDEM, Humano, Demasiado Humano, vol. I, cap. I, aforismo 11, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 49. Ver citação nº 5.
35. IDEM, Así habló Zaratustra, Primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 1, trad. de Andrés S. Pascual, p. 124.
36. IDEM, O Anticristo, aforismo 32, trad. de Paulo C. de Souza, p.38.
37. Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, p. 260.
38. M. ELIADE, Imagens e Símbolos, p. 177.
39. F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, livro V, aforismo 354, trad. Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 173.
40. IDEM, Humano, demasiado humano, vol. II, segunda parte: “O andarilho e sua sombra, aforismo 189, trad. de Paulo C. de Souza, p. 249, 250.
41. IDEM, Crepúsculo dos ídolos, “O que devo aos antigos”, aforismo 4, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 124.
42. IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 9, trad. de Paulo C. de Souza, p. 117. Essas são as últimas palavras de seu último livro. A nosso ver, o crucificado não seria uma referência a Cristo, mas ao que fizeram com ele. O que Nietzsche critica não é Cristo, mas aquilo que se denominou cristianismo.
43. Ver citação nº 14.
44. F. NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, vol. II, segunda parte: “O andarilho e sua sombra, aforismo 189, trad. de Paulo C. de Souza, p. 249, 250.
45. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, cap. III, “Simbolismo da árvore cósmica e cultos da vegetação”, p. 123, 124.
46. F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, segunda parte, “Dos compassivos”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 140.
47. Ibid., primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 1, p. 122.
48. Ibid., aforismo 2, p. 125.
49. Ibid., aforismo 1, p. 124.
50. Também a filosofia, para Nietzsche, é vontade de poder no seu mais alto grau. O grau mais baixo seria a vontade de poder ressentida, vingativa, que quer impor a vontade à força. Esse seria o caso de Paulo, que, para Nietzsche, tem muita vontade, mas é vontade ressentida.
51. F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, quarta parte, “A saudação”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 381, 382.

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ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali.
Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Arcangelo Ianelli (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.

Obras de Arcangelo Ianelli que constam desta página:
1. Chuva, óleo sobre tela, 61x80cm, 1957, Coleção particular.
2. Cristo, óleo sobre tela, 73x47cm, 1956, Coleção particular.
3. Descida da cruz, óleo sobre tela, 72x59cm, 1959, Coleção particular.
4. O menino pintor, óleo sobre tela, 92x74cm, 1954, Coleção particular.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 27 | Maio de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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2 comentários:

  1. Parabéns Ester pela sua reflexâo - fruto de estudos profundos e amplo conhecimentos das causas. Muito bom.Tema difícil pela qual você demonstra conhecimento e paixão. Grata a Floriano Martins pela excelente punlicaçao.

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    1. Muito obrigada, Leila. Fico muito feliz com a sua leitura.
      Um abraço!

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