quinta-feira, 4 de maio de 2017

DÉBORA BUTRUCE, RICARDO H. RODRIGUES, SERGIO RESENDE E T.W. JONAS | Roberto Piva na Interzona


INTERZONA | Queremos colocar a seguinte questão: o que você pensa acerca da relação dos artistas e dos filósofos com instituições? É certo que sempre houve relações desse tipo, entre artistas e instituições, entre filósofos e o Estado; por exemplo, Michelangelo, Bach e a igreja católica; Leibniz, Descartes e a corte etc. Atualmente também há uma relação como essa. No Brasil, você tem várias instituições ou corporações, públicas ou privadas, patrocinando o cinema, o teatro, a música, a literatura... Nossa questão, em linhas gerais, é: que tipo de relação é essa? Ela implica em restrições de algum tipo por parte desses órgãos? E, ainda, você considera que hoje é mais difícil contar com o apoio de terceiros para a promoção da arte, como na época da pintura renascentista, em que havia a figura do mecenas?

ROBERTO PIVA | É que a burguesia não é generosa, vocês estão falando da aristocracia. A aristocracia é outra história. A aristocracia sempre deu força para os artistas, sempre teve essa interação perfeita com os artistas, haja vista o papa lá que protegia Michelangelo. Certa vez chegaram para ele e falaram: Michelangelo praticou um crime; não só um crime, mas vários. E o papa virou e disse: Michelangelo é um homem de fé, ele pode praticar quantos crimes quiser. (risos)

 I | Você considera então que o sistema capitalista não permite mais essa relação, que, com o fortalecimento da burguesia, a arte passou a ser asfixiada?

RP | Não, não, a burguesia ajudou muito também. Depende da burguesia, de que local estamos falando. A burguesia brasileira, por exemplo, é a mais atrasada da América Latina. Eles [os burgueses brasileiros] são pouco generosos. Um secretário de estado do Kennedy disse, numa conferência que ele fez aqui para os altos industriais de São Paulo há muitos anos atrás, há muitas décadas atrás: "No próximo século, será a vez dos artistas". Ele estava falando do século XXI. "Os senhores – aquela coisa de protestante que quando levanta o dedo é Deus que está falando –, os senhores não têm a mínima estrutura para conviver com os artistas." Todo mundo da Fiesp ficou abobalhado. Ele disse: "Os senhores não sabem conviver com os artistas".

 I | Falta intimidade com a obra de arte e com os artistas, falta requinte aos burgueses brasileiros? Você acha, por exemplo, que hoje alguém como Glauber Rocha conseguiria apoio de banqueiros para financiar um filme como Deus e o diabo na terra do sol?

RP | Você vê que o Glauber morreu, e os amigos tiveram que fazer vaquinha para comprar o caixão. Ele dizia que era famosíssimo e paupérrimo. Mais ou menos o meu caso. A aristocracia, no entanto, sempre teve uma relação de muito respeito pelos artistas. Haja vista o caso de Dante Alighiere, que é o maior poeta do ocidente. Cangrande I della Scala, senhor de Verona, o protegeu e financiou; o Marquês Malaspina o protegeu e financiou e o transformou em embaixador na Santa Fé; Guido II da Polenta, que era senhor de Ravenna, o protegeu também. Ele foi protegido por vários aristocratas. Como era da pequena nobreza, não tinha muito acesso aos senhores que o financiavam. Um dia, Dante foi jantar com Cangrande. Conta-se até uma piada que, fosse outro cara, daria outras consequências. Dante põe o Cangrande I della Scala – aquele que tem como brasão uma águia sobre uma escada – no paraíso. Dante estava então jantando uma noite com o Cangrande – se você for traduzir ao pé da letra, "Cangrande" é cachorro grande, cachorro, como o Khan de Genghis Khan, aquela coisa de louco, o Cachorro Grande –, e o Cangrande I della Scala o viu comendo muito e jogando osso debaixo da mesa, como era costume na Idade Média (os cachorros da corte se alimentavam dos restos e tal). Aí o Cangrande comentou: "Nossa, Sir Dante, o senhor deixou uma bela pilha de ossos aí embaixo, está comendo muito!" Ao que Dante respondeu: "É que não tem nenhum cão grande para se alimentar dos ossos..." Isso com qualquer outra pessoa daria em enforcamento, mas como se tratava de Dante, o Cangrande deu risada e deixou pra lá. Pena não ter um cachorro grande para comer... (risos). Se fosse a burguesia já se sentia ofendida, aquela coisa... Ele morava num castelo. A aristocracia é outra conversa. Haja vista o próprio Pedro II que vivia cercado de artistas, de biólogos, de botânicos.

 I | Essa passagem da aristocracia para a burguesia, que o Visconti trata muito bem nos seus filmes...

RP | Nossa, vocês são bem informados, dá gosto de conversar com pessoas assim. Geralmente a gente fica falando no vazio.

 I | (Risos) Você acha que há uma tendência – não sei se otimismo é a melhor palavra, talvez seja ruim usar esse termo –, você acha que há uma tendência de melhora, porque parece que a burguesia "conspira" para manter a mediocridade, criando uma espécie de dinastia de medíocres. Arthur Schopenhauer fala que há um conluio entre os escritores, os jornalistas e os editores para fazer prevalecer as "cabeças ocas", expressão usada por ele, em detrimento dos "grandes artistas" ou dos "artistas de verdade", se é que a gente pode dizer dessa forma. Glauber inclusive cunhou um termo curioso a respeito disso, segundo ele há uma espécie de "conspiração da mediocridade".

RP | Certo... A burguesia tem aquele aspecto de que eu te dou isto, mas você não pode falar daquilo. A aristocracia estava pouco se lixando. Quando Paracelso foi perseguido pela Inquisição, quem o protegeu, inclusive o colocando num castelo com toda a guarda armada nas muralhas, foi um conde alemão, que esqueci o nome agora, não só protegeu Paracelso como o financiou.

 I | Mas, atualmente, você acha que é possível reverter isso? Você acha possível que tenhamos uma sociedade mais favorável aos artistas?

RP | É possível, porque também a burguesia não está estática no tempo, todas essas classes sociais são dinâmicas, haja vista o proletariado, que agora rouba dinheiro e põe na cueca.

 I | Pode ser que essa relação entre a burguesia e a arte deixe de ser uma sustentação à própria burguesia.

RP | Você não pode depender do Estado sempre, não é? O Estado, como diz Nietzsche, é o mais frio dos monstros, mente por um milhão de bocas.

 I | Nietzsche tratou muito dessa relação, não só a do artista com instituições, mas também a do filósofo com o Estado. Hoje é muito raro um filósofo não viver à custa do Estado, um filósofo que não seja também professor. Coisa que antes era possível. Você tem, por exemplo, o caso de Spinoza, que viveu como polidor de lentes e que se recusou a ser um funcionário a serviço da corte. E, por falar nisso, você nunca encarou a academia como um campo de atuação? Você chegou a lecionar na academia, não?

RP | Não, lecionei no ginásio, colégio e cursinho. Lecionei 13 anos.

 I | Mas à academia você sempre teve resistência?

RP | Você diz a universidade?

 I | Sim.

RP | Acho um horror. Não ia perder tempo fazendo mestrado, doutorado. Isso é perda de tempo, a vida é muito breve, e é pecado perder tempo.

 I | No filme Assombração Urbana, de Valesca Dios você diz que a poesia sempre será minoritária...

RP | ...uma arte minoritária.

 I | Poderíamos dizer então que a arte necessariamente vai ser resistência por ser minoritária?

RP | Certo. A poesia vai ser sempre resistência. Por que há uma... Como disse o Octavio Paz, [a poesia] é uma linguagem, uma arte que não tem correspondência no real. Então, ela foi sempre posta de lado, coisa de alucinado...

 I | Seria o fundamento dela, o que a define é a resistência? Ou será que existe um estado de coisas mais favorável ao poeta?

RP | Acredito que sim. Não só resistir, como também fazer aquele levantamento dos símbolos do inconsciente coletivo. De certa forma, a arte existe pra muita gente não ficar louca ou pra ficar louca de vez.

 I | Você vê certas épocas, Grécia Antiga, Renascimento, por exemplo, como um estado de coisas mais favorável ao artista?

RP | Roma... Você vê que Augusto, o primeiro imperador, financiou Virgílio. Mecenas, o nome já está dizendo, era o ministro sem pasta de Augusto que financiou Virgílio, Horácio e Juvenal. Antes de cada batalha, Augusto lia um trecho d'A Eneida. Ele não deixou Virgílio queimar a Eneida, interveio e salvou a Eneida.

 I | Nietzsche define o artista como necessariamente intempestivo, que se volta contra o seu tempo. Você coloca a questão da poesia como arte minoritária, que parece estar sendo pensada nesse sentido. Murilo Mendes fala: "Espaço-tempo estável, por que me abandonaste?". Ele também define a arte como uma atividade em desequilíbrio, que subverte. O artista é então necessariamente antissocial? Ou, insistindo na questão, é possível vislumbrar uma sociedade mais favorável?

RP | Os aristocratas... Os aristocratas... A aristocracia nas monarquias, eles davam muito valor aos artistas...

 I | É uma questão de caráter? O caráter da burguesia é mais reativo por não permitir isso?

RP | A burguesia é mais gananciosa; o aristocrata tem qualquer coisa de romântico; a burguesia não tem essa generosidade de sangue; o sangue azul... Já viu que o cara não tem assento nenhum na realidade, ele tá delirando já com essa coisa de sangue azul.

 I | Trata-se de um espírito mais aberto? E parece que atualmente grande parte do fomento vem mais de pessoas assim, cultivadas, do que propriamente do Estado ou de instituições privadas, não? Os responsáveis pelo Instituto Moreira Salles (IMS), por exemplo, parecem possuir um apreço maior...

RP | Mas aí é... Pessoas como Antonio Fernando de Franceschi, os cineastas lá, os Moreira Salles, que dão força, têm conhecimento e sabem que vão valorizar a própria instituição apoiando os artistas.

 I | Essa desordem que o artista investe na ordem social, na ordem do tradicionalismo... A filosofia como uma atividade que vai contra o senso comum (pelo menos certa filosofia), a arte como algo que vai pensar o que não é pensado neste tempo. Como o delírio na linguagem poética produz também esse movimento subversivo? Ou o que é esse delírio na linguagem poética? O que ele produz? O que ele traz de novo que a gramática normativa não é capaz de trazer?

RP | A linguagem é sempre carregada de elementos do inconsciente coletivo, e isso propicia um encontro com os arquétipos, isso tudo está nesse nível inconsciente e é uma forma de se prever o futuro... Eu devo ter trazido aqui minha pequena caderneta onde anotei o texto que o poeta Gabriele d'Annunzio, que foi vinculado ao fascismo, escreveu para o próprio epitáfio. Evidentemente os fascistas não puseram no túmulo dele porque preferiam que ele falasse da pátria mãe... E os amigos então colocaram esse epitáfio num salão da mansão dele. Ficou lá e virou museu. Deixa ver se eu acho aqui...

 I | O Visconti fez um filme baseado numa obra de d'Annunzio...

RP | Qual?

 I | O Inocente.

RP | Certo... Deixa eu ver se acho, tenho aqui, com certeza...

 I | Quando você fala de inconsciente coletivo, de arquétipo, seria o que você chama de forças não humanas, forças da natureza? No documentário Assombração Urbana, você diz que a literatura...

RP | São imagens primordiais... Olha aqui, achei. O epitáfio que o d'Annunzio escreveu para si. Quando ele morreu, os fascistas se apoderaram: "Isto aqui não pode entrar, não! Amor à pátria! Defender isso e aquilo", aquela coisa patriótica dos fascistas. Gabriele d'Annunzio: "Sou Gabriel e me apresento aos Deuses, o maior vidente entre os companheiros alados, aluno de Postverta – ministro do arcano divino –, intérprete da humana demência, voador caído do alto, príncipe e adivinho". Que beleza... Ele casava com aquelas mulheres da aristocracia, pegava os brasões delas e colocava tudo na frente da casa dele, como se fosse dele... Aí, ele tomou a cidade de Fiume... Aquele livro da Editora Conrad, do Hakim Bey, que mostra que essa foi a maior, a primeira experiência anarquista, de tomada de poder e transformação de uma cidade em orgia coletiva, regada a vinho e cocaína. Então, Gabriele d'Annunzio, como tomou a cidade de Fiume, o primeiro ministro lá do Rei não queria que ele mexesse... O Rei da Itália chamou Mussolini, que era primeiro ministro e era amigo do d'Annunzio – embora Renzo De Felice, o maior especialista em fascismo na Itália, diga que o d'Annunzio não era fascista, era de direita, mas não era fascista (você pode ser de direita e não ser fascista). Vai passar aqui um filme... Eu me lembro onde eu parei aqui, mas vamos fazer um corte cinematográfico. Vai passar aqui um filme que vocês não podem perder – é com aquele que foi casado com a Nicole Kidman, o Tom Cruise. Trata da coisa mais importante que aconteceu contra o nazismo, e ninguém fala, que é a Operação Valquíria. A revolta dos monarquistas contra Hitler. E tem o texto do John Lukacs, que é um professor de Yale; ele mostra como Hitler sabia que a oposição não vinha da esquerda, que estava toda cooptada. Hitler enfiou Marcos na cueca de tudo que é operário e dava um saco de batatas. O efeito psicológico disso era receber um salário e um saco de batatas para levar pra casa. Então, ele sabia que a oposição única e verdadeira contra ele era da direita, dos monarquistas. O coronel Conde Claus Philip Maria Schenk von Stauffenberg, que era muito parecido fisicamente com o Tom Cruise, herói de guerra no Norte da África, militar de carreira... Quando o general a quem ele servia foi chamado pelo Estado Maior, ele, no primeiro dia, botou a bomba, matou todo mundo, menos o Hitler. Por um acidente lá que tem no filme. Então é muito importante isso aí, porque os aristocratas resistiram. E o Hitler foi pro Rádio, porque não existia televisão na época, e explicou que finalmente os vons e os condes haviam botado – ele queria pegar os vons, que eram da nobreza –, eles finalmente haviam botado as manguinhas de fora... Botaram as manguinhas de fora porque queriam acertar as contas com ele. E d'Annunzio foi isso aí. Ele foi um homem de direita que não era fascista. Eu queria falar outra coisa... Ah, sim, aí o Rei chamou Mussolini e falou: "Tucci – que é chefe em italiano –, eu gostaria de dar o título de Conde para o d'Annunzio". Ao que Mussolini respondeu: "Meu Deus do céu, não faça isso que ele derruba o governo, ele só aceita de Duque pra cima". Aí como tinha o Monte Nevoso, que era uma montanha em Fiume, o Rei deu o título a ele de Príncipe de Montenevoso, um título bonito, não é? "Não dê título de Conde, porque ele só aceita de Duque pra cima". E ele nunca usou, nunca usou o título. A mesma coisa com o Salvador Dali. Perguntaram para ele: Porque você é monarquista? Eu sou monarquista porque a Monarquia é aquele regime político cuja extrema verticalidade da cúpula permite uma maior anarquia das bases. E aí o Rei da Espanha deu o título a ele de Marquês de Pubol – Pubol é uma cidade lá deles –, título que ele também nunca usou; não repudiou, mas nunca usou. É muito curioso isso, não é? As pessoas no fundo têm um desinteresse em defender certas coisas que acreditam ser...

 I | Ao ler o seu livro Coxas pensei em meu contato inicial com a poesia, por intermédio de D. H. Lawrence, cujos poemas são quase prosa. Nos poemas de Lawrence, há um encadeamento claro entre as sentenças, são como pequeníssimos ensaios, poemas que seguem a gramática estabelecida; mesmo que o conteúdo seja singular, a linguagem segue normas estabelecidas. A poesia surrealista, ao contrário, parece produzir sínteses entre termos disjuntos, provocando uma alucinação na própria linguagem. E nesse caso não cabe perguntar sobre o sentido do que está sendo dito ali, sobre o conteúdo que está por trás daquilo. Como é que você vê isso? A poesia surrealista diz alguma coisa que está por trás ou isso que ela está dizendo, a partir da alucinação da linguagem, é a própria criação de sentido?

RP | Walter Benjamim tem razão: a poesia surrealista escreveu a historiografia do inconsciente, ela conta uma história, só que ao nível do inconsciente, e é uma coisa que aponta para o futuro.

 I | E isso só é possível a partir da subversão da linguagem, desse delírio linguístico?

RP | Do delírio, do delírio... Você vê... Tal como Jung descobriu os arquétipos. Jung era psiquiatra lá na Suíça, quando foi chamado por um médico: "Dr. Jung, você precisa ver um esquizofrênico, no quarto tal, ele não para de olhar pro sol. Tem perigo de ficar cego". Aí ele foi lá, e outro cara do hospício, outro louco, sei lá, estava explicando para ele que dentro do sol surgiu um tubo com vento que era o sexo do sol e que balançava de acordo com o vento. Cinco anos depois, foram descobertos os papiros de Mitra em Paris, e a inscrição era: "Sol invictus, sol invencível, que tem um tubo que lança o vento que é o sexo do sol". Cinco anos depois de o esquizofrênico ter falado aquilo, descobriram isso lá, enterrado, naquelas ruínas subterrâneas, em Paris, os papiros de Paris, de Mitra, e tinha a inscrição de como era visto o sol. É impressionante.

 I | É como se existisse – não sei se é um termo adequado – uma face oculta da realidade que só teríamos acesso através desse delírio poético, dessa criação, que é necessariamente desequilibrada, subversiva.

RP | Você vê o poema do Breton, escrito em 1935, em que ele diz: não sei o que me reserva o ano de 1939, porém alguma coisa me diz que eu tenho que deixar Paris. Aí veio a ocupação pelos nazistas em 1940. Depois ele teve que se exilar nos EUA. Então isso é profético.

 I | Você, certa vez, falando da decadência do Império Romano, insinuou que o Capitalismo também ruiria. Vemos aí o caso dos EUA, símbolo desse sistema, caminhado para um esgotamento econômico e uma recessão...

RP | Agora veja, sem essa cabeça de americano, não teria surgido a Beat Generation. Então, sou muito grato a eles por terem feito aquela repressão... E o jazz? Como eu digo no livro Estranhos sinais de saturno: o jazz é um Exu africano. Ele traz toda essa magia do inconsciente negro para uma civilização branca e protestante.

 I | A cultura americana, então, é um misto de repressão e anarquia? Timothy Leary fala de uma espécie de determinismo – que ele apresenta como biológico –, em que a própria espécie produziria indivíduos reativos e uma pequena parte de indivíduos criadores, ativos, e ele se coloca nesse grupo. O que você pensa sobre isso? Diria que é uma coisa ontológica? A sociedade é necessariamente reativa, e o artista deve ser, por isso, antissocial?

RP | Acredito que sim. Embora tenhamos dado o exemplo do d'Annunzio, que não era tão antissocial assim; ao mesmo tempo tinha uma vertente dentro de si que era inconsumível pelo poder. A ponto de o pessoal querer escrever o epitáfio dele. Mesmo depois de morto, ele não foi obedecido. Tiveram que pôr aquelas coisas: “Amou a pátria acima de tudo, honrou a farda”, aquelas coisas todas, a gente sabe como é.

 I | Mesmo que um poeta aja contra a sociedade e abra novos caminhos, a sociedade acaba absorvendo-o e aceitando sua obra maldita, a posteridade é sua redenção?

RP | Não sei se aceita, não. No Brasil, quando pensam que o poeta está ficando brocha, começam a dar prêmios. Comigo eles estão muito enganados (risos). Aliás, não ganhei nenhum prêmio, espero ganhar porque preciso tratar dos dentes, operar a catarata que já consumiu meu olho direito inteiro e fazer uma série de coisas.

 I | Nietzsche dizia que temia ser visto como um santo na posteridade. Será que a aceitação de um artista está ligada a uma banalização de sua obra?

RP | Banalizar é uma forma de consumir.

 I | Parece que no capitalismo contemporâneo existe um poder de apropriação daquilo que nasce como resistência. Um autor, ao qual você sempre faz referência, Pier Paolo Pasolini, tentou escapar dessa absorção. Ele utilizou obras como Decameron, Mil e uma noites, 120 dias de Sodoma, não só porque se tratam de textos excepcionais, mas também porque achava que com elas se furtaria ao uso banal e mercantilista do cinema.

RP | Não só isso. Ele queria abjurar a cidadania italiana e escolher uma cidadania de qualquer país de terceiro mundo. Ele considerou isso seriamente, até que o menino lá o matou. Esqueci o nome dele... O adolescente que ele...

 I | Teve um caso...

RP | Não, não teve um caso, foi uma aventura. Ele teve um caso com o Nineto (o ator).

 I | Ele dizia que quando o cinema dele fosse aceito, ele pararia de fazer filmes.

RP | Ele abjurou a trilogia da vida, dizendo que aqueles corpos haviam sido incorporados pela televisão. Agora, você vê, eles incorporam o movimento gay à televisão, mas com aquela visão de televisão, de casal heterossexual.

 I | Os próprios gays reivindicam “direitos” que, às vezes, são bastante reacionários, tais como o de casar na igreja.

RP | Exatamente. Por isso que eles os põem na televisão. Pasolini acharia o movimento gay coisa de classe média americana.

 I | A gente viu um documentário sobre Pasolini recentemente no qual ele critica os jovens de sua época. Segundo Pasolini, os jovens possuem um falso romantismo influenciado pela mídia, que se reflete em comportamentos banais, tipo andar em parques aos domingos de mãos dadas tomando sorvete; ir ao cinema pra comer pipoca, passear de lambreta etc. Comportamentos que Pasolini considera odiosos. Esse quadro não é muito diferente do atual, certo?

RP | Ele dizia também que quando o estudante enfrenta a polícia na rua o povo é a polícia. Porque os estudantes são os filhos mimados da mídia. Quando o estudante luta com a polícia nas ruas, o povo é a polícia. Veja como a sociedade os veste de palhaço, com boné, capacete; ele dizia isso, o povo é a polícia.

 I | A gente viu uma imagem muito bonita sua, você estava em São Paulo numa manifestação, bem jovem, com cabelo grande...

RP | Não, foi numa leitura de poesia, eu, Claudio Willer...

 I | A gente tem a impressão – não sabemos, não fomos da época – de que as coisas eram mais favoráveis, de que havia, em sua época, mais pessoas interessadas em literatura, em poesia...

RP | É aquela coisa do Sartre. O Sartre dizia: "Nós nunca fomos tão livres como na época da ocupação nazista na França". Porque a liberdade era total e underground. O Pasolini diz qualquer coisa parecida com isso: "Numa sociedade onde tudo é proibido, tudo é possível". Naquela em que algumas coisas são aceitas, só aquelas coisas são aceitas. Nunca se vendeu tanto livro marxista quanto na ditadura, os livreiros estavam rindo de um lado ao outro da boca. Depois veio a concorrência das outras ideias, aí ficaram defendendo os militares.

 I | Em governos ditatoriais, em épocas extremadas, os inimigos ficam mais evidentes, como também a resistência a esses inimigos. Talvez, por isso, muitos que não viveram em épocas assim pensem que na década de 1960 as pessoas eram mais ativas, que tudo era contestado e que havia mais anarquia, mas você acha que não, certo?

RP | Concordo com o Timothy Leary, quando ele foi entrevistado pela Marília Gabriela na TV Bandeirantes. Ela virou, assim como se fosse lançar a grande ideia, aquela coisa: “Escuta Timothy” – aí ela já era íntima –, “escuta Timothy, você foi o guru dos anos 70, o que você acha dos anos 70?” Ele respondeu: "Um horror, só tinha telefone e televisão". (risos)

 I | Você vê com desconfiança certas tecnologias como a internet?

RP | Não, isso eu acho uma revolução importante, porque foi feita por dois caras, dois hippies, que passaram por todo o LSD. Isso é qualquer coisa de... Assim como... A cafeína é ligada a todo o speed da sociedade industrial, aqueles industriais e publicitários, tudo tomando café, café e cocaína. Antes, na idade média, vivia-se sempre bêbado porque se tomava vinho. E depois o sistema nervoso se vingou, criando o LSD. Agora, os neurônios apareceram na tela de computador. O Timothy Leary declarou certa vez: "Meu enteado de 12 anos viaja na internet como a gente viajava no LSD".

 I | Já que estamos falando de drogas, certa vez você disse que só acreditava em poeta experimental que tivesse vida experimental. Essa vida experimental é a vida que leva um jovem boêmio de hoje ou a própria produção da poesia?

RP | É a produção de um tipo de poesia. E a vida experimental é a vida na qual você não está condicionado, não está devendo favor a nenhum elemento do poder.

 I | No caso de H. P. Lovecraft, que vivia isolado em uma casa em Long Island, podemos dizer que se trata de uma vida experimental?

RP | Completamente. E ele foi mexer lá nos absurdos do inconsciente coletivo, naquelas coisas mais temerosas.

 I | Uma ideia que a publicidade sustenta é que para ser experimental é preciso sair, beber, ser doidão...

RP | Doidão de fachada é um horror. São os piores fascistas que conheci.

 I | E a mídia está se apropriando disso; propagandas incitam os jovens a serem mais liberados, mais loucos, diferentes. Parece que há um incentivo da publicidade e do comércio a essa vida moderninha que no final das contas resulta em mais consumo.

RP | Pasolini era o contrário. Para ele, tinha que ter uma visão tradicionalista, uma visão arcaica. Ele defendia o mundo arcaico, defendia o pré-industrial, o paleocapitalismo, a sociedade agrária, os camponeses. Você pega a Roma Antiga, os elementos que mais fizeram oposição ao cristianismo foram os camponeses – os chamados pagãos, de pagana, que é aldeia de camponeses, pagão significa camponês –, foram eles que fizeram a maior oposição ao advento do cristianismo. Você vê que até hoje, naquelas comunidades do interior do Brasil, sempre há aquele sincretismo no qual Nossa Senhora e tudo quanto é santo estão juntos com coisa de umbanda e candomblé, tá tudo misturado.

 I | Você falou sobre o poeta como profeta, o que você pensa do futuro?

RP | Olha, aí eu não estou preocupado. No meu livro Estranhos Sinais de saturno, tem muitas indicações do que acho que vai acontecer, e elas apontam para uma revolução biológica impressionante. Embora o Pasolini diga que acredita no fim do mundo, que para ele era a explosão demográfica. E não tem um filho da puta de um ecologista que fale disso. O Baudelaire já dizia: "O futuro é a ditadura do rosto humano". A Rebelião das massas, escrito por Ortega y Gasset, livro que deveria ter em todas as cabeceiras, trata do "fenômeno do cheio". Você vai ao parque, está cheio, pega um ônibus, está cheio, é o fenômeno do cheio. Carros pra todo lado, vai entupindo...

 I | William Burroughs e Ray Bradbury foram autores que acreditaram na conquista do espaço e de outros planetas, essa seria uma tendência?

RP | É uma tendência; é o instinto astronauta da espécie, falo disso em Ciclones.

 I | Depois que a humanidade exaurir a Terra, o negócio é rumar pra outro planeta então?

RP | Não, cair fora antes que a vaca tussa. (risos)

 I | Rimbaud largou a poesia muito jovem. Artaud, em vários textos, critica a linguagem, a escrita, a poesia, o intelectual, você vê por esse lado também? Que a escrita tem um limite e que é preciso abandoná-la para não correr o risco de virar um fetichista?

RP | Ah, tem que partir para outras pesquisas, outras conclusões. Como é que ele [Artaud] falava? "Toda escritura é porcaria".

 I | Ao ler seus poemas, percebi que eles me impunham um ritmo, que se não o acompanhasse, ficaria para trás. Não seria isso, como você falou antes, um efeito da tal historiografia do inconsciente?

RP | Vicente Ferreira da Silva, que Oswald de Andrade considerava o único filósofo autóctone, morreu em 63. Eu convivi com ele, eu e meus amigos, o Willer, de 61 a 63, de 60 a 63. Ele costumava dizer que o ritmo era pagão e se definia como um filósofo neo-pagão. Ele sempre dizia que tinha determinados momentos em que os deuses pagãos atravessavam a atmosfera cristã e entravam na realidade. Um dia cheguei para ele e pergunte I | "Vicente, você pode me dar dois exemplos de quando os deuses pagãos invadem o universo do cristianismo?" Ele falou: "O erotismo e o carnaval". Ele estava perfeitamente lúcido sobre isso. O ritmo erótico e o ritmo da música do toque do tambor, a origem xamanística do carnaval. Ele falou do carnaval como festa coletiva.

 I | A poesia tem uma capacidade extraordinária de fazer com que mudemos nosso modo de vida e passemos a ver as coisas de outra forma. É próprio do poeta realizar experimentações diversas, promover uma descida ao inferno. Mas parece que as pessoas não estão mais interessadas nesse tipo de coisa. Esse seria talvez um dos motivos pelos quais a poesia não é muito estimada hoje em dia?

RP | É aquilo do Rimbaud, o poeta torna-se vidente através de um imenso, profundo, racional desregramento de todos os sentidos. "Todas as espécies de amor, todos os venenos para não extrair deles senão a quintessência". Essa descida ao inferno é necessária. Você vê que Dante já falava que para chegar ao paraíso tem que atravessar o inferno e o purgatório.

 I | E isso não se restringe ao poeta, certo?

RP | Não. Você vê o medo que colocam nas pessoas para que elas não consumam drogas. São as visões infernais. O cara quer atingir os três estágios sem passar pelo inferno. Onde que ele vai deixar os Eguns, a Pomba-gira? Acredito que a vivência poética e a poesia modificam muitos comportamentos, embora concorde com Pasolini. Ele falava que não é para colocar problemas de comportamento, mas, sim, problemas de cultura. Senão fica aquelas meninas liberadas, aqueles garotos liberados, aquela coisa...

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INTERZONA (www.interzona.com.br). Realizada no Parque da Água Branca, em São Paulo, abril de 2008, esta é seguramente a mais expressiva e reveladora entrevista com o poeta Roberto Piva (). Foi uma conversa com Débora Butruce, Ricardo H. Rodrigues, Sergio Resende e T.W. Jonas, queridos amigos da Interzona, que nos autorizaram a reprodução e enviaram uma fotografia do poeta. Página ilustrada com obras de Arcangelo Ianelli (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.

Obras de Arcangelo Ianelli que constam desta página:
1. Brahma, óleo sobre tela, 70x58cm, 1954, Coleção particular.
2. Rua Joaquim Távora, óleo sobre tela, 59x72cm, 1953, Coleção particular.
3. Rua Tabatinguera, óleo sobre tela, 61x46cm, 1954, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
4. Cemitério São José, óleo sobre tela, 62x46cm, 1954, Coleção particular.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 27 | Maio de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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