A imagem que nos aterra a existência,
que se torna um testamento usual, um versículo sempre na ponta da língua, cobra
hoje uma tarifa existencial que nos limita a própria reflexão sobre o que somos
ou deixamos de ser. Somos viciados em uma demanda reiterativa. Algo nos impede de
experimentar um mundo outro sob ou sobre a capa de uma realidade averbada pela crença
na imutabilidade da vida. Ora, mas a vida é tudo menos imutável. Mesmo no plano
sagaz das religiões a vida é o preço, a súplica, a tormenta, o vislumbre, o apogeu,
a dádiva, e não é possível pensar em nenhum desses atributos como um álibi inquestionável
que não permite a espécie humana mudar sequer de postura na cadeira em que presta
depoimento sobre sua existência. A fotografia é uma das mais complexas faturas da
criação artística, a começar pela resistência da arte entende-la como sua cúmplice.
A beleza é outro aspecto frequentemente confrontado pela incredulidade em que o
gesto humano seja tudo menos apenas uma reação brutal à diferença. Leila Ferraz
é um poeta que se distingue entre seus pares pela percepção que possui das relações
entre o criador e sua obsessão. Alheia às formatações de gênero, é poeta, ensaísta,
fotógrafa, desenhista, foi uma das organizadoras da Exposição Internacional do Surrealismo,
em São Paulo, anos 1960. Aqui dialogamos sobre o ambiente da fotografia, ou melhor,
sobre o espírito da imagem. E o diálogo se faz ilustrar por algumas de suas fotografias.
Abraxas
FM | Quando começaste a fotografar lidavas com o mundo
analógico. Tempos depois, quando retomas, já está em curso pleno o mundo digital.
Do ponto de vista estético, como tens lidado com a passagem de uma técnica para
outra?
LF | Sou uma fotógrafa analógica assumida. Esse foi o meu
mundo durante toda minha vida. Tudo o que eu queria, tinha que pensar, analisar,
testar, me apaixonar e me envolver de tal forma visceral que o mundo digital foi
um tapa na cara. Veja esta foto de 1971 – tudo era feito no olho e nas mãos. Envolvia
cheiros, ácidos, estudos e a conquista de um tempo fascinante no qual eu me perdia.
Mas era um trabalho meu. Como quem cava fundo cada réstia de luz, penumbra ou escuridão.
Um processo de imenso prazer. E buscas e descobertas. Desde criança, este mundo
que peguei nas mãos quando as reproduções ainda eram feitas em placas de vidro.
Desde quando bem pequena descobria as minhas origens folheando sem nunca me cansar
os álbuns de família. Com fotos de bem mais de 150 anos. Como medir, lidar, conquistar
o que nasceu comigo? Eu ainda sou analógica. Atualmente, os recursos digitais nos
proporcionam tudo o que queremos. Praticamente na hora. São milhares de opções imediatas.
Existe sim o fator surpresa. Porque num toque de dedo ou criamos o que desejávamos
ou o que nós desejávamos já vem pronto. Eu tinha um estúdio fotográfico completo.
Com salas, químicas, bacias, ampliadores, Hasselblad, Leica, Roller, iluminação
e tudo o mais. Atualmente, com uma máquina, programas e aplicativos consigo o que
conseguia e mais. Em termos estéticos, o método analógico me dava mais prazer porque
era eu quem o criava. No digital, posso ir além. Mas nunca sozinha e sim com uma
legião de tecnologia me acompanhando. Talvez cheguemos aos mesmos lugares…, mas
sem os mesmos prazeres. Digitalmente, esses valores são predeterminados. Nossa interferência
e interação são calibradas entre o cérebro e o olho – modo único de cada ser olhar
e fotografar.
FM | Curiosamente ilustras a tua resposta com duas fotos em preto & branco,
o que lembra certa rejeição da cor em muitos fotógrafos. Há uma espécie de resplendor
excessivo na cor que impede o olhar de decifrar meandros mais íntimos da imagem?
LF | De certa forma, sim. A cor é fascinante, porém ela
nos excede, quando apenas cor. Raros são os fotógrafos que sabem dar às cores suas
temperaturas exatas. A cor mantém estreita relação com a temperatura, com a hora.
O calor de cada cor tem algumas regras áureas que aprendemos e exercemos na medida
em que fotografamos analogicamente.
FM | E como o acaso dimensiona o espectro final da imagem
fotografada?
LF | O acaso é o orgasmo que temos. Quando ele acontece,
gozamos. Se vamos ou não repeti-lo e nos tornarmos amantes é a proposta misteriosa
inerente ao próprio acaso.
FM | Bom, recordo certo entendimento de que a fotografia
aprisiona a alma da gente.
LF | A isso Roland Barthes (com quem concordo) chama
de noema fotográfica. O momento decisivo,
único, raro, de Cartier Bresson, que perpetua toda a essência estética do ser ou
da coisa da fotografia. Ou da coisa fotografada. Aquilo que é próprio e unicamente
possível naquele instante.
FM | Salvador Dalí via na fotografia “o veículo mais seguro
da poesia e o processo mais ágil para perceber as mais delicadas drenagens entre
a realidade e a surrealidade”.
LF | Veja a insegurança
dessa frase. Sua fragilidade. Ela precisa de um mecanismo que justifique um processo
contínuo no tempo. Não concordo.
FM | Talvez venha do fato de que o Dalí, ainda em 1929,
quando afirmou tal coisa, pensava na fotografia apenas como o registro de uma cena,
o que ele próprio chamava de catálogo "de imagens fragmentárias que dão lugar
a um total conhecimento dramático"…
LF | Sim, é possível. A fotografia como registro foi
e ainda é, infelizmente, entendida dessa forma. Quando, na verdade, essa é apenas
uma de suas aptidões enquanto manifestação artística.
FM | Quais os caminhos estéticos que a utilização da
fotografia abre para a tua concepção criativa como um todo?
LF | Caminhos estéticos são para mim como palavras autológicas
ou heterológicas. Para segui-los é preciso estar com os sentidos em uníssono. Suspensos.
Minha concepção criativa, tanto no poema quanto na fotografia, por exemplo, é minha
expressão de ser. Única. Soma de diversos processos raros. Nasci com essa capacidade
de ser intuitiva. Para mim, o domínio da técnica é uma escolha fortuita. Lúdica.
Feminina. Inexplicável. É uma sensação de concretude e seus fantasmas invisíveis.
Há um momento harmônico que surge instantaneamente quando a coisa da arte se expressa
em si mesma.
LF | Tenho
uma paleta de cores naturais e cambiantes que me cercam e me abrangem. Posso dizer
que o mundo que me cerca está organizado em matrizes pré-determinadas e que se modificam
a cada instante. Criando, assim, uma relação de movimento contínuo. Meu poder de
escolha de temas é um processo interior – que pode ser aleatório ou determinado
por um desejo. Sem dúvida, aquilo que considero como belo é o meu ponto de partida.
Seja uma paisagem, por exemplo, ou algo estático. Contudo, a minha interferência
permite que eu simule diversas composições de formas e cromáticas, até que me bastem.
Até que eu chegue ao meu noema – no sentido
que relatei acima. Nesse sentido a manipulação digital me proporciona a capacidade
de transcender à fotografia, recriando cenários, figuras ou abstrações num cenário
surpreendente e inédito. Por vezes inesperado em termos de justaposições ou recortes.
Atualmente, já consigo controlar ou dominar as possibilidades do mundo digital para
obter exatamente o que deseja, como resultado. Porém, a surpresa é sempre instigante
e muitas vezes conflitante.
FM | Quando preparas uma cena para fotografar, lidas com
os truques de sua figuração. Trata-se, como em toda criação, de atuar no limite
de uma falsificação. Nesse tablado, como se relacionam a imaginação e o instinto
de imitação? Paul Éluard dizia que “a imaginação não mente nunca, pois ela nunca
se equivoca”.
LF | Em
diversas ocasiões eu preparei a cena que imaginara. Estas duas: a primeira foto
é a do meu próprio umbigo. E resolvi utilizar um recurso digital para lhe conferir
uma "história feminina", por assim dizer. Já na segunda imagem, acrescentei
vários outros recursos digitais e desarranjos para lhe conferir movimento. O movimento
de um veleiro chamado NOTURNO. Com isso vou além de minha intenção original. Passo
a acrescentar o elemento de Thalassa – também próprio do universo feminino. E mais
– ao deslocar o eixo da imagem, surge o movimento. E a imagem criada torna-se única
e poética. Há outro caso em que para obter um resultado imaginado, tive que interferir
várias vezes na paisagem. Queria fotografar um homem à noite, com a lua por detrás
da Ilha Bela, e que as ondas do mar preenchesse o corpo do modelo. Processo que
demorou muito tempo, por sem tratar de uma sobreposição sobre uma mesma película
que já havia fotografado a paisagem com o modelo. Após alguns minutos pedi para
o modelo sair e então as ondas do mar invadiram, também, o espaço de seu corpo.
E fui além. Na gráfica, além das cores básicas, acrescentei a impressão de mais
uma cor, o ouro, formado pela passagem de uma bicicleta. Tudo isso foi feito analogicamente,
com uma Hasselblad e passagem de luz sobre um papel virgem, em câmara escura. Foram
vários fotolitos até chegar ao resultado que eu desejava. Vários dias e um processo
caro. Com as facilidades do mundo digital, isso seria feito muito rapidamente. Talvez
com um resultado final diferente. Porém controlável. Há mais exemplos. Centenas
deles. Nesses casos, a imaginação se transforma em realidade. Isso é possível, sim.
FM | Entendes que a web permite hoje um instrumento valioso
de trabalho para a criação artística?
LF | Essa tecnologia, encontrada à disposição de qualquer
pessoa, me proporcionou novas formas de expressão, de comunicação e transformação
da realidade. É possível interferir em qualquer imagem. Multiplicá-la, replicá-la
e movimentá-la através de qualquer espaço ou base. Misturá-la em qualquer meio e
adicionar inusitadas linguagens. Através dos meios digitais, o comportamento da
imagem fotográfica, às vezes de uma mesma imagem, conquista simbologias inéditas.
Crio um novo vocabulário emocional a ser decifrado.
FM | Quando o fotógrafo lida com o modelo vivo, desperta
certamente nele um instinto de espetacularização. Sendo o modelo objetual, como
se realiza essa teatralização dos sentidos?
LF | Creio
que lidamos com a metafísica quando falamos de fotografia e todos os casamentos
possíveis e impossíveis que se realizam entre tecnologia e processos artesanais.
FM | Esquecemos algo?
LF | Posso
dizer que o processo digital de cores e mesmo de nuances monocromáticas me é muito
valioso. Sem dúvida, todo esse processo que atualmente me fascina, é altamente tecnológico,
preciso e ao mesmo tempo cambiante, de acordo com o resultado que desejo obter ou
que me surpreenda quando atinjo um ponto que para mim é a manifestação da vontade
de nominar o incontrolável, porém "ordenado".
FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957).
Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Diretor geral de Agulha Revista de Cultura e ARC Edições. Entrevista realizada em março
de 2017, especialmente para a revista Diversos
Afins (http://diversosafins.com.br/). Página ilustrada com
obras de Leila Ferraz
(Brasil).
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 27 | Maio de 2017
editor geral |
FLORIANO MARTINS |
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editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES |
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| FLORIANO MARTINS
revisão de textos
& difusão |
FLORIANO MARTINS |
MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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