quinta-feira, 4 de maio de 2017

FLORIANO MARTINS | Leila Ferraz e as delicadezas do abismo


A imagem que nos aterra a existência, que se torna um testamento usual, um versículo sempre na ponta da língua, cobra hoje uma tarifa existencial que nos limita a própria reflexão sobre o que somos ou deixamos de ser. Somos viciados em uma demanda reiterativa. Algo nos impede de experimentar um mundo outro sob ou sobre a capa de uma realidade averbada pela crença na imutabilidade da vida. Ora, mas a vida é tudo menos imutável. Mesmo no plano sagaz das religiões a vida é o preço, a súplica, a tormenta, o vislumbre, o apogeu, a dádiva, e não é possível pensar em nenhum desses atributos como um álibi inquestionável que não permite a espécie humana mudar sequer de postura na cadeira em que presta depoimento sobre sua existência. A fotografia é uma das mais complexas faturas da criação artística, a começar pela resistência da arte entende-la como sua cúmplice. A beleza é outro aspecto frequentemente confrontado pela incredulidade em que o gesto humano seja tudo menos apenas uma reação brutal à diferença. Leila Ferraz é um poeta que se distingue entre seus pares pela percepção que possui das relações entre o criador e sua obsessão. Alheia às formatações de gênero, é poeta, ensaísta, fotógrafa, desenhista, foi uma das organizadoras da Exposição Internacional do Surrealismo, em São Paulo, anos 1960. Aqui dialogamos sobre o ambiente da fotografia, ou melhor, sobre o espírito da imagem. E o diálogo se faz ilustrar por algumas de suas fotografias. Abraxas

FM | Quando começaste a fotografar lidavas com o mundo analógico. Tempos depois, quando retomas, já está em curso pleno o mundo digital. Do ponto de vista estético, como tens lidado com a passagem de uma técnica para outra?

LF | Sou uma fotógrafa analógica assumida. Esse foi o meu mundo durante toda minha vida. Tudo o que eu queria, tinha que pensar, analisar, testar, me apaixonar e me envolver de tal forma visceral que o mundo digital foi um tapa na cara. Veja esta foto de 1971 – tudo era feito no olho e nas mãos. Envolvia cheiros, ácidos, estudos e a conquista de um tempo fascinante no qual eu me perdia. Mas era um trabalho meu. Como quem cava fundo cada réstia de luz, penumbra ou escuridão. Um processo de imenso prazer. E buscas e descobertas. Desde criança, este mundo que peguei nas mãos quando as reproduções ainda eram feitas em placas de vidro. Desde quando bem pequena descobria as minhas origens folheando sem nunca me cansar os álbuns de família. Com fotos de bem mais de 150 anos. Como medir, lidar, conquistar o que nasceu comigo? Eu ainda sou analógica. Atualmente, os recursos digitais nos proporcionam tudo o que queremos. Praticamente na hora. São milhares de opções imediatas. Existe sim o fator surpresa. Porque num toque de dedo ou criamos o que desejávamos ou o que nós desejávamos já vem pronto. Eu tinha um estúdio fotográfico completo. Com salas, químicas, bacias, ampliadores, Hasselblad, Leica, Roller, iluminação e tudo o mais. Atualmente, com uma máquina, programas e aplicativos consigo o que conseguia e mais. Em termos estéticos, o método analógico me dava mais prazer porque era eu quem o criava. No digital, posso ir além. Mas nunca sozinha e sim com uma legião de tecnologia me acompanhando. Talvez cheguemos aos mesmos lugares…, mas sem os mesmos prazeres. Digitalmente, esses valores são predeterminados. Nossa interferência e interação são calibradas entre o cérebro e o olho – modo único de cada ser olhar e fotografar.

FM | Curiosamente ilustras a tua resposta com duas fotos em preto & branco, o que lembra certa rejeição da cor em muitos fotógrafos. Há uma espécie de resplendor excessivo na cor que impede o olhar de decifrar meandros mais íntimos da imagem?

LF | De certa forma, sim. A cor é fascinante, porém ela nos excede, quando apenas cor. Raros são os fotógrafos que sabem dar às cores suas temperaturas exatas. A cor mantém estreita relação com a temperatura, com a hora. O calor de cada cor tem algumas regras áureas que aprendemos e exercemos na medida em que fotografamos analogicamente.

FM | E como o acaso dimensiona o espectro final da imagem fotografada?

LF | O acaso é o orgasmo que temos. Quando ele acontece, gozamos. Se vamos ou não repeti-lo e nos tornarmos amantes é a proposta misteriosa inerente ao próprio acaso.

FM | Bom, recordo certo entendimento de que a fotografia aprisiona a alma da gente.

LF | A isso Roland Barthes (com quem concordo) chama de noema fotográfica. O momento decisivo, único, raro, de Cartier Bresson, que perpetua toda a essência estética do ser ou da coisa da fotografia. Ou da coisa fotografada. Aquilo que é próprio e unicamente possível naquele instante.

FM | Salvador Dalí via na fotografia “o veículo mais seguro da poesia e o processo mais ágil para perceber as mais delicadas drenagens entre a realidade e a surrealidade”.

LF | Veja a insegurança dessa frase. Sua fragilidade. Ela precisa de um mecanismo que justifique um processo contínuo no tempo. Não concordo.

FM | Talvez venha do fato de que o Dalí, ainda em 1929, quando afirmou tal coisa, pensava na fotografia apenas como o registro de uma cena, o que ele próprio chamava de catálogo "de imagens fragmentárias que dão lugar a um total conhecimento dramático"…

LF | Sim, é possível. A fotografia como registro foi e ainda é, infelizmente, entendida dessa forma. Quando, na verdade, essa é apenas uma de suas aptidões enquanto manifestação artística.

FM | Quais os caminhos estéticos que a utilização da fotografia abre para a tua concepção criativa como um todo?

LF | Caminhos estéticos são para mim como palavras autológicas ou heterológicas. Para segui-los é preciso estar com os sentidos em uníssono. Suspensos. Minha concepção criativa, tanto no poema quanto na fotografia, por exemplo, é minha expressão de ser. Única. Soma de diversos processos raros. Nasci com essa capacidade de ser intuitiva. Para mim, o domínio da técnica é uma escolha fortuita. Lúdica. Feminina. Inexplicável. É uma sensação de concretude e seus fantasmas invisíveis. Há um momento harmônico que surge instantaneamente quando a coisa da arte se expressa em si mesma.

FM | Como lidas com temas e formas ao definir recortes e justaposições em tua criação fotográfica?

LF | Tenho uma paleta de cores naturais e cambiantes que me cercam e me abrangem. Posso dizer que o mundo que me cerca está organizado em matrizes pré-determinadas e que se modificam a cada instante. Criando, assim, uma relação de movimento contínuo. Meu poder de escolha de temas é um processo interior – que pode ser aleatório ou determinado por um desejo. Sem dúvida, aquilo que considero como belo é o meu ponto de partida. Seja uma paisagem, por exemplo, ou algo estático. Contudo, a minha interferência permite que eu simule diversas composições de formas e cromáticas, até que me bastem. Até que eu chegue ao meu noema – no sentido que relatei acima. Nesse sentido a manipulação digital me proporciona a capacidade de transcender à fotografia, recriando cenários, figuras ou abstrações num cenário surpreendente e inédito. Por vezes inesperado em termos de justaposições ou recortes. Atualmente, já consigo controlar ou dominar as possibilidades do mundo digital para obter exatamente o que deseja, como resultado. Porém, a surpresa é sempre instigante e muitas vezes conflitante.

FM | Quando preparas uma cena para fotografar, lidas com os truques de sua figuração. Trata-se, como em toda criação, de atuar no limite de uma falsificação. Nesse tablado, como se relacionam a imaginação e o instinto de imitação? Paul Éluard dizia que “a imaginação não mente nunca, pois ela nunca se equivoca”.

LF | Em diversas ocasiões eu preparei a cena que imaginara. Estas duas: a primeira foto é a do meu próprio umbigo. E resolvi utilizar um recurso digital para lhe conferir uma "história feminina", por assim dizer. Já na segunda imagem, acrescentei vários outros recursos digitais e desarranjos para lhe conferir movimento. O movimento de um veleiro chamado NOTURNO. Com isso vou além de minha intenção original. Passo a acrescentar o elemento de Thalassa – também próprio do universo feminino. E mais – ao deslocar o eixo da imagem, surge o movimento. E a imagem criada torna-se única e poética. Há outro caso em que para obter um resultado imaginado, tive que interferir várias vezes na paisagem. Queria fotografar um homem à noite, com a lua por detrás da Ilha Bela, e que as ondas do mar preenchesse o corpo do modelo. Processo que demorou muito tempo, por sem tratar de uma sobreposição sobre uma mesma película que já havia fotografado a paisagem com o modelo. Após alguns minutos pedi para o modelo sair e então as ondas do mar invadiram, também, o espaço de seu corpo. E fui além. Na gráfica, além das cores básicas, acrescentei a impressão de mais uma cor, o ouro, formado pela passagem de uma bicicleta. Tudo isso foi feito analogicamente, com uma Hasselblad e passagem de luz sobre um papel virgem, em câmara escura. Foram vários fotolitos até chegar ao resultado que eu desejava. Vários dias e um processo caro. Com as facilidades do mundo digital, isso seria feito muito rapidamente. Talvez com um resultado final diferente. Porém controlável. Há mais exemplos. Centenas deles. Nesses casos, a imaginação se transforma em realidade. Isso é possível, sim.

FM | Entendes que a web permite hoje um instrumento valioso de trabalho para a criação artística?



LF | Essa tecnologia, encontrada à disposição de qualquer pessoa, me proporcionou novas formas de expressão, de comunicação e transformação da realidade. É possível interferir em qualquer imagem. Multiplicá-la, replicá-la e movimentá-la através de qualquer espaço ou base. Misturá-la em qualquer meio e adicionar inusitadas linguagens. Através dos meios digitais, o comportamento da imagem fotográfica, às vezes de uma mesma imagem, conquista simbologias inéditas. Crio um novo vocabulário emocional a ser decifrado.

FM | Quando o fotógrafo lida com o modelo vivo, desperta certamente nele um instinto de espetacularização. Sendo o modelo objetual, como se realiza essa teatralização dos sentidos?

LF | Creio que lidamos com a metafísica quando falamos de fotografia e todos os casamentos possíveis e impossíveis que se realizam entre tecnologia e processos artesanais.

FM | Esquecemos algo?

LF | Posso dizer que o processo digital de cores e mesmo de nuances monocromáticas me é muito valioso. Sem dúvida, todo esse processo que atualmente me fascina, é altamente tecnológico, preciso e ao mesmo tempo cambiante, de acordo com o resultado que desejo obter ou que me surpreenda quando atinjo um ponto que para mim é a manifestação da vontade de nominar o incontrolável, porém "ordenado".



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FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Diretor geral de Agulha Revista de Cultura e ARC Edições. Entrevista realizada em março de 2017, especialmente para a revista Diversos Afins (http://diversosafins.com.br/). Página ilustrada com obras de Leila Ferraz (Brasil).


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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 27 | Maio de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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