Ao traduzir alguns ensaios
de José Luis Vega (Três entradas para Porto Rico, Fund. Memorial da América
Latina, São Paulo, 2000), observei que a realidade política e cultural de Porto
Rico possui um radical de violência, cujo marco é o despejar de forças militares
estadunidenses em suas praias, em 1898. Até hoje o país não existe como tal, e sofre
as adversidades da colonização em seu cotidiano – imposição de cidadania estadunidense,
recrutamento militar, ameaça de distorção do próprio idioma nas escolas, cerceamento
dos direitos políticos etc. Em meio a tudo isto, impressiona a condição de resistência
cultural daquele povo.
Talvez tenhamos perversamente
nos acostumado àquela situação, sendo raro que uma voz de eco internacional repercuta
sua indignação. No entanto, as principais vozes internas, em Porto Rico, estão sempre
alertas e atuantes, e graças a elas uma cultura se produz e se individua, ao longo
dos tempos, quando menos intrigando aqueles que pensem o contrário. O próprio José
Luis Vega, ao fundar a revista Ventana,
nos anos 70, logo em seu segundo número alertava: "Os artistas e escritores
porto-riquenhos de hoje devem ter um compromisso moral, um pacto digital, com a
libertação de nosso povo", ao mesmo tempo em que lembrava que "esse pacto
não pode nem deve significar a míngua da qualidade artística de sua obra; pelo contrário,
deve significar a superação constante de sua obra e de si mesmo como indivíduo".
Politicamente Porto Rico é um fantasma. Não existindo como nação, tampouco existe como célula estadunidense. Sua cultura, no entanto, firmou-se e afirmou-se, podendo contar com uma leitura consistente no tocante aos inúmeros desdobramentos desde o Modernismo até os dias de hoje. Em cada uma das etapas vencidas por essas instâncias estéticas, encontramos vozes importantes (sobretudo na literatura e nas artes plásticas) destacando-se naquela região. Como costuma ocorrer em diversas instâncias, é de suma importância a presença de revistas de cultura, que calibram as relações entre criação e produção. Dentre as que alcançaram destaque na trajetória cultural porto-riquenha, cito Ventana, Guajana, Mester e Zona: carga y descarga, que desempenham destacado papel nos anos 60 e 70.
Nas duas últimas décadas,
podemos pensar tanto em Mairena quanto em
Exégesis. A primeira, criada e dirigida por Manuel de la Puebla, há
poucos meses encerrou um ciclo de 20 anos de existência, fechando suas páginas e
propiciando o surgimento de outra publicação,
Julia –homenagem a Julia
de Burgos, uma das máximas expressões literárias daquele país. Já Exégesis, surgiu em 1986, animada por
um grupo de intelectuais vinculados ao Colégio Universitário de Humacao, tendo à
frente Andrés Candelario. Desde o princípio, havia entre eles o poeta Marcos Reyes
Dávila, que viria a dirigir a revista em 1990, mantendo-se no cargo até hoje, exceto
por uma curta passagem de Carmen Alverio e Rogelio Ruiz Gómez, no período de 1994/95.
Tendo sido concebida como
veículo de expressão pública das atividades intelectuais da referida intelectualidade, Exégesis, no entanto, não se fechou àquele
mundo acadêmico, desde cedo compreendendo que "o crescimento intelectual só
é alcançado no plano bidirecional do diálogo" – no dizer justamente de Marcos
Reyes Dávila –, ao mesmo tempo em que seu corpo editorial buscava uma perspectiva
de expansão editorial que não se viabilizaria caso reflexão e investigação de cunho
científico não se aliassem à criatividade intelectual e artística.
Assim é que Exégesis, desde o princípio, mostrou-se visceralmente comprometida em romper o muro que separa academia e cultura. E o fez com base em um rígido critério tripartido, que permite igualdade de espaço para autores da instituição que a publica, do país e do exterior, em momento algum sendo essa participação limitada a vínculo acadêmico. Logo nos perguntamos como se viabiliza um projeto desses, e seu diretor nos informa que Exégesis tem recebido "o auxílio espontâneo de toda a comunidade acadêmica". Compreendida como um bem comum, que deve ser zelado por todos. A este respeito, segue afirmando Reyes Dávila que "as revistas são tanto instrumentos de expressão e divulgação como o são de projeção e promoção", de maneira que "estão sempre articuladas a partir de circunstâncias invariavelmente diferentes que as definem".
Partindo inicialmente para
ousada aposta em manter correspondência com outros países, logo Exégesis teria suas páginas marradas pela presença de
nomes como Elvio Romero, Ernesto Cardenal, Floriano Martins, Isabel Allende, Jorge
Rodríguez Padrón, José Donoso, José Roberto Cea, Manuel del Cabral, ao mesmo tempo
em que aí estabelecia um diálogo que viria a propiciar a difusão, no exterior, daqueles
nomes essenciais da cultura porto-riquenha. Compreensão bidirecional do diálogo,
algo bem distante do mero jogo de troca de favores que se enraizou na cultura brasileira.
Graças a essa atitude despojada – admirável lição para o resto da América Latina
–, uma pequena comunidade acadêmica tem conseguido dialogar com o mundo. Exégesis hoje se encontra inteiramente disponível na
Internet, ao mesmo tempo em que segue recebendo pedidos de assinaturas de vários
países, o que prova, além do mais, que as mídias são conjuntivas e não disjuntivas.
Vale ainda citar as lúcidas
palavras de seu diretor, Marcos Reyes Dávila: "Cremos em Exégesis que o peso posto sobre uma noção fátua e flatulenta
da incerteza é um lastre, uma rémora, um freio e um retrocesso histórico a formas
análogas à da torre de marfim modernista de finais do século XIX. Cremos que a reflexão
e compreensão da realidade não se robustecem em um meio inativo, porque a reflexão
resulta fenomenologia, elucubração de imagens vácuas, placebo inerte e desnutridor – como o observou Marinello –, além de galã
ou vedete – conforme seja o caso – que se esgota na figuração retórica."
As revistas chegam à nossa
mesa de maneira diversa. É possível que não percebamos além daquele número que folheamos.
No entanto, carregam em si toda uma história, espelhos preciosos da cultura de um
país. Nós nos habituamos, por alguma perversão quase irreversível, a estabelecer
padrões de cultura. A telenovela no Brasil, nos Estados Unidos e no México, por
exemplo, é um recorte magnífico de uma aparentemente distinta forma de decadência
cultural nos três países. Outro exemplo: o Uruguai vive hoje, em sua imprensa diária,
o fantasma da contenção de despesas, que rouba fôlego da área menos importante à
vida útil de uma empresa. Qual? A cultura. A imprensa no Brasil já se curvou a todas
as exigências de mercado – na verdade, ajudou a fundar todas elas. Por que misturo
os assuntos? Porque o fluxo de capital, de alguma maneira, acabou nos convencendo
que o homem não é mais o lobo do homem, mas sim o agiota do homem.
Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Pierre Fudaryli (México, 1984)
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista
de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação
editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu
seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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