A convite de PalavrArte,
Floriano Martins e Claudio Willer dialogam sobre a experiência de edição da Agulha
Revista de Cultura, surgida no início de 2000 e, originalmente, criada
por Floriano Martins, como desdobramento possível de uma aventura editorial anterior,
a revista Xilo – cujo ousado projeto previa 40 mil exemplares circulando
mensalmente em bancas em todo o país –, estancada verticalmente por problemas empresariais.
Um primeiro momento da editoria foi dividido com o jornalista Rodrigo de Souza Leão,
quando a revista então era ancorada em um provedor que não lhe permitia resistir
ao tempo. O próximo passo definiria a consistência do processo editorial, quando
Floriano Martins e Claudio Willer estabelecem uma parceria, ao mesmo tempo em que
a Agulha
Revista de Cultura se transfere para o Jornal de Poesia a convite
de seu criador, Soares Feitosa, configurando assim uma sólida parceria, cujo reflexo
imediato foi a recuperação dos primeiros números, além do aprimoramento do projeto
gráfico e a busca de uma rede mais diversificada de colaboradores. O diálogo, por
ocasião da publicação do número 9 de Agulha
Revista de Cultura, em que discorrem sobre a publicação de uma revista caracterizada
pela busca de múltiplos enfoques e vertentes artísticas distintas, é um registro
da inteligência do gerir e ideias e batalhas desses que são também poetas. [Luís
Sérgio dos Santos e Amélia Alves]
FM | Willer, quando te convidei para a editoria da revista,
o que exatamente esperavas disto? Ou seja, como dimensionavas então a circulação
apenas virtual de uma revista de cultura?
CW | Já naquela altura dos acontecimentos, no mínimo como
um complemento indispensável à publicação de textos sobre papel, em livro ou periódicos
impressos. Alertou-me para isso a quantidade de mensagens em função de, por exemplo,
meu endereço eletrônico figurar no Jornal de Poesia. Talvez venha a ser mais que
isso, um complemento, à medida que ampliar-se o número de usuários da Net, e que,
passada a atual crise econômica do setor, surjam meios de extrair retorno financeiro
da iniciativa. Para mim, Net é algo em início de implantação. Por isso, estamos
apenas começando. Facilidade de acesso à informação e a possibilidade de armazená-la,
tornando-a não-descartável, pesam decisivamente a favor do meio eletrônico. Na verdade
você demorou para conectar-se à rede, só o fez no final de 99. Mas, a partir daí,
mergulhou de cabeça, passando a dedicar-se a um projeto complexo como o da Agulha Revista de Cultura. Já previa esse
tipo de envolvimento, antevia o alcance que a revista poderia ter?
FM | De certa forma, sim. Em experiência anterior, na edição
de uma revista impressa, no caso a Xilo – cujo insucesso foi de ordem empresarial
e não editorial –, chamava a atenção a maneira como crescia o recebimento de e-mails,
o que nos alertava para a necessidade de fazer uma versão virtual dela. Tanto que
antes mesmo de começar Agulha Revista de Cultura
optei por organizar um mailing inicial que permitisse uma expectativa mais
ampla em termos de difusão. Agora, não resta dúvida que a Net surpreende a cada
dia, tanto pelo mundo de possibilidades que cria, como também pelo índice alarmante
de hipocrisia que ajuda a revelar, como no caso das campanhas contra SPAM. Mas creio
que é importante falarmos um pouco dessa aparente complexidade do projeto editorial
da revista. Em que sentido crês que seja complexa nossa aventura?
CW | Complexo pelo que tinha de novo, de diferente de qualquer
outra coisa, inclusive dos demais portais literários da Net. Até da dificuldade
intrínseca de editar, organizar isso no meio eletrônico. Editar sempre é difícil,
em qualquer meio, e cada modalidade, impressa ou eletrônica, tem suas facilidades
e suas dificuldades próprias. Enfim, partíamos do zero. Evidentemente, o resultado
dependeria fundamentalmente do que você tivesse de matérias e colaboradores em potencial,
ou já disponíveis. Diga-me, a propósito, você antevia que, passado o reaproveitamento
do rescaldo de Xilo, que ajudou a iniciar Agulha Revista de Cultura (tanto
é que a minha primeira colaboração na revista foi mesmo reaproveitamento de material
para Xilo), iria dispor de tantos colaboradores e matérias de interesse?
FM | De fato, colaboradores como Carlos Nejar, Graccho Braz
Peixoto, Sânzio de Azevedo, dentre outros, inicialmente contatados para publicação
em Xilo, foram aproveitados nos primeiros
números de Agulha Revista de Cultura.
Como uma revista surgiu em função da impossibilidade da outra, a presença crescente
de novos colaboradores seria o caminho pensado como natural. O que vale observar
é que havia um grande preconceito, por parte de alguns colaboradores, em função
da revista circular apenas virtualmente. Houve casos de matérias acertadas para
a Xilo que tiveram de ser devolvidas,
por rejeição ao meio eletrônico. Aliás, não achas interessante que ainda hoje essas
duas mídias (eletrônica e impressa) mal convivam entre si? A grande parte das revistas
que lidam especificamente com um desses meios não toma em conta a existência do
outro. Qual te parece ser a razão dessa ausência de diálogo?
CW | Miopia jornalística, em primeiro lugar. Obviamente.
Eu examinar um suplemento literário – alguns, no caso, já que estou respondendo
em um fim de semana, quando essas coisas saem – e não ver – aposto que não vou ver!
– nem uma, sequer uma nota sobre algo literário que tenha saído na
Net, isso apenas denota o costumeiro e previsível burocratismo da imprensa. A recíproca
não é verdadeira, pois o meio eletrônico, de vários modos, expande a circulação
do que sai impresso. Enfim – coloca-se à disposição na rede o que sai impresso,
mas a recíproca, imprimir o que sai na rede, quem faz isso é o leitor. Observei,
já, que vários leitores de Agulha Revista
de Cultura imprimem nossas matérias para aí, então, lê-las com calma. Até onde
isso vai? Aqui, retomo algo que venho dizendo: que Net nem começou. Com equipamentos
melhores e mais baratos e, principalmente, melhores conexões, aí sim, o jogo muda,
o quadro vai ser outro. De qualquer modo, algo que já existe e irá expandir-se é
a publicação eletrônica, com a opção, se o leitor pagar, do print on demand,
em vernáculo, impresso sob encomenda. Agora, praticando uma inflexão em nossa conversa,
você diria que a revista tem uma propensão surrealista, algo assim?
FM | A primeira coisa a se observar seria a intenção valorativa
dessa propensão, uma vez que o Surrealismo sempre esteve golpeado por inúmeros preconceitos.
Em seguida, poderíamos pensar em tal propensão como algo natural, tanto pela estreita
ligação dos dois editores da revista com o Surrealismo, quanto pelo fato de que
este movimento, em definitivo, influiu substancialmente em toda a arte que se faz
desde então. Sendo Agulha Revista de Cultura
um veículo que procura espelhar um âmbito mais consistente da criação artística
e sua reflexão, invariavelmente ressalta o que se poderia chamar de propensão surrealista.
Este é um ponto. Se observarmos o Índice Geral da revista (que está disponível
desde a edição # 8, de janeiro de 2001), veremos que é mínima a presença de artistas
diretamente ligados ao movimento (Víctor Chab, Juan Calzadilla, Cruzeiro Seixas,
Antonin Artaud, Max Ernst, Francisco Madariaga, Sérgio Lima), mesmo levando em conta
aqueles que poderiam dele se aproximar esteticamente (Marosa di Giorgio, Leonel
Góngora, Campos de Carvalho, Xavier Villaurrutia, Eduardo Eloy). Enfim, há inúmeras
linguagens convivendo no universo da revista. Mas poderíamos ainda falar em propensão
surrealista se o enfoque for aquele da "mais realidade", essencial em
tal leitura, uma vez que Agulha Revista de
Cultura rejeita a pauta domesticada e por vezes frívola que salvo raras exceções
tem sido a moeda corrente de nossa imprensa. De qualquer maneira, vale indagar qual
o enfoque que pretendes ao referir-se a uma propensão surrealista da revista.
CW | É que eu me lembrei de observações da crítica a sua
coletânea Escritura Conquistada – tardosurrealismo, parasurrealismo,
aquilo tudo – na qual, contudo, a percentagem ou índice de surrealismo per capita
era mais ou menos esse, também: normal, porém alta com relação às taxas brasileiras.
Associada a uma vocação pessoal, à inquietação, prática da liberdade de criação,
nossa propensão surrealista é resultado, acima de tudo, de honestidade intelectual,
de não trair o objeto de análise, discussão ou divulgação. Para ser mais claro:
se alguém for olhar, de modo despreconcebido, a literatura hispano-americana do
século XX, como você faz, ou então a poesia de Portugal na segunda metade deste
(daquele) século, vai encontrar surrealismo e imagens poéticas; mostrar isso de
forma despreconcebida, então, é questão de honestidade, de não falsear ou esconder
aquilo de que se está falando. A mesma postura se projeta na pauta da revista, resultando
nisso que denominei de índice elevado de surrealidade para padrões brasileiros,
embora normal, tomando o fenômeno, a ocorrência em si. Associada, ainda, à necessidade
de colocar pingos nos ii, esclarecer, como nas menções a surrealismo em meus
artigos sobre Campos de Carvalho e Herberto Helder – não as faria se não houvesse
equívocos e omissões precedentes. Veja um quase-silogismo (com ecos bretonianos):
Nós mostramos o que está à margem; o surreal está à margem; o que está à margem
é, associado a uma configuração mais ampla da rebelião, da criação livre, surreal.
Não lhe parece?
FM | Estou completamente de acordo. Assim como é inevitável
falar de Surrealismo quando tratamos da grande poesia grega deste mesmo século,
como, aliás, veremos a partir de ensaio sobre Kavafis que será publicado em Agulha Revista de Cultura # 10. Não poderemos
jamais fugir, sob pena de preconceito e desonestidade, de sua preponderante influência
sobre a criação e o pensamento em nosso tempo. Agora, as taxas brasileiras, francamente…
Se pensarmos que a tiragem média de livros de poesia no Brasil é exatamente a mesma
de Porto Rico, país cuja população equivale a 2% da brasileira, então veremos explicação
para tanta leitura desfocada acerca de inúmeros assuntos. Mesmo escritores europeus
da importância de um Robert Graves, Peter Poulsen, Marcel Schwob, José Ángel Valente
ou Boris Vian – para citar apenas alguns que estão comentados nas páginas da revista
–, são praticamente desconhecidos no Brasil, país onde seguem imperando o preconceito
e a inconsequência.
CW | Acho que tocamos em alguns pontos importantes. Retomaremos,
quando houver ocasião. Faltou informarmos mais sobre repercussão da Agulha Revista de Cultura, evidenciada pela
quantidade de retransmissões através de outros portais e de manifestações de leitores,
por e-mail ou pessoalmente, às vezes até nos surpreendendo. Mas isso também,
é algo que está no começo. Vai ampliar-se, é claro, com mais inscrições de nossas
matérias nos sites de busca. Por isso, voltaremos, com certeza, ao assunto.
Organização a
cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado
| Pierre Fudaryli (México, 1984)
Imagens © Acervo
Resto do Mundo
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO
SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA,
I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL
BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO
SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA,
II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins
e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo
de língua espanhola, sob o título de Agulha
Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012
retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins
e Márcio Simões.
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