Registram nos últimos anos os
principais suplementos literários do país, já agora em Portugal e praticamente em
toda a América Latina, a presença constante e consistente de Floriano Martins, poeta,
tradutor, ensaísta, artista plástico, enfim, na feliz expressão de Uílcon Pereira,
uma “ilha de produção”. Nascido no Ceará, em 1957, após passagem por São Paulo,
Floriano vive hoje em Fortaleza, onde curiosamente acabou encontrando sua melhor
base logística, onde publica seus livros, irradia sua produção ensaística, traduz
e edita seu próprio jornal literário, Resto
do Mundo, sempre com matéria inédita de nomes
que fizeram a arte deste século, muitos até desconhecidos no País. [SC]
SC Nossa história literária é marcada pelo fenômeno
de contínua migração do artista norte/nordestino para os chamados grandes centros
culturais. Em seu caso deu-se exatamente o contrário, pois se decidiu pelo isolamento
no Ceará. O que o motivou? O eixo Rio/São Paulo está saturado?
FM A condição básica do poeta é a do exílio.
As mudanças, embora menos que o canto – onde o poeta melhor realiza suas viagens
– também são essenciais. Nelas – levando em conta que quase sempre são forçadas
– se fundem riqueza espiritual e sofrimento pessoal. Quando deixei São Paulo, vindo
residir em Fortaleza (embora tenha nascido aqui, sinto-a cada vez mais distante
de mim), o fiz movido, muito mais do que pela falência do mito migratório a que
você se refere (mesmo concordando nisto que você chama de saturação), pela necessidade
de uma nova mudança em minha vida. De uma maneira geral, residir em Fortaleza é
o mesmo que em qualquer outra cidade brasileira (além de que vale notar que não
sou exatamente o tipo de sujeito que mantém relações afetivas com esta ou aquela
cidade – na verdade diria que sou um caramujo, ando sempre com a casa às costas),
a diferença que a vida que levo aqui me permite maiores condições de dedicação à
Literatura. Há também que acrescentar que tal residência proporcionou meu reencontro
com o poeta-editor Lauro Maciel Jr., com quem tenho trabalhado, nos últimos três
anos, na edição de livros e do jornal Resto
do Mundo.
SC Por seu exaustivo trabalho de pesquisa e
revelação da poesia latino-americana, pensa que é possível afirmar que a poesia
brasileira esta defasada e estacionária em relação à de outros países, como o Peru
o México e a Venezuela e outros menos conhecidos ainda? Em caso positivo, a que
atribui tal fato?
FM A diferença reside fundamentalmente no aspecto
da leitura. Não nos esqueçamos: um escritor é fruto de suas leituras. De uma maneira
geral o universo de leituras (principalmente relativo à poesia) do escritor brasileiro
é limitado, restrito. Pior: viciado em suas limitações. Repleto de justificativas
que vão da proliferante falta de edições à transferência, para o âmbito político,
de certas circunstâncias de caráter unicamente estético.
Se
pensarmos em alguns poetas brasileiros, tais como Drummond de Andrade, Murilo Mendes,
Jorge de Lima, Manoel de Barros, Francisco Carvalho, Santiago Naud, Sebastião Uchoa
Leite, Sérgio Lima, sem nos determos em delineamentos geracionais, veremos que tais
poetas são tão fundamentais como José Lezama Lima, Pablo Antônio Cuadra, Octávio
Paz, Vicente Gerbasi, Gonzalos Rojas, Enrique Molina, Javier Sologuren, José Emílio
Pacheco, José Kozer, entre muitos outros. Contudo, não há fluxo entre a poesia brasileira
e a dos países hispano-americanos. Os poetas, no geral, se desconheceram e se desconhecem
entre si. A coisa se complica se pensarmos que sequer há trânsito livre entre a
poesia que é feita unicamente nos limites territoriais deste imenso País. Apenas
provoco a ira demente do leitor ao citar nomes do quais ele nunca ouviu falar (quando
ouviu jamais leu um único verso).
Vejamos
um raciocínio corrente: se nossas livrarias não dispõem das edições da poesia de
Murilo Mendes ou Jorge de Lima; se não lemos dois exemplos fundamentais de nossa
poesia: Dimensão das Coisas (Edições UFC,
Fortaleza, 1962), de Francisco Carvalho e Pedra
Azteca (Ediciones Mester, México, 1985), de José Santiago Naud; se desconhecemos
a obra ensaística de Sérgio Lima (qualquer julgamento crítico com um mínimo de decência
a situaria ao lado da de Paz, Barthes, Sontag), por que então deveríamos conhecer
nomes como Vicente Gerbasi, Javier Sologuren, José Kozer, entre outros? Raciocínio
invalidade pelo fato de que conhecemos (há edições, o que pressupõe haver leitores)
Hans Magnus Enzensberger e Bertold Brecht, embora não conheçamos Holderlin, Trakl,
Benn, Celan. Lembremos que não há edições brasileiras de poesia de franceses como
André Breton, e Antonin Artaud; italianos como Eugênio Montale e Pier Paolo Pasolini;
britânicos como George Macbeth, Ian Hamilton e A. Alvarez; romenos como Lucian Blaga,
Lon Barbu e Virgil Teodorescu; espanhóis como Jorge Guillén, José Maria Valverde
e Luís Feria; portugueses como Alexandre O’Neill e Mario Cesariny de Vasconcelos;
húngaros como Attila József e Lajos Kassák; etc. E note que todos esses autores
(e a lista poderia crescer facilmente) são de importância capital para a poesia
de seus países. Com relação ao modernismo hispano-americano, para um outro exemplo,
desconhecemos a obra de todos eles: Rubén Dario, Amado Nervo, José Juan Tablada,
José Martí, Ramón López Velarde, José Asunción Silva, José Maria Eguren, Leopoldo
Lugones… Tamanho descalabro, Sérgio, é praticamente irrecuperável. Caberia a nós,
poetas, estarmos promovendo a entrada de toda esta poesia em nosso País. Contudo,
temos que reconhecer que somos muito poucos os que verdadeiramente estão envolvidos
nesta tarefa de proporções arqueológicas.
Os
reflexos disto são o mimetismo reinante (em face de um modelo supostamente apresentado
como o ideal, em função da falta de uma multiplicidade de leituras) e o consequente
e constante retrocesso a estéticas vencidas.
Por
último, e creio que respondendo à sua pergunta, citaria o nome dos peruanos César
Moro, Javier Sologuren, Carlos Germán Belli e Mirko Lauer; dos mexicanos Marco Antônio
Montes de Oca, Eduardo Lizalde, Gerardo Deniz e José Emílio Pacheco; dos venezuelanos
Juan Liscano, Rafael Cadenas, Alfredo Silva Estrada e Eugênio Montejo; todos poetas
absolutamente fundamentais, cuja poesia, se relacionada com a brasileira (embora
insista nas exceções: Francisco Carvalho, Santiago Naud, Sérgio Lima), evidencia
o caráter estacionário e defasado desta última.
Mas
é preciso que se acrescente que o Brasil vem de muitas décadas em um franco processo
de autodestruição, que abrange desde a precariedade de nosso sistema educacional
até o fato de exportamos a quase totalidade daquilo que produzimos, passando pela
atual desfuncionalidade de nossa recente Constituição e pelo tráfico de drogas e
crianças. Elementar, portanto, que a Literatura também sofra tais danos, e que sua
autoflagelação não tenha bases em um ceticismo radical, extremo. Creio que ironicamente
o Brasil entrará na história (se é que um dia entrará) pelo extermínio da própria
história, da noção de.
SC O virtuosismo linguístico ou revelação irônica
dos limites da linguagem (no dizer de Malcom Bradbury, falando de Joyce) justificaria
uma poética cifrada pela incomunicabilidade? Ou pensa, como Eco, que nenhum escritor
escreve para si próprio, mas para um leitor-modelo? Nesse caso, qual seria seu leitor
arquetípico?
FM Uma coisa não elimina a outra. Não acredito
que se possa escrever com vistas a este ou aquele tipo de leitor (ainda mais se
tratando de poesia, onde praticamente e cada dia mais escrevemos unicamente para
poetas), e sim apenas escrever. A leitura (esse ritual canibalesco e que também
implica revelação e comunhão) é uma consequência da escritura (no caso da poesia
melhor diria uma eventualidade), e não seu fim. Escrever para um leitor-modelo (mesmo
que esse leitor-modelo seja o próprio autor) é diagnosticar o fracasso da escritura
poética. Não nos esqueçamos que a poesia não é somente um meio de expressão, mas também uma atividade do espírito. Conquista do maravilhoso, fonte de conhecimento,
iluminação em estado puro, a poesia define-se afinal por uma verdadeira avidez pelo
desconhecido, exaltação perene do assombro de viver. Por ser a mais intensa aventura
do espírito humano, nela se definem amor e liberdade, fundem-se visível e invisível.
Quanto
à revelação irônica dos limites da linguagem, esta não implica incomunicabilidade.
A poesia se comunica através da emoção e não da decifração lógica de seus códigos
verbais. Há tanta emoção na leitura de Mallarmé e Girondo quanto na de Celan e Borges.
A incomunicabilidade de um poema está evidentemente pautada pela sua incapacidade
de desperta emoção em quem o lê.
SC Com George Steiner, Rimbaud, Lautréamont
e Marllamé, ao tentarem realçar o caráter fluido e provisório da língua, na realidade
não teriam contribuído decisivamente para o declínio de sua força vital? Não terá
a mídia reduzido a linguagem verbal a cacos e estereótipos para uma futura arqueologia
do consumo? Seu verso “arrasto comigo os destroços daquilo que sigo dizendo” tem
algo a ver com esse fato?
FM Acaso entre os monturos de nossa civilização
já não nos deparamos com o arquejo arqueozoico da arqueologia do consumo? Certamente
que aí nada será encontrado além de um ovo dentro de outro ovo. Assim como os poetas,
não podemos ser incriminados por termos socavado entre escombros à procura de uma
nova língua. Vejamos uma digressão. Após perseguir por incontáveis eras a figura
de um velho cujo rosto atormentado se instalara em seus sonhos, Zig-Muth, o bárbaro
clone, finalmente o encontra e de imediato desperta de sua obsessão milenar pelo
disparo de uma arma contra seu peito. Unkas recolhe, anos depois, a estranha confissão
do velho que exterminara Zig-Muth: “somente no passado poderemos ser felizes”. Nos
tais cacos e estereótipos a que você se refere talvez ironicamente resida a única
possibilidade futura de comunicação da espécie humana.
SC Sua poética se caracteriza pelas cosmogonias,
grandes espaços em que você projeta seres fáticos (o bandido Boca Mole), fictos
(o enigmático Barbus) ou da ficção tornada histórica (Unkas), tornados translúcidos
por feixes metafóricos ininterruptos. Você concorda com essa acepção? Você habita
o universo desses seres e suas épicas malditas? Comanda-os ou é por eles comandado?
FM O ato de criação para mim está ligado ao
mais intenso delírio da lucidez. Instante em que as imagens encarnam. Os seres que
você fala eclodem sempre em um estado que se poderia chamar de visionário, em que
eles próprios vão se fazendo, em que sou uma espécie de suget de suas emanações, que se irradiam a partir de imagens pipocando
nas ruas, recortes de revistas, músicas que ouço dia adentro, moinho de carnes do
amor, sangria desvairada da memória, leituras, cinema, conversas, insinuações, brechas
no corpo-mundo que me habita. Desta maneira vieram a mim Boca Mole (um bandido que
identifica o crime como a arte mais bela), Barbus (sim, o enigmativo “vagabundo
cósmico” inominável, “alma do mundo”, o ocultado
ser do discurso), Unkas (catador de lixos da linguagem, caçador de signos decompostos,
último de uma raça, paródia de si mesmo), outros mais. Contudo, meus versos (e somente
neles tais seres existem) são o foco central de minhas experiências. Através deles
– intensificação de mitologias pessoais – investigo as coisas que me cercam. Lembro-me
aqui de Barthes, ao concluir tão lucidamente que a função fundamental do discurso
(poético) é “conceber o inconcebível”.
SC A partir de seus versos: “em tudo o que somos
é a perda que se afirma”, “o tempo é a única ruína absoluta”, “a felicidade implica
um duro / aprendizado no sentido de se perder / coisas – de se desfazer delas”,
pode-se falar de sua poética como uma poética da perda?
FM Melhor diria: poética movida pelo paradoxo
de que perda é ganho. O paradoxo na visão de Kierkegaard: o salto extremo (mortal)
de uma margem a outra. Fluir e refluir constantes. Como se a origem do texto (corpo,
mundo) fosse delineada por sua perda. Busca, e não encontro, [de] sua pedra de toque.
Novamente em Barthes: “O eu que se aproxima do texto é já em si mesmo uma pluralidade
de outros textos, de códigos infinitos, ou mais exatamente: perdidos (dos quais
se perde a origem)…” Visão extrema do paradoxo: a poesia não pode ser lida pela
primeira vez; somente admite releituras.
SC Em certo ensaio, como nos conta, Sarduy se
referiu à colmeia de metáforas de Góngora como a metáfora ao quadrado. Sendo ela
a pedra angular de sua poesia, atribui-lhe natureza ôntica ou a utiliza como elemento
psicológico de efeito encantatório?
FM Notemos que em Góngora há um pleno domínio
de significantes. Ali o som, a beleza e o esplendor formal apresentam-se como dominantes.
Já em minha poesia o sentido tem o mesmo grau de importância que a forma, ambos
se apresentam de maneira indissociável. No que diz respeito às metáforas, o que
há com esses “feixes metafóricos ininterruptos” é um jogo de paisagens sequenciadas
(de certa forma frustradas por ali não poderem ser simultâneas). Eu gostaria de
dar a elas um nível tal de flexibilidade que pudessem ser lidas sem que esta ou
aquela fosse pinçada por uma escala de valores. Todas aquelas peças que compõem
a sinfonia-livro estão ali, sendo esta a única essencialidade delas. Lembro-me aqui
de José Kozer, este imenso poeta cuja obra eu estou antologiando, ao dizer que não
se sente escrevendo um livro de poemas e sim poemas, poemas, poemas. Quanto a mim,
sinto-me exatamente ao contrário, sempre a escrever livros, o que confere, portanto,
natureza ôntica a todos os meus versos.
SC Partindo, apenas para ilustrar, dos exemplos
de Valéry, Burroughs ou Sabato, e na condição de poeta, tradutor, ensaísta, artista
plástico e homem de ideias, pensa que seja essencial a um escritor um completo profissionalismo,
ou basta-lhe o atributo do talento?
FM Lembro que professar que dizer confessar,
e não creio que a arte esteja ligada a isto. Arte não é confissão pública de um
ofício. Em meu caso específico: sou essencialmente poeta; e todas as demais atividades
intelectuais que desenvolvo eu a faço a partir deste dado fundamental. Traduzo primordialmente
porque a tradução permite uma leitura em profundidade, conduz a uma plena identificação
com o texto alheio (inclusive abolindo tal fronteira), intimidade mais intensa que
a provocada pela simples leitura; meus ensaios (neste caso nos referimos mais às
entrevistas, daí que prefiro chamá-los apenas escritos, anotações) são frutos de
que criação e reflexão são operações convergentes, estreitam a máxima cumplicidade,
de tal forma que não consigo vê-las dissociadas; e com relação às minhas collages, diria que elas estão mais ligadas
à condição de poeta que de artista plástico. Não creio seja essencial a um escritor
um completo profissionalismo nem que lhe baste o atributo do talento. O verdadeiro
artista define-se por um obstinado rigor, que deve lhe acompanhar a vida inteira:
sempre disposto a negar direito à linearidade e a descobrir novas vozes dentro de
si. Tenho sido autodidata em todos os sentidos, aprendizado solitário, mas sereno
em seu bojo, serenamente rigoroso.
SC Tomando apenas como referência os conceitos
de tradução/transcrição, ou “transcriação”, qual é, como tradutor, seu modelo operacional?
A poesia é traduzível?
FM Tradução implica transferência, o que sujeita
o texto-fonte (em meu caso: o poema), no trajeto de uma a outra fronteira verbal,
a um recolhimento de certas impurezas. Na lapidação de suas citações interiores
temos que recorrer ao que se costuma chamar de recriação; e re-criar implica falsificar.
Na misteriosa passagem de Serpii vin sa bea
cenusa ta bolnava para as serpentes vêm
beber tua cinza enferma, há tanto expansão como perda. Por um lado o verso do
romeno Virgil Teodorescu multiplica o alcance de sua influência; por outro, sente
estilhaçar-se a plenitude de seu ser. Esta inabalável ambiguidade caracteriza a
operação tradutória. Lembro aqui que o poeta mexicano Eduardo Lizalde inclui em
seu mais recente livro (Tabernarios y Eróticos)
uma seção de traduções de poemas de Dante, Blake, Benn, Joyce, entre outros, a que
acertadamente intitula Baixa Traição.
Creio
que não importa se a poesia é traduzível ou não, e sim que, ao traduzi-la, o prazer
da linguagem reside exatamente em sua falsificação.
SC Diz Beckett nas primeiras linhas de O Inominável: “O que é preciso evitar, não
sei por que, é o Espírito do Sistema” (grifo meu). Você adota uma estratégia peculiar
para cumprir, ao mínimo necessário, a ritualística da sociedade burguesa? Quais
resultados você obtém?
FM Beckett também nos diz que “a busca do meio
de fazer cessar as coisas, calar sua voz, é que permite ao discurso continuar”.
Não posso deixar de lembrar que nossa crítica literária continua nos devendo um
ensaio em que se estude as aproximações entre Beckett e Clarice Lispector. Após
esta mínima digressão, creio que melhor responde à sua pergunta uma extensa citação
do poeta colombiano Alvaro Mutis: “A poesia é um exercício para condenados. Os poetas
transitam pela rua com o rosto e com os gestos dos demais transeuntes e só assim
sobrevivem; porque se se vestissem com o traje de amianto e fósforo que lhes corresponde,
as pessoas fugiriam a seu passo e o pavor reinaria ao seu redor como uma luminosa
coroa justiceira. Os poetas entendem esta situação e aceitam a penosa carga deste
mimetismo humilhante. Mas resta uma zona onde esta condição de vida assinalada pelos
sete dedos da lucidez, da beleza, da ira, da intemporalidade, do sonho, da morte
e do amor, é inocultável. Esta zona a constituem as palavras do poeta, sua visão
e seu trato com os demais condenados”. Tenho tomado para mim estas palavras, desde
o primeiro instante em que as li.
SC Desde a adolescência me impressiona Truffaut
ao dizes que um seu personagem, tendo levado um amigo ao aeroporto em noite de chuva,
e sucumbido num desastre, morrera de GENTILEZA. Há semanas, lendo Hanna Arendt a
propósito da fuga de Rosa Luxemburgo de Berlim, vejo que, entre outros, seu companheiro
Jogiches negou-se a partir afirmando que “alguém tem que ficar para escrever todos
os nossos epitáfios”. No mundo selvagem e perverso em que vivemos, o ser humano
é uma espécie em extinção?
FM O homem rompeu o mágico elo entre vida e
morte. Estilhaçou os bagos da memória. Negociou sua alma com o futuro. Usou a adaga
de sua ignorância para cegar todos os espelhos. E agora vaga em pleno deserto urbano,
assediado pela bárbara fantasmagoria de seus atos, atormentado pelos rombos em suas
camadas de ternura, prazer e delírio. Em nome do progresso mais destruiu que ergueu.
Guerras, abortos, confiscos, trapaças, atentados, têm sido seu manjar predileto
por toda a eternidade. Contudo, o homem tem sido sempre uma espécie em extinção.
Recupera-se aqui e ali. Entra em acordo com seus fantasmas. Oferta novos sacrifícios
ao Deus-progresso. De maneira que não creio que esta seja nossa última descida aos
infernos.
SC De acordo com Baudelaire o poeta é o melhor
dos críticos. Concorda em que a crítica de poesia deveria ser exercida unicamente
por poetas?
FM Entendo a crítica como acréscimo, jamais
como supressão. Um exercício constante de averiguações em torno ao texto-fonte,
exercício este que gera suplementos, ressonâncias, um caudal inesgotável de relações
sugeridas/provocadas pela repetição. Porém, uma coisa é a crítica e outra o crítico.
Já lhe disse que acho a critica uma atividade indissociável da criação, de maneira
que é sempre preferível que ela seja exercida pelo escritor, principalmente no caso
da poesia, em que só o poeta, como bem nos lembra Eliot, sabe que há sempre algo
“que deve permanecer sem resposta, por mais completo que seja nosso conhecimento
do poeta”.
SC O que poderia dizer-nos sobre sua notável
epígrafe: “O século XX não dará no XXI”.
FM Duas coisas: que me é cada vez mais impressionante
como sempre vivemos À sombra do mito da renascença: paralisados por um estado de
transição permanente; e que prefiro que os poemas falem por si mesmos, com sua voz
própria.
Entrevista
concedida a Sérgio Campos. Originalmente Publicada no SLMG – Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, 07/10/1989.
Foto do poeta em um programa de rádio, Panamá, 2000 © Alfonso Peña. SÉRGIO CAMPOS
(Brasil, 1941-1994). Poeta, crítico de Literatura. Publicou, entre outros, Montanhecer, poemas.
Colagens
reproduzidas nesta página:
1998 Alma em chamas
1998 Aula de pintura
1998 Custódia de
sentidos
1998 Escritura
conquistada
*****
Organização
a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado
| Floriano Martins
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS
DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA
MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO
EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS
DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA
MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano
Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de
Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde
2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
Martins e Márcio Simões.
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