segunda-feira, 5 de junho de 2017

MÁRCIO SIMÕES | A Participação poética


MS Você tem se pronunciado em vários lugares a respeito de uma “corrente subterrânea” na poesia brasileira. No que essa corrente se diferencia da corrente dominante da lírica nacional? Quais seus autores relevantes?

FM Aqui primeiramente se destaca o tema das escolhas. A riqueza existente em certa diversidade aos poucos foi dando lugar a um pequeno vício retórico que mescla facilismo artificioso da linguagem e informalidade de um falar gracioso. Retrospectivamente podemos ver a forma como foram entronizados os poemas-piadas de um Oswald de Andrade ou a ourivesaria esvaziada de sentido de grande parte da Geração de 45, sobretudo aquela que desemboca no mais estéril formalismo do poema-processo ou da poesia concreta. Soa verdadeiramente ridícula a contenda traçada entre fundo e forma, como se fossem inimigos mortais e a poesia resultasse da sobrevivência exclusiva de um desses recursos. A chamada geração marginal oferece pequenos sinais de recuperação, mas então infelizmente se verifica uma fragilidade dupla: ausência – já por um dilema histórico de presunção autodestrutiva – de referencial estético amplo e consistente, e ausência de visão de mundo consistente o suficiente para que através dela se construísse um discurso poético expressivo. A partir daí cedemos uma vez mais aos encantos do aprimoramento da forma em detrimento do sentido. O que chamo de corrente subterrânea se define exatamente por aquelas vozes de uma multiplicidade de ofertas que foram sendo em muitos casos desprezadas intencionalmente, variedade relevante de recursos estilísticos, amplitude de registros e em especial a riqueza de não padecer da avaria histórica do que chamas de “corrente dominante”, a ruptura entre fundo e forma. Nomes: Jorge de Lima, Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Dante Milano, Augusto Meyer, Dora Ferreira da Silva, José Santiago Naud, Lêdo Ivo. Eu conversava muito com Sérgio Campos, um dos grandes poetas brasileiros nascidos nos anos 40 – infelizmente morreu há mais de 10 anos em completo ostracismo – sobre a ironia que é ter esses nomes todos em um ambiente subterrâneo ou mesmo marginalizado. Por isto que falei inicialmente em escolhas. Fizemos as erradas e hoje pagamos um preço imenso. Perdemos os referenciais que seguramente teriam enriquecido a lírica em nosso país. Prejuízo histórico que não sei se recuperável.

MS Seu antigo parceiro na Agulha – Revista de Cultura, Claudio Willer, tem se pronunciado de maneira favorável à produção poética atual, afirmando que tem muita coisa de qualidade sendo produzida, mas que faltam críticos que se debrucem sobre essa produção crescente e diversificada. Suas declarações nesse sentido parecem ir em direção contrária, expressando certo pessimismo e desapontamento com a produção atual. Afinal, temos ausência de produção de qualidade ou uma produção ainda a ser revelada, separando-se o joio do trigo?

FM Há um pouco de cada coisa. Começaria pelo fato de que Willer é mais entusiasta do que eu. Muito do que ele aponta como boa poesia para mim não passa de diluição de beat ou surrealismo, o que pode até ser um avanço, considerando que safra anterior de diluições tomava por base cabralismos, concretismos e oswaldismos. Outro ponto é que círculo de amizades e a condição de editores de uma revista nos permitem acesso a textos inéditos, identificando quando há relativamente boa poesia sendo escrita, embora ainda não publicada. Por último, o ato de publicação em si não resolve muito se não há circulação dessa produção, se ela não encontra atenção por parte dos meios periódicos de difusão. Evidente que importa, sobretudo, a criação, mas quando tratamos do tema no plano crítico, a circulação é indispensável. Há um aspecto no que chamas de “produção atual” que me parece mais valioso do que ficar a citar nomes: a diversidade de fontes, o interesse despertado por outras tradições líricas e também por outras áreas de criação. São pequenos sinais que ajudam a criação a se libertar do peso morto da retórica literária. Sempre recordo uma frase luminosa de Rubén Darío, ao dizer que conhecer diversas culturas era a melhor maneira de se livrar da tirania de algumas delas.

MS Cada vez mais você é um nome de referência quando o assunto é poesia brasileira no universo hispano-americano, com participação frequente em eventos e livros publicados em vários países de língua espanhola. O mesmo não parece ocorrer no Brasil. A que você atribui tal fato? Confirmação do ditado perverso de que “santo de casa não obra milagre”?

FM No mínimo, eis aí bom motivo para uma bela risada. Acho que tem em parte que ver com esse ponto de cegueira que venho comentando, certa limitação de perceber quem está apontando em outras direções que não a dos vícios cartoriais. Nada pessoal, nada que pertença ao ninho das paranoias. É um caso bem comum de trânsito em nossa cultura. O Brasil ainda tem uma mentalidade gremial, de distribuição de riquezas entre associados e credibilidade dada a prêmios e outros arranjos florais. E há gente que se especializa nos estatutos dessa gincana. Fora desse ambiente apenas o reinado sutil das exceções. Márcio, o mundo está em todos nós, é parte de todos nós. Imagino alguém se identificando com qualquer coisa que à primeira mão esteja mesmo na contramão de uma tradição. O toque de sedução do esquisito. Passado este primeiro momento as teias vão sendo tecidas, as conexões vão sendo percebidas. Um nozinho aqui e outro ali, pronto, já chegamos naquilo que se costuma chamar de poética, estética, estilo. Tudo porque o confronto é a matriz, não há distinção, personalização, voz própria, fora do confronto. Acho que no Brasil se tem uma leitura inversa da coisa.

MS Em algum momento você se ressente de estar no Nordeste do Brasil? Acha que a sua produção e atuação seriam mais valorizadas e facilitadas caso estivesse no eixo Rio-São Paulo, publicado por grandes editoras?

FM Mas eu não estou em Nordeste algum. Nem o Nordeste. Tampouco ando em busca de cargos. Tenho plena mobilidade para mudar de residência quando houver motivo que o valha. E não me ressinto de nada, querido. Toco em tais temas apenas em atenção à tua curiosidade. O Nordeste, no Brasil, deu sempre ao país a sua melhor literatura, assim como a música e a plástica. Mas é uma tolice dividir o país dessa maneira. O país foi rico em duas fundamentais circunstâncias de sua história graças a Pernambuco e Minas Gerais. Nos dois momentos fomos sugados até a alma. Não sabemos manter o que é nosso porque não sabemos com exatidão o que é nosso. Há uma espécie de impregnação colonial que não nos permite destronar fantasmas. Toda vez que a imprensa toca em China e Índia, ao lado do Brasil, como sociedades emergentes, eu penso que não é a experiência milenar dos dois outros países, sua essência cultural, mas sim o aprendizado de uma estratégia econômica, de política econômica, de determinação social, longe, muito longe, do que se poderia aceitar ou entronizar no Brasil. É quando mais gosto de meu país. Quando intuo que jamais se converterá em Índia ou China. Por outro lado, não sei qual mérito nos faça tão felizes em copiar certos paradigmas franceses e estadunidenses até hoje. Rateio regionalista hoje no Brasil é suicídio de uma sociedade. Não temos no Brasil um problema cultural, no sentido literário ou musical, por exemplo, mas antes um desastre social. Agravado enormemente porque ninguém chama para si a responsabilidade sobre o tema. Caminho pelas ruas de Sidney, de onde te escrevo, vejo os mínimos cuidados, já incorporados ao cotidiano da cidade, no que diz respeito à infraestrutura urbana em geral. Fecho os olhos, recordo meu país, e sinto o quanto permanecemos na idade das trevas. Observo o tratamento dado a um acidente como o dilema das enchentes em Queensland, inesperado como não se pode assim chamar os deslizamentos no Rio de Janeiro ou o aguaceiro em New Orleans. De que nos serve recordar aqui o quanto que o Congresso Nacional, no Brasil, enriqueceu às custas de liberações de verba para um Nordeste que jamais se beneficiou delas? Como superar uma sociedade baseada no cinismo?

MS A relação autor/leitor vem sendo substituída de maneira contumaz pela relação produtor/consumidor. Você mesmo chegou a afirmar que “o grande drama da criação hoje está na circulação e não na produção”. Quais as implicações disso para quem busca na literatura algo mais que um produto feito para atender um perfil consumidor?

FM Mas a quem importa o tipo que busca encontrar a si mesmo numa prateleira de livraria? Haverá salvação para esse tipo de leitor? Não ria. O que eu indago é se a minha preocupação deve ser com esse cúmplice disfarçado de vítima. Acho que há duas relações aqui que precisam ser aclaradas. De um lado há o fabricante, industrialmente um produtor, a peça de mercado, que faz com que o disco, o livro, qualquer coisa que traga ainda certo cheiro de arte, circule de mão em mão. Outro figurante é o Estado, aquela fantasmagoria que em nossos países costumamos chamar de política cultural, absolutamente inexistente. Tudo estaria perfeito se houvesse o que agendar, seja para proteção ou produção. Na prática, na velha e boa prática, qualquer canção é pensada no sentido de atender à delineação dessa dupla, mercado/Estado. Usei a canção por ser o exemplo mais popular em termos de circulação artística. Imagine a situação referente a um poema ou uma escultura. Evidente que a arte não foi destruída pelo Estado ou pelo mercado. Mas em um país chamado Brasil, onde a cultura não se realiza senão como uma expressão espontânea e invariavelmente basbaque diante do próprio espelho – porque aqui somos todos geniais antes mesmo de sê-lo –, uff, aqui tudo nos leva a uma piada que se contava no bairro carioca em que vivia o compositor Cazuza, ele sempre encharcado de si mesmo – um bêbado que aparecia em um daqueles bares do chamado Baixo Gávea e dizia: “…mas se o Cazuza é chamado de gênio, o que dizer do Beethoven?!” Evidente que é outra a leitura que se entende acerca de influências e graus de potência estética entre gerações, países etc. O que interessa aqui é a percepção de nossa pressa em considerar alguém gênio, senhor dos anéis ou de outras propriedades. Em um lugar assim, querido, o leitor será sempre vítima. Não te esqueças que tem crescido muito a produção de pérolas com base no cativeiro de ostras. A metonímia é a ciência dos tolos. O mundo é uma grande caixa de ressonância metafórica.

MS Quais as alternativas atuais para a circulação da poesia de qualidade? Existe mercado para a poesia?

FM Jamais existiu. Nunca, nunca. Não sei qual a curiosidade em torno. Essa preocupação de poetas de se tornarem cantores de rock ou atores de cinema. Até hoje não houve poeta brasileiro ocasionalmente mais famoso que J. G. de Araújo Jorge. Não sei se era lido, e até prefiro que o pobre seja um desses casos de autores como Pablo Neruda e Umberto Eco, que encontramos em estantes de sala em casas de uma ponta a outra do interior do país e se trocamos duas palavras com o dono da casa ele não faz a menor ideia do que há ali no interior daqueles livros. Talvez a confusão esteja na relação conceitual entre circulação e mercado. Mercado para poesia não existe. O pior poeta que alguém possa sugerir não vende o que lhe valha no bolso o aluguel de um veleiro em um final de semana no Caribe. Os orgulhosos melhores poetas costumam achar que somente os piores vendem algo. Ninguém sabe, em geral, de onde vêm os recursos que sustentam a vida de um artista. Adoro a debandada de maus poetas para o céu da narrativa, eles vão ali em busca de sucesso e glória, a alma encharcada de pedrinhas de luz. Como um leitor, sempre hipotético, pode se beneficiar diante dessa troca contingencial de partido nas artes? Mas o mercado, ah o mercado! Sempre foi o mercado das almas. Não importa o que se compra e vende e troca, mas sim o espírito da transação. Não há distinção entre venda de livro e analgésico, disco e brinquedo a pilha. Quando nos sentimos frustrados, traídos, esquecidos. Quando nos projetamos nos filhos. Quando tudo na vida equivale a um livro não editado. Aí está o mercado nos comendo por dentro. Viver é outra coisa. Criar é outra coisa.

 MS Você enveredou pela narrativa com a novela Sobras de Deus (Edições Nephelibata, 2010), um texto visceral e de inegável qualidade. Porque só agora a prosa narrativa? Considerando que você já afirmou em inúmeros lugares que é “essencialmente poeta”, qual o sentido da obra na sua trajetória criativa? É autobiográfico?

FM Isso do autobiográfico sempre me lembra tolice igual que é o culto do “baseado em fatos reais” que observamos no cinema. Soa ridículo ao menos imaginar essa tarja em filmes de Akira Kurosawa, Federico Fellini ou Clint Eastwood. A pergunta é: o que importa? Se a imaginação, o sonho, a memória, o delírio, são partes do que eu sou, então tudo em mim é autobiográfico. E tudo o que crio tem por base o fato real, tangível ou não. Este livro é uma espécie de saga familiar. Ali estão pais, tios, avós, primos, enriquecidos em sua personalidade, alguns mesclados entre si, mais ou menos decalcados do que se chama realidade. Certos personagens na família por acaso permitiam a conversão graciosa em ficção. Mas veja bem: o que chamas de prosa narrativa está presente em boa parte de minha poesia, assim como o drama teatral, a crônica policial, as anotações reflexivas. A diferença é que em essência o olho com que observo o mundo é o da poesia, o que quer dizer que não me importa a análise e sim a comunhão.

MS Uma característica sua é a disposição para o diálogo, inclusive no campo da poesia, compondo poemas a quatro mãos. Como tem sido a experiência de compartilhar esse momento normalmente tão solitário como é a escritura literária?

FM Suponho que se eu fosse músico ninguém me faria tal pergunta. Creio que a criação em si vale tanto pelo resultado, apresentado na forma de uma obra, quanto pelas forças que move para alimentar-se. Compartilhar a intimidade com alguém é entregar-se ao mundo, não somente habitar, mas deixar-se habitar. Não entendo como o poeta pode aceitar a sua solidão como dilema ou castigo. Jamais observei o tema por tal ângulo. Quando não estou criando é quando mais me sinto só. A solidão tem, portanto, outra composição para mim. Tenho escrito poemas, letras de canções e até mesmo ensaios – a quatro mãos. São originalmente improvisos, como se fôssemos músicos de jazz ou praticantes de um daqueles jogos surrealistas. Isto ajuda a reforçar o sentido estético de cada um, enriquece a pessoa e até mesmo o léxico, recorda que não estamos sós no mundo, aprimora a extração cósmica da criação em si. Um homem pode viver isolado do mundo e ser quem melhor lhe compreende. O inverso, caso comum de trânsito, tem resultado em inumeráveis desastres históricos. Em geral nos divertimos nos cinema ou na televisão com a vulnerabilidade das sociedades humanas. Rimos e dormimos para amanhã acordar bem cedo, levar o filho à escola, a mulher ao emprego e seguir participando dessa mesma vulnerabilidade. Eu não vejo nenhum sentido nisto. Assim como procuro uma mulher que divida meu dia com as coisas mais entranháveis, que se divirta comigo a tatear o mundo, eu vivo a propor a mesma relação amorosa a outros artistas. Busco gente com quem escrever poemas, compor músicas, pintar, rascunhar, tomar cerveja, matutar sobre a existência. Não vou, afinal, levar essa vida toda que tenho dentro de mim para o túmulo.

MS Em 2008 apareceu Brincos do Mar e o Infinito, CD com canções suas em parceria com Mário Montaut e Ana Lee. O projeto terá continuação? Uma curiosidade: você faz distinção entre letra e poema? Sabe de cara quando está escrevendo para o livro ou para a canção, ou isso se dá depois?

FM A criação adora confundir o criador. Venho escrevendo um livro com um poeta mexicano dedicado a músicos de jazz, série de poemas que são diálogos intimistas com músicos e compositores de nossa preferência. Outro dia me sentei para escrever o poema que seria meu diálogo com Louis Armstrong. Havia rascunhado algo que teimosamente não avançava, quando então me surge a lembrança de Alberta Hunter com aquele seu olhar traquino de quem havia descoberto o soro da imortalidade. Poucos minutos depois estava escrito o poema a ela dedicado. Fui traído pela intenção. A poesia salvou a si mesma. Com isto quero dizer que se já me sentei para escrever um poema e saiu uma letra de canção ou vice-versa, é detalhe que nunca vem ao caso. Evidente que há uma distinção entre o poema e a letra de canção, o que não impede que alguns poemas sejam musicados – basta pensar na tradição dos lied na música erudita – ou que muitas letras deem a impressão de não caberem na melodia quando as escutamos. Em geral, há dois tipos de poetas: os que fogem da métrica e da rima como o diabo da cruz e aqueles que não sabem viver sem pelo menos um desses artifícios. Junte-se a isto o fato de que, ocasionalmente, os letristas de canção podem alcançar, mais do que fama propriamente, uma conta bancária mais sorridente que a dos poetas, e eis o alvoroço: poetas detestam letristas de canção (risos). Quanto ao disco que fizemos, Mário Montaut, Ana Lee e eu, não, não chegamos a pensar, os três, em gravar outro disco. Continuo compondo com um e outro. Este encontro com ambos me reanimou a voltar a pensar na criação de letras de canção, algo que sempre me apaixonou e a que raramente me dediquei. Tenho em curso a ideia de gravação de um disco reunindo canções que fiz com oito parceiros.

MS Vários músicos e compositores são citados em seus poemas e entrevistas. Vê relação entre a música que você escuta e o ritmo e sonoridade de seus versos? Você se considera um poeta mais ligado ao som ou ao sentido?

FM Jamais pensaria em separá-los. A música entrou em minha vida primeiro do que qualquer outra expressão artística, porque meus pais ouviam muita música em casa e música distinta entre si. Eu convivi muito pouco com meus pais em um primeiro momento. Eu ficava mais na casa da minha avó materna e ali não havia nada de música, mas sim umas telas curiosas na parede, umas naturezas mortas em que peixes e frutas bailavam de uma maneira fascinante para mim. Quando comecei a fazer colagens, essa época na casa de minha avó aflorou de tal maneira que me pus a cortar e colar, em minúcias, o que anos depois reconheceria como uma influência mágica das naturezas mortas belgas e holandesas do século XVIII. É interessante observar que não cheguei ali, naquela técnica, por influência surrealista, mas sim por um desdobramento espontâneo de quando ainda tinha algo em torno de 6 anos, em que recortava figuras das páginas de gibis para lhes dar movimento. Diabos, Márcio, vou te contar umas coisas aqui sobre música. Dois discos me desorbitaram de uma maneira até hoje determinantes em minha poesia: Filmore East (1971), do Mothers of Invention e A música livre de Hermeto Pascoal (1973). Não havia mais rock ou jazz propriamente em nenhum dos dois casos. Zappa e Hermeto haviam ousado na intromissão de uma linguagem em outra. Impossível contar com uma dose tão radical de alquimia. Era tudo o que eu precisava para sacramentar minha intuição em torno da mestiçagem na criação. A vida é um entrecortado infinito de relações. Eu faço versos com a vida inteira. Não estou fora de nada.

MS Sei que você é leitor de comics e aprecia quadrinhos, inclusive já tendo chamado atenção pra influência deles na sua criação. Como se dá a relação entre a literatura que você produz e os quadrinhos? Que aspectos você transpõe de um formato para o outro?

FM Quando criança eu lia os clássicos da literatura mundial adaptados para fotonovelas. Foram, de alguma maneira, meus primeiros gibis. Casos como Os irmãos Karamazov, O Conde de Monte Cristo, O morro dos ventos uivantes, As viagens de Guliver, eu lia o romance e sua adaptação para fotonovela. E logo algumas adaptações para telenovelas, como no caso de O médico e o monstro. A sugestão do traço, principal fonte de dinâmica da narrativa, nos gibis. A imagem em movimento, no caso da adaptação cinematográfica. O efeito cenográfico no ambiente teatral. A descrição, cortes, detalhes, mas sempre a palavra presente, ainda que sejam mudos todos os personagens, na literatura. Quando escrevo não posso passar sem as palavras. O que faço é aprender com outras linguagens como ser mais sutil e expressivo em cada passagem de um poema. Mas algo em mim me leva também a pensar em fotos, maquetes, vídeos, cenografia, canções, e quando estou desfrutando a obra alheia sempre faço anotações de memória de aspectos que me permitam – um dia, um dia – realizar a soma de estruturas, estilos, argumentos, que busco.

MS Em vários lugares você tem denunciado o que chama de “provincianismo” da literatura brasileira. Em que consistiria esse provincianismo? Sob quais aspectos podemos vê-lo manifestado?

FM Será mais fácil buscar uns poucos lugares em que ele não se manifeste. E não é a literatura, pois aqui o plano é de ordem cultural. O que é curioso é que a literatura seja uma expressão desse provincianismo e não uma recusa ao mesmo. Há algo velado no país que é fazer a crítica de si mesmo. O país não está aberto a um diálogo de observações sobre seus erros e acertos. Cada bloco que consideramos como capítulo de nossa história é lacrado e não se pode voltar a ele para apontar suas falhas. Não é que haja um decreto em tal direção, mas sim que agimos como se houvesse. A velha distinção entre lei e ordem. Aqui a história é a lei. E a lei naturalmente é escrita por um grupo de gente que zomba da ordem. Trato metaforicamente do assunto, eu sei. Há pouca conversa sobre a constituição de uma sociedade essencialmente mestiça como a brasileira. Poucos fazem ideia do que houve com a drástica redução do componente indígena. Menos ainda do imenso componente negro, a fatura angolana que nos foi passada e que evidencia mais intimidade entre as duas culturas do que se possa sonhar ou aceitar atualmente. A equação básica que resultou no preocupante traçado urbano das capitais brasileiras com um regime social curiosamente definido a partir das favelas, onde ao Estado falta apenas admitir que perdeu o controle dessa zona de guerra. Diabos. Adiamos essa discussão eternamente. A literatura não é reflexo de uma sociedade. Espera-se um pouco mais de um escritor. Podemos separar a filmografia do Woody Allen, por exemplo, em duas instâncias: a sátira e a crônica. Hoje, que faz apenas a crônica, indagamos, qualquer um admirador seu fora dos Estados Unidos: de que valeu tanta sátira? O que deve uma sociedade à seu artista tem um papel idêntico ao que lhe deve ele. Voltamos ao Brasil?

MS O catolicismo, religião dominante no Brasil, sempre foi um elemento de base na formação das nossas elites intelectuais. Em alguns lugares você tem se referido a esse fator de maneira bastante desfavorável. Quais as consequências disso na nossa produção literária? Onde se encaixam aí os casos de católicos anárquicos como Murilo Mendes e Jorge de Lima?

FM Não se trata de prejuízo literário. Tampouco é uma questão de alimentar vitimário. Não gosto da ideia de Murilo Mendes e Jorge de Lima serem postos como incompreendidos por um tipo de intelectual que até hoje cisca em um galinheiro muito apropriado. Não. Foram evidências de uma condição medíocre de nossa cultura, da sujeição aos ditames de capelinhas arregimentadas por gente como Tristão de Athayde e Mário de Andrade, sem falar na leitura equívoca em relação a ambos da parte de um crítico como Wilson Martins e em uma corja irrepreensível de signatários que fez voto de fé de toda modalidade de autismo em nossa cultura, igreja onde comungam concretistas e demais insalubres vozeiros das vanguardas pós-tudo (termo tão pomposo quanto inócuo). Interessante observar é que catolicismo atualmente foi devorado por esse ecumenismo rock’n’roll às avessas, e ninguém encontra mais motivo para contestar os argumentos tornados históricos. Resta como preocupação real o que não entra na seara de interesses de nenhum escritor neste país: qual literatura brasileira ensinamos às nossas crianças?

MS Você tem feito uma crítica forte ao que chama “caráter trocadilhesco” da cultura brasileira, apontando inclusive fatores antropológicos para isso. Podia delinear melhor essa ideia?

FM Sociedades burocráticas adoram siglas. Sociedades que não se levam a sério adoram trocadilhos. O Brasil é uma mescla curiosa das duas coisas. Quando criança ouvia dizer que IAPC significava Isto Ainda Pode Cair. São inúmeras as siglas de órgãos públicos que foram convertidas em pilhéria. A veia dos poemas-piadas surgidas no Modernismo foi a artéria mais concorrida de nosso imaginário poético, com adeptos de toda ordem – basta pensar em José Paulo Paes e Paulo Leminski – e um extenso monturo de livros. Veja o exemplo do humor produzido para a televisão. O recurso ao duplo sentido, se recordarmos personagens clássicos de Chico Anysio, enriquecia a leitura dos mesmos: a linguagem criava um jogo de ambiguidade que a tornava mais sedutora. A piada tornou-se hoje um recurso apelativo do leviano e do execrável, curiosamente em uma sociedade em que tudo é leviano e execrável. Os poetas-piadas dos anos 70 são hoje os redatores dos programas de humor da televisão. Este é o espírito. E sempre que alguém toca no tema surge alguém a recordar aquela bobagem do Brasil não ser um país sério. Ou ainda pior: a interpretação de que a voz crítica é a de um ressentido que por uma razão ou outra não participa do rateio. Nisto o país é seríssimo.

MS Você menciona o Octavio Paz e o Milan Kundera como ensaístas de sua predileção e leitura. O Octavio Paz é uma quase unanimidade, enquanto o Kundera é mais conhecido por seus romances, alguns inclusive alvos de críticas negativas. Como foi a descoberta desses autores? O que te interessa especificamente na obra ensaística de cada um? Vê relação entre elas?

FM Vamos devagar que o andor é de barro, segundo reza a ladainha popular. A minha predileção em relação a ambos diz respeito a temas. O mexicano tratou da poesia com a mesma paixão reveladora que o checo tratou da narrativa. São exemplares neste sentido. Vamos começar pela tua observação de que um seja “mais conhecido” que o outro pela criação. Kundera não existia no Brasil antes da adaptação de um romance seu para o cinema. Seu caso lembra um pouco o de Italo Calvino, não pelo cinema. Uma súbita descoberta gerou um frisson que fez com que inúmeros livros fossem publicados no Brasil. Passada a temporada, os mesmos títulos se acumulavam em prateleiras de remarcados. Já o que se passou com Octavio Paz foi mais aparentado do ambiente cult. As péssimas traduções de seus dois livros mais difundidos entre nós, El arco y la lira e Los hijos del limo são bons fundamentos para o aprendiz de feiticeiro que se interesse pela poesia. Sua poesia é menos fascinante que a trama analógica do ensaio. Mesmo quando se identifica com a mitologia indiana – pelos anos que ali vive –, o que se percebe é que a ideia da vacuidade já estava presente em sua poesia, em sua visão de mundo. Este é seu mistério, sua fonte inesgotável de metáforas. Sob este prisma observa não só a poética, mas também a política, em todos os seus ensaios. Sua leitura da poesia que lhe é contemporânea é ambígua, quando menos, trate dos pares mexicanos ou hispano-americanos. A visão crítica da narrativa em Milan Kundera é menos caprichosa. Contrapõe personagens, verifica tensões na construção de ambientes que circulam da arquitetura da linguagem à linguagem da arquitetura em romances fundamentais para a história do gênero no ocidente. Há uma grande riqueza em sua observação de paralelismos entre as estruturas narrativas no romance e na música erudita. Este foi um aspecto que me fascinou bastante. Não entro no mérito das críticas negativas acerca dos romances de Kundera. O português Saramago é frígido em sua narrativa. O italiano Umberto Eco é algébrico. Kundera possui um grau de economia de linguagem que o tornaria melhor aluno de Calvino em uma de suas aulas, se fosse o caso. Calvino, no entanto, era latino, e jamais conseguiu ser tão econômico na linguagem quanto Kundera. Eu não teria a menor dúvida em incluir o autor de A insustentável leveza do ser entre os grandes romancistas europeus do século XX. Ao mesmo tempo, caso incluísse a Octavio Paz entre os grandes poetas americanos do mesmo período, não o faria sem antes me referir a aspectos renovadores e relevantes na poética de muitos de seus pares.

MS Sua poesia tem uma forte relação com as artes plásticas, expressando-se inclusive por meio de colagens. Como você dimensiona a distinção entre os dois mundos? Se tocam, se afastam, se interpenetram? Poemas inspiram colagens, colagens te impelem ao poema? Ou a coisa se dá de maneira mais indireta?

FM A grande ponte é a imagem. Não estou muito de acordo em relação ao termo “colagem”. Sob dois aspectos. Houve um tempo em que fiz colagens, no termo clássico: tesoura, cola, matrizes, descoberta de outro mundo a partir de aproximações de elementos díspares. Logo passei a tratar com os recortes cada vez mais minúsculos, que remetem à minha infância, seja pelos catálogos de naturezas mortas que havia na casa de meu pai como também pelo fato de que eu gostava de recortar as figuras dos gibis para manuseá-las tridimensionalmente, claro, com a força imaginativa da infância. Passei então a usar a fotografia no sentido de criar ângulos, formas, sombras, que pudesse eu mesmo recortar para o exercício ainda convencional da colagem. A utilização mais íntima da fotografia me levou a deixar de lado a colagem e passar a lidar com a sobreposição. Acho que até do ponto de vista amoroso, a sobreposição é mais sugestiva que a colagem. Já não se trata de provocação, mas sim de realização. Alquimia. A escritura de um poema não pode ser vista como aquela coisa simplória de um papel em branco, um lápis e um devaneio qualquer na cabeça. Todos nós escrevemos poemas assim. Ali está ele. Não importa de onde veio. Até hoje não se sabe com certeza que importância possa ter isto na vida. Vivemos em sociedades cada vez mais distantes da poesia, do mundo de descoberta, fascinação e equilíbrio de diversidades que ela inspira. Qualquer jovem poeta evita indagar a si mesmo por que rabisca aquelas imagens. Diante de um prato novo que alguém sugere em um restaurante, olhamos e o interpretamos de maneiras diferentes: uns com o olfato, outros com a visão, poucos se atrevem a provar antes de uma informação mínima e da aprovação de algum desses sentidos. Os meus seis sentidos desconhecem qualquer fator hierárquico. Nem pensemos no leitor. Como um poeta reage diante da poesia, distante da sua, de outro que lhe é contemporâneo?

MS O começo da busca saiu em 2002. De lá para cá muita coisa aconteceu. Como você avalia a trajetória do livro até agora? Avançamos algo com relação ao diálogo com os países hispano-americanos e suas literaturas?

FM Mas este não é um livro dedicado ao diálogo com as literaturas hispano-americanas e sim tocado pela necessidade de se criar um ambiente de leitura e discussão da presença do surrealismo nessa parte do continente americano. Evidente que ali também nos chama a atenção a absurda ausência de conhecimento, da parte brasileira, em relação ao que se passa na fatia majoritária da América. Mas chama essencialmente a atenção para a falta de conexão intercontinental, pois o livro, embora tendo sido publicado no Brasil, não se limita aos problemas fronteiriços internos. Trata do preconceito dirigido contra o surrealismo. Somos uma sociedade com 200 milhões de habitantes. O livro teve uma tiragem de 1.000 exemplares. A editora o deu por esgotada. Saíram resenhas em alguns importantes veículos de imprensa, incluindo algumas entrevistas que me foram feitas, para revistas, jornais, rádio e televisão, no Brasil e em alguns países hispano-americanos. Tudo até muito bonito e surpreendente. Mas evidente que é uma trajetória ineficiente. Escolha ao acaso algum poeta brasileiro e indague a ele sobre poetas hispano-americanos fora do circuito das circunstâncias. As quatro primeiras décadas do século passado viram nascer, na América Hispânica, algumas vozes fundamentais e que certamente teriam impedido o nascimento ou ajudado a sepultar certa frivolidade da lírica brasileira. O sentido inverso também teria algum valor, e livraríamos a lírica hispano-americana de certa adiposidade metafórica. Body and soul. O que torna esta uma belíssima canção é o espírito do conectivo. É isto o que falta entre nós.

MS Seu mais recente trabalho na área da ensaística literária chama-se Um pouco mais de surrealismo não causará dano algum à realidade e deve ser publicado em 2011 no México e na Venezuela. Que nova abordagem o livro traz ao assunto? Como está organizado? Fale um pouco sobre ele.

FM O livro foi originalmente preparado como parte do programa de um seminário que dei na Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos). O seminário foi um pouco mais abrangente, porque tratava também da plástica e do surrealismo na Europa. Resolvi dar a ele uma espécie de leitura final, de minha parte, em relação ao tema, especificamente no que diz respeito ao continente americano. O tema não tem fim se nos dedicamos a considerar as tolices escritas a respeito. A pior delas é justamente a que não entende a distinção entre dois mundos que separa Europa e América. Observa o entendimento do poeta inglês, A. Alvarez: “Embora as polêmicas e teorias surrealistas fossem consistentemente mais extremadas do que a sua prática, que muitas vezes era apenas decorativa, o surrealismo, ainda assim, mudou a maneira pela qual o mundo é percebido”. Agora olha um outro poeta, o mexicano José Emilio Pacheco, o que ele diz: “o surrealismo não foi adotado como uma tendência exclusiva pelos jovens que então o descobriram, mas sim como um elemento natural e imprescindível na visão das coisas e na retórica do ofício que estão na base dos livros que fizeram a literatura mexicana dos anos 60”. A combinatória dessas duas visões já nos insulta a escrever outro livro. Pacheco parece querer do surrealismo o que ele jamais poderia dar. A crítica feita por Alvarez jamais poderia se aplicar ao surrealismo na América (naturalmente não cabe aqui falar nos equívocos de toda ortodoxia). Que tolice falar em “tendência exclusiva” ou “elemento natural” quando o tema essencial é a criação artística. O surrealismo na América é imperativamente uma poética. E neste sentido trouxe à lírica de cada país enriquecimento que ainda está por merecer uma leitura limpa. Vejamos agora o que disse o argentino Ernesto Sábato: “Era necessário o terrorismo dos surrealistas para empreender qualquer empresa de reconstrução”. Não havia necessidade de reconstruir algo na América nos anos 20, século XX. Quando atingimos o ponto da reconstrução, quatro décadas depois, o “terrorismo” dos anos 60, o surrealismo já então era interpretado como fora de área, zona vencida pelo tempo. O que faço em meu livro é tentar mostrar um mapa sem preconceito de duas formas de identificação americana com o surrealismo. A relação entre magia e cartesianismo, como a encontramos na lírica americana, por exemplo, é impensável sob a ótica europeia. O que é mito para uma cultura é mera bugiganga para outra. Interpretar o surrealismo por essa ótica é o mesmo que explicar o mundo unicamente pelo relato do escrivão de frota dos conquistadores.



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Entrevista concedida a Márcio Simões. Realizada através de trocas de e-mail entre Sidney e Natal, dezembro de 2010, janeiro de 2011. Foto do poeta, Natal, 2010 © Márcio Simões. MÁRCIO SIMÕES (Brasil, 1979). Poeta e tradutor. Autor dos livros O Pastoreio do Boi (2008) e Fúrias de Orfeu (2017). Fundou e dirige o selo Sol Negro Edições.
Colagens reproduzidas nesta página:
1990 A partitura extraviada
1990 O lobo e o pastor
1996 Um livro de Ângela
1997 Noites rastejantes

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Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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