segunda-feira, 29 de maio de 2017

Agulha Revista de Cultura # 98 | Editorial


• O PECADO ALÉM DA CRENÇA

O lugar de se estar fora do mundo não existe até o momento em que compreendemos a exaustão interna. Mesmo o esgotamento de célula prepara uma metáfora da resistência que nos leva cada vez mais para o centro do dilema. O abandono possui uma carga pejorativa de fracasso. Somos de algum modo levados a aceitar que a indigestão de valores é sinal de fraqueza orgânica, do organismo individual e não de sua equivalência social. Hoje esteve aqui em casa uma querida amiga e me falou da morte de alguém íntimo nosso como um desastre cultural. Tratava-se de um grande compositor. Conversei com ela que não via desastre algum na situação. O desastre do ponto de vista cultural não é a morte de um autor e sim o extravio de sua obra. Já o desastre trazido para o plano pessoal somente se configura quando a perda é identificada com um acidente, de qualquer ordem.
A conversa era sobre a morte do compositor Belchior. Ela lamentava o desastre e eu insistia em sua inexistência. Disse-lhe que tinha mais inveja do Belchior do que lastimava sua morte. Mas não se trata aqui propriamente de morte. Em vida, Belchior levou a ferro e fogo a ideia de arte extrema, do exercício da criação como se fosse a última prova de existência do homem. Não apenas apontada por seus versos, mas pela mais secreta obsessão, de alguém que se sentia determinado a realizar umas e outras tantas coisas. Não importam quais. Trata-se de um estágio de determinação, que reconhece a implicação de seus obstáculos. Vem daí sua crítica tão lúcida ao ambiente deteriorado da poética da canção popular brasileira. Mais ainda, do comportamento de nossas vedetes.
Vamos nos dever comentários perenes acerca da essência poética de sua obra, ao mesmo tempo em que veremos escoar sua memória pelos escaninhos da mídia pelo simples fato de que o espaço vence o tempo. Belchior, em uma de suas letras referiu-se a Newton, mas agora seria oportuno recordar Einstein. Afinal, o tempo acabou resultando não ser mais absoluto. Estamos julgando nossa presença em vida como um componente errático na definição da história. O lugar de se estar fora do mundo requer a compreensão de qual espécie de evento geramos, na mecânica existencial, que defina a ânsia, o que nos completa ou decepciona. O verbo afirma o que temos para por em movimento.
Volto a pensar na amiga que seguiu comigo até aqui. Sob sua inspiração rascunho essas notas. A morte tem um componente natural de egoísmo. Pranteamos nosso morto sem indagar sobre o próprio sentimento em relação à morte. O que fazemos com o morto é outra rasteira que costumamos dar no tempo. Quanto nos vale um morto? Quais as circunstâncias de sua morte que podem atender a quantos e quais parentes? O morto, sob quaisquer circunstâncias afetivas, vale menos que sua evocada expressão cartorial. Herdeiros se ajustam ou infernizam a vida um do outro, a depender da extensão do espólio. Quem dera o morto pudesse levar consigo toda a carga de sua existência. Fazer desaparecer, com o simples último suspiro, a realidade de sua obra. A morte é uma overdose de existência, transbordamento de uma série infinita de fatores, éticos e estéticos, que tornariam mais fácil a vida cotidiana, caso aceitássemos nossos erros em cada linha de espólio. Nem pensar. A vida se multiplica graças à convicção do erro. Apenas isto: o erro, o erro, o erro…
Assim vamos lendo a vida. Este número da Agulha Revista de Cultura afina a ponta do lápis ao abordar as relações que a vida acaba não evitando enfrentar quando da morte de alguns de nós. Tanta persistência do Catolicismo em tecer uma espécie de consciência sob medida, velho truque que impede o participante de um jogo acesso ao que se passa fora dali, e de repente a morte de um padre revela seus guardados que anotavam uma dinâmica espiritual no sentido inverso. O que fizemos com a morte de Jean Meslier ou Murilo Mendes? Repetiremos agora com a morte de Belchior? E aqueles de nós que teimam em não morrer? O que fazer com a história? O diretor sul-coreano Jong-Pil Lee trouxe à grande tela, em 2015, a biografia de Jin Chae-Seon, a primeira mulher cantora de uma tradição popular de seu país equivalente ao nosso romance de cordel. O ambiente do filme – século XIX – não difere muito se nos concentramos na rejeição ao poder transformador da arte. Obstáculos criados em torno de gênero, preferências religiosas, devoções políticas etc., tais foram sempre o mesmo recurso destinados a impedir a renovação do espírito.
A pergunta persiste: o que fazer com a história? Confiar cegamente nos historiadores? Serão mesmo despidos de engates de qualquer natureza, a ponto de apontarem aclimações e declínios quando não só confirmam como reincidem declínios e aclimações? Há certa ideia de crença, não importa a extensão de seus deuses correspondentes, que estima a aceitação do pecado como uma ação natural. Errar é um modo de antecipar o acerto. Trair é postergar o mito. Quantas vezes mudamos aqui, ao menos os móveis de lugar? A vida que temos em nós não sai do caminho uma jarda que seja. Como podemos errar?
A história é uma perspectiva humana que perdemos pela ausência de sinceridade com que nos tratamos intimamente.

Os editores


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ÍNDICE

• ALESSANDRA GALIMBERTI | Diálogo com Susana Wald

CARLOS BARBARITO | Las muchas voces de la poesía

ESTER FRIDMAN | Jean Meslier, o padre ateu

JUAREZ FONSECA | Belchior e o poder da arte

LUIS FERNANDO CUARTAS ACOSTA | Actos de desmesura, embriaguez, genialidad y locura

• MARIA LÚCIA DAL FARRA | Duas vezes Florbela Espanca

• OMAR CASTILLO | Un instante en la escritura de Alfonso Peña

PAULA VALÉRIA ANDRADE | Murilo Mendes

• RICARDO H. RODRIGUES E T.W. JONAS | João Pinheiro na Interzona

• ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS | Balaio de Gulliver

Artista convidado: Nelson Screnci | JORGE COLI | Nelson Screnci, imagem e pintura
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/05/jorge-coli-nelson-screnci-imagens-e.html









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Página ilustrada com obras de Nelson Screnci (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agradecimentos a Valdir Rocha.

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Agulha Revista de Cultura
Número 98 | Maio de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
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4 comentários:

  1. Estoy encantadísima y muy agradecida por la publicación del texto de Alessandra Galimberti. La foto mía que publicas me sorprendió. ¿De dónde la sacaste? Va mi abrazo y cariño. [Susana Wald]

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  2. Querido Floriano, gracias por hacerme parte y parte de este número 28 de Agulha, siempre es un gusto muy sabroso. Un abrazo desde mi Medellín. [Omar Castillo]

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  3. “Este número da Agulha Revista de Cultura afina a ponta do lápis” – sim. Abraxas. [Claudio Willer]

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  4. PASQUIM NANICO
    SAIU A NOVA ARCAGULHA!!! Número formidável da Arcagulha traumatiza os leitores. Baleia no besticela da Rita Parada da Semana. Afluência de tifosi assustadora, saiu porrada no guichet do Cine Azteca, e a bilheteira Pepita desmaiou. O Corpo de Bombeiros foi chamado pra evitar um massacre. O Editorial de Floriano e Márcio está digno de Murnau... O pecado além da crença?... ou a crença além do pecado?... Qual o melhor?... Mande o seu voto pra nossa redação. Quem opinar certo entra no sorteio
    duma lata da insuperável Marmelada Piranha. Leia, coma e... se regale. [Zuca Sardan]

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