terça-feira, 24 de maio de 2022

Agulha Revista de Cultura # 209 | Maio de 2022

 

∞ editorial | A eletrificação explosiva do desterro

 


00 | Com esta edição chegamos à marca de 100 ensaios reunidos em torno do Surrealismo. Tê-los aqui conosco, os ensaios e seus entranháveis autores, nos dá uma certeza incondicional, a de que o altruísmo ainda pode ser a chave de abertura para novas perspectivas do ser. Na medida em que avançamos na preparação dessas edições concluo o terceiro volume de uma trilogia que venho dedicando ao Surrealismo. Se a menciono é porque me acompanha na jornada estratégica de escritura desses livros a poeta Elys Regina Zils, na tradução quase simultânea dos originais ao espanhol. O trabalho compartilhado revigora a alma. Como a delícia do encontro que tive com Wolfgang Pannek que nos permitiu entrevistar a notável biógrafa de Antonin Artaud, Florence de Mèredieu. Também a redescoberta de amigos sumidos no mapa precário do tempo é outra linha de vertigem que nos enriquece o espírito. Caso de Flávia Falleiros, colaboradora nossa nos primeiros anos, e que retorna com seus escritos sobre Julien Gracq. Muitos de nós, com sua eletricidade ulterior, vivendo longe de casa, ou criando um lar em si mesmo. E mesmo os mortos queridos que estarão sempre conosco: Alfonso Peña e Carlos M. Luis – deste último publicamos uma leitura rara e necessária das relações entre José Lezama Lima e André Breton. Como me disse outro dia um velho e querido amigo de infância, o cientista Gilberto Câmara, a quem dedico esta edição de Agulha Revista de Cultura, nossos melhores pares, assim como nós, são os desterrados.

 

01 | As folhas dobradas ao acaso e espalhadas pela terra reluzem em um esforço de dissociação. Como luzes esvoaçantes em seu desejo de digressões acumuladas. A paisagem é uma mina incandescente de estados de ânimo. Por vezes os olhos são como manchas que se confundem com pequenos pontos que parecem o início de uma rede de antigos elementos detonantes. A memória em sua trajetória onírica reformulando os códigos de entrada e saída em um mundo atormentando pelas represálias da ausência total de escândalo. O que pode ser perdurável em uma dessas estações agônicas? Aqui vive a senhora posteridade – ainda é possível ler na placa corroída pelo tempo. Mas certamente ela sobreviveu a inúmeros deslocamentos. Como o desejo de morar na colina não torna melhor o tolo que vaga pela estrada escura. As melhores fatias da existência será sempre um pranto dos desterrados, as vozes de sua dilacerante consciência. Um surrealismo plantado em qualquer solo só dará conta de seu destino incerto se questionar cada fascínio seu pela transcendência e a metamorfose. A coragem que demanda esse questionamento é como uma chave fragmentada cujas partes estão ocultas por todo o mundo.

 

02 | [texto recuperado de 2002] Em uma série de reflexões sobre o Surrealismo, recordou Georges Sebbag (La Red de las letras # 7, Antioquia, setembro de 2000) que “os surrealistas desmontaram o mito segundo o qual a revolução social seria um prelúdio a toda transformação individual”, ao que se poderia acrescentar uma declaração de Octavio Paz: “a atividade surrealista foi coletiva e individual” (Plural # 35, México, 1974). E cabe ainda recorrer ao mesmo Sebbag, ao sublinhar que “os grupos surrealistas fora da França enfrentam uma dificuldade suplementar: de um lado, abraçam a causa de um movimento que os preexiste, de outro não estão dispostos a sacrificar sua personalidade”.

Os aspectos aqui mencionados são indispensáveis à discussão em torno de uma dupla contradição: a negação de atividade surrealista onde não se registrou a formação grupal e a ideia de um surrealismo tardio. A essas duas condicionantes de uma falsa interpretação da ação do Surrealismo viria se juntar uma outra, que tanto podemos identificar pelo conceito empregado por Stefan Baciu, de “parasurrealista”, ou recorrer à expressão de Paz: “tangencialmente surrealista”. São três fatores comumente empregados para desorientar um mínimo entendimento que se possa ter da existência do Surrealismo fora da circunstância parisiense originária, do eixo central das vanguardas, e consequentemente de sua própria condição de recusa a ser uma escola. Baciu considera como para-surrealistas aqueles poetas que “sem ser explicitamente surrealistas, coincidem ou coincidiram – às vezes – com o movimento ou com sua expressão poética” (Antología de la poesía surrealista latinoamericana, 2ª ed., Valparaíso, 1981). É a mesma ideia de Paz no tocante a uma condição tangencial.

Uma recente exposição ocorrida no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro, 2001), dedicada ao Surrealismo e inclusive destacando-lhe a presença em continente americano, situa o ano de 1947, tomando por base a Exposition Internationale du Surréalisme, como data-limite do percurso do evento. Segundo esclarece uma das curadoras da mostra, Denise Mattar, “esta exposição é considerada um marco da volta da atividade surrealista a Paris e a conclusão de um período de descobertas” (texto de catálogo da mostra). Retorna-se assim, por mais que discretamente, à ideia de um surrealismo histórico, leitura que já provocara suficientes dissensões mesmo entre parisienses.

Refiro-me ao marco definido pela mostra brasileira pelo que ele nos permite avaliar o que anuncia os parágrafos anteriores. Mesmo considerando aportes importantes ocorridos na América Latina dentro dos limites cronológicos aludidos, sabe-se que nos anos 1950/60 houve uma presença muito mais intensa do Surrealismo entre nós, sobretudo no plano individual. No Chile, por exemplo, podemos evocar a presença de Ludwig Zeller, cuja ação individual – jamais esteve ligado ao que se poderia entender como uma formação grupal surrealista – é das mais essenciais não somente em termos de difusão e produção de obras ligadas ao Surrealismo, como – e sobretudo – pelo próprio aporte a essa combinatória de poesia e arte, moral individual e ação coletiva etc., aspectos que definem de maneira consabida o Surrealismo.

Aos olhos de Octavio Paz, acaso Zeller seria considerado “tangencialmente surrealista”? Stefan Baciu o situa textualmente como um “parasurrealista”, ao lado de nomes como o venezuelano Juan Sánchez Peláez, o colombiano Jorge Gaitán Durán e o argentino Roberto Juarroz, dentre outros. Baciu residiu no Brasil nos anos 1950/60, quando então escrevia para publicações em São Paulo e Rio de Janeiro, como Diário Carioca, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Letras & Artes e Cadernos de Cultura, sendo autor de uma antologia do Surrealismo na América Latina publicada originalmente no México em 1974, mas o influxo entre nossos scholars da literatura seguramente alcançou maior reforço com a defesa que fez de seu pioneirismo Octavio Paz em resenha publicada no mesmo ano. Curiosamente jamais foi observada por crítico algum a ausência de Sérgio Lima dessa antologia, que havia fundado grupo no Brasil, nos anos 1960, e inclusive organizado uma exposição internacional do Surrealismo em São Paulo, com presença de franceses e sul-americanos.

No artigo do poeta mexicano há uma passagem sobre o fotógrafo Manuel Alvarez Bravo, em que lemos: “Suas fotografias, sem detrimento de seu preciso realismo, são verdadeiras imagens no sentido realista da palavra imagem: subversão e transfiguração da realidade”. Alvarez Bravo, considerado por Paz, como um “surrealista tangencial” encontra-se na mostra do CCBB e é nome hoje claramente aceito como… surrealista. A própria Denise Mattar refere-se a uma leitura de Breton cuja atenção, segundo ela, “recairá apenas sobre as obras de Manuel Alvarez Bravo e Frida Kahlo, que sempre recusarão o rótulo de surrealista”. Um dos poetas mais reconhecidamente ligados ao Surrealismo é o argentino Francisco Madariaga, morto recentemente. No entanto, na primeira edição da antologia de Baciu não está presente, tendo sido incluído na edição posterior à crítica de Paz, edição que traz collages de Ludwig Zeller.

Até aqui, o que poderíamos chamar apenas de descompasso. Ao compararmos versões de não tão inúmeros estudiosos do Surrealismo nos deparamos com um mesmo senso de desigualdades conceituais. Discute-se sempre a preponderância do aspecto moral sobre o estético. Contudo, em momento algum Salvador Dalí e Louis Aragon passam a ser nomes compreendidos como extra-surrealismo. O mesmo se pode dizer de Paul Éluard e Braulio Arenas e… francamente, uma grande lista de artistas e poetas que poderiam estar ligados ao que Octavio Paz chama de “afinidades momentâneas com a linguagem, as ideias e ainda os tiques da poesia surrealista”. Quem seria verdadeiramente surrealista? E penso aqui no próprio poeta mexicano, que foi igualmente um “surrealista tangencial”.

Parece que a confusão assume uma conotação intencional. Indaguemos, por exemplo, sobre a razão da antologia de Baciu se chamar Antología de la poesía surrealista latinoamericana, e não haver ali um único brasileiro. Já mencionei em parágrafo anterior o exemplo de Sérgio Lima, mas claro está que se poderia pensar em outros nomes. Diz Paz que “com base na confusão reinante, publicaram-se muitas teses doutorais, livrórios e livrecos sobre o surrealismo espanhol e hispano-americano”, concluindo que “esta atividade se converteu em um ramo menor dessa indústria que chamamos crítica universitária”, ou seja, “uma maneira de ganhar bolsas, viagens e cátedras”. Também entre nós, brasileiros, se deu o mesmo. Cotejar teses a respeito é a melhor maneira de comprová-lo.


Por uma primeira vez no Brasil temos uma antologia da poesia surrealista na América Latina (Escrituras, São Paulo, 2002), e possivelmente chama a atenção a ausência dos poetas francófonos, ausência motivada pelo fato de que o livro busca acentuar as relações entre Brasil e América Hispânica – geralmente distorcidas, quando não de todo evitadas –, incluindo tanto os surrealistas dados como tais quanto os tangenciais Sánchez Peláez, Ludwig Zeller e Octavio Paz. Vale lembrar que este é nosso primeiro registro de uma mostra de poesia em torno do Surrealismo, inclusive destacando a presença brasileira, com a presença de dois poetas: Sérgio Lima e Roberto Piva.

Com a publicação deste livro me vem uma preocupação, a de que a leitura crítica remeta uma vez mais a um tardo-surrealismo já apontado por Wilson Martins e José Paulo Paes quando publiquei meu livro de entrevistas a poetas latino-americanos (Escritura conquistada, 1998). O livro – que incluía entrevistas com poetas tão distintos entre si quanto Enrique Gómez-Correa, Leónidas Lamborghini, Alfredo Silva Estrada, Ivan Junqueira, Gerardo Deniz, Sérgio Lima e José Kozer – não se definia por nenhuma corrente específica, mas antes discutia, com poetas de várias tendências, algumas perspectivas estéticas do século XX nas letras latino-americanas. No entanto, acabou por acentuar uma rejeição clássica a tudo o que fere preceitos em nossa cultura.

Algo marcante na trajetória político-cultural brasileira é a capacidade de se criar discursos paralelos que não se comunicam entre si. É bem possível que o problema esteja na raiz, segundo observação de Gilberto Mendonça Teles e Klaus Müller-Bergh (Vanguardia latinoamericana, Madrid, 1995), quando tratam das “marcas profundas do colonialismo” em nossa cultura e recordam: “Se a Espanha, já no século XVI, fundou universidades em alguns países (México e Peru), Portugal eliminou do Brasil qualquer pretensão de transformação cultural, com leis que proibiram fábricas, imprensa e estudos universitários, o mesmo acontecendo com a França em relação a Guadalupe, Martinica e Guiana Francesa”.

Comecemos anotando algumas passagens deste mesmo livro, onde os autores observam que em alguns países latino-americanos a ideia de nacionalidade possuía um caráter “mais universalista”, ao contrário de “um nacionalismo estreito e ufanista”, como o que se verificava no Brasil. Essa vontade de “participar da cultura Ocidental”, além do próprio anseio de uma afirmação individual, decerto ambientou a eclosão de um sem-número de ismos entre nós, embora muitos deles pudessem ser seguramente inseridos no âmbito de um Futurismo ou de um Surrealismo. Como não há um estudo comparativo em torno dessas manifestações todas, ficamos sem saber quais relações possíveis existam entre si. E talvez haja mesmo um interesse nisto, pois assim se dilui a ideia de um influxo mais determinante em nossa cultura.

No caso específico do Surrealismo, vale lembrar que Mendonça Teles e Müller-Bergh consideram sua presença em manifestos surgidos em Cuba, República Dominicana, Venezuela e Porto Rico, por exemplo, embora não tenha havido uma defesa explícita, nominalmente referida. Dizem estes autores que “em 1939, o grupo da Espuela de Plata, liderado por Lezama Lima, já expõe ideias surrealistas”, o que contrasta com uma recusa terminante de Octavio Paz em ver em Lezama Lima algum traço mínimo que seja de surrealismo. Por outro lado, os dois autores, quando tratam do Chile, observam que “a partir de 1927 a vanguarda chilena se repete, sem muita originalidade, notando-se mesmo a luta interna de grupos”, sugerindo aí a inclusão do grupo Mandrágora, surgido em 1938, em que mencionam um “intuito surrealizante” que nos leva de volta ao âmbito do tangencial.

Na verdade, o grupo Mandrágora era explicitamente surrealista e o próprio Octavio Paz considera que “a postura dos surrealistas chilenos foi exemplar”, pois “não somente tiveram que enfrentar os grupos conservadores e as milícias negras da Igreja Católica, mas também os stalinistas e Neruda”. Em meu Escrituras surrealistas (Fund. Memorial da América Latina, São Paulo, 1998) anotei que “Mandrágora é por muitos considerado o mais coerente, relevante e explosivo grupo surrealista em todo o mundo”, passagem que reproduzo aqui literalmente pelo fato dessas minhas palavras terem sido repetidas por Denise Mattar no ensaio “O surrealismo e o Novo Mundo” (catálogo exposição CCBB, 2001) sem a devida referência de autoria.

A propósito, uma semana antes da abertura desta mostra, a UNESP (Universidade do Estado de São Paulo) promovia em Araraquara (SP) um encontro de escritores e críticos ligados ao Surrealismo, incluindo participações mexicanas e estadunidenses. Neste caso, o curioso é que alguns convidados coincidiam, o que pode gerar uma indigesta leitura de caráter excludente, sobretudo quando o catálogo da exposição CCBB deixa de mencionar uma bibliografia a respeito do assunto. É o caso, por exemplo, de Robert Ponge, que esteve presente nos dois momentos, mas na conferência publicada no catálogo, que tem por título “Sobre a chegada e a expansão do surrealismo na América Latina”, evita as fontes brasileiras que antecedem seu estudo, o que não deixa de lhe dar certa conotação de originalidade.

Ponge, no entanto, acerta ao sugerir certas relações a serem consideradas no tocante a uma discussão mais ampla do influxo do Surrealismo na cultura americana como um todo, e refere-se ao estadunidense Jackson Pollock e aos vínculos entre o argentino Julio Llinás e o movimento Phases. Também se poderia pensar no brasileiro Antonio Bandeira, o que abriria um largo espaço para discussão em torno de um outro ismo, o abstracionismo, gerador de uma polêmica igualmente considerável, que inclui os mesmos componentes individuais e nacionalistas. Ponge também menciona uma perspectiva surrealista em Xavier Villaurrutia, contrastando com a recusa radical de Paz a ver nas letras mexicanas qualquer sinal do que considera “uma atitude vital, total – ética e estética –, que se expressou na ação e na participação”. É quando menos ingênuo – quando não de todo constitutivo de má fé – desconsiderar relações entre artistas como Antonio Bandeira, Frida Kahlo, Malcolm de Chazal, Maurice Blanchard, dentre outros, e o Surrealismo, simplesmente por não terem sido militantes diretos.

Anterior a Robert Ponge, no Brasil havia se pronunciado sobre o Surrealismo na América Latina Jorge Schwartz (Vanguardas latino-americanas, São Paulo, 1995), e ali se consubstancia o estratégico interesse de Paz, quando afirma Schwartz que “foram as artes visuais, e não a literatura, as mais beneficiadas pelo influxo do surrealismo no México”, e que “a poesia surrealista propriamente dita somente surge com Octavio Paz na década de 50”. Estabelece-se aí uma confusão, tanto pela recusa posterior de Paz ao Surrealismo, quanto pela leitura da coleção da revista Contemporáneos (1929-1931), dirigida por um importante grupo de intelectuais de uma geração anterior à de Paz, de cujo ideário o Surrealismo fazia parte, claro que nas mesmas condições já aqui arroladas por Mendonça Teles e Müller-Bergh em relação a outros países.

Em outra passagem de seu livro, Schwartz sentencia que “o surrealismo argentino não teve continuidade como movimento, mas posteriormente arraigou-se, enquanto estilo poético, em autores da importância de Aldo Pellegrini, Olga Orozco e Enrique Molina, e, por fim, na geração posterior a Girondo e contemporânea ao surrealismo de Octavio Paz”. Além da confusão cronológica estabelecida – Girondo nasceu em 1891, Pellegrini em 1903, Molina em 1910 e Orozco em 1920, sendo Paz de 1914 –, o interessante é essa definição de um “surrealismo de Octavio Paz”. E anoto ainda duas outras pérolas de Schwartz: “assim como no resto da América Latina, o surrealismo chileno aparece de maneira tardia”, e “César Moro foi o único poeta verdadeira e assumidamente surrealista do continente”.

Retornamos assim ao começo de nossa busca de um entendimento, quase sempre confundida por uma desarticulação programática. Há uma propensão de cunho provinciano a multiplicar pólos isolados, desconexos entre si. O provincianismo hoje não é mais um aturdimento cultural, mas antes uma administração de recursos. Há uma posologia controlada da miséria humana. Michel Serres (Le contrat naturel, Paris, 1990) considera uma cumplicidade existente entre cientistas, administradores e jornalistas como ponto decisivo desse desmoronamento da humanidade, chamando a atenção para o ambiente em que lucubram seus achados, completamente isolados da realidade cotidiana. O abismo entre vida e cátedra esclarece umas tantas divergências. No entanto, Serres não considerou uma cumplicidade determinante desse processo, a própria classe artística.

Em entrevista que lhe fiz, Stefan Baciu estabeleceu uma equívoca distinção entre grupo e movimento: “Na Espanha não existiu um movimento surrealista; existiu um grupo surrealista em Tenerife…”, ao mesmo tempo em que confundiu simpatia com visão crítica: ao contestar Augusto de Campos, quando este acusava o influxo do Surrealismo na América Hispânica de haver conduzido a “uma insuportável retórica metaforizante”, recorreu a “uma nova maneira de escrever” por ele chamada de “surrealizante”, mas recusou-se a aceitar um livro como Residencia en la tierra, de Pablo Neruda, como exemplo dessa equívoca perspectiva estética (Diário do Nordeste, Fortaleza, 31/01/88). Observe-se ainda que Baciu chegou a situar José Juan Tablada como precursor do Surrealismo no México, e nisto o próprio Paz dele discordou, ainda que cautelosamente (“O caso de Tablada é, talvez, duvidoso: pertence à história da vanguarda, mas à do surrealismo? A mesma dúvida sinto frente a Girondo: típico poeta de vanguarda, sua obra não é uma profecia, nem uma preparação do surrealismo.”).

Sem me estender muito no assunto, cabe uma digressão ilustrativa em torno de Girondo. No estudo que lhe dedica Enrique Molina, e que serviria de prólogo para a edição das Obras Completas (Losada, Buenos Aires, 1968), este poeta chega a mencionar a proximidade com Rimbaud no sentido oracular da linguagem, recorrendo à “exaltação encantatória dos poderes verbais”. Girondo esteve ligado a Pellegrini e Molina, de maneira que talvez caiba aproximá-lo do Surrealismo. Curioso é que a edição brasileira de En la masmédula (Iluminuras, São Paulo, 1995) não mencione no estudo introdutório, assinado pelo também tradutor, Régis Bonvicino, qualquer referência ao estudo de Molina ou a aproximações possíveis entre Girondo e Surrealismo. Trata-se, evidentemente, de uma articulação inconsequente de delimitações estratégicas, o que fere por completo uma leitura mais aberta que se precisa fazer da história, até mesmo e sobretudo para se afirmar alguma posição de relevante consistência.

A revista Cult # 50 (setembro de 2001) publicou um valioso dossiê sobre o Surrealismo, com textos assinados por Simone Rossinneti Rufinoni, Eliane Robert Moraes, Claudio Willer e Contador Borges. No Brasil, este seria um terceiro momento, em um mesmo ano, de reflexão propiciada a respeito do assunto. Contudo, as bibliografias apresentadas contrastam entre si, o que nos ajuda a identificar um deslize algo ingênuo, de estabelecimento de surrealismos particulares. Repete-se o recorte já apontado por Serres – cientistas, administradores e jornalistas –, a contribuir para uma leitura distorcida da realidade. No caso brasileiro, é lícito mencionar o que escreveu Willer em ensaio para esta edição da Cult: “Hoje, deve-se deslocar o foco da militância por vezes episódica para uma configuração de obras pautadas pela riqueza imagética e pelo exercício de liberdade de imaginação, cuja recepção é prejudicada pelo filtro de uma espécie de cartesianismo poético brasileiro”.


Há, na verdade, uma conivência em curso, possivelmente movida pela vaidade, pelo cansaço de não encontrar nunca espaço de referência ao que se faz, pelo desgaste emocional, mas sobretudo pelo oportunismo fraudulento de carreiristas que se apropriam de áreas em crise. Quando Paz diz que “a história espiritual da América Latina está ainda por ser escrita”, sabe muito bem que cria uma condicionante para que a mesma jamais venha a ser escrita de maneira correta. É o que se passa com o Surrealismo. Estamos escrevendo diversas histórias, cada uma recorrendo a fontes falhas, insuficientes orgânica ou intencionalmente, de maneira que o resultado será o mesmo da condição política e econômica da América Latina, a de uma desorientação programática, atendendo a interesses não propriamente do capital estrangeiro (embora este aja de maneira substancial e corrosiva) mas sobretudo de uma visão de mundo medíocre de uma casta intelectual sanguessuga que se perpetua no poder alheia à anulação de valores que propicia.

 

03 | O Surrealismo encontra no Chile um de seus vasos internacionais mais pulsantes e renovadores, de que são exemplos desde a vitalidade esplêndida de Rosamel del Valle (1901-1965), passando pelo grande marco em torno do grupo Mandrágora, em especial com a grandeza estética e o caráter de Enrique Gómez-Correa (1915-1995), as atividades concentradas ao redor do imenso articulador que foi Ludwig Zeller (1927-2019), a formação do grupo Derrame, até a destacada presença de Enrique de Santiago (1961) – nosso artista convidado. Poeta, artista plástico, ensaísta e agitador cultural. Autor de livros como Frágiles tránsitos bajo las espirales (2012), Elegía a las magas (2014) e Bitácora de un viaje ontológico (2018). Neste último, em seu prólogo o poeta aclara: Minha ação poética está baseada no Uno, no indivisível, de modo que as palavras adquirem uma multiformidade, que as torna mais profundas, mais côncavas e mais convexas, pois assim as vejo, e assim devem ser expostas. Estas não apenas estão compostas de linhas ou formas, mas há também nelas algo invisível que lhes é, ao mesmo tempo, próprio e não, e em tais versos há uma superposição desses elementos que realizam a tarefa simbólica de dilucidar suas proporções fenomenológicas. Deixo assim que ela se expresse por si mesma, que dialogue a partir de sua própria hermenêutica, com sua própria paráfrase ontológica e com a mudez estrondosa que a rodeia, em uma e mil alegorias ou nenhuma – quando o alegórico não está contido no qualificável e reconhecível – onde tudo é tão real precisamente por não sê-lo. Igual reflexão se aplica também à sua pintura, colagem e desenho. Enrique de Santiago vem cuidando da memória do Surrealismo em seu país, graças à publicação de livros e curadoria de exposições, mas, sobretudo, na preparação, ainda em curso, de uma História do Surrealismo no Chile. www.flickr.com/photos/enriquedesantiago/. 

Floriano Martins

 

 

∞ índice

 

ALCEBIADES DINIZ MIGUEL | Surrealismo e crime (Man Ray e o Minotauro)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/alcebiades-diniz-miguel-surrealismo-e.html

 

ALFONSO PEÑA | Beatriz Hausner: coser, bordar, tejer: poesía de los hilos imaginarios

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/alfonso-pena-beatriz-hausner-coser.html

 

ANDREAS EMBEIRIKOS | Conferencia en el Colegio de Atenas sobre la Poesía Moderna

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/andreas-embeirikos-conferencia-en-el.html

 

CARLOS M. LUIS | José Lezama Lima y el Surrealismo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/carlos-m-luis-jose-lezama-lima-y-el.html

 

FLÁVIA FALLEIROS | Duas vezes Julien Gracq

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/flavia-falleiros-duas-vezes-julien-gracq.html

 

FLORIANO MARTINS & WOLFGANG PANNEK | Diálogo com Florence de Mèredieu

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/floriano-martins-wolfgang-pannek.html

 

JOHN WELSON | Toyen: “A Sombra em frente à Sombra”

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/john-welson-toyen-sombra-em-frente.html

 

MERCEDES JIMÉNEZ DE LA FUENTE | Leonora Carrington y los mitos del surrealismo: la femme-enfant y la femme-fatal

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/mercedes-jimenez-de-la-fuente-leonora.html

 

NICOLAU SAIÃO | Cruzeiro Seixas ou a travessia do deserto

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/nicolau-saiao-cruzeiro-seixas-ou.html

 

OMAR CASTILLO | Contribución a la confusión general de Aldo Pellegrini

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2022/05/omar-castillo-contribucion-la-confusion.html 

 

Enrique de Santiago




Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 10

Número 209 | maio de 2022

Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)

Traduções: Agathi Dimitrouka, Allan Vidigal, Wolfgang Pannek

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022

 






                


 

∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

 

 

OMAR CASTILLO | Contribución a la confusión general de Aldo Pellegrini

 


Para contribuir a la confusión general, es el título de un breve libro donde Aldo Pellegrini (Rosario 1903, Buenos Aires 1973), reúne 10 ensayos escritos en las décadas de 1950 y 1960. Estos textos resultan desconcertantes por las reflexiones que Pellegrini consigna sobre arte y sobre la escritura poética, son reflexiones dadas desde el acontecer creativo estimulado por los exacerbados interrogantes que penetran la sociedad y la cultura en la segunda mitad del siglo XX, y ante todo resultan esclarecedores por la capacidad puesta en ellos para diseccionar el malestar creador que ampara la producción de artistas y poetas en su relación y confrontación con el mundo y las realidades instauradas en él por quienes ejercen el poder para someter la conciencia humana a sus designios e intereses ideológicos, religiosos y económicos.

En el Preámbulo del libro Para contribuir a la confusión general, se dice de la dificultad que podemos enfrentar quienes intentemos esclarecer las ideas que permean nuestro tiempo, y el problema que significa la densidad contradictoria de éstas, no solo “en mentes distintas sino en una misma mente”. Y es justo en ese cruce confuso donde Aldo Pellegrini propone cuestionar y allanar el viejo orden de ideas establecido, un orden cuyas ideas se han vuelto inoperantes, se han fosilizado. Allanamiento que permitiría aprehender las ideas contradictorias necesarias para un nuevo tiempo. Dice Pellegrini que: “No se trata de un desorden contra el orden, sino más bien de un nuevo desorden contra un viejo desorden. El desorden, al envejecer, se fija, se fosiliza y adquiere así la apariencia del orden, pero sólo porque está inmóvil, porque está muerto”. Y agrega: “Pero no cualquier desorden, sino uno que consuma lo viejo y purifique la vida: un desorden creador, por el cual circule la sangre siempre renovadora de lo vital”. Con esto Aldo Pellegrini nos propone leer su libro como quien mira y ve las realidades vitales de una época surgiendo de las tenciones creadoras y desde las contradicciones que surten la conciencia humana, haciendo así visible cómo las nociones establecidas sobre seguridades fosilizadas, requieren del uso de un desorden lustral.

Con esta puntual reflexión en el Preámbulo de su libro, Aldo Pellegrini nos dice cómo cada época de la humanidad establece las coordenadas necesarias para la realidad de su tiempo, acudiendo para ello a sus contradicciones fundamentales. Entonces, es así como de la confusión de cada época surge un orden para sus contradicciones, el suficiente para vivir su tiempo. Lo otro es cuando se quiere perpetuar una época acudiendo al sostenimiento del estado fósil en el cual se convierte cuando se agota.

Aldo Pellegrini es un magnífico poeta, su actitud y su poesía lo hacen uno de los renovadores del hacer poético en idioma español en el siglo XX, y es un ensayista que desde sus reflexiones sobre la poesía busca el esclarecimiento de un tiempo como el suyo y el nuestro, tiempo donde no ha dejado de confluir lo abrupto, confuso, ofuscante y fascinante de la condición humana a través de sus historias e imaginarios, y donde cunden las paradojas y analogías en metáforas que visibilizan lo luminoso y lo oscuro de la poesía como acción para adentrarse en lo maravilloso, revelado a través del asombro y lo azaroso vital. Un tiempo donde suceden y se nutren los ideales humanos por una vida no sometida a la usura de la miserabilidad íntima y común. Por una vida encarnada en la revelación, no en la miserabilidad usurera.

Aldo Pellegrini fue próximo al Surrealismo, movimiento que lo atrajo por su capacidad contestataria con cuanto atenta contra la dignidad humana y su capacidad creadora, vital. Sus inicios literarios están abiertamente ligados con este movimiento. Para él el Surrealismo significaba vivir en la eclosión de la realidad, en su ser revelador de lo maravilloso y lo coloquial humano, de lo misterioso universal. Pellegrini encontraba en el Surrealismo la capacidad necesaria para la renovación de la poesía y de la existencia en lo íntimo y en lo común. En idioma español fue uno de sus apasionados representantes, como también lo fue el poeta César Moro, contribuyendo con una obra poética de un aliento creador poderoso.

El libro Para contribuir a la confusión general, se divide en dos apartados, el primero nombrado Ensayos persuasivos, y el segundo Ensayos apersuasivos. En el Preámbulo nos dice Pellegrini que: “El tono persuasivo usado por el autor en algunos trabajos y el apersuasivo usado en otros se complementan, y constituyen la verdadera manera de provocar una comprensión viva, de arrancar al interlocutor de su cómoda poltrona de indiferencia”.


En los textos que componen este libro, Aldo Pellegrini quiere establecer con el lector un diálogo franco, sin sometimientos a la visión por él entregada. Empero su diálogo es provocador, busca “arrancar al interlocutor de su cómoda poltrona de indiferencia”. Por ello en el ensayo “Sobre la decadencia del arte contemporáneo”, mientras nos adentramos en sus apreciaciones sobre el arte creador visto ante el muro de la denominada cultura de masas, que es propiciada por quienes detentan el poder y se usufructúan de las realidades que han establecido a través de una mecanización uniforme del mundo, y el arte creador visto ante el muro de la denominada cultura de minorías, propiciada por esquemáticos intelectuales y falsos artistas casi siempre refugiados en lo académico y en el esnobismo de un arte huero, viendo como estas posiciones con sus intervenciones no hacen más que estimular el armado de una figuración cultural que según Pellegrini casi siempre resulta ambigua, cuando no falsa, ante la magnitud de la cultura como expresión cognoscitiva de lo humano, de lo propio y lo común como conciencia de la creación constante que cunde en el mundo y en el universo. Así, siguiendo los párrafos de este ensayo, también nos encontramos con apreciaciones como esta: “Pero nunca como ahora las relaciones entre las personas son a la vez más contiguas y más distantes. Los humanos viven apeñuscados en tal forma que son incapaces de verse. Se ha perdido la justa perspectiva para la mutua contemplación. Nunca la soledad ha sido tan grande. El amor mismo es, en la mayoría de los casos, una relación sexual sin comunicación, y al perder con ésta su cualidad fundamental se convierte en altamente angustiante. La agresividad y el grito son consecuencias de semejante situación de soledad”.

En el ensayo “La universalidad de lo poético”, que junto con el texto “Sobre la decadencia del arte contemporáneo” compone el apartado Ensayos persuasivos, nos encontramos con las reflexiones dadas por Aldo Pellegrini sobre el ser y el lugar del acto poético. Así, nos dice: “Todo lo que nos rodea está pleno de una poesía que quiere ser descubierta, y esa poesía encuentra inmediata repercusión en nuestro espíritu cuando éste está alerta”. Para descubrirla el poeta debe ir al encuentro de esa poesía que lo acecha hasta lograr su posesión, es decir, hasta ser poseído y poseer esa súbita realidad que se ve revelada en el acto poético, entonces la realidad se presenta a través de las exaltaciones instintivas que el poeta propicia desde sus percepciones, como individuo y como ser universal cuando entra en relación con ese instante poético único en su permanencia, empero mutable, pues como bien dice Pellegrini: “Lo permanente no significa lo inmóvil, sino simplemente lo que no cesa”. El poeta aprehende la estela de ese instante que no cesa y lo revela.

Las formas y las maneras de lo poético son variables en el tiempo y están sujetas a las combinaciones posibles vivenciadas en cada época, dando salida a expresiones y significados diversos. La poesía es mutación como la universalidad misma de la que procede y es expresión. Y por paradojas de su propia mutación lo luminoso de un poema puede ser su mayor oscuridad, entonces la nitidez o lo críptico en un poema suceden en ese punto donde el día y la noche del conocimiento humano se confunden. Según Pellegrini la materia poética “tiene algo que la particulariza y la convierte en documento: el arte es resultado de una experiencia vivida en común por el hombre y las cosas, una experiencia que, fijada en el acto de la creación, trasciende del tiempo”. Así, el poeta da forma creadora a las captaciones que ha vivenciado a través del don comunitario de la poesía. En este ensayo Aldo Pellegrini alerta sobre el artificio que produce “una falsa sensación de lo poético”, pues hay quienes creen que “en un mundo construido en base a la mentira también la poesía debe ser mentira”. Mentiras que dan pie a los falsos poetas maquinadores del ornato puntilloso con el cual pretenden ocultar que “la voz del poeta, al expresarse a sí mismo, es también expresión auténtica de su tiempo, en lo que tiene de más profundo, en lo esencial”.

El segundo apartado, Ensayos apersuasivos, se inicia con el texto “La acción subversiva de la poesía”. Aquí es necesario detenernos en el empleo que hace Aldo Pellegrini de la palabra subversiva, pues se ha hecho usual verla vinculada con las acciones de individuos y grupos fanatizados que confunden su significado con la palabra terrorismo. Lo subversivo relacionado con las acciones de la poesía es revelador, busca el esclarecimiento de los malestares que afligen y someten la condición humana a la indignidad, mientras que las acciones terroristas solo contribuyen para exacerbar estos malestares, creando más infecciones, más enconos en la condición humana. Lo subversivo desvela los síntomas que nos someten a través de los sistemas de poder a vivir en los mecanismos de su usura y su miserabilidad. El terrorismo contribuye a la infección de esos síntomas hasta hacerlos incurables, por ende, más beneficiosos para los sistemas de poder.


En “La acción subversiva de la poesía”, nos dice Pellegrini que: “La poesía no es, por consiguiente, un lujo o un divertimiento, sino una necesidad, del mismo modo que lo es el amor”. Una necesidad vital que nos permite tener conciencia de la realidad y de la otredad donde se funda la vida, y esta es una de sus acciones más perturbadoras, más subversivas, pues la poesía como expresión vital nos abre al conocimiento, al sabor del saber que nos permite asumir responsabilidades, zafarnos de los escaques en los que nos condicionan y someten a un mundo óptimo para lo laboral, el fanatismo y el delirio consumista y depredador. Por ello quienes ostentan el poder persiguen desactivar la fuerza de la poesía, como bien dice Aldo Pellegrini: “Domesticando a los poetas, volviéndolos inofensivos, para que ofrezcan un producto falsificado o desnaturalizado que con el título de poesía reciba los honores oficiales, las prebendas. Así se logra un alimento sustituto de la pasión poética, que puede designarse con el nombre de poesía oficial y que es la negación total de la poesía. Así se alcanza el ideal de los carceleros: lanzar a los poetas contra la poesía”.

Queda claro que para Pellegrini lo subversivo es desobedecer lo que somete y reprime la condición y la existencia humana, buscando convertir lo humano en una entidad mutilada, óptima para la usura y la pornografía social. Con sus reflexiones nos dice cómo es silenciada la lucidez poética cuando lo subversivo es condicionado por ideologías cuyas máximas se amparan en la represión. Es entonces cuando nos urge a la necesidad de “vivir hacia lo ilimitado”, incitándonos a lo subversivo, a la realidad ilimitada donde sea posible realizar el acto creador de vivir. Acto vedado para aquellos que no quieren ver y esclarecer las maniobras de quienes desde el poder encubren la realidad y obstruyen la libido de esa realidad en la vida.

Cabe aquí insistir que reflexionar y comportarse tal como lo hace y propone Aldo Pellegrini, no crea simpatías. Empero, es necesario asumir ese reto, más hoy cuando se pretende exhibir la poesía como un fetiche lúdico, desactivado de su poder subversivo, de su capacidad de crear pensamientos y propiciar comportamientos contrarios a los designios catárticos de la obediencia. Así resulta inevitable vivir en la asombrosa marginalidad que nos permite creer en el poder subversivo de las palabras, en su capacidad reveladora para enfrentarnos a quienes promueven un mundo maquinado en los esplendores de la miseria y la impotencia humana.

“El misterio de lo real” no se encubre, se desvela en su fuente inagotable. No se trata de agregarle misterio al misterio, sino de aprehenderlo. He ahí la razón de la poesía, su permanencia vital huellando las mutaciones humanas y universales, y tras ellas, el ser del poeta entregando de esas huellas la comunión solitaria de quien permanece alerta y dado al asombro. Lo anterior para adentrarnos en el ensayo “La soledad del artista”. En este texto Pellegrini desnuda el patético sentimiento sobre la soledad que se suele adjudicar al poeta y al artista y al hacerlo, inevitablemente deja en evidencia cómo la soledad es el mayor padecimiento sufrido por la humanidad en comunidad, la soledad como uno de los males de la humanidad en su vida en sociedad. Nos dice: “¿Qué mayor soledad que la existente en los gigantescos departamentos modernos? Cientos de personas viven allí codo a codo como extraños”. Ya antes, en “La universalidad de lo poético”, nos había dicho: “Pero por todo lo que hemos visto, no es la soledad el destino de la poesía sino la comunidad con los otros hombres. El lenguaje poético es el lenguaje de la verdadera comunicación, el lenguaje corriente es, en cambio, el de la incomunicación. En el fondo, no corresponde al poeta la calificación de solitario sino al hombre corriente, al hombre-masa”.

Y llegamos al ensayo “El ilustre desconocido”, donde Pellegrini nos aproxima la presencia de ese lector desconocido que en un momento indeterminado es tocado por una obra que le resulta tan esclarecedora para su vida que se convierte en su receptor y al mismo tiempo, en el guía para franquear la “enorme muralla sólida” que busca impedir el conocimiento de esa obra. Aquí ese Ilustre Desconocido es la puerta a través de la cual una obra inicia su reconocimiento y su recorrido hacia otros lectores. Nos dice Aldo Pellegrini que: “Esta es la gran satisfacción con la que sueña el poeta auténtico: la posibilidad de provocar una explosión en el espíritu de un ser humano que lo arranque de su vivir indiferente, que lo lleve a ese estado en que la vida se impregna de fervor”. Ese Ilustre Desconocido puede encarnar en cualquier ser humano, pues lo azaroso de su presencia solo lo determina su estado de alerta para esclarecer las necesidades y los interrogantes vitales en su vida. La fuerza de ese Ilustre Desconocido se establece en su capacidad para elegir por sí mismo, más allá de las imposiciones que rigen el gran gusto de todos en masa. Y es en ese momento cuando “se acaba el hechizo de la estruendosa farsa” que buscaba impedir el conocimiento de una obra. 

En los últimos textos del libro Aldo Pellegrini despliega un sentido del humor negro tal como lo celebraba André Breton, un humor que logra encajar directo en el lector una mueca verbal ácida, una mueca que lo saca de su comodidad rutinaria. También son textos donde se muestra una drástica pugna contra la domesticidad de la poesía, contra la oficialización que de ella buscan quienes ejercen el poder usurpando la vitalidad y la dignidad humana para después usufructuarse de la miserabilidad que así han producido. Ante estos la posición de Pellegrini es fuerte, áspera, sin tapujos. En otro de estos textos nos da un alto testimonio de las palabras como sustento creador, en el titulado “El poder de la palabra”, donde nos dice: “El poeta descubre en la palabra la vibración imperceptible que han dejado todos aquellos que han volcado en ella su sufrimiento o su pasión desde que por primera vez fue lanzada hasta que atravesando la historia y las generaciones la encuentra en su interior”. Y en “Fundamentos de una estética de la destrucción”, agrega: “Todo cambio implica destrucción, y la naturaleza es esencialmente cambio. Este cambio se nos revela como tiempo. Así el tiempo resulta el gran destructor. A la materia que consideramos inmóvil la recorre una lenta ola de destrucción. El tiempo corroe la materia y en el transcurso de esa corrosión surge la belleza. La belleza es el rostro del tiempo, es la luz del cambio que nos hechiza”. Magnífica manera de dejarnos próximos al tiempo sin tiempo donde suceden las mutaciones, al vacío da la página donde es posible ver y aprehender la carga poética de uno de esos instantes donde no cesa de prender la vida. 


En este texto sobre el inquietante libro Para contribuir a la confusión general, cuya primera edición fue publicada por Aldo Pellegrini en 1965, cabe decir que hoy vivimos en un escenario de realidades para las que hemos contribuido como especie. En una época donde se están evidenciando nuestras características más solapadas, mezquinas y depredadoras, no solo con la dignidad humana, sino con todo el planeta. Parecemos el bicho determinado para convertir la tierra en una árida y estéril semilla cósmica. Nuestras acciones e intereses los encubrimos con eslóganes de ideologías, por un lado, de derechas que se autoproclaman como las encargadas de disponer las claves sociales para un futuro ideal, por el otro, de izquierdas que se promueven como las abanderadas del progresismo que exhiben cómo si se tratara de un ábrete sésamo social hacia un mundo paradisiaco, y presumiendo estar en el medio sin cayos ni en las manos ni en la culpa, aparecen las oportunistas maniobras de quienes se llaman de centro, es decir, el centro donde cabe a mansalva el futuro y el progreso.

Entonces es preciso recordar una de las observaciones hechas por Aldo Pellegrini en La poesía surrealista, texto escrito para presentar su Antología de la poesía surrealista de lengua francesa (Buenos Aires, 1961), observación que sigue siendo oportuna para quienes se atreven al encuentro con la poesía: “Quizás sea necesario insistir que la defensa de los valores humanos mediante la poesía no es nueva y que, en alguna medida es visible en los poetas auténticos de todos los tiempos: aparece en Dante, en Villon, en Blake, en Swift (en cuanto pertenece a la poesía por su humor negro y sus creaciones fantásticas), se acentúa en los románticos, y encuentra sus grandes rebeldes a partir de Baudelaire, especialmente en Rimbaud y Lautréamont, verdaderos dioses lares del surrealismo. En realidad, en toda verdadera poesía está latente o manifiesta una protesta del hombre contra su condición”.

En una época donde la realidad social es propiciada por la usura y la miserabilidad, y en la que prevalece el fácil entretenimiento doméstico como la expresión de una cultura, extraña uno creadores como Aldo Pellegrini. Poetas como él cuyas actitudes y obras nutren esa estirpe de creadores que como olas sobre el vacío imprevisible se presentan súbitas, recordándonos con su estampida el necesario estado de alerta que debemos mantener para vivir lo maravilloso de la vida, aun en sus más extremos abruptos y hundimientos. 

 


OMAR CASTILLO | Colombia, 1958. Poeta, ensayista y narrador. Algunos de sus libros publicados son: Huella estampida, obra poética 2012-1980 (2012), Tres peras en la planicie desierta (2018), Limaduras del sol y otros poemas, Antología (2018) y Jarchas & Escrituras (2020). Su obra también incluye el libro Relatos instantáneos (2010) y los libros de ensayos: En la escritura de otros, ensayos sobre poesía hispanoamericana (2014 y 2018), Al filo del ojo (2018) y Asedios, nueve poetas colombianos (2019). De 1984 a 1988 dirigió la Revista de poesía, cuento y ensayo otras palabras, de la que se publicaron 12 números. De 1989 a 1993 dirigió la colección Cuadernos de otras palabras, de los que se publicaron 10 títulos. Y de 1991 a 2010, dirigió la Revista de poesía Interregno, de la que se publicaron 20 números. En 1985 fundó y dirigió, hasta 2010, Ediciones otras palabras. Poemas, ensayos, narraciones y artículos suyos son publicados en libros, revistas y periódicos impresos y digitales de Colombia y de otros países. Contacto: om.castillo58@gmail.com.
 

 


ENRIQUE DE SANTIAGO | Chile, 1961. Artista visual, poeta, investigador, ensayista, editor, curador y gestor cultural. Ha dictado charlas en diversas universidades, museos y centros culturales. Estudió Licenciatura en arte en la Universidad de Chile y en el Instituto de Arte Contemporáneo (Chile). Desde el año 1984, que expone en muestras individuales y colectivas en diversos países, contando a su haber alrededor de más de 120 exhibiciones. Tiene a su haber 6 libros de poesía. Ha participado en variadas antologías de poesía, tanto en Chile como en el extranjero. Colaboró en el diario La Nación con artículos de arte de los nuevos medios, y en revistas como Derrame, Escaner Cultural y Labios Menores en Chile, Brumes Blondes en Holanda, Adamar de España, Punto Seguido de Colombia, Sonámbula de México, Agulha Revista de Cultura de Brasil, InComunidade de Portugal, Styxus de Rep. Checa, Canibaal de Valencia, España, Materika de Costa Rica y otras publicaciones impresas y digitales. www.flickr.com/photos/enriquedesantiago/

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 10

Número 209 | maio de 2022

Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)

Traduções: Agathi Dimitrouka, Allan Vidigal, Wolfgang Pannek

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022

 






                


 

∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/