1. A forma poética do mundo: notas sobre o poema em prosa “Paisagem”, de Julien Gracq
Raros são os
escritores que dão testemunho, pena à mão, de uma vista inteiramente normal.
JULIEN GRACQ
Preâmbulo
Há muito a história literária vem se mostrando incomodada
em suas tentativas de classificação da obra de Julien Gracq (1910-2008), escritor
que, ao longo de cinquenta anos, recebeu rótulos diversos. Entre as várias razões
que dificultam seu “enquadramento” na tradição literária francesa do século XX,
destaca-se certa ambivalência de Gracq: é difícil imaginar uma escritura mais pessoal
e reconhecível do que esta, porém, ao mesmo tempo, não se pode negar o quanto ela
é marcada por um caráter cambiante. A diversidade de formas da obra gracquiana é
grande: narrativa, poema em prosa, teatro, ensaio, panfleto, romance, prosa de ficção
fragmentária ou memórias pessoais, notas de viagem, enfim, gêneros variados que
o autor domina com elegância. Nesse amplo painel, o tema da paisagem – seja ela
urbana ou campestre – está presente desde os primeiros textos, que não raro obedecem
a uma organização determinada pelos trajetos espaciais: os circuitos de uma península,
o curso de certos rios, as deambulações citadinas, passeios por florestas etc.,
de modo que os contornos da própria escritura gracquiana se ajustam muitas vezes
às linhas esboçadas pelo espaço.
O locus da paisagem na obra gracquiana
O locus da paisagem
no conjunto dessa obra é, pois, onipresente. Gracq era formado em geografia, o que
contribuiu para torná-lo um exímio observador dos espaços. Ele deixou alguns testemunhos
sobre o que motivava seu gosto em descrever paisagens. Numa entrevista de 1958,
ele explicava seu fascínio:
Como
é sabido, a geologia foi uma paixão para os românticos alemães. E há um livro de
um geólogo alemão cujo título sempre me fascinou, é A Face da Terra. [1] A terra é para mim apaixonante. (apud BOIE, 1989). [2]
A citação permite compreender também por que o escritor
elege os lugares de altitude como seus prediletos: eles são pontos privilegiados
para observar de longe uma ampla porção da superfície planetária. Nesse artigo serão
examinadas as estratégias retóricas utilizadas por Julien Gracq num poema – “Paisagem”
– retirado da coletânea intitulada Liberté
grande, na qual o escritor se apodera do motivo da “face da terra”, perseguindo-o
por meio de inúmeras tomadas de vista que acabam engendrando um mundo “novo” e “nu”,
um “planeta passado a escalpe” (expressões empregadas pelo poeta em outro poema:
“Les hautes terres du Sertalejo”).
A coletânea Liberté grande
A primeira edição de Liberté grande (1946) reunia 40 textos escritos entre 1941 e 1943; em
1958 uma segunda edição apareceu, com o acréscimo de outros poemas escritos em 1957;
enfim, um último poema entrou na edição definitiva, de 1969, que contém 49 poemas
dispostos em três seções: Liberté grande,
La Terre habitable e La sieste en Flandres hollandaise. Embora
se trate da única coletânea de poemas do autor, vê-se que a produção do gênero o
ocupou durante um período significativo de sua vida de escritor (mais de vinte anos).
Os textos trazem a marca indubitável do surrealismo, e chegam a se aparentar, por
vezes, à escritura automática, embora não
sejam isso. Nem todos os poemas consagram-se à exploração descritivo-poética do
espaço pelo eu lírico, mas muitos o fazem (além do já citado “Les hautes terres
du Sertalejo”): “Bonne promenade du matin”, “La rivière Susquehannah” (rio do Nordeste
dos E.U.A.), “La vallée de Josaphat”, “Les jardins suspendus”, “La sieste en Flandres
hollandaise” etc. – sem contar os poemas que tratam de paisagens urbanas (”Paris
à l’aube”, “Venise” etc). O título da edição definitiva reforça a comunhão com o
surrealismo. Trata-se contudo de um título estranhamente superlativo, no qual se
descortina alguma tensão. Pode-se perguntar: por que qualificar a liberdade de “grande”?
Uma liberdade pequena parece incongruente… Seja como for, a relação de Gracq aos
surrealistas – que ele admirava – é ambígua: nada do que escreveu Julien Gracq resulta
da ausência de controle pela razão, nem é desprovido de preocupações estéticas;
nisso ele se distancia de dois dos preceitos mais caros a André Breton.
Em seu trabalho de organização das obras completas de Gracq,
Bernhild Boie comenta diversos aspectos dos manuscritos que deixam claro o equilíbrio,
na composição dos poemas, entre uma entrega total ao dinamismo espontâneo das imagens
– num primeiro momento – e, posteriormente, um trabalho rigoroso de revisão, feito
com vistas à obtenção de uma forma precisa, resultante do compromisso entre abertura
(mobilidade das palavras, liberdade de imaginação sem restrições) e composição (materializada
numa estrutura compacta e fechada). Uma forma determinada por um gênero: o poema
em prosa.
Parênteses sobre o poema em prosa
Com vistas à leitura do poema “Paisagem”, parece útil retomar
aqui os elementos de definição do gênero, tal como elaborados por Suzanne Bernard
(1959). O poema em prosa é um tipo de construção textual cíclica (normalmente muito
curta, o que é problemático no caso de Liberté
grande, que conta alguns textos mais longos), nítida e firme. Ele se caracteriza
por uma “constante rítmica”, ou por uma “constante de ideias” (por exemplo, a ideia
inicial do poema pode se reafirmar em cada uma de suas partes, até mesmo por contraste
ou oposição). Suzanne Bernard reconhece, no entanto, que é difícil, se não impossível,
descobrir leis cíclicas em certos poemas de Rimbaud, Max Jacob ou Pierre Reverdy
(os dois últimos, poetas surrealistas), que são “essencialmente anárquicos”. Na
verdade, a autora divide os poemas em prosa em dois grupos: o dos poemas organizados
ritmicamente, muito construídos do ponto de vista formal, com rimas e refrãos; e
outro, em que se encontram poemas livres, que obedecem menos às leis de uma organização
formal imposta a partir do exterior do que às necessidades de uma lógica interna.
O essencial é que todo verdadeiro poema em prosa, seja ele artístico ou anárquico,
deve dar a sensação de um universo fechado, “organicamente completo”. Observação
interessante, quanto a isso, é que até os poetas mais liberados das exigências formais
(e todos os surrealistas se reconheceriam nesse grupo) sempre tenham insistido que
o poema é um “objeto construído”, que o poeta deve criar um conjunto de relações,
pois isso é o que dará ao poema uma unidade interna que pode não ser formal, mas
que fará do texto um todo completo, uma “cristalização poética”, enfim, simplesmente
um poema. A descrição e a narração podem ser empregadas no poema em prosa, porém
como meios de composição do universo textual,
o que às vezes causa certas dificuldades para traçar uma fronteira entre o poema
em prosa e a prosa narrativa ou descritiva. O que importa, contudo, é reconhecer
que o poema é um gênero distinto, e não um híbrido de prosa e poesia, mas sim um
gênero de poesia particular, “que se serve da prosa ritmada com uma finalidade estritamente
poética, e lhe impõe, para isso, uma estrutura e uma organização de conjunto que
obedece não somente a leis estritamente formais”, mas a diretrizes que fazem de
cada poema um “universo completo, organizado, no qual todas as partes se relacionam”,
ou seja, um objeto estético que se basta, e traz em si “seu sentido e seu fim”.
Compreende-se melhor o gênero, também, quando se pensa no caráter insólito de seu
nome – poema em prosa. Vê-se então, de fato, o que ele é: um texto que, por essência,
é fundado com base na união dos contrários: prosa e poesia, liberdade e rigor, anarquia
destruidora e arte organizadora. Em suma, um gênero rebelde, avesso às convenções.
O que não quer dizer rejeição a toda lei, pois “liberdade de forma não significa
ausência de forma” (BERNARD, 1959). [3]
Essas precisões sobre o gênero pareciam úteis para reforçar o que foi dito sobre
Liberté grande, coletânea resultante da
aliança entre espontaneidade imaginativa e trabalho de composição formal. E também
terão sua utilidade na leitura, feita a seguir, do poema “Paisagem”.
“Paisagem”
O poema contém um parágrafo único, apresentado em bloco
(preenche uma única página). Ele é discretamente dividido apenas por cinco pontos,
o que resulta em seis períodos. No interior destes organizam-se frases complexas,
nas quais outros recursos de pontuação (vírgulas, travessões), são utilizados com
parcimônia. O tamanho dos períodos é variável, mas há predomínio dos longos (quatro
entre seis). Apesar da extensão diversa dos períodos, o texto é, à primeira vista,
uniforme. Ele tem uma forma condensada e parece resistir às tentativas de divisão,
o que é reforçado pela sobriedade do substantivo que o intitula: “Paisagem”, como
se se tratasse da paisagem pura, essencial.
Essa impressão de leitura pode ser problematizada quando se passa a observar a organização
interna do poema, a começar por seus dois períodos extremos, o primeiro e o último.
O primeiro diz: “Vítima dessa singular ociosidade que se
combina na queda do dia com os finais de jantar solitários, eu ganhara, naquela
noite, a grande mesa de orientação [5]
do cemitério do Oeste.” Nesse período, que contém elementos narrativos, são introduzidos
temas que remetem à finitude, à morte, o que se vê com as expressões “queda do dia”,
“finais de jantar”, “cemitério”; com o adjetivo “solitários” e o substantivo “ociosidade”,
concordantes com o clima geral soturno. O núcleo do campo semântico aqui está na
ideia de finitude. O último período do poema, por sua vez, diz:
Em algum lugar, um clarim tocava por trás de uma colina
um cheiro de mofo desencantado de caserna, um desses descrescendo solenes de metal que tanto combinam com o crescimento
descuidado da relva entre as pedras, dos malmequeres entre os túmulos, e uma vendedorazinha
suburbana perseguia, nos cantos das estelas, as primeiras violetas.
Aqui o poeta volta a incluir elementos narrativos, e fecha
o poema com temas que se opõem aos do início: o toque do clarim remetendo à alvorada,
ao despertar, ao mesmo tempo em que o “crescimento descuidado da relva” e dos malmequeres
remete à vida, ao dia; o florescimento das violetas alude à primavera (flores típicas
do início dessa estação nas regiões de clima temperado); o núcleo desse campo semântico
é a ideia de começo (começo versus finitude),
e já vem insinuado no sintagma nominal antecedente a este período: “o poodle matinal”.
Esse recorte revela um esquema ternário, pois entre os
dois períodos extremos desenvolve-se o trecho mais longo do poema, que tem uma estrutura
cíclica, como demonstra a oposição entre o cair da noite/início do poema, e o despontar
do dia/fim do poema. Tal contraste parece figurar uma enigmática travessia sem sujeito
(travessia da paisagem ou da noite?). Esse espaço-momento/paisagem-travessia constitui
o “miolo” do poema, tudo aquilo que está entre suas duas pontas, entre seu começo
remetendo à finitude do mundo, e seu fim remetendo ao começo da vida. Algo ocorre,
no texto, que provoca a coincidência entre a dimensão espacial e a temporal: a paisagem
coincide com a travessia do tempo, do entardecer ao alvorecer, do “eu” ao não eu.
O esquema de inversão é reforçado, no último período, pela oposição entre dois substantivos
discordantes: o “decrescendo” musical do clarim e o “crescimento” da relva e dos
malmequeres. Por outro lado, o primeiro substantivo que aparece no texto é “vítima”
(victime), ao passo que o último é “violeta”
(violette). Devido ao posicionamento desses
dois termos, estabelece-se entre ambos uma correlação: vê-se que a estrutura do
poema é reflexiva, devido à aliteração e à assonância. À homofonia acrescenta-se
uma leitura metafórica: as violetas são “vítimas”, o que produz uma espécie de faísca
inesperada quando se junta uma ponta à outra do poema: assim as violetas “perseguidas”
pelos cantos dos túmulos tornam-se comparáveis ao próprio eu poético (que é a “vítima”
do período inicial).
A oposição assim estabelecida reforça a enigmática e paradoxal
travessia sem sujeito e sem ação. No bloco textual mediano – intermezzo que corresponde à paisagem propriamente
dita – não há elementos narrativos (sequer um esboço de ação) que sugiram, mesmo
de longe, a passagem do tempo; não há, tampouco, sinais de movimentação, na paisagem,
por parte do eu poético. Aí encontra-se a paisagem pura: ela aparece, portanto,
emoldurada pelas duas extremidades. A utilização dos elementos narrativos também
funciona como estratégia retórica na composição textual, pois trabalha concretamente
para o efeito de moldura, enquadrando a descrição no centro do texto: a paisagem
é um quadro. O efeito de moldura é reforçado: no trecho inicial (primeiro período),
que contém elementos narrativos, aparece de modo explícito a marca do eu lírico
em sua condição solitária (“eu ganhara”); depois ela desaparece no intermezzo, dando lugar à paisagem pura;
e no último período, por fim, irrompe uma presença humana outra, distinta do eu
poético, algo que é alteridade tanto em relação a ele quanto em relação à paisagem;
trata-se da “vendedorazinha” suburbana, que intervém na paisagem: ela “persegue
violetas”.
Só podem rivalizar
com os sulcos claros das planícies de cereais, [com] as avenidas desiguais cavadas na emoção passageira
de um Mediterrâneo, esses alinhamentos sérios de túmulos transpondo as ondulações
das colinas que se permitem, nos subúrbios de usinas, entorpecer por vezes um canto
da paisagem sob suas crostas de pedra como um Báltico sob as banquisas.
(…)
Era como um sortilégio
lançado à bela cabeleira trêmula do planeta por uma górgona dos pastos, os imóveis
carrapichos de pedra, os tocos de granito, os troncos cerrados ao meio do corpo,
o campo de galhos caídos das capelas funerárias mobiliando com seu bricabraque demente
uma clareira canadense desertada pelos desbravadores na hora da sopa fumegante da
noite.
Tem-se, nesses dois exemplos, conjuntos longos de uma ou
mais frases que utilizam significantes conectados a uma rede semanticamente coerente.
Esse tipo de metáfora é também chamada por alguns de “alegorismo” – allégorein (“falar de outro modo, dizer uma
coisa para significar outra”). Mas o alegorismo não deve ser confundido com a alegoria,
também formada por uma sucessão de metáforas. Fontanier (1765-1844), gramático e
retórico francês, cujas obras foram reabilitadas pelas reedições feitas por Roland
Barthes e Gérard Genette, nos anos 60, estabelece uma diferença entre alegoria,
relato de sentido duplo (um próprio, outro figurado), e alegorismo, que não comporta
leitura dupla. Os desenvolvimentos metafóricos de Gracq não podem de fato dar lugar
a uma leitura dupla; não se trata, para ele, de lançar mão de uma sequência de metáforas
para contar algo que diga outra coisa, tal como faz Baudelaire no célebre soneto
“A uma passante”, no qual a passagem da majestosa desconhecida, com sua perna de
estátua paradoxalmente em marcha, é uma alegoria da própria modernidade baudelairiana.
[6] Em Gracq, o que ocorre é de outra
natureza; o poeta lança mão do pensamento analógico (fundamentalmente metáforas
e comparações) para dizer a paisagem em
sua essência: a paisagem pura. Ele é nesse
sentido fiel aos preceitos estabelecidos por André Breton no Primeiro Manifesto do surrealismo (1924),
segundo os quais uma imagem poética teria tanto mais força quanto mais resultasse
da aproximação de realidades díspares e distanciadas. [7] É de fato o que ocorre com as analogias propostas em imagens como:
“sortilégio lançado à bela cabeleira trêmula do planeta por uma górgona dos pastos”;
ou nessa fortíssima imagem da imobilidade propiciada pela comparação da paisagem
a “uma clareira canadense desertada pelos desbravadores na hora da sopa fumegante
da noite”. Mas a que rede semanticamente coerente estão conectados os significantes
dos encadeamentos metafóricos no coração da paisagem gracquiana? No trecho que vem
sendo chamado de intermezzo, parecem dominar
os motivos da imobilidade, precisamente: os “alinhamentos de túmulos”, o “entorpecimento”
desse canto de paisagem, as “crostas de pedra” comparadas ao Báltico petrificado
sob bancos de gelo, o sortilégio paralisador da “górgona dos pastos” que transforma
em pedra “a cabeleleira trêmula do planeta”, os carrapichos imóveis de pedra, os
tocos de granito, os troncos cerrados, todo o bricabraque deixado para trás em amontoado
de ruínas (ecoando, nas imagens do amontoado de coisas, o universo baudelairiano,
a melancolia). [8] O intermezzo – a paisagem – também se opõe
assim às duas extremidades do poema, em que os elementos narrativos figuram certa
mobilidade no mundo (“eu ganhara”, “um clarim tocava”, “uma vendedorazinha suburbana
perseguia”…). Uma tensão entre mobilidade e fixidez perpassa o poema.
Por outro lado, há elementos mediadores entre as duas pontas
do texto. Quais seriam? A terra? O cemitério? A paisagem descrita é heteróclita:
ela reúne elementos da natureza (as plantas etc.) e da cultura (as estelas funerárias
etc.). Certos sintagmas parecem funcionar como a expressão de uma mediação entre
natureza e cultura: “sulcos claros das planícies de cereais” (feitos pelo homem,
na terra), “górgona dos pastos” (o mito transplantado no reino vegetal), “carrapichos
de pedra”, “tocos de granito” (esculturas representativas da natureza?) etc. A própria
paisagem nasce de uma mediação, pois situa-se num ponto espacial que está a meio
caminho, entre duas realidades espaciais distintas: início da não-cidade, fim da
cidade. Trata-se de uma paisagem às margens (outra predileção temática dos surrealistas).
É sobretudo devido ao modo como o poeta se serve do polo metafórico que se descortina
o feitio surrealista deste poema: o caráter insólito e aparentemente desordenado
das imagens, resultante do raciocínio analógico que preside à concepção das mesmas.
Isso, no entanto, não quer dizer que neste poema não haja ordem alguma. “Paisagem”
é um texto falsamente anárquico, como de resto todos os poemas em prosa. Resta se
perguntar, enfim: mas o que ele significa?
Trata-se de um texto repleto de sentido, como se vê por sua totalidade de efeito,
sua concentração. Contudo, ele é intensamente gratuito, mundo que basta a si mesmo.
Paradoxalmente, no entanto, deste poema se irradia, para o leitor, um universo inesgotável
de sugestões. Ao explorar assim a paisagem por meio da linguagem, ao produzir sentido gratuitamente, Julien Gracq
desvenda um pouco da forma poética do mundo.
PAISAGEM [9]
Vítima dessa singular ociosidade que se combina na queda
do dia com os finais de jantar solitários, eu ganhara, naquela noite, a grande mesa
de orientação [10] do cemitério do Oeste.
Só podem rivalizar com os sulcos claros das planícies de cereais, com as avenidas
desiguais cavadas na emoção passageira de um Mediterrâneo, esses alinhamentos sérios
de túmulos transpondo as ondulações das colinas que se permitem, nos subúrbios de
usinas, entorpecer por vezes um canto da paisagem sob suas crostas de pedra como
um Báltico sob as banquisas. Era como um sortilégio lançado à bela cabeleira trêmula
do planeta por uma górgona dos pastos, os imóveis carrapichos de pedra, os tocos
de granito, os troncos cerrados ao meio do corpo, o campo de galhos caídos das capelas
funerárias mobiliando com seu bricabraque demente uma clareira canadense desertada
pelos desbravadores na hora da sopa fumegante da noite. Lá e acolá um machado esquecido,
o grande aparato das pás perto de uma cova há pouco remexida não faziam apenas aumentar
a ilusão. Moitas de espinheiros entrelaçando-se a pérfidos arames farpados, era
também de repente toda a música dos bombardeios, quando a paisagem arejada, tornada
mais leve por um sopro traquinas, permite por um minuto uma brincadeira mais livre
às regras da lei da gravidade – enfim não era proibido, sem dúvida, vasculhar o
imprevisto dessas curiosas lixeiras, era até mesmo espantosa a ausência travessa
ao redor das latas de lixo do poodle matinal.
Em algum lugar, um clarim tocava por trás de uma colina um cheiro de mofo desencantado
de caserna, um desses descrescendo solenes
de metal que concordam tão bem com o crescimento descuidado da relva entre as pedras,
dos malmequeres entre os túmulos, e uma pequena vendedorazinha suburbana perseguia,
nos cantos das estelas, as primeiras violetas.
NOTAS
1. Referência à obra monumental do geólogo austríaco Eduard Suess (1831-1914),
grande especialista dos Alpes, que publicou os dois tomos assim intitulados (Das Antlitz der Erde, t. I, 1885, t. II,
1888); foi a primeira grande síntese da história tectônica do planeta. Suess descobriu
o supercontinente Gondwana e o mar Tethys, os vestígios mais importantes da forma
antiga da Terra, agora desaparecidos.
2. Todas as citações de Julien Gracq foram retiradas do
tomo I da edição das Œuvres complètes,
organizadas por Bernhild Boie (1989). Todos os trechos de Gracq e de B. Boie citados
nesse trabalho foram por mim traduzidos.
3. Essas considerações sobre o gênero poema em prosa são
a retomada, em resumo, das ideias de S. Bernard, autora que citei e parafraseei
nesse parágrafo, até aqui.
4. Uma exceção diz respeito à primeira e à última palavra
do poema, como será observado oportunamente.
5. Sobre a expressão “mesa de orientação”, ver a nota à
tradução do poema, no anexo.
6. Bela leitura de Claude Leroy, cujas notas conservo,
de suas aulas em Paris X Nanterre.
7. Ideias de Pierre Reverdy, que Breton inclui no Manifesto.
8. Ver a esse respeito a leitura feita por Jean Starobinski
do poema “Le Cygne”, de Baudelaire: La Mélancolie
au miroir, Paris, Julliard, 1975.
9. Liberté grande (1946), Julien
Gracq. Tradução de Flávia Falleiros.
10. A “mesa de orientação” é uma mesa circular de pedra na qual figuram os
pontos cardeais e os principais acidentes topográficos visíveis do ponto em que
ela se encontra. É uma pequena construção de pedra, coberta por uma placa de esmalte
na qual foi pintada a paisagem das redondezas, que pode ser avistada dali. O observador
nesse poema (o eu poético) encontra-se, pois, num lugar alto e plano: o cemitério
situa-se num planalto.
Referências
bibliográficas
BERNARD,
Suzanne. Le poème en prose. De Baudelaire à nos jours. Paris:
Nizet, 1959.
BOIE, Bernhild. “Notice” e “Notes”. IN: GRACQ, Julien. Œuvres complètes. Paris: N.R.F./Gallimard,
“Bibliothèque de la Pleiade”, 1989, tomo I, pp. 1209-1239.
FONTANIER,
Pierre. Les Figures du discours (1821-1827),
ed. Gérard Genette. Paris: Flammarion, “Champs”, 1968.
GRACQ,
Julien. “Paysage”. IN: Liberté grande
(1946). Œuvres complètes. Paris: N.R.F./Gallimard,
“Bibliothèque de la Pleiade”, 1989, tomo I, p. 297.
2. Projeções do eu na escritura da cidade em La forme d’une ville
À memória de J.G.
JULIEN GRACQ
Preâmbulo
A história literária sempre se mostrou incomodada em suas
tentativas de classificação do escritor Julien Gracq (1910-2008) e de sua obra que,
ao longo de quase cinquenta anos, recebeu os mais diversos rótulos. Numa significativa
publicação coletiva sobre Gracq relativamente recente, essas tergiversações pareciam
enfim ter se resolvido, ao menos segundo seu título – Julien Gracq, un écrivain
moderne – pelo qual o escritor adentrava, enfim, a esfera da modernidade (MURAT
et al., 1994). Mera ilusão: um estudo posterior não menos relevante trata o mesmo
Gracq como o contrário disso, incluindo-o numa lista de “anti-modernos” que vai
de Joseph de Maistre a Roland Barthes (COMPAGNON, 2005). A contradição acima evocada
dá ideia da ambivalência desta obra caracterizada por uma escritura tão pessoal
e reconhecível e, ao mesmo tempo, marcada por um caráter fortemente cambiante, em
que coexistem gêneros tão diversos quanto: romance, poema em prosa, teatro, panfleto,
crítica literária, ensaios sobre pintura, prosa fragmentária composta com elementos
de memórias pessoais, notas de viagem, narrativa de cunho autobiográfico etc. Transcendendo
as classificações genéricas, ela tampouco pode ser vinculada de modo peremptório
a algum movimento: note-se que Julien Gracq foi próximo dos surrealistas, porém não propriamente um surrealista. Enfim, a própria imagem pessoal
de Gracq escapa a toda facilidade de classificação: escritor das margens, profundamente
avesso à comercialização desenfreada das letras com seu cortejo de prêmios, [1] Gracq foi um homem de personalidade quase
secreta, tendo concedido pouquíssimas entrevistas nas quais nunca falou de sua vida
pessoal, e pouco tendo se deixado fotografar. Em suma, um escritor que tinha uma
concepção altamente exigente do trabalho literário – para ele revestido de um peso
existencial – e para o qual existir era, realmente, sinônimo de escrever. Sua estreia
se deu pela via do romance, em 1939, com a publicação de Au Château d’Argol, que lhe valeu a admiração e a amizade incondicionais
de André Breton. A este primeiro romance seguiram-se outros quatro, até 1958. Posteriormente,
houve um silenciamento da via romanesca e uma passagem do ficcional ao universo
da prosa fragmentária com elementos autobiográficos (exemplos: Lettrines I, de 1967, Lettrines II, de 1974 e En lisant en Ecrivant, 1980). Essa escritura de fragmentos evoluiu,
por sua vez, para a narrativa de cunho autobiográfico, notadamente com Les Eaux étroites, de 1976, e La Forme d’une ville, de 1985.
A cidade como fôrma
La Forme d’une
ville [2] – objeto de estudo neste
ensaio [3] – parece anunciar algum discurso
sobre a arquitetura urbana, impressão, aliás, confirmada pela capa da editora José
Corti, em que se estampa a reprodução de um mapa de Nantes. Iniciando-se sem prólogo
ou prefácio, a narrativa conta dez capítulos que não contêm subtítulos ou qualquer
tipo de numeração. Ao longo do texto vai se tramando uma complexa rede em que se
mesclam deambulações imaginárias, descrições cartográficas muito precisas da cidade
(Gracq era geógrafo e exímio observador dos espaços a seu redor) e memórias de leituras
evocadas pelo recurso frequente a citações (com ou sem aspas) e alusões literárias
as mais variadas (ver-se-á mais adiante que o próprio título e incipit do texto são uma citação de Baudelaire).
No primeiro e segundo parágrafos da narrativa, o que se vê é uma reflexão de caráter
geral sobre as transformações sofridas pelas cidades na segunda metade do século
XX, conjugada a considerações sobre o impacto que a intimidade com certas cidades
pode causar na formação de uma personalidade. O pronome de primeira pessoa do singular,
no entanto, não aparece ainda. O narrador utiliza a terceira pessoa “on” intercalada com a primeira pessoa do
plural “nous”, que também tem muitas vezes,
em francês, uma função de indefinição do sujeito. Os dois primeiros parágrafos constituem
assim uma espécie de pequeno preâmbulo concebido em ruptura com o que virá no parágrafo
seguinte quando, depois de discorrer sobre a experiência genérica do “homem da cidade”,
o narrador declara repentinamente: “Não foi assim que eu vivi em Nantes. O regime
de internato, nos anos vinte deste século, era estrito”. A frase anuncia de modo
bastante afirmativo um “pacto autobiográfico” (LEJEUNE, 1996), pois remete diretamente
a um período da infância e adolescência do autor/narrador: é sabido que Gracq –
pseudônimo de Louis Poirier – nasceu em Saint-Florent-le-Vieil, pequena cidade localizada
a cerca de sessenta quilômetros de Nantes, e que ao completar onze anos (1921) foi
enviado por sua família para a capital da Bretanha histórica, onde permaneceu até
1928 a fim de continuar seus estudos como interno do Lycée Clémenceau. O leitor verá depois que a narrativa cobre precisamente
estes sete anos de internato, embora seja impossível ignorar que ela também remete
a outros fatos importantes da vida de Gracq, por exemplo o encontro capital, ocorrido
no ano de 1939, em Nantes, com André Breton (LEUTRAT, 1972).
Esses elementos apontam na direção da autobiografia, ao
menos de acordo com uma definição bastante consensual: “Narrativa retrospectiva em prosa, que uma pessoa real faz de sua própria
existência, sublinhando sua vida individual, especialmente a história de sua personalidade.”
(LEJEUNE, 1996). [4] Com efeito, La Forme d’une ville não deixa de ser o relato
autobiográfico de uma volta à infância e à adolescência e, portanto, conta a história
da formação do narrador. Ao avançar na leitura, contudo, descobre-se que o texto
é de certo modo esvaziado de certos traços importantes na caracterização da autobiografia:
não há nele anedotas significativas (por exemplo, quase nada é informado sobre os
colegas de classe e os professores do jovem interno), nem outros componentes tradicionais
do gênero, como “análise psicológica, desenho de um tecido social, relações afetivas,
cronologia” (BOIE, 1995). A própria cidade de Nantes aparece, no fundo, como praticamente
desconhecida para aquele jovem que lá viveu, na maior parte do tempo dos sete anos
de internato, confinado entre os muros do liceu, de onde saía, segundo afirma, apenas
uma vez a cada quinzena, e sempre acompanhado. No entanto, o narrador afirma que
essa “reclusão tão estrita se dava em sentido único”:
Duas vezes por dia, com a vaga dos externos, o rumor de
Nantes vinha até nós como a maré, ora filtrado, ora orquestrado.
(…)
Eu vivia no centro de uma cidade quase mais imaginada do
que conhecida, da qual eu possuía referenciais sólidos e em que certos itinerários
me eram familiares, mas cuja substância, e até mesmo o próprio odor, conservava
algo de exótico.
(…) sentindo-me ainda mais livre, devido à reclusão, para
tomar minhas distâncias com seus referenciais materiais [de Nantes], eu a remodelei segundo o contorno de meus devaneios
íntimos, dei-lhe carne e vida segundo a lei do desejo, muito mais do que de acordo
com a da objetividade.
Assim, é numa cidade “metade conhecida, metade sonhada”
que ocorrem as deambulações do narrador. Suas evocações do espaço urbano são suscitadas
por meio de uma energia inventiva que lembra a famosa observação de Leonardo da
Vinci sobre os procedimentos abstratos na pintura representativa: la pittura
è cosa mentale. Em La Forme d’une ville,
a “pintura representativa” de Nantes, repleta de exatidão cartográfica, é resultante
de procedimentos de pura abstração. Entre eles, um se destaca por sua forte potencialidade
criadora: a prática dupla da citação/alusão e da reescritura de fragmentos alheios,
ou “transtextualidade” (GENETTE, 1982), de que o narrador lança mão recorrendo à
sua incomensurável memória de leitor.
A cidade vade-mecum
Muitos são, nesta narrativa, os caminhos textuais que levam
a Nantes. O narrador utiliza com frequência um procedimento comparativo que lhe
permite re-encontrar (ou re-ler) Nantes em citações literárias que nada têm a ver
com aquela cidade. Por exemplo: quando, a propósito de certo bairro nantês, evoca
a primeira estrofe do poema “Bruxelles”, de Rimbaud – “Boulevard sans mouvement
ni commerce”/“Bulevar sem movimento nem comércio” –, assimilando-o a Nantes; mais
adiante, quando explica o quê, na lembrança que tem da Nantes da época do internato,
torna mais próximos dele “certos poemas de Rimbaud, como “Ouvriers”, e cita, entre parênteses, os
versos: “La ville avec ses fumées et ses bruits de métiers nous suivait très loin
dans les chemins…”/“A cidade, com suas fumaças e os ruídos dos teares, seguia-nos
por muito tempo pelos caminhos adentro…” Em outro trecho, Nantes aparece como palco
do crime de um conto d’Edgar Allan Poe, cuja ação se passa na verdade em Paris.
[6] Noutra passagem, ao evocar a catedral
do centro da cidade, ele integra a seu texto – sem inclusão de aspas – “o velho monstro negro, a besta evangélica”
(itálicos de Gracq) de que falava Paul Claudel em “Développement de l’Église” (CLAUDEL).
Em dado momento, divagando sobre o sentido e funções dos “terrenos vagos” numa cidade,
o narrador deambula por diversos locais de Nantes, entre eles o parque Procé, o
que lhe dá a ocasião de se lembrar de André Breton. Este, como se sabe, viveu em
Nantes quando muito jovem; Breton evocou a cidade em Nadja (1928), num trecho em que relatou suas longas caminhadas por aquele
mesmo parque, imerso na leitura dos poemas de Rimbaud (BRETON). Vê-se que por meio
da livre associação de ideias, o narrador se embrenha por caminhos semelhantes a
uma câmara de espelhos. Todos estes procedimentos fazem com que o objeto Nantes
seja incansavelmente submetido a sucessivas iluminações diferentes. Os poucos exemplos
acima (há muitos outros) ilustram na verdade um curioso processo de escritura semelhante
aos encadeamentos criados pela mise en abîme
(porém uma mise en abîme não romanesca,
e de natureza completamente abstrata): a cidade gracquiana, ainda que descrita com
as minúcias de um olhar arguto de geógrafo, torna-se sobretudo, para além disso,
representação da representação, porque ela é um tecido elaborado pela justaposição
de inúmeras paisagens urbanas textuais lidas alhures, todas elas assimiladas – direta
ou indiretamente – a Nantes, todas elas em co-existência, lado a lado, no imaginário
pelo qual evolui o eu do narrador. Gracq afirma não ter a intenção de “fazer o retrato
de uma cidade”. Ele insiste em sua intenção de mostrar como Nantes o formou, incitando-o,
ou mesmo obrigando-o, “a ver o mundo imaginário” para o qual despertava por meio
de suas leituras, e define a cidade como um vade-mecum,
desses
(…) que se folheia, que se rabisca e corrige sem maiores
cuidados, repertório a cada instante, e sempre, familiar e inconscientemente consultado,
trampolim inusável para a ficção e, ao mesmo tempo, rede de sulcos mentais cavados
e endurecidos em mim pelos caminhos que ela me impunha.
A antiga cidade – a antiga vida – e a nova se sobrepõem
em meu espírito, mais do que se sucedem no tempo: estabelece-se de uma à outra uma
circulação intemporal que libera a lembrança de qualquer melancolia e de qualquer
peso (…) [7]
O edifício imenso da lembrança
A imagem da sobreposição de temporalidades lembra o procedimento
psicanalítico de interpretação dos sonhos que elaborou Freud, inspirado em certa
leitura pessoal da cidade. Em mais de uma ocasião, o psicanalista vienense deixou
claro seu fascínio por algumas grandes cidades, relatando que desde muito cedo,
em seus próprios sonhos, havia se exprimido um forte desejo de visitar capitais
como Paris e Roma (FREUD, 1998). Esta última, sobretudo, serviu-lhe de inspiração
para o modelo da co-presença subjetiva de épocas distintas na memória, pelo fato
de os vestígios da Antiguidade romana se sobreporem às edificações do presente,
como se ambas as temporalidades ocupassem o mesmo espaço (em oposição a Pompeia,
tomada por Freud como paradigma da cidade soterrada, petrificada num “agora” passado).
Em O Mal-estar na civilização (FREUD,
1971), o psicanalista aprofundou a leitura de Roma como estratificação de diferentes
épocas em que o passado, por meio da materialização na pedra, irrompe no presente
(graças a monumentos e construções diversos, vestígios legados de épocas transcorridas,
ruínas das ruínas). Isto lhe serviu de modelo para a imagem da estratificação da
própria psique, na qual as petrificações do passado podem emergir do esquecimento
para chegar à consciência. Foi a partir daí que Freud elaborou a noção psicanalítica
de “vestígio” (ou traço) – essencial no trabalho do psicanalista – por analogia
com o trabalho do arqueólogo. [8] Nessas
ideias fica manifesto um paralelismo entre a legibilidade da vida psíquica e a legibilidade
da cidade, o que permite ver em Freud um pioneiro das abordagens do espaço urbano
como texto repleto de signos.
O objetivo deste ensaio não é, contudo, propor uma interpretação
psicanalítica de La Forme d’une ville.
Se a noção freudiana de “vestígio” – bem como as condições de sua gênese intimamente
vinculada à cidade como texto – foi evocada acima, isso se deve ao fato de a mesma
remeter a dois outros autores cuja lembrança também pode instruir proveitosamente
a leitura desta Nantes gracquiana na qual o passado do narrador coexiste com o presente
da narração. Nessa perspectiva, cumpre apontar agora para a reelaboração feita por
Walter Benjamin deste procedimento psicanalítico (a busca do vestígio) e, por outro
lado, para a grande empreitada de Marcel Proust em À la recherche du temps perdu. Melhor dizendo: trata-se na verdade de
propor uma leitura de La Forme d’une ville
a partir do entrecruzamento – da colagem – de certos elementos colhidos em Freud,
Proust e Benjamin.
Entre outras fontes inspiradoras de seu projeto inacabado
sobre a Paris do século XIX (BENJAMIN, 1989), sabe-se que Benjamin recorreu ao procedimento
psicanalítico freudiano de interpretação dos sonhos anteriormente apontado. No chamado
Livro das Passagens, o pensador berlinense
empreendeu, também à moda do arqueólogo, tal qual Freud anteriormente, a busca de
um outro inconsciente: o da modernidade. Para isso, procedeu tanto por meio da “escavação”
metafórica das construções mais significativas da modernidade contidas no espaço
urbano parisiense (como as galerias cobertas ou as grandes exposições universais),
como ainda pelo esforço em apreender o passado da “capital do século XIX” a partir
de uma série de fatos concretos de menor importância, como os nomes das ruas, além
de vários outros detalhes insignificantes – “os farrapos”, “os dejetos”, objetos-vestígio
por excelência segundo Benjamin – adotando para isso, como método de trabalho, a
“montagem literária”, de acordo com suas próprias palavras. [9] Mas tais formulações de Benjamin foram
sem dúvida também modeladas de acordo com o forte impacto exercido sobre ele pela
obra de Proust, na qual o interesse pelo passado e sobretudo por sua rememoração
desempenha papel central, como é de todos sabido. O berlinense se interessou desde
bem jovem pela Recherche tendo chegado
inclusive a traduzir para o alemão [10]
alguns de seus volumes. Além disso, dialogou constantemente com a obra proustiana,
não apenas no ensaio “A imagem de Proust”, mas ainda no próprio Livro das Passagens (o autor francês é citado
ali inúmeras vezes), em longos trechos de Infância
berlinense e em outros escritos (PALMIER, 2006).
A despeito de todas as diferenças entre Proust e Julien
Gracq, a leitura do ensaio de Benjamin sobre o primeiro dá ao leitor de La Forme d’une ville a ocasião de viver uma
curiosa experiência: por longos excertos, sua sensação é a de estar lendo um ensaio
sobre a narrativa de Gracq. [11] Logo
de início, ao apontar para o caráter inclassificável da longa narrativa proustiana,
Benjamin observa o fato de que sua estrutura conjuga poesia, memorialística e comentário
expressos numa sintaxe complexa, desdobrada em “frases torrenciais” (BENJAMIN, 1987),
observações que poderiam perfeitamente se aplicar à narrativa gracquiana, à exceção
da amplitude dos períodos, sem dúvida mais curtos em Gracq. Isso, todavia, nada
subtrai à complexidade da prosa gracquiana, também caracterizada, como a proustiana,
por uma espécie de escoamento contínuo, de transbordamento do sentido, que pode
igualmente encontrar na metáfora utilizada por Benjamin para a prosa da Recherche uma definição pertinente: ambas
são um “Nilo da linguagem” (1987). Benjamin compreende que não haveria interesse
algum em propor para a obra de Proust uma interpretação psicológica, e optou, antes,
por se concentrar na complexidade da rememoração tecida ponto a ponto por palavras,
muito mais do que na experiência vivida relatada pelo narrador, abordagem que se
impõe também no caso da narrativa de Gracq, como já foi demonstrado por várias reflexões
feitas nos parágrafos anteriores.
O nome de Marcel Proust (bem como diversos títulos de sua
autoria) figura como um dos mais citados por Julien Gracq no conjunto de sua obra
(cerca de uma centena de citações contidas nos dois volumes da coleção “Bibliothèque
de la Pleiade” são repertoriadas no Índice remissivo do volume II). Em La Forme d’une ville, no entanto, Proust
é nomeado de modo explícito uma única vez. Indiretamente, ele aparece noutro trecho,
quando o narrador se apropria de uma frase extraída do final da célebre passagem
do bolinho (a madeleine), em Du côté de chez Swann (PROUST, 1987). Gracq
diz então que, enquanto escreve La Forme d’une
ville, não se separa dele a ideia da existência de “um tempo reversível”, de
“um poder de ressurreição próprio ao (…) passado de Nantes”, “no qual as pedras
irregulares do pavimento das ruas de outrora não servem de arrimo ou apoio para
o edifício imenso da lembrança”. A alusão
negativa (e velada) aponta para o intuito de se demarcar deliberadamente de Proust,
[12] o que em certo sentido pode ser
considerado como uma tentativa vã, pois os projetos proustiano e gracquiano (em
La Forme d’une ville) têm algo de muito
relevante em comum: ambos se materializam pelo viés da imaginação criadora, num
todo coeso e sintético no qual se articulam conscientemente passado e presente lado
a lado, num lugar único: a linguagem.
Em La Forme d’une
ville, expressa-se, articulada à função formadora da cidade-molde sobre a qual
se projeta o eu gracquiano, uma concepção da literatura como modo de descoberta
e conhecimento do mundo. O “edifício imenso
da lembrança” desenha-se assim num movimento complexo que progride do eu e dos
livros à cidade, e desta à escritura de uma Nantes inicialmente mais sonhada que
vivida, depois re-encontrada e re-lida em textos alheios para, enfim, chegar a uma
Nantes escrita e re-escrita (vade-mecum)
pelo eu que narra. Em suma: um movimento que, pela acumulação ad infinitum de citações reunidas pela colagem,
vai da leitura à escritura, resgatando das profundezas de uma incomensurável memória
de leitura, os vestígios que explicam
o caminho percorrido do leitor ao escritor, e iluminam também, a um só tempo, a
existência intacta do menino de outrora no homem presente. Assim o caudaloso fluxo
de lembranças contido pelo molde da escritura elegante de La Forme d’une ville conta, entre livros e lugares, o processo que forjou
o ser autonomeado Julien Gracq e não, de modo algum, a vida de um discreto senhor
chamado Louis Poirier.
NOTAS
1. Julien Gracq
recusou o prêmio Goncourt que lhe foi concedido em 1951 pelo romance Le Rivage des Syrthes (1951).
2. A edição
utilizada neste ensaio é a da coleção “Bibliothèque de la Pleiade”; apenas as
páginas serão indicadas doravante (V. Ref. bibl.). Todas as citações feitas de
originais em francês (de Gracq e de outros autores) foram traduzidas por mim.
3. Neste curto
ensaio apresento apenas uma ínfima parte dos resultados obtidos numa pesquisa
feita graças a um auxílio do CNPq (bolsa de estágio de Pós-doutorado), instituição
à qual exprimo aqui meus agradecimentos; o material então recolhido (em 2008)
foi bem mais abundante do que eu imaginara ao iniciar este trabalho, entre
outras razões pelo fato de o auxílio do CNPq ter me dado a possibilidade de
consultar in situ o Centre de documentation Julien Gracq, da
Universidade de Angers. Um livro com as reflexões resultantes deste estágio
pós-doutoral encontra-se em preparação.
4. Para um
aprofundamento da definição de Ph. Lejeune, Cf. a obra citada.
5. Classe
preparatória para o ingresso na École
Normale Supérieure.
6. Nesse sentido
uma das alusões a Poe é particularmente significativa: em “Le Mystère de Marie
Roget” (título do conto em francês), o norte-americano empreende a elucidação
de um crime cometido no subúrbio de Nova Iorque sem, no entanto, dispor de
outras informações além daquelas trazidas pelos artigos dos jornais. Ele
transpõe o fait divers em questão dos
Estados Unidos para a Europa, e situa a cena do crime em Paris. Com Gracq,
dá-se mais uma transposição, com a assimilação do décor de Poe a um lugar ermo de Nantes.
7. Em relação às
transformações ocorridas em Nantes, houve dois momentos importantes: o
soterramento dos rios (nos anos 20), e a reconstrução posterior à Segunda
Guerra mundial, pois como muitas cidades francesas do oeste, Nantes também foi
duramente castigada pelos bombardeios.
8. Em
arquelogia, o vocábulo designa todo material – fósseis, artefatos, monumentos
etc. – que tenha restado da vida dos povos antigos e que permita estudar suas
culturas, costumes e condições de vida.
9. A utilização
desses objetos-trapo também remete à metáfora baudelairiana, cara a Walter
Benjamin, do trapeiro.
10. Em colaboração
com Franz Hessel.
11. Não me consta
que Benjamin tenha escrito sobre Gracq, autor que teria sem dúvida apreciado, e
cuja obra de romancista, ao menos, poderia ter conhecido, pois Au Château d’Argol veio a público antes
da morte do filósofo alemão; pode-se imaginar que o fato de o jovem Gracq ter
sido agraciado com a aprovação intelectual de André Breton chamasse a atenção
de Benjamin para a sua estreia.
12. Julien Gracq
foi um admirador de Proust, embora tenha emitido certas reservas em relação à
sua obra, sobre as quais não posso me aprofundar neste ensaio por falta de
espaço; concentro-me, portanto, apenas naquilo que interessa diretamente o
desenvolvimento proposto a seguir.
Referências bibliográficas
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FLÁVIA FALLEIROS | Brasil, 1959. Autora de Paris dans la littérature française des années 20: contribution à l’histoire de la représentation (1998). Publicou também, na França e no Brasil, diversos ensaios sobre narrativas francesa, portuguesa e brasileira. Traduziu O Camponês de Paris, de Louis Aragon (1996), Alá e as crianças soldados, de Ahmadou Kourouma (2003), As cores da infâmia, de Albert Cossery (2004). Contato: flavianafalleiros@gmail.com.
ENRIQUE DE SANTIAGO | Chile, 1961. Artista visual, poeta, investigador, ensayista, editor, curador y gestor cultural. Ha dictado charlas en diversas universidades, museos y centros culturales. Estudió Licenciatura en arte en la Universidad de Chile y en el Instituto de Arte Contemporáneo (Chile). Desde el año 1984, que expone en muestras individuales y colectivas en diversos países, contando a su haber alrededor de más de 120 exhibiciones. Tiene a su haber 6 libros de poesía. Ha participado en variadas antologías de poesía, tanto en Chile como en el extranjero. Colaboró en el diario La Nación con artículos de arte de los nuevos medios, y en revistas como Derrame, Escaner Cultural y Labios Menores en Chile, Brumes Blondes en Holanda, Adamar de España, Punto Seguido de Colombia, Sonámbula de México, Agulha Revista de Cultura de Brasil, InComunidade de Portugal, Styxus de Rep. Checa, Canibaal de Valencia, España, Materika de Costa Rica y otras publicaciones impresas y digitales. www.flickr.com/photos/enriquedesantiago/
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 10
Número 209 | maio de 2022
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)
Traduções: Agathi Dimitrouka, Allan Vidigal, Wolfgang Pannek
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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